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quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

“A miséria de grande parte da população não encontra explicação que a resistência das classes dominantes a toda mudança capaz de pôr em risco seus privilégios”. (Celso Furtado)

 

          



     Política não se discute?

 

A política é uma atividade humana em cujo cerne está o diálogo, a deliberação; portanto, a discussão, no sentido de exposição conflitante, polêmica de pontos de vista, de julgamentos, interpretações, avaliações sobre a melhor forma de organizar uma sociedade em consonância com valores como igualdade e justiça. A política, ensina Hanna Arendt, diz respeito à coexistência e à associação de seres humanos diferentes. Como objeto de reflexão filosófica, a política descerra-se como um campo de questões que norteiam a convivência dos homens e dos grupos humanos entre si, e também as relações deles com o mundo. No entanto, o ditame que sentencia “política não se discute” quer dizer uma coisa que, sendo estranha ao fenômeno político, pretende levar à desmobilização dos atores sociais da participação política: não se deve tomar a política como assunto do falatório do senso comum, porque, nas esferas interacionais mediadas pelo senso comum, os interlocutores mobilizam, na conversação, uma série de crenças simplistas ou falsas, preconceitos, ideologias, lugares-comuns, representações coletivas de mundo que se vão acumulando na intercalação animados com as paixões tristes e ressentidas que levam a maus encontros e perturbam o contrato comunicativo tacitamente estabelecido. A política não é objeto de exame crítico, de reflexão sistemática, articulada e cuidadosa na definição e articulação dos conceitos largamente usados no debate calcado sobre o senso comum. O senso comum não consegue trabalhar os conceitos teóricos , não consegue pensá-los nem articulá-los para compor um discurso coerente e teoricamente bem fundamentado. O senso comum não se ocupa da problematicidade das questões que emergem de cada turno de fala dos interactantes. A conversação do senso comum leva os interlocutores a desconsiderarem os pressupostos de seus enunciados. Portanto, a discussão sobre política, no âmbito do senso comum , se converte, com muita facilidade, em bate-bocas que levam, quase sempre, a arrelias, a mútuas incompreensões, reforçando nos participantes o sentimento de que toda aquela disputa verbal foi em vão, porque nenhum deles modificou sua percepção da realidade construída e reconstruída no discurso de cuja produção eles se encarregavam. No senso comum, os interlocutores são muito mal instrumentalizados teoricamente para pretender refletir sobre “a questão política”, sobre os problemas complexos da realidade sócio-histórica em que vivem. Conceitos como “neoliberalismo”, “capitalismo de mercado”, “mercado”, “ideologia”, “Estado de direito”, “democracia”, “classe social” e outros tantos que definem o domínio discursivo da política como problema científico e filosófico a ser pensado com seriedade teórica são regularmente ignorados pelos interactantes que se movem nas esferas do senso comum. Na insistência no velho preconceito segundo o qual “o Brasil quebrou por causa da roubalheira do PT”, o senso comum assume como verdade incontestável uma visão simplista e equivocada acerca da realidade sociopolítica e econômica do Brasil, ao mesmo tempo que não vê que a realidade é muito mais complexa do que sugerem suas opiniões grosseiras. O senso comum ignora, por exemplo, que o governo Lula jamais rompeu com o sistema de acumulação neoliberal, com que os antipetistas, mesmo sem o saber, parecem simpatizar. O senso comum ignora a incompatibilidade entre o neoliberalismo, cujo significado também desconhece, e a democracia, cujo significado não compreende bem ou, o que dá no mesmo, compreende confusamente. O senso comum também faz vistas grossas ao conservadorismo do Estado brasileiro, que busca sempre assegurar os privilégios das elites econômicas, as relações de dominação, bem como busca reproduzir o modo de exploração que perpetua os padrões existentes de desigualdade de renda, riqueza e privilégio, independentemente do desempenho econômico do país. O senso comum não consegue levar em consideração as mudanças macroeconômicas na economia brasileira que, realizando a transição do Brasil de uma economia de Industrialização por separação de Importações para o neoliberalismo, tornaram a economia brasileira uma economia de baixo crescimento desde que, no fim dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, o Brasil ingressou de vez no neoliberalismo, com uma democracia frágil que convive com profundas desigualdades socioeconômicas. Por fim, a discussão política, no senso comum, não leva em conta as mudanças estruturais da economia brasileira, ocorridas na década de 1990. Com o novo Sistema de Acumulação então vigente, o setor secundário da economia brasileira, ou seja, o setor manufatureiro (industrial) declinou, e a capacidade produtiva caiu significativamente, sobretudo nos ramos tecnologicamente mais sofisticados da indústria. Se, por um lado, a economia perdeu a capacidade de gerar “bons empregos”, o Estado foi-se demonstrando cada vez menos eficiente no enfrentamento dos problemas do crescimento, na reestruturação produtiva e na busca por coordenar políticas econômicas. As reformas neoliberais feitas no Brasil foram incorporadas à Constituição por meio de regras fiscais que se justificavam pela necessidade de estabilização da inflação e da “boa governança”. Consequentemente, entre nós, o neoliberalismo ganhou legitimidade e reforçou sua influência sobre o tecido institucional do país, minando as aspirações democráticas previstas pela Constituição. Mas tudo isso é ignorado pelo senso comum, que limita toda a discussão política ao comportamento ético dos atores políticos, à polarização partidária, ao mesmo tempo que faz desfilar toda sorte de preconceitos como o de classe (o senso comum da classe média prefere culpabilizar os mais pobres pelo desastre econômico do país, já que estes, como os índios aos olhos dos colonizadores , não apreciam a labuta diária, preferindo mamar nas tetas do governo, que por sua vez pouco faz para realizar o suposto desmame). Assim, o senso comum da classe média reflete o modo de ser e de pensar das elites socioeconômicas brasileiras edificadas numa tradição escravocrata e autoritária ainda persistente no modo de ser brasileiro. É que o senso comum compreende o conjunto de esquemas interpretativos úteis para orientar e dar significado e ordem à vida cotidiana. Ele se forma em cada ser humano de modo inconsciente e natural no curso de sua socialização primária e secundária, formando o pressuposto básico das ações individuais. Por isso, a experiência pessoal circunscrita ao âmbito do senso comum é um referencial muito limitado e empobrecido para nos assegurar um profundo e elaborado conhecimento do mundo. Nossas experiências pessoais, formadas pelos encontros com o mundo das coisas, nas diversas situações de interação social, lidam com parcelas muito circunscritas da realidade humanamente experienciável; nossas experiências pessoais, se permanentemente divorciadas da experiência da leitura, não nos permitem uma compreensão sistemática do todo, da totalidade dos problemas com que a existência humana lida; nossa experiência pessoal ordinária parcializa o real, pois só podemos conhecer aquilo que é imediatamente acessível em seu campo, aquilo que se torna para nós familiar. Alargar nossas experiências pessoais com o mundo é o que nos possibilita a leitura, o convívio com os livros. A leitura é também uma experiência pessoal, que se vai enriquecendo, no entanto, à medida que o sujeito leitor participa da construção e reconstrução sociointerativa de um modelo de mundo, de uma versão da realidade que é produto de atividades sociocognitivo-interacionais e dialógicas do produtor do texto. Assim compreendida, a leitura é também uma atividade sociointeracional, na medida em que o leitor é um sujeito social que, no ato de ler, dialoga com um interlocutor-autor (ele mesmo também um sujeito social), mediante um texto que oferece (que propõe) uma imagem do mundo que é social, cognitiva, interacional e linguisticamente construída. A leitura nos patenteia que o real é muito mais complexo do que o conhecimento que podemos ter dele. Há muitos níveis de realidade que nos são inacessíveis em nossa experiência pessoal e imediata com o mundo na cotidianidade. Por isso, a experiência pessoal cotidiana de mundo não é um critério seguro para validar a consistência, a razoabilidade, a veracidade do que pensamos, julgamos ou acreditamos saber acerca das coisas. Nossos encontros imediatos com o mundo da vida são “enxertados” e mediados pelas representações coletivas, as crenças, as ideias, os preconceitos do senso comum.

O senso comum abriga juízos morais e afetivos sobre as causas, as condições dos eventos humanos, naturais e sobrenaturais. O senso comum compreende um conjunto de proposições cognitivas e valorativas, fortemente restritivo e seletivo, porquanto seleciona e articula um dado número de “fatos” dentre a massa ilimitada de eventos, de ocorrências que constituem o mundo da vida. Assim, tudo no senso comum tem caráter de obviedade, de objetividade, de irrevogabilidade e coercitividade irrecusável. Para o senso comum, o mundo é um mar tranquilo de fatos autoevidentes. Nesse sentido, discutir política, no âmbito do senso comum, que ousa entender mais do que entende, é arriscar-se a envolver-se numa disputa na qual ninguém se entende, todos arengam e da qual todos saem como entraram: munidos com o mesmo background de crenças, suposições equivocadas, juízos afetivos e morais cristalizados, preconceitos, valores inquestionáveis e pretensas verdades não devidamente examinadas.



                                              A FARSA DA MERITOCRACIA

 

O projeto político do capitalismo financeiro neoliberal, há mais de 30 anos, é condenar ao silêncio o sofrimento da maioria, ao mesmo tempo que dá visibilidade ao 1% dos negros e mulheres mais talentosos e aptos na esfera pública como se representassem todo o sofrimento social existente.

A mentira da meritocracia consiste em afirmar que, embora o mundo seja um lugar inóspito e cruel, aquele que se esforça e trabalha duro conseguirá ganhar 500 vezes mais que outros. Os que ganham 500 vezes menos é porque são burros ou preguiçosos. Mas a meritocracia mascara o fato de que são as classes sociais os principais meios que permitem reproduzir os privilégios visíveis e invisíveis. A reprodução desses privilégios ocorre, em primeiro lugar e fundamentalmente, pela SOCIALIZAÇÃO FAMILIAR. Como só existe a família de classe, cada qual tem uma história e uma forma de reprodução dos privilégios visíveis e invisíveis. O privilégio mais visível é o econômico. Este é notável na classe da elite de proprietários, os quais detêm todas as riquezas. Entre estes estão os donos de grandes fazendas, dos meios de comunicação, das cadeias de comércio, os grandes especuladores e rentistas. Abaixo desse 0,1% da população, situam-se as classes que lutam pelo capital cultural, que não é visível como o dinheiro e a propriedade. O capital cultural é formado pela incorporação do conhecimento útil e legítimo socialmente. Será a classe média - que se define pela reprodução do privilégio da educação - que criará e disseminará, de modo invisível e eficiente, a farsa da meritocracia mediante a incorporação privilegiada do capital cultural. Numa sociedade como a brasileira, disposições como disciplina, autocontrole, visão de futuro, capacidade de concentração e de elaboração do pensamento abstrato não são dons naturais, mas competências que são verdadeiros privilégios de classe. O hábito da leitura, por exemplo, é criado pelos pais. A criança passa a exercer a prática de leitura seguindo o exemplo dos pais. A disciplina do equilíbrio entre brincar e aprender, que acostumará a criança a renunciar, quando crescer, ao presente em benefício de um futuro, é aprendida na socialização familiar. Tudo isso é, portanto, privilégio de classe, nomeadamente da classe média brasileira, que produz a base social invisível que todo mérito pessoal oculta. Nas classes dos oprimidos e socialmente excluídos no Brasil, os valores reproduzidos são quase todos “negativos”. Toda a socialização familiar se realiza por meio de exemplos práticos (e não por discursos). São estes exemplos práticos que os filhos vão imitar e, mais tarde, reproduzir como um legado de sua classe social. Uma mãe que diz a um filho que ele deve ir à escola precária dos negros e pobres porque só assim ele terá chances de sair da pobreza, dificilmente o convencerá porque, afinal, a própria mãe frequentou uma escola semelhante que não a tornou mais do que uma analfabeta funcional, como sucede com tantos outros membros dessa classe social a que ela e seu filho pertencem. Enquanto os humilhados e desprivilegiados, quase todos negros, se colocam como “fracassados” já no ponto de partida, os membros da classe média entram na escola como bem-sucedidos já desde tenra idade, porque foram nutridos, desde o berço, com os pré-requisitos emocionais, morais e cognitivos para tanto. Essas condições de que se beneficiam desde muito cedo na vida os farão indivíduos predispostos ao sucesso escolar e ao acesso a postos de trabalho com remuneração muito maior anos mais tarde.



Lição básica de história econômica do Brasil

 

O desenvolvimento econômico brasileiro foi historicamente perverso, visto que aumentou as desigualdades econômicas e sociais





Um recorte do Brasil


Nestes pouco mais de 500 anos de história, persistem no Brasil alguns traços que o definiram como sociedade histórica desde o período colonial. Um desses traços é justamente a difícil e tortuosa construção da cidadania. Último país, no Ocidente, a abolir a escravidão, o Brasil convive ainda hoje com inúmeros processos de exclusão social. Somos campeões em desigualdade social. Nosso bovarismo, isto é, nosso inextirpável desencanto com nossas condições sócio-históricas reais, é tão característico do nosso modo de ser brasileiro quanto o familismo, ou o costume arraigado em nossa cultura de transformar questões públicas em questões privadas. A lógica e a linguagem da violência tanto quanto a corrupção estão encravadas profundamente na mais remota história da formação de nossa sociedade. No Brasil, os pobres e os negros ainda são culpabilizados pela Justiça. São os que mais morrem cedo, os que têm menos acesso à educação superior pública ou a cargos mais qualificados no mercado de trabalho. E estas circunstâncias que nos ajudam a nos compreender como nação, como sociedade histórica, são mantidas e reproduzidas por uma estrutura de poder oligárquico caracterizada pela aliança entre os agentes estatais (funcionários administrativos e do governo) e os potentados privados (os detentores da riqueza privada). Estes dois grupos de poder buscam, antes de tudo, realizar seus interesses próprios em detrimento do bem comum do povo.




ALIANÇAS POLÍTICAS

 

Não deveríamos nos surpreender com essa aproximação de Lula à agenda neoliberal, representada na figura de Alckmin. Quando estava na presidência, a despeito de seus 80% de aprovação, Lula foi um neopopulista de mercado. Em 1 de dezembro de 2010, Lula declarou, na Carta Capital, “ foi preciso um torneiro mecânico, metido a socialista, para fazer o país virar capitalista”. O governo lulopetista caracterizou-se pelo desenvolvimento e expansão do mercado de consumo interno e pelo pacto desenvolvimentista com o grande Capital nacional. Só mesmo na narrativa fantástica da extrema direita e dos apoiadores de Bolsonaro, seria possível associar Lula e o PT a algum projeto de revolução comunista no Brasil. O governo petista historicamente foi pró-mercado. Assim, vivenciamos três movimentos psicopolíticos no Brasil de hoje, que configuram juntos uma única produção de força delirante: 1) recusa dos elementos históricos complexos; 2) regressão imaginária radical a um modo antigo de organizar a história; 3) ódio e pressão urgente por ação de violência, sacrifício e restauração da civilização. Esses três movimentos formam o sistema delirante da extrema direita. Esse sistema delirante, paranoico e fetichista alimenta o nosso arraigado e antigo desprezo antipopular e ódio pelos pobres. Esse sistema delirante, alimentando nossa tradição anticrítica e anti-intelectual, enraizado em nossa formação moderna como sociedade escravocrata, explica por que é possível que pessoas comuns insistam em ignorar o fato de que o PT e o governo Lula ousaram dirigir o processo histórico brasileiro para uma expansão de mercado e riqueza COM UM GRAU MÍNIMO DE PARTILHA COM OS MUITOS POBRES.




 

 

sábado, 18 de setembro de 2021

“A filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade”. ( Paul Veyne)




A NOSSA VÃ FILOSOFIA


“A filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade”.

 Paul Veyne

 

 

Estou de acordo. Veyne pensa aqui o contrário do que pensa Deleuze sobre o papel da filosofia: uma filosofia que não desespera, que não entristece, perde sua razão de ser. Mas está bem. Veyne o diz no contexto em que considera a inquietação e o receio daqueles que viam em Nietzsche e em Foucault uma ameaça à inocência da juventude, que ainda se nutria do ideal revolucionário (à época de Foucault, evidentemente; hoje em dia, a juventude está mais preocupada em saber como se tornar uma celebridade de tik-tok ou de saber como pode se tornar um youtuber milionário).

Mas aqui insisto em que a filosofia parece ter um impacto ínfimo no modo de ser das coletividades humanas. Com ou sem filosofia, o mundo passaria bem ou mal... o mundo, de qualquer modo, levaria adiante sua marcha insensata em direção ao túmulo... Não quero parecer subestimar a influência das ideias sobre os modos de ser e sobre as mentalidades de uma época. Sim, Aristóteles moldou a visão de mundo dominante durante toda a Idade Média cristã, Descartes (e Newton) moldou a visão de mundo e do homem até o fim do século passado (a visão mecanicista de mundo fez escola). E não faltam exemplos de como o pensamento filosófico influencia os modos de ser e viver de uma época. Mas, em todo caso, não é a filosofia sozinha que causa as transformações; são necessárias, principalmente, mudanças no modo de organização socioeconômica e política, é necessário o desenvolvimento tecnológico, etc... Como diz Bachelard, o mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive. Querem um exemplo? Veyne afirma que o páthos niilista que Nietzsche soube entrever parece incendiar mais a oratória do que a realidade. Niilismo? Quando me perguntam sobre o que versa minha pesquisa de doutoramento, a resposta que dou - “niilismo” - causa na face de meu interlocutor a mesma incompreensão e surpresa de quem ouve alguém falar que se interessa por “física quântica”. Para a maioria esmagadora dos animais humanos, “ o mais sinistro de todos os hóspedes” é tão invisível, misterioso; está tão distante - talvez não passe de um viajante que se perdeu vindo não sabemos de onde - quanto o espectro do comunismo que Marx dizia rondar a Europa de seu tempo.

Acho que, em parte, a filosofia, pelo menos desde Platão e Aristóteles, contribuiu para o seu ostracismo no viver comum, não porque tratasse, algumas vezes, de assuntos demasiado afastados da lida diária com a vida (talvez não só por isso), mas porque nos inculcou a crença ilusória de que a razão no homem era a sua parte mais elevada, o sinal do divino nele, que a filosofia se encarregaria de exercitar, para dignificá-lo, para torná-lo avizinhado com o próprio Deus (não o Deus cristão - fique claro -, que não aprecia concorrência) e tivemos de esperar um Nietzsche (sempre ele) para nos dizer que a nossa grande Razão não é mais do que um instrumento a serviço da sobrevivência da espécie... e a biologia , a paleontologia posteriormente viriam a dar razão a Nietzsche... nosso tão complexo e maravilhoso cérebro símio não foi projetado para elevadas elucubrações, para exaustivas ruminações espirituais... (claro que nosso cérebro é dotado de uma plasticidade impressionante, de uma capacidade incrível para desenvolver novos conhecimentos e habilidades; claro que ele é, em última instância, o criador do mundo humano, da cultura, da linguagem, da filosofia, da ciência, das artes, de tudo de que tanto se orgulha o macaco pelado que o carrega), mas este cérebro humano precisa de estímulos, de um meio ambiente rico de possibilidades criativas, de desafios, de uma paidéia para poder se desenvolver, sob pena de atrofiar-se, de adoecer, de ficar esclerosado e limitado ao que é: um pedaço esponjoso de carne... Aristóteles parece ter errado, ou melhor, parece ter superestimado a natureza humana, portanto, quando disse que somos naturalmente dispostos ao conhecimento teorético, à epistéme (ciência)... a filosofia não nos é conatural... no mais profundo de nós, ainda reside um caçador-coletor obstinado em garantir os recursos necessários à sua sobrevivência e não um Tales de Mileto interrogando-se sobre o primeiro princípio do Cosmo - aquele, por sinal, teria caído num poço enquanto, distraído caminhando olhava para o céu...( e parece que a maioria dos macacos pelados decidiu acolher a advertência da mulher de Trácia que troçou da imprudência do grande filósofo, enquanto ainda hoje riem da pavonice dele.

 


terça-feira, 11 de maio de 2021

"A cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular é indispensável ser medíocre." (Oscar Wilde)

 

                                                                        


 

 

A vida como destino para a morte

 

 “A Vida se transmite como uma lepra: criaturas demais para um só assassino.”

 Cioran

Eis o essencial:

           

 

A vida é um trabalho permanente (batimentos cardíacos, circulação sanguínea, respiração pulmonar) de consumo de energias durante o qual a vida é conduzida à morte. Morte e vida são inseparáveis. Como ensina Bichat, a vida é o conjunto das forças que resistem à morte. A vida é, portanto, também um trabalho permanente de luta contra a morte. A vida, ao consumir suas energias, carece de se alimentar. Assim, todos os seres vivos se esforçam para adquirir o alimento que reponha suas energias. A evolução dotou animais de nadadeiras, ou de patas para que alcançassem esse objetivo. Animais predadores consomem outros animais. A atividade da vida produz a morte a que tanto resiste aniquilando outras vidas. Nos seres pluricelulares, a morte inscreve-se em seu organismo na forma de aniquilação das células, as quais são substituídas por outras novas. Quanto mais complexa se tornou a vida, mais se fragilizou, mais se viu ameaçada pela morte, mais se organizou para lhe fazer resistência. A morte é o preço pago para viver. Na luta contra a morte, a vida devora a si mesma.

A vida é um fenômeno marginal e extraordinário no seio do mundo físico. A vida é inteligente, engenhosa, criadora, mas também incompreensível, absurda, insana e horrível. Se a organização dos seres vivos exibe espantosas engenhosidade e complexidade, a vida é loucura. Quando examinada nos detalhes e acuradamente, a vida não segreda nenhum sentido último. O sentido da vida é a morte e viver por viver é a finalidade que se esconde na absurdidade da vida.

 


 






  

A política do senso comum

 

 

Diz o ditado que “futebol, política e religião não se discute”, e não se discute porque tais temas, supostamente, mobilizam, nos interactantes, paixões exacerbadas, incendiárias, que poderiam levá-los facilmente a inimizades e, no limite, a agressões mútuas que encerrariam a discussão. Mas, no caso específico da política, o que a torna tão pouco discutível no domínio do senso comum é que os interactantes, geralmente, estão muito pouco capacitados para um debate equilibrado e fundamentado teoricamente. A política, enquanto área do saber humano, também tem seus especialistas (cientistas políticos, sociólogos, filósofos...), os quais dispõem das ferramentas conceituais para realizar uma análise crítica do fenômeno político. O fenômeno político, como todo fenômeno humano-histórico, é complexo e, por isso, demanda daqueles que ousam convertê-lo em tema ou em assunto de debate nos encontros casuais da cotidianidade mediana, certo repertório de saberes e conceitos que devem ser sistematizados e definidos na discussão. Mas é justamente deste repertório e desta competência para a sistematização e para a definição dos termos empregados que carece o senso comum. E essa carência é uma das razões por que me sinto desencorajado a me embrenhar em “discutir política” no domínio do senso comum. No domínio do senso comum, ao se levantar um tema político, os interactantes não especialistas fazem desfilar, em suas falas, uma série de dislates disfarçados de bazófias, que transformam o que deveria ser um debate num falatório de velhas rabugentas que, em certa altura, já não sabem mais sobre o que realmente estão discutindo. A sobriedade dos espíritos que reconhecem ser o real mais complexo do que o conhecimento que podemos ter dele é, quase sempre, asfixiada pelos dizeres balofos e enervados de certezas absolutas. Um professor de filosofia que tive, a quem admiro, certa feita, ensinou que filósofos devem fugir de debates, de discussões cujo propósito é decidir ao fim e ao cabo quem tem razão. Desde então, tomei esta lição como um princípio ético-metodológico. É que aos filósofos - ele ensinou - importa o pensamento, o exercício do pensamento. E a única coisa que não se exercita nas cenas cotidianas de “debate político” é o pensamento. Não, exercitar o pensamento não é vomitar lugares-comuns, preconceitos, crenças infundadas e ideologicamente orientadas típicas do imaginário coletivo, a fim de medir forças com o interlocutor para impor sua visão pessoal sobre um estado-de-coisas. O senso comum aspira ao monopólio da opinião correta, verdadeira, que deve ser tomada como dogma inquestionável. A tendência do senso comum é sempre simplificar uma problematicidade que, por definição, é complexa. O senso comum não admite a pluralidade de perspectivas (como nos ensina Nietzsche), os múltiplos olhares, a dúvida como princípio metodológico. O senso comum tem a presunção de saber tudo, de esgotar tudo o que se pode saber em algumas concatenações verbais semanticamente insuspeitas na aparência, mas grávidas de pressupostos equívocos. Em matéria política, o senso comum de nossa sociedade, confunde, com frequência, conceitos que não descrevem o mesmo fenômeno. Por exemplo, confunde Estado com Governo. E é comum que, se a questão formalmente socrática “o que é?” é levantada neste domínio do discurso, o silêncio predomine até o momento em que é entrecortado por dizeres evasivos de ataque pessoal ao interlocutor... E, se um dos interlocutores ousar definir os termos relevantes na discussão, atrairá sobre si as suposições de pedantismo. Chamar o outro de pedante, de pernóstico, de enfatuado é a estratégia comum da burrice que se institucionalizou neste país para desqualificar o contraditório. É difícil, eu sei, manter um silêncio monástico quando nossos ouvidos são atravessados e perturbados, e nosso espírito é afrontado por dizeres que carreiam tolices, clichês, preconceitos, despautérios, mas pretender lançar luzes sobre as avenidas escuras e os atalhos sinuosos do senso comum é arriscar-se na paralisia do pensamento, porque o senso comum é como um lodaçal onde o pensamento fica estagnado, atravancado, onde ele não consegue avançar, alçar voos, onde ele não encanta, não semeia o espanto, a admiração. O homem comum é o coveiro do pensamento, e o senso comum é seu cemitério.