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quarta-feira, 5 de agosto de 2015

"Toda existência é trágica na medida em que ela é vivida antes de ser pensada" (Rosset)

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             O trágico como anticonceito filosófico
            Prelúdios de uma sabedoria trágica


Explicar, do latim explicare (‘tornar inteligível’, ‘interpretar’, ‘justificar’) – esta é a tarefa a que me devoto com o intento de oferecer-me não só a oportunidade de alguma fruição de prazer mais gratificante, porque prolongado, como também reanimar o diálogo, prematuramente interrompido, com um colega que, tanto quanto eu, aprecia o curso criativo das conversações filosóficas.  É imprescindível dizer que este meu texto não pretende ser expressão de qualquer ensinamento. Cuido-me capaz de ensinar alguma coisa apenas na área do conhecimento em que me especializei e em que, portanto, obtive uma competência satisfatória. Não obstante, nesse domínio, estou continuamente aprendendo, visto que, no exercício do ensino, há sempre aprendizagem. Segue-se daí que ensinar é aprender não só o conteúdo ensinável, mas também aprender a ensinar o que é passível de ser ensinado.
Estando claro que nada posso ensinar, no domínio da filosofia (sobretudo, porque a filosofia não é ensinável), espero, portanto, que meu principal interlocutor, ao dar-se o trabalho de ler este texto, tome-o como um espaço necessariamente dialógico. Com a produção deste texto, ao longo da qual pretendo explicar minha escolha filosófica – meu modo de viver – espero descerrar um horizonte à luz do qual diálogos ulteriores possam ser possíveis e fecundos.
O momento em que se deu o estancamento do fio dialógico que dava consistência ao intercurso de nossas reflexões foi justamente o momento em que meu interlocutor rejeitou o caráter trágico da existência. A conversa foi entabulada com o meu interesse de consultar meu interlocutor sobre o proveito do exercício filosófico. Toda resposta que se elabore na tentativa de demonstrar que há algum valor neste exercício, ou que dele se pode extrair um proveito que não encontra par em qualquer outra forma de reflexão/ atividade pressupõe uma concepção do que é filosofia. A questão “o que é filosofia” é ela mesma problematizada pela própria filosofia; e são inúmeras as respostas oferecidas a ela. E todo aquele que se aproxima da filosofia, que a ela dedica seu tempo e sua atenção, terá, mais cedo ou mais tarde, de prestar esclarecimentos sobre o que entende por filosofia. Quero dizer que o exercício filosófico começa por uma compreensão das respostas oferecidas pela tradição à questão “o que é filosofia” num processo que envolve discussão das respostas e adoção por parte do iniciado na filosofia de uma concepção de filosofia (que não significa, necessariamente, mera apropriação) com base na qual uma forma de elaboração de pensamento filosófico que lhe seja própria possa ser trazida à luz.
Parece-me que é parte da maturidade filosófica de quem exercita a filosofia e se exercita, enquanto existente, na filosofia, a escolha de uma orientação filosófica que melhor testemunhará seu modo de viver. O filósofo não é apenas aquele que pensa e constrói sistemas; mas é, em essência, aquele que sabe viver e morrer em consonância com o seu sistema. Por conseguinte, o exercício da reflexão filosófica, a atividade própria do filósofo, se caracteriza, fundamentalmente, por uma perfeita harmonia entre o seu sistema de ideias e seu sistema de vida. Para os antigos, a filosofia é um modo de ser, uma escolha de vida. Originalmente, portanto, a filosofia é uma prática de vida destinada a cunhar modos de ser. Aos colegas que junto a mim se dedicam ao estudo acadêmico da filosofia, faço, pois, um apelo para que não se esqueçam jamais do vínculo necessário entre filosofia e modo de viver, para que, atendendo à recomendação de Aristóteles, experienciem a atividade filosófica como um exercício que se deve estender por toda a vida. Apelo, finalmente, para que não duvidem, por um instante sequer, de que a prática da filosofia visa à transformação radical do eu de quem a ela se dedica; no exercício filosófico, não só nossa visão de mundo se transforma, mas também é nossa personalidade que se metamorfoseia.
Evidentemente, a escolha a que não se deve esquivar aquele que pretende viver uma vida filosófica não é possível senão depois do contato com certo conjunto de orientações filosóficas. O contato com essas diversas orientações filosóficas é parte do estudo acadêmico da filosofia. Os estudantes de filosofia só poderão (talvez a maioria) escolher a orientação que melhor expressa uma coerência com seu modo de viver após ter entrado em contato com as diversas orientações filosóficas ao longo do curso de filosofia. Não só após o contato com elas; mas, sobretudo, após o convívio aturado com elas fora da sala de aula.
A escolha de uma orientação filosófica por quem se dedica ao exercício da filosofia constitui uma questão cujos desdobramentos interessam à própria filosofia. Sua pertinência deverá ficar aqui, no entanto, apenas sugerida e ensombrecida, porquanto não é sobre ela que estendo minha preocupação neste texto. Malgrado a necessidade de abandonar a questão, neste estágio de minhas reflexões, não posso silenciar sobre o fato de que meu encontro com a filosofia, que se deu há dez anos, quando do ingresso no mestrado em Estudos da Linguagem na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), foi e continua sendo profundamente marcado pelo lugar de tangência entre a filosofia trágica e a filosofia pessimista.
No esforço por reinstituir um espaço dialógico com meu interlocutor, devo preveni-lo de que a exposição que faço do tema do trágico como elemento caracterizador de uma orientação filosófica, denominada de filosofia trágica se desenvolverá não sem fraturas no tratamento das questões implicadas na compreensão da filosofia trágica. Ademais, a cada vez em que dou um investimento verbal à abordagem do tema, instauram-se, por força da natureza da linguagem, espaços de silenciamentos. Tal é a condição fundante da própria possibilidade de haver sentidos. Por maior que seja a extensão de um texto, por mais exaustivo que seja o tratamento dispensado a um objeto de pensamento, jamais é possível esgotar as possibilidades de dizer, de significar, de produzir sentidos. Será forçoso esclarecer a questão da significatividade do silêncio, por ora, apenas entrevista ao me referir à condição fundante da possibilidade de sentidos. O tema as formas do silêncio é desenvolvido no interior dos estudos da Análise do Discurso pela analista do discurso brasileira Eni Pucinelli Orlandi. Não obstante a limitação ao domínio do discurso, o modo como o tema se desenvolve mobiliza um exercício de pensamento claramente filosófico. Não reside nisso, contudo, o meu interesse por considerá-lo; se o faço, é porque pretendo demonstrar quão ilusória a crença em que, ao dizer, esgotamos as possibilidades de outros dizeres, de outros sentidos. Terminada esta etapa de minha exposição, atacarei o problema que consiste em precisar o que se entende por trágico quando se defende, filosoficamente, a posição segundo a qual a condição de todo ente, particularmente e de modo especial, do ente humano é uma condição trágica. A discussão desse problema envolverá a necessidade de definir a extensão semântica da palavra trágico e a de esclarecer o que faz de um pensamento filosófico um pensamento trágico. Creio em que a suspensão do diálogo com meu colega e interlocutor se deveu menos ao fato de ele ter rejeitado ser a existência constitutivamente trágica do que à suposição nossa de que estávamos de acordo no tocante ao significado da palavra trágico no contexto de nosso diálogo. Não só ele parecia assumir, de antemão, o conteúdo semântico de trágico, como também eu não dispunha das condições necessárias para iluminá-lo, para o que seria indispensável fazer alguma digressão que, possivelmente, nos distanciaria do escopo de nossas reflexões. Numa conversa informal, tal digressão não teria como consequência senão estorvar os próprios participantes.

1. As formas do silêncio

Todo dizer é expressão de uma relação necessária com o não-dizer. Há uma dimensão de silêncio que remete ao caráter da incompletude da linguagem. A incompletude da linguagem se prende ao reconhecimento:
a) da errância dos sentidos (a sua migração);
b) da vontade de um (da unidade, do sentido fixo); do lugar do non sense, o equívoco.

A incompletude da linguagem é o lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível. Portanto, a errância dos sentidos, a vontade de unidade, do sentido fixo, o lugar do non sense, o equívoco e a própria incompletude da linguagem (para a qual voltarei olhares mais adiante, a fim defini-la melhor) estão no cerne do funcionamento da linguagem.
Em seu As formas do silêncio (2007), Orlandi escreve: “As palavras transpiram silêncio” (p. 12). Há, pois, silêncio nas palavras. O silêncio é fundante: ele funda a possibilidade de sentido. O silêncio é um lugar de recuo onde se pode significar, a partir do qual o sentido faz sentido. Novamente, ouçamos Orlandi:

“O silêncio como horizonte, como imanência do sentido (...) aponta-nos que o fora da linguagem não é o nada mas ainda sentido” (p. 13).


O silêncio, pensado em sua historicidade constitutiva, não é ausência de som, mas é um acontecimento que atravessa as palavras, que existe entre elas, que indica que o sentido pode ser sempre outro. As palavras produzem silêncio; o silêncio “fala”; as palavras silenciam (p. 14).
O silêncio garante o movimento de sentidos. Dizemos sempre a partir do silêncio. Cada palavra enunciada “apaga” necessariamente outras palavras. Isso se dá porque o silêncio também é constitutivo do dizer. Assim, observa Orlandi

“O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à interpretação: tudo tem de fazer sentido (qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico” (p. 29-30).


Portanto, o silêncio não é falta. A linguagem é excesso. O silêncio não fala simplesmente; ele significa. No silêncio, o sentido é. (p. 32).

“A linguagem é conjunção significante da existência e é produzida pelo homem para domesticar a significação” (ib.id.).


O silêncio é disperso, e a fala o segmenta, o estrutura. O silêncio é o que torna possível a significação, todo dizer. O silêncio é presença, é “o elemento místico” (Wittgenstein). O sentido do silêncio não deriva do sentido das palavras. Nem o sentido, nem a linguagem são transparentes.
Não se pode não significar. O silêncio se relaciona, necessariamente, com a significação, e a linguagem é o movimento incessante das palavras para o silêncio e do silêncio para as palavras. É necessário insistir em que as palavras estão carregadas de silêncio. Por um lado, não podemos suprimir das palavras o silêncio; por outro lado, não podemos recuperar o silêncio só pela verbalização.
Por fim, retomando-se a noção de incompletude da linguagem, reitere-se que a incompletude é uma característica fundamental da linguagem. O fenômeno da incompletude da linguagem recobre a) o fato de serem diversas as formas de manifestação da linguagem; b) o fato de que o sentido está sempre em aberto; c) o fato de que o texto é multifuncional enquanto objeto simbólico. A incompletude repousa no fato de que o dizer é aberto. A crença numa “palavra final” é efeito de uma ilusão. O dizer não tem um início verificável; e o sentido toma múltiplas direções; está sempre em curso. A incompletude da linguagem decorre, portanto, do fato de que a própria linguagem é categorização dos sentidos do silêncio; é um modo de domesticá-los.
A linguagem também é opaca. A opacidade da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem interpretação. A opacidade ou não-transparência da linguagem consiste também na propriedade de o sentido poder ser sempre outro.
Tendo em vista o exposto, ao procurar aqui dizer o trágico jamais posso ter a pretensão de dizer tudo. Ademais, estando eu preocupado  tão-só em fixar-lhe um horizonte semântico mais preciso, a consideração que dele farei será marcada por fraturas, por rupturas, por saltos que se evitariam num tratamento que se pretendesse minucioso e articulado.

2. O filósofo trágico não é um pessimista

Filósofos como Lucrécio, Montaigne, Pascal e Nietzsche são reconhecidos como filósofos trágicos. A primeira questão que se nos apresenta ao sugerir a possibilidade de uma filosofia trágica consiste em definir o que significa tragédia. Sabe-se que tragédia é um gênero de expressão artística, particularmente marcante na história do teatro. No domínio da arte, a tragédia, segundo alguns teóricos, não recobre apenas adversidades, sofrimentos, iniqüidades, mas, principalmente, uma corajosa resistência ao destino. A tragédia deve, pois, expressar a reação a um evento, e não apenas o evento fatídico em si. Para alguns teóricos, a tragédia começa com a arte, que a vida imita. Com o tempo, o significado da tragédia foi estendido do domínio da arte para a vida, restando aqui um eco da arte, o qual foi silenciado quando a tragédia passou a caracterizar o modo de configuração da própria vida. Atualmente, para a maioria das pessoas, tragédia significa uma ocorrência da vida, caracterizada por dor, sofrimento, infelicidade injustificáveis. Isso, no entanto, não impede vários teóricos de argumentar que, na vida real, não existe tragédia, com base no pressuposto, deveras criticável, segundo o qual, na tragédia, enquanto manifestação artística, é sempre possível revelar o valor que a destruição libera. Segunda essa perspectiva, o sofrimento da vida real é passivo, horrível e indigno; ao contrário, na arte trágica, o sofrimento traz o selo do esplendor heróico da resistência, razão por que a arte é dotada de uma gratificação que falta à vida. Essa perspectiva buscará nos convencer, por exemplo, de que o Holocausto não foi uma tragédia, mas a morte da tragédia. No entanto, assentada na crença de que a tragédia se define por uma resistência heróica às condições adversas, essa perspectiva trai a si mesma, no momento em que não reconhece o fato de que houve uma heróica resistência de alguns judeus ao nazismo; além disso, certamente, muitas pessoas lutam bravamente contra enchentes, doenças, invalidez, genocídio, etc.
Não se pode ignorar o fato de que, a despeito da discrepância entre a tragédia como arte e a tragédia como modo de configuração da vida, grande parte das obras de arte trágica se construiu por meio da suposição segundo a qual a tragédia parece ser uma experiência real e não meramente um fenômeno estético.
Também não devemos perder de vista o fato de que a tragédia, de Hegel a Nietzsche, migrou para a especulação teórica. Desde então, a tragédia passou a ser uma Ideia majestosa, uma forma de contrailuminismo, uma teodiceia, mais do que uma questão de suplicio e aflição.
Na visão trágica de Nietzsche, por exemplo, o mundo é, essencialmente, caótico, ilegível, e o conhecimento trágico necessita da arte para tornar tolerável a própria existência. Esse conhecimento trágico supõe a percepção de que o mundo é desprovido de significado. No respeitante a Pascal, sua crítica ao racionalismo não é uma crítica à razão. Pascal não estava preocupado em denunciar os limites da razão. Na verdade, a crítica ao racionalismo levada a efeito por ele se orientou pelo interesse de fazer ver que o racionalismo deve sua impotência àquilo que se oferece à razão. O que se oferece à razão é, nota Pascal, irremediavelmente indiferente. Não se trata, portanto, para Pascal, de denunciar uma suposta fraqueza da razão, mas de demonstrar que o objeto da razão não é cognoscível. A razão, assim, está apta a conhecer, mas não se lhe apresenta nada para conhecer. A razão não pode pensar como uma natureza a existência, porque esta é uma não-natureza. Natureza aqui designa a constituição do ser cuja existência não resulta nem do acaso, nem da vontade humana. Natureza supõe uma totalidade ordenada. Pascal nega que haja tal totalidade ordenada; para ele, a existência não abriga qualquer razão oculta (lógos), nenhuma estrutura secreta, nenhum princípio do diverso inacessível ao conhecimento humano, em virtude de supostos limites da razão. À luz de tal perspectiva, nem as “verdades” nem os “erros” conduzem a alguma grande consequência filosófica. No tangente às primeiras, elas só acrescentam fatos a fatos; os erros, por sua vez, não estorvam nenhuma verdade. No seu livro Lógica do pior (1989), assinala Rosset:

“Se se busca o que resta de trágico nos cem mil mortos de Hiroxima após a intervenção da interpretação histórica, sociológica, política, militar, que resta? Cem mil mortos, ou seja, um morto como todos os mortos, algo de banal, de cotidiano, de silencioso, enfim, de trágico – desse trágico ao qual o espetáculo das maçãs no jardim convida já, de maneira mais imediata e simples. A morte em si mesma não é a priori trágica: não mais, em todo caso, do que a vida nem do que quer que seja, desde que esse algo resista à interpretação” (p. 65-66).


Esse trecho deve nos levar à compreensão de que o trágico está, por um lado, em toda parte, impregna a cotidianidade; e, por outro lado, é o próprio silêncio, ou seja, resiste a qualquer tentativa de interpretação. Ao se passar do silêncio para o pensamento do trágico, faz-se falar o trágico pela impossibilidade de interpretá-lo.
Considere-se a asserção que constitui o título desta seção: o filósofo trágico não é um pessimista.  É necessário reconhecer duas diferenças básicas entre uma filosofia trágica e uma filosofia pessimista. A primeira diferença diz respeito à suposição de que há “algo” (uma natureza ou o ser). O pessimista supõe que existe algo do qual afirma o caráter insatisfatório. O pessimismo filosófico baseia-se na afirmação do pior, a partir da suposição de uma certa ordem (natureza), de um certo sentido, cujo caráter incoerente não cessa de demonstrar. Para o filósofo pessimista, há uma totalidade ordenada que não pode ser legitimada. Há ordem, mas não há um “ordenador”. Donde se segue que a filosofia do “dado” (a filosofia pessimista) culmina com uma filosofia do absurdo.
Sabe-se que Schopenhauer, sendo um expoente da filosofia pessimista, procurou pensar o mundo por meio da postulação de um “dado”, que chamou de Vontade – uma Vontade cega, ilusória, repetindo-se mecanicamente. Embora desprovida de propósito, a Vontade permite superar o caos do mundo, a fim de lhe revelar sua ordem. Isso significa afastar do horizonte hermenêutico da filosofia pessimista o princípio do acaso.
O pensamento trágico, por sua vez, mantém que o que existe carece de “natureza”, de “ordem”, não é nem ser, nem objeto adequado de pensamento. Na filosofia trágica, não há a condição de possibilidade dos acontecimentos. Só há encontros, ocasiões, que não pressupõem jamais o recurso a qualquer princípio que transcende as perspectivas trágicas da inércia e do acaso. Por conseguinte, a filosofia do trágico é uma filosofia do acaso. O pensamento trágico afirma a insignificância radical de tudo que acontece. Aliás, o pensamento de Pascal, se examinado até as últimas consequências nos levará a uma verdade que se impõe irrecusável – “não sou um ser necessário”. Dizer que não sou um ser necessário significa reconhecer que eu, enquanto existente, poderia nunca ter existido. Em outras palavras, a minha existência não tem uma necessidade que me impede de sentir que eu poderia não ter existido. Não sou um ser necessário afirma correlativamente sou um ser contingente.
Cumpre ainda dizer – e, fazendo-o, silencio muita coisa -, que o pensamento trágico é aprobatório, embora não deixe de considerar o seu contrário, que é o suicídio. Aqui está a segunda diferença entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista: o pensamento trágico assente à existência; o pessimista, por outro lado, reconhecendo que a ordenação do mundo é má, não pode aprovar a existência.
A aprovação é o único ato disponível ao sujeito da ação, isto é, ao homem. Ou ele se solidariza com a sua viagem à semelhança de um passageiro de avião de uma grande empresa aérea, que não tem acesso aos comandos da direção (Pascal), ou a recusa pelo suicídio. No pensamento trágico, a aprovação é um privilégio justamente por seu caráter incompreensível e injustificável. O homem não carece de nada; e toda a alegria de viver é irracional. Essa alegria é experienciada no cotidiano sem que seja possível justificá-la. O homem é excesso; por isso o espanto do filósofo trágico: seu maravilhamento na alegria e na dor.
Não se deve estabelecer uma distinção absoluta entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista, se consideramos que tanto o primeiro quanto o segundo são duas lógicas do pior. Mas a lógica do pior de que é expressão o pensamento pessimista não tem relação com o pior da lógica trágica. No pensamento trágico, afirma-se a impossibilidade de um dado enquanto natureza constituída; no pensamento pessimista, há uma ordem já dada, reconhecida.
A título de conclusão, sem pressupor, no entanto, que esteja suficientemente esclarecida a significatividade da visão trágica da existência, insisto em que a verdade a que nos quer conduzir o pensamento trágico consiste em ver o mundo como obra do acaso ou do destino. Sendo obra do acaso, o mundo carece de uma natureza, isto é, de um princípio estruturador, ordenador, e a vida não é mais que um derivado, entre outros, da realidade fundamental da morte. É oportuno tornar clara uma relação que, embora aparentemente inusitada, elucida o horizonte a partir do qual o “drama ontológico” revelado pelo pensamento trágico é constitutivo da ideia de trágico. Trata-se de evidenciar a relação entre a festa e o trágico.
Em certo sentido, a relação entre a festa e o trágico pode ser estabelecida pelo fato de o pensamento trágico ser uma experiência filosófica de aprovação em função de uma busca do pior.  Ademais, essa relação se torna possível quando levamos em conta o acaso como regra de exceção e princípio da festa (Rosset, 1989, p. 129). Já no sentido que toca à constituição da própria lógica do pior, de que é expressão o pensamento trágico, a relação entre o trágico e a festa pode ser estabelecida se compreendemos que, sendo o mundo obra do acaso, se, por isso mesmo, o mundo carece de uma “natureza” (ou ser, essência), resta-nos senão viver num estado de indiferença em relação a tudo o que acontece e existe. Essa indiferença, contudo, não é a indiferença do tédio, estado em que esperamos o acaso com certeza, mas a indiferença que consiste em nada esperar, já que tudo é acaso. Indiferença da festa, portanto – se tudo é acaso, o mundo é uma festa. O mundo da festa é o mundo da exceção (ausência de regras ontologicamente fixadas). Nele, o acaso sobrevém sempre. Nele, o que acontece, o que existe apresenta as características da festa: irrupções inesperadas, excepcionais, irreproduzíveis; ocasiões que se apresentam uma única vez, num lugar e para uma pessoa. Ensinamento trágico: teoria do kairós (o tempo oportuno). Tudo que acontece deve ser apreendido no único momento possível. Cada instante vivido tem as características do jogo, da festa, do júbilo.
O pensamento trágico, como vimos, rejeitando a ideia de natureza, afirma ser o mundo obra do acaso. O acaso que tem em vista o pensamento trágico é o acaso original ou constituinte. O acaso é original porque recusa a ideia de natureza na origem de sua possibilidade, isto é, nesse caso, recusa a existência de uma natureza, a saber, uma totalidade ordenada, da qual irromperia, num tempo e lugar determinados, o acaso; ele é constituinte, porque é origem produtora de tudo que pode acontecer e que se reconhece sob o nome de natureza. O acaso original, portanto, é anterior a todas as formas de existência e impregna todo o modo de configuração vital.




sábado, 3 de janeiro de 2015

"Não há homem livre do desespero"

                  

            
             A existência como tarefa e criação
       Considerações sobre o desespero em Kierkegaard


Com este texto, inicio, neste ano de 2015, a produção do conjunto de novos suspiros da alma. A frequência com que escrevo para publicar neste blog tem sido cada vez mais embargada pelas flutuações de meu humor, que não cessam de me alertar sobre a inutilidade desta inveterada prática. É evidente que escrever me apetece e, não raro, me parece que esse hábito rivaliza, em termos de importância, com outras atividades necessárias em meu cotidiano. Isso, contudo, não é suficiente para me dissuadir da certeza de que os textos que eu escrevo e que eu divulgo, neste espaço virtual, não carreiam nenhum sentido transformador, não visam a transformar nada no mundo, conquanto eu esteja convencido de que usar a linguagem é sempre, em todos os casos, agir sobre o mundo e sobre os outros, com vistas a produzir algum tipo de modificação em seu estado.
Receio que, se eu me detiver em longas ponderações sobre meu desânimo costumeiro, que acompanha o labor da escrita, acabarei por protelar a confecção deste texto. Engana-se o leitor que pensa não ser custoso para mim construir meus edifícios verbais. Como eu persiga a perfeição ao longo da atividade de tessitura do texto, isto é, como eu esteja sempre preocupado em realizar as escolhas mais significativamente adequadas, despendo uma quantidade considerável de potência orgânica quando me detenho para decidir entre as possibilidades de realização lexical e sintagmática. Agora mesmo me assombra o fantasma da escassez verbal.
É chegado o momento de me apressar. Que comece o trabalho! Ele me tomará uma grande parte do dia!

1. O itinerário

No horizonte de minhas reflexões, que visam a retornar ao pensamento de Kierkegaard, se topa o interesse por esclarecer o tema do desespero em sua antropologia, à luz da qual a existência é pensada em seu devir, em seus paradoxos.
A essa tarefa que consiste em identificar e esclarecer, no interior da antropologia de Kierkegaard, devem preceder algumas considerações com as quais procurarei pôr em evidência a pertinência de uma série de conceitos que, se não apresentados e iluminados de antemão, dificultam uma compreensão satisfatória do lugar relacional que ocupa o desespero no desenvolvimento do pensamento existencialista de Kierkegaard. Por conseguinte, impõe-se-me a urgência de apresentá-los e esclarecê-los.

1.2. O irracionalismo

Sören Kierkegaard (1813-1855) é considerado um dos pensadores que integram o movimento do irracionalismo, marcante no final do século XIX. O irracionalismo tinha como meta a crítica da supremacia da razão, a qual era entendida como o único instrumento capaz de estabelecer a verdade, mormente depois de Hegel.
Os pensadores irracionalistas buscavam reanimar a questão da verdade, tomando como ponto de partida o processo da existência. Destarte, Kierkegaard afirmou a necessidade de viver uma verdade que fosse verdadeira para o eu.
Kierkegaard advogava que a existência humana tem por essência a auto-relação. Essa relação determina o modo de o homem – o indivíduo humano – estar no mundo. Essa relação se dá em três estádios, designados por Kierkegaard de estético, na qual o indivíduo assume uma posição de pura exterioridade; de ético, em que ele busca mediar o exterior e o interior; e de religioso, caracterizada por uma profunda interioridade, na qual o indivíduo se relaciona com Deus.
Kierkegaard criticou a falta de religiosidade do clero da Igreja Luterana e a influência negativa de Hegel no meio intelectual.

1.3. O devir do sujeito e a existência como tarefa

Destaco, inicialmente, que, ao se debruçar sobre o devir real do sujeito, Kierkegaard antecipou e descreveu o caráter dialético do que os psicólogos contemporâneos denominam de processo de subjetivação. Esse processo foi pensado por Kierkegaard enquanto ele o vivia. Com efeito, sua filosofia existencialista, resultando da união da inquietude humana com um empirismo metafísico, opõe-se radicalmente às nossas contemporâneas “ciências do homem”.
Ora, para Kierkegaard, não se trata de pensar a existência como objeto; trata-se, na realidade, de tomá-la como a origem a partir da qual cada indivíduo humano pensa e age. No homem e para o homem, existir não se identifica com o ser ou com o possuir uma existência objetiva, imediata. O homem é o único existente de fato; por isso, ele se diferencia dos outros entes que têm uma existência empírica e ignoram quem são.
Por outro lado, para o homem (entendido sempre como individuo, e não como a espécie), a existência é um trabalho, uma exigência: o homem existe enquanto tem de vir a ser, enquanto tem de edificar-se. O homem – sempre enquanto indivíduo – é um ente particular porquanto está adiante de si mesmo, está perpetuamente ocupado consigo, e interessado por si mesmo. É, ademais, um ente que se projeta para as suas possibilidades, para o poder ser, embora sempre situado em face de suas opções.
O indivíduo se determina por meio de seus atos, arrancando-se da imediatidade das coisas, impondo seu ato livre. Por conseguinte, ele ek-siste, isto é, mantém-se fora de si mesmo, em seu projeto, na relação com o que é. O existente é o único ente capaz de existir na abertura ao ser. Isso suscita a pergunta: o que significa existir para o homem?
Ora, segundo Kierkegaard, a existência, não constituindo objeto de uma consciência imediata, vai-se revelando progressivamente no curso do tempo como um apelo a que o existente se realize a si mesmo na relação com a verdade eterna, que é de ordem ontológica. A existência, para o homem, é ao mesmo tempo não ser Deus nem ser simplesmente como os demais entes e coisas que apenas existem na inconsciência da imediatidade e da coincidência consigo mesmo.
A antropologia de Kierkegaard assenta no seguinte axioma: se o homem se faz a si mesmo com liberdade, não o faz a partir do nada. Ora, ele está numa condição específica, na qual se acha a necessidade de se arrancar de sua animalidade, determinando para si a tarefa de realizar sua pessoa concreta.
O processo de subjetivação, na perspectiva de Kierkegaard, consiste num tipo de trabalho ao longo do qual o homem se faz a si mesmo, tomando consciência do eu que é, de sua liberdade que o convoca incessantemente a apropriar-se desse eu, a escolher-se, a decidir o que quer ser.

1.4. O espírito: a emergência da reflexividade

Lançado no mundo sob a forma biológica do corpo e de sua repercussão psíquica (a alma), o homem, sob a forma da imediatidade, precisa desenvolver o espírito, que é a faculdade de síntese reflexiva. O homem é, assim, uma síntese entre a alma e o corpo, e essa síntese não pode ser concebida, se tanto a alma quanto o corpo não estiverem unidos no espírito.
No esforço por tornar claro o conceito de espírito em Kierkegaard, precisarei me ater à definição de existência como cisão entre opostos. Essa cisão precede à tarefa de estabelecimento da sua síntese. Consoante Kierkegaard, a existência não se dá senão sob uma tensão insuperável.
Platão já intuía ser a existência atravessada por um tensão. Ensinava Platão que o homem se compõe de mortalidade e imortalidade e que ele se esforça por se libertar da finitude, de sua existência, que é representada pelo corpo mortal. E acreditava que o homem podia fazê-lo, porque ele é, em sua alma, essencialmente, imortal. Quando, por meio de Sócrates, Platão assevera que filosofar é “aprender a morrer”, estava a limitar essa morte ao corpo, já que este era considerado o túmulo da alma ou sua prisão.
A doutrina cristã se apressou em acompanhar esse helenismo, quando se afastou de sua origem judaica. Assim é que, para o cristianismo, o homem não se encontra em casa neste mundo; todavia, o cristão crê que a fé permite ao homem escapar, de certo modo, ao mundo, na esperança de que, no cumprimento da história, possa retornar à presença de Deus.
Sublinhemos que o homem é marcado pela clivagem entre a alma e o corpo, entre a interioridade e a exterioridade. É justamente no momento em que se opera essa cisão que irrompe a autoconsciência reflexiva, ou o espírito. O espírito dissolve, num primeiro momento, a unidade pré-consciente do corpo com a alma para, em seguida, unir novamente esta àquele.
Kierkegaard descreve esse estado de imediatidade recorrendo ao relato do Gênesis. Adão e Eva não conheciam aquela cisão quando habitavam o Paraíso. A separação entre aqueles elementos opostos – alma e o corpo – se seguiria à desobediência deles ao mandamento de Deus. O espírito, como sinal de liberdade, não só leva a efeito a cisão entre a alma e o corpo, como também o relacionamento entre eles (“e viram que estavam nus”).
É tarefa do homem, doravante, efetuar a síntese entre o finito (o corpo) e o infinito (a alma), e essa síntese é precisamente a essência do homem. Kierkegaard reconhece o problema, que não é mais o do ato de ascensão do espírito a Deus, pela desertificação do corpo ou do mundo, mas o do como da relação do eu consigo mesmo, a qual constitui a existência em sua divisão e em seu diálogo com Deus.
Kierkegaard não se cansou de lembrar que aquela relação não é possível senão pela mediação de seu fundamento comum, que é Deus. A síntese cristã demanda um esforço que não mais se pauta por um dualismo: é necessário realizar uma síntese, a qual é uma complexidade constituída de três termos – a alma, o corpo e o espírito.
A essência do homem consiste em lograr sucesso nessa relação em cuja base está Deus; por isso, de modo algum, o homem poderia furtar-se a ela. Kierkegaard não preconiza nenhuma fuga ao mundo e identifica como fim do homem a apropriação da existência enquanto existência: aqui e agora, em cada instante.
O espírito só advém com a referida cisão. O espírito instaura a consciência reflexiva de si. O homem só pode tomar consciência de seu corpo como corpo a não ser quando tem acesso ao espírito.
Uma observação se nos impõe, antes de terminar esta seção. Se é certo que a obra de Kierkegaard, conforme deve ter ficado claro, restitui ao indivíduo cartesiano uma proeminência ontológica, em contraste com os pensamentos de Spinoza, Hegel e Marx, para quem o indivíduo é subestimado em proveito do caráter determinístico do todo, não é menos certo também que Kierkegaard não foi cartesiano, quando se considera a totalidade de sua obra, que fundou na paixão a confiabilidade epistemológica. Um de seus epigramas famosos reza que “as conclusões da paixão são as únicas confiáveis”. Kierkegaard denunciou a carência de paixão em sua época.


1.5. A angústia, segundo Kierkegaard


Mesmo em estado de inocência, argumenta Kierkegaard, mesmo experienciando a calma e o repouso a que se liga um estado de ignorância, o homem não é animalidade bruta. O espírito, mesmo nesse estado de imediatidade, experimenta angústia diante do nada.
A alma de Adão e de Eva estava em união imediata com sua natureza. Eles ainda não existiam na modalidade do espírito, mas tão-só como possibilidade de espírito, tal como sucede com cada um de nós ao nascer. È apenas no momento em que tomam consciência de sua nudez que o espírito se faz presente no estado de esboço que cinde a alma e o corpo, circunstância esta que permite o surgimento da vida interior.
Kierkegaard entende que a angústia irrompe na ação do espírito que simultaneamente realiza a clivagem e a síntese entre a alma e o corpo, os quais passam a ser percebidos como separados pela consciência reflexiva. O homem toma consciência de sua imediatidade corporal e a vincula à exterioridade. Nesse momento, se experimenta a si mesmo como interioridade capaz de se determinar. A angústia, segundo Kierkegaard, prende-se a essa reflexividade nascente, à experiência originária que toca ao fato de existir, o qual é experienciado como ato de existir. A existência deixa de ter uma dimensão meramente factual para ser percebida como apelo a que ela se realize em cada ato, em cada escolha operada pelo indivíduo.
A angústia se apodera da consciência em face de todos os possíveis. Essa angústia decorre da intuição humana de que aquela síntese a se realizar, na maioria das vezes, fracassa na própria tarefa destinada à sua realização. A angústia é, pois, o lugar de emergência do si mesmo. Ela é desprovida de objeto, diferentemente do medo que o supõe; tampouco é intencional. Ela é o pathos em cujo bojo o indivíduo começa a tomar consciência de si mesmo. A angústia se põe na origem em que o indivíduo, confrontado com seu nada, com o abismo sem fundo do possível, do virtual, toma consciência de sua situação.
Reforce-se, aqui, a ideia de que a existência é o indivíduo livre, e não no sentido biológico. Esse indivíduo se define pelo cuidado com o ser. Ele é o homem que lança seu destino no tempo, no âmago da finitude e na presença da morte; é o homem que, por decisão sua, pode perder-se ou ganhar-se, vir a ser ou fracassar. Esse poder de ser e de não ser o abala profundamente, pois que esse indivíduo se descobre como “eu”. A angústia é o rugido da liberdade que confere vida à realidade de cada um e que leva cada um à condição de escolher, de se fazer responsável por si mesmo.


1.6. O eu como relação entre a alma e o corpo

Cumpre-me agora responder à questão O que é o eu para Kierkegaard? Começo por notar que é a totalidade da finitude que deve relacionar-se com o infinito. Essa finitude é complexa e estruturalmente fadada ao conflito interior, ao desequilíbrio entre elementos – alma, corpo e espírito - que se tornaram heterogêneos por força da consciência e pela divisão que ela, consciência, estabelece entre a alma e o corpo, a interioridade e a exterioridade.
O eu, segundo Kierkegaard, não é uma identidade abstrata ou um substrato substancial estático. O eu é, essencialmente, relação e, sobretudo, relação viva consigo mesmo. O eu é a reflexividade da relação entre a alma e o corpo, que se desdobra dinamicamente no tempo, tornando possível a realização da síntese entre o infinito e o finito, entre o temporal e o eterno, entre a liberdade e a necessidade, entre o absoluto e o relativo, entre o incondicionado e a condição. Todos esses pares constituem os polos assimétricos da condição humana.
O eu é a relação entre a alma e o corpo que se relaciona reflexivamente por meio do espírito. A reflexividade constitui o eu, que é a singularidade de cada um. Essa reflexividade arranca o indivíduo à impessoalidade da espécie.
Adverte Kierkegaard que o homem não se reduz a essa relação. A relação é estruturalmente mais complexa. O eu, enquanto relação que se relaciona consigo mesma, ou deve ter sido posta por si mesma, ou deve ter sido posta por outra coisa. Kierkegaard argumenta que o eu é incapaz de se estabelecer por si mesmo, de modo que ele foi posto por aquilo que, não sendo causado, é causa de toda a relação. Assim, o espírito se relaciona com o que é responsável por toda a relação, a saber, com Deus. Segundo Kierkegaard, resgatar de maneira consciente a relação com Deus da qual procedemos inconsciente e originalmente é nascer para si mesmo de verdade. Esse resgate é designado por Kierkegaard como uma espécie de segundo nascimento de um indivíduo que, depois de enfrentar as agruras espirituais, se sente renovado e é capaz de se renovar a cada novo dia.
Sucede, contudo, que essa alegria da renovação não pode ser alcançada sem dor. Há, deveras, uma tensão na interioridade, já que o eu não é determinado: ele se determina, ou seja, ele é que se escolhe. Ser determinado é negar o ser eu. Esta liberdade é responsabilidade, e existir é estar pleno de paixão pela liberdade, é estar consciente de que cada um de nós é infinitamente responsável pelo que escolhe vir a ser de modo definitivo. O eu só é eu quando assume sua própria singularidade por uma decisão moral que consiste em escolher a contingência que se é, que consiste em fazer da necessidade liberdade, contribuindo para a livre criação de si mesmo, na relação com a força ontológica verdadeira – Deus.
É oportuno lembrar o drama de Kierkegaard, que se expressou na forma do desequilíbrio entre o espírito e o corpo. A educação austera que recebera foi decisiva para a hipertrofia de espírito. Ainda que ele rejeitasse o asceticismo, acabou por se tornar um penitente, após deixar uma tumultuária noite de bebedeira, na qual foi lançado aos braços de uma prostituta por seus companheiros de embriaguez. Essa experiência representa o ápice da cisão. A lembrança desse trauma lançou-lhe na alma tormentos.
Dessa experiência traumática resultou sua convicção de que a vida humana é um dever de encarnação no tempo daquilo que Deus – a fonte eterna – doa ao espírito. Ele reconheceu que, abandonado a si mesmo, fracassou. Não soube equilibrar em si o eterno e o temporal, o infinito e o finito.
O processo de subjetivação, portanto, passa pelo reconhecimento de que o sujeito existente é, ao mesmo tempo, ser-no-mundo (imanente) e ser-superior-ao-mundo (transcendente). Ele é uma consciência que se desenvolve progressivamente quando descobre a sua verdade e procura encarná-la. Assim, existir é simultaneamente devir e ser. É por isso que a existência demanda a fé que, no fundo, é apreensão progressiva da eternidade através do tempo.
Para Kierkegaard, acompanhando Hegel, a fé é a certeza interior que antecipa a infinitude. Ela não se confunde com uma fuga ao mundo, um enclausuramento numa subjetividade exaltada. A fé é um esforço para descobrir o sentido da existência, ou seja, para viver uma vida dotada de sentido. A fé é tanto mais indispensável quanto mais se reconhece que a questão do sentido constitui um desafio filosófico que dá ao pensamento um outro interesse que não é o simples conhecimento.
Enquanto confiança, a fé é, por conseguinte, um caminho para o crescimento no ser, é abertura do tempo à eternidade. Destarte, é possível ao homem nutrir-se dela para viver da própria eternidade no tempo. A fé, sem jamais desarrancar o homem de sua condição temporal, lembra-lhe a sua vocação para a experiência da eternidade.


2. O desespero e suas formas

O percurso que nos conduziu até aqui foi trilhado com o propósito de assegurar o esclarecimento do conceito de desespero na antropologia kierkegaardiana.
Retome-se, aqui, a visão segundo a qual a existência é o aparecimento abrupto da liberdade em face do estado factual da existência. Existir é encarado, a partir de então, como uma tarefa pela qual o indivíduo assume a sua liberdade para se determinar a si mesmo no tempo, nutrindo-se, no entanto, da eternidade, donde procede sua vida.
Deve-se enfatizar este pressuposto básico: o desespero é uma característica essencial do ser humano. O desespero é um sentimento que o indivíduo experiencia em face da escolha de si mesmo.
A primeira forma de desespero liga-se à experiência de angústia em face do peso da liberdade que tem o sujeito para realizar sua tarefa mais autêntica, qual seja, a de ser humano, a de realizar a síntese entre a alma e o corpo. Mas essa síntese não pode ser bem sucedida a um ponto que se venha a dissipar a angústia. Ora, a angústia é angústia em face do salto de liberdade para a liberdade, e a liberdade é a essência do espírito.
O desespero decorre dessa impossibilidade de o homem esquivar-se de sua liberdade, para fugir à angústia. A existência não se nos apresenta como algo acabado. A passividade é-nos uma condição também desesperadora.
Outra forma de desespero prende-se ao receio de fracassar na tarefa de vir a ser. Nesse caso, o homem que quer ser mais teme não conseguir ser. O desespero é esse não conseguir ser. O desespero é uma determinação do espírito que se relaciona com o eterno em nós. Vale dizer que a impossibilidade de desfazer-se do eu é o desespero para o homem. A essa forma de desespero Kierkegaard chama de pecado. O desespero é pecado porque é o estado em que se encontra o homem que, em face de Deus, não quer ser o eu mesmo que é. Kierkegaard vê também no pecado, por extensão, o afastamento do homem em relação a Deus. O contrário do pecado não é a virtude, mas a fé. A fé não pode ser provada e não se explica. O pecado por si mesmo é a luta do desespero.
Se o desespero se vincula ao grau do desenvolvimento da consciência do eu, ou seja,  se é certo que o homem tende a ser mais desesperado quanto mais consciente de si mesmo estiver, quanto mais o seu eu estiver desenvolvido, o desespero permanece latente ou inconsciente também naquele indivíduo cuja consciência é menos desenvolvida. Seu desespero é um desespero inconsciente. Ele pode passar a vida inteira sem saber que está desesperado, porquanto não tomou consciência de ser um eu que deve construir-se a si mesmo em oposição às forças do “destino”. Tal é o caso do esteta, que vive na inconsciência de seu desespero, entregue inteiramente aos prazeres da sensualidade.


2.1. O desespero como doença mortal

Recapitule-se que o eu só existe quando é auto-relação, quando se volta sobre si mesmo e a própria relação assume a forma de um terceiro termo, de sorte que cada um desses termos passa a se relacionar com o relacionamento do eu consigo.
Tendo em conta o que se expôs, o homem pode, então, assumir duas atitudes: pode querer relacionar-se consigo, independentemente de quem o pôs nessa relação, ou pode não querer relacionar-se. Quando o homem se nega a relacionar-se consigo, posiciona-se no domínio da ficção. Pretende, assim, em vão, escapar a si mesmo; ele só poderia fugir de si mesmo, no entanto, matando-se.
Ora, essa impossibilidade de fugir de si mesmo produz, no homem, o desespero. Kierkegaard chama a esse desespero de desespero que não quer. Trata-se da forma de desespero que decorre da impossibilidade de o homem escapar-se a si mesmo.
Pode ainda suceder que o homem, por outro lado, deseje entrar em relação consigo, aceitando essa relação, mas negando-se a reconhecê-la como uma relação fundada por um Outro, isto é, por Deus. O homem exaspera-se por procurar uma origem para essa relação e o faz identificando-a com um ídolo ou se divinizando na crença ilusória de que está na origem dessa relação. O homem crê-se criador de si mesmo. Kierkegaard chama a esse desespero de desespero de quem quer ser por conta própria.
O desespero é uma doença mortal, porque, na condição de afecção, altera continuamente o equilíbrio em que o eu desejaria instalar-se. Destarte, o eu se manifesta continuamente como um desequilíbrio que se estabelece na auto-relação entre o que é e o que ignora que é.
O desespero se caracteriza pela discordância que se instala nessa síntese interna – síntese do finito e do infinito – de que resulta o eu enquanto auto-relação. Na origem, não existe tal discordância, porque o eu é pura possibilidade de ser e de não-ser. A discordância só existe na síntese, ou seja, a discordância entre o eu e si mesmo só há na síntese estabelecida pelo eu.
O desespero é a consciência da luta entre a vida e a morte, que martiriza qualquer indivíduo, ora brutalmente, ora de modo mórbido, ora ainda de modo tênue, mas sempre acenando com uma presença indicativa do fim. Afinal, o homem sabe que vai morrer, e esse é seu único e último projeto determinante.
O homem bem instalado no mundo das máscaras sociais, na lida cotidiana não percebe a face do desespero. Ele imagina-se um outro, para poder evadir-se de si. A questão central que se impõe a Kierkegaard, nesse ponto, é, portanto, o fato de o homem não poder libertar-se de si. Quem se desespera quer, no seu desespero, ser ele próprio, quer viver. Mas a vida não permite esperança.
A verdadeira face do desespero é, pois, o dilaceramento entre a imagem (autossuficiência) que o homem constrói de si e a sua origem (a de ser síntese). O desespero é a contradição que se depreende do querer ser ele mesmo e, ao mesmo tempo, não querer ser a sua origem. O desespero se assenta no solo da liberdade. O homem teme ser absurdamente o nada.


2.2. A universalidade do desespero

Não há homem livre do desespero. Sucede, contudo, que o homem é solicitado a viver de modo despreocupado em face do mundo. O homem vive imerso na banalidade da vida, na qual encontra satisfação imediata. Nessas condições, ele não se dá conta do desespero. Tampouco se apercebe da flutuação entre saúde e doença que acenam com a fragilidade da vida. Ele vive em segredo, e a vida lhe passa desperdiçada.
Kierkegaard nega que a felicidade se encontre no prazer. A felicidade é uma miragem, enquanto busca de um bem durável, no plano da finitude e do possível. Todo homem, por natureza, é desesperado.


2.3. O desespero e suas relações

O indivíduo humano é uma permanente relação que se dá através da liberdade. A síntese que é o homem – síntese do finito e do infinito – não é dada a priori, mas decorre de uma escolha. O eu, como vimos, é liberdade. Mas a liberdade envolve a contradição entre as categorias do possível e do necessário.
A consciência de si, no homem, é tanto maior quanto mais intensa é a vontade: um homem sem vontade é esvaziado do eu. Kierkegaard situa, pois, o desespero relativamente à dialética entre o finito e infinito e às categorias do possível e da necessidade, tendo em conta a consciência.




2.3.1. O desespero e as categorias de finito e do infinito

A análise do desespero, à luz das categorias do finito e do infinito, implica a compreensão dessa síntese que é o eu, dilacerado entre o desejo de se tornar concreto e o apelo a ser mais, espiritualmente.
O eu é livre na medida em que se orienta por conta própria. Entanto, o homem vive oscilando entre o desejo de viver na concretude da corporeidade e o desejo de ser mais espiritualmente. Essa oscilação está sempre impregnada de desespero. Todo equilíbrio no tempo é fugaz.
Na sua relação com a infinitude, o desespero leva o homem a escolher viver fora do real. Nesse caso, o indivíduo se projeta no imaginário e neste se perde, e se torna, assim, privado do seu próprio eu. Essa projeção no imaginário pode dar-se no domínio do conhecimento, do sentimento e da vontade. Ele se projeta para fora de si infinitamente.
O homem que vive de imaginação ama obstinadamente, de modo impessoal e sem vínculo. Ele vive privado de seu próprio eu. Conhece sem ligar-se ao objeto que estuda. E sua vontade é a de um eu que nunca realiza seus projetos. O isolamento no campo do imaginário também leva ao impedimento da relação com Deus.
Na sua relação com o finito, o desespero atormenta aquele que não ousa ser plenamente si mesmo, em toda a sua singularidade, assumindo sua inteira responsabilidade sobre a escolha entre os contrários. Esse indivíduo se dilui na banalidade do cotidiano, se encarcera no finito.


2.3.2. O desespero e as categorias do possível e da necessidade

Para que o eu se transforme e chegue a ser ele mesmo, tem de viver tanto no domínio do finito quanto no domínio do infinito. Essa necessidade é, fundamentalmente, dramática.
Na sua relação com o possível, o homem, como ser de possibilidades, só se realiza no domínio da necessidade. Mas, sempre que não se dá conta dos limites impostos pela realidade à realização de seus projetos, acaba por enlear-se nas teias da imaginação e do desejo.
Na sua relação com a necessidade, o eu não pode esperar nada além do que o real, visto que, do contrário, falsifica a sua condição como ser inacabado e carente, que tende ao infinito. A existência humana tem, segundo Kierkegaard, uma dimensão ou finalidade espiritual.



2.3.3. O desespero e a categoria da consciência

Consoante observa Kierkegaard, à medida que o indivíduo vai se desencantando das ilusões próprias ao mundo dos sentidos, ele vai adquirindo mais consciência da existência nas suas profundas contradições. Nem sempre, contudo, isso significa libertação. Pode suceder que essa consciência intensifique o desespero.
Cumpre definir dois tipos de desespero identificados por Kierkegaard.

a) desespero-fraqueza (tipo passivo)

Esse tipo de desespero é próprio de quem sabe o que significa ser existente – ser livre e determinado, mas não aceita e não deseja ser essa realidade.

b) desespero-desafio (tipo ativo)

Trata-se do tipo de desespero que afeta o homem consciente de si, que curte a sua solidão e aumenta progressivamente a consciência de seu eu. Para ser ele próprio, abusa desesperadamente da eternidade, inerente ao eu. Mas é precisamente por estar em face da eternidade que esse desespero se aproxima da verdade e, paradoxalmente, dela se vai afastando infinitamente. Isso se explica por que o homem deixar de reconhecer a força ontológica fundadora, em suma, não pode pretender ser como Deus. O indivíduo afetado por esse tipo de desejo quer dispor-se de si, fazer do eu o que quer ser. Como um estóico, um eu ativo, não reconhece nenhum poder acima dele.
Silencio sobre os três estádios em que se desdobra a existência, momento do pensamento kierkegaardiano contemplado em outro texto postado neste blog. Remeto o leitor à leitura desse texto, que trata do tema da angústia em Sartre e em Kierkegaard como um meio de integralizar sua compreensão.

Levando a cabo esta exposição,  cumpre notar que Kierkegaard pretende que alcancemos a compreensão de que o coração do drama humano repousa sobre a relação da existência com uma transcendência que torna possível a abertura da primeira para além de si mesma, ou seja, a existência significa poder de decisão, possibilidade de ser e de nada, significa existência como dúvida e fé, como uma ação interior da liberdade que se convoca a fazer escolhas decisivas.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

"A filosofia não é um conhecimento divorciado da vida" (BAR)

                           


                             A potência filosófica de existir


Poder-se-ia apontar várias razões por que uma pessoa decide dedicar-se aos estudos filosóficos. Embora possam ser várias, algumas, talvez, se destaquem desse conjunto quantitativamente indefinível por sua relação inextricável com experiências de vida, em que o psiquismo foi profundamente abalado. Suponho que não sejam raros os filósofos que passaram a filosofar e a conviver com o legado da tradição filosófica por força de traumas que certos acontecimentos lhes provocaram na alma. A ideia de que a decisão pela incursão nos estudos de filosofia e pelo exercício contínuo de filosofar pode ser consequência de experiências traumatizantes e  a de que o exercício mesmo de filosofar é uma forma de responder ativa e racionalmente ao abalo dessas experiências tomaram corpo em meu espírito, durante a leitura do prefácio da obra A potência de existir (2012), do filósofo francês contemporâneo Michel Onfray.
Donde provém a eficácia da filosofia para nos sustentar na existência, mesmo depois de termos experienciado os sofrimentos mais atrozes? Terá a filosofia o poder de iluminar a escuridão de nossas dores, contribuindo para nos manter nesse estado de “não-suicídio” (expressão que tomo a Luiz Gonzaga de Bem)?
A fim de explorar essas questões, retomo aqui a leitura que fiz do prefácio do livro A potência de existir (2012), de Michel Onfray. Este livro constitui uma introdução à obra desse filósofo; é, na verdade, uma síntese de seu pensamento filosófico. Sua filosofia é confessadamente hedonista, antiplatônica e anticristã. Seu pensamento foi forjado na esteira de Nietzsche e dos materialistas.
O prefácio desse livro é destinado ao resgate de experiências, vividas entre os dez e quatorze anos de idade, que marcaram a vida do autor profundamente. Conta-nos Onfray que, no começo de sua adolescência, ele fora enviado pelos pais para um orfanato administrado por padres salesianos (padres que pertencem à Congregação de São Francisco de Sales, fundada em 1859, por São João Bosco, para a formação da juventude). O que lá viveu foi não só determinante de sua entrega aos estudos filosóficos, mas também da construção de sua visão de mundo hedonista, antiplatônica e anticristã.
Era 1969, quando Onfray passou a viver, em regime de internato, no orfanato Giel – um amálgama lexical que reúne as palavras “gelo” e “fel”. Embora tenha ido para lá por arbítrio dos pais, o papel de sua mãe foi mais decisivo no destino que sua vida tomaria. No orfanato Giel, Onfray passou quatro anos e conheceu o que ele mesmo, sendo ateu, não hesitou em chamar de “inferno”. Esse “inferno” era dirigido por padres cruéis, hipócritas, pedófilos, pederastas e infensos à inteligência.
Sem pretender me demorar na exposição desse episódio da vida do filósofo francês, gostaria de oferecer ao leitor algumas amostras de sua narrativa desses tempos idos que, embora tenham desencadeado seu interesse pela filosofia, não lhes legou ressentimento ou sentimento de vingança. Ao invés de permitir que uma revolta paralisante se aninhasse em sua alma, Onfray escolheu tomar o caminho que o conduzisse a ampliar sua “potência de existir” (fórmula de que tomou conhecimento pela pena de Espinosa). Onfray respondeu ao legado dessas experiências por meio da prática filosófica, o que equivale a dizer por meio de uma compreensão radical do mundo, de seu lugar no mundo e de si mesmo.
No trecho a seguir, o autor lembra quem fora sua mãe e como era sua relação com ela.

“Meu Deus, como ela deve ter sofrido por não ter conseguido conter o ódio que lhe impingiram e que ela devolvia ao mundo, sem discernimento, incapaz de poupar seu filho! O que pode compreender uma criança com menos de dez anos dessa mecânica cega que envolve, sem que eles queiram, esses atores descerebrados na loucura que os destrói? Uma mãe bate em seu filho como uma telha cai do telhado; o vento não é culpado. Depositando sua filha à porta de uma igreja, minha avó, de quem ignoro tudo, contribui para os movimentos de todas essas infâncias postas sob o signo da negatividade. A força cega que move os planetas conduz num mesmo movimento os seres alimentados com essas energias negativas”.
(p. XV)


Por ter compreendido ter sido sua mãe tão vítima quanto ele, o filósofo não a culpa, já que todos os envolvidos eram atores submetidos a uma mecânica cega, muito embora ele, Onfray, reconhecesse ter estado numa situação ainda mais desfavorável, visto que “desempenhava um papel num palco cujas lógicas ignorava” (ib.id.).
O pai não dissuadiu a mãe de sua decisão. A natureza plácida, sua taxia que lhe enrobustecia um espírito pacífico acomodou-lhe muito bem no papel de cúmplice.
Já no orfanato, Onfray nos oferece suas primeiras impressões daquela atmosfera marcada profundamente por violência, vigilância, disciplina castradora e abusos sexuais.

“Não se escapa de uma prisão não murada. A carne e a alma são vigiadas inclusive a distância, principalmente a distância”.
(p. XVII)


Quando os pais o deixaram, iniciava-se a história de seu fim. É sua existência que seria, desde então, profundamente transformada, lavrada com o cinzel do isolamento, da solidão, do abandono.

“A história do ser se escreve ali, com essa tinta existencial e essa carne que se furta, esse corpo que registra animalmente a solidão, o abandono, o isolamento, o fim do mundo. Arrancando dos costumes, dos rituais, das fisionomias conhecidas, dos lugares íntimos, eu me encontro sozinho no universo, experimentando o infinito pascaliano e a vertigem que se segue. Vórtice da alma e dos humores...”. (p. XIX)


“Vórtice da alma”tal é o impacto causado por esse arrancamento prematuro de seu universo familiar, para ser lançado num mundo hostil, sombrio e apavorante.
Era o fim de Michel Onfray, que teve de lidar com o fato de sua subjetividade ser reduzida a um número.

“Não serei mais que 490, um número que reduz meu ser a esses algarismos. Normal, estou num orfanato, onde abandonam as crianças, logo, elas devem se separar de seu nome próprio para se tornarem um número numa lista. (...) Fui morto ali, naquele dia, naquele momento. Pelo menos a criança em mim morreu e eu me tornei adulto repentinamente. Mais nada me assusta desde então, não temo nada mais devastador”.
(p. XX)


O espírito salesiano – já o disse – não se agrada da inteligência. O sacerdócio era oferecido aos que se deixavam moldar intelectualmente. Nessa atmosfera, os livros atraíam desconfiança e o conhecimento produzia temor. O intelectual era identificado como o verdadeiro inimigo. A culpa estava por toda parte. A punição sobrevinha injustamente pelas mãos impiedosas do capricho e do arbítrio. Nesse ambiente, até mesmo o estudo se desenvolvia sob a pressão do temor:

“A disciplina, os castigos, o lícito, o ilícito, o bem, o mal, a falta, vivíamos em permanência nessa atmosfera. O estudo também transcorre no temor: o mau resultado obtido, não por falta de esforço, mas por falta de inteligência, também é submetido à lei da nota semanal, depois punido”.
(p. XXXIV)


Um dos casos de abuso sexual de que foi testemunha o filósofo envolveu um salesiano encarregado da enfermaria. Conforme nos conta Onfray,

“Duas palavras também sobre o salesiano encarregado da enfermaria, para onde ninguém corre, e com razão: qualquer dorzinha de cabeça vale para quem o procura ter imediatamente a calça abaixada e ser bolinado. Com as calças caídas sobre os sapatos, se protesta observando que não é ali que dói, ouve em resposta que as complicações se escondem em toda parte! Depois, o apalpador de sacos declara, indiferente, que está na hora de voltar à sala de aula e paga tudo avarentamente com um comprimido de aspirina. Fiquei com minhas dores de cabeça para mim...”.
(p.XXXIX)


Os livros, a música, as artes e a filosofia – especialmente a filosofia – avivou-lhe a força necessária para que pudesse suplantar o inimigo do passado, responsável por confinar sua existência em relações íntimas com o medo e a opressão “santa”.

“Para não morrer por causa dos homens e da sua negatividade, houve para mim os livros, depois a música, enfim as artes e sobretudo a filosofia. A escrita coroou o todo”.
(pp. XXXIX – XL)


Toda produção intelectual do filósofo é consequência, conforme ele próprio nota, “de uma operação de sobrevivência efetuada desde o orfanato” (ib.id.). Com Espinosa, passou a expressar em seu pensamento filosófico a “potência de existir”. Com as seguintes palavras, com que dá testemunho de sua sobriedade e sabedoria, Onfray encerra sua visita ao passado salesiano:

“Sereno, sem ódio, ignorando o desprezo, longe de todo desejo de vingança, ileso de qualquer rancor, informado sobre a formidável potência das paixões tristes, não quero nada mais que a cultura e a expansão dessa “potência de existir”.
(p. XL)


Ainda não ataquei, propriamente, as questões anteriormente propostas; mas tão-só as toquei de leve. A experiência relatada por Onfray ilustra a medida da relação irrecusável, a quem quer que se dedique seriamente aos estudos filosóficos, da filosofia com a vida. Não obstante, precisamos avaliar quais são as características da filosofia que tornam-na um instrumento poderoso para alimentar no homem a perseverança em existir cada vez mais.
Antes de encetar nossa investigação, trago à cena as observações feitas por Sponville, em seu Uma Educação Filosófica (2001), sobre o que chama de estado de crise da filosofia. Segundo o filósofo, a crise apresenta duas faces: uma deve ser identificada com a modernidade, na qual se destaca o poder da mídia na formação da opinião das massas, a qual insistentemente preenche o lugar da filosofia; a outra, com a erudição que se manifesta mediante raciocínios vãos e divorciados da vida real. Essa verborragia vazia a que se reduz a prática filosófica, Sponville chama idealismo universitário. Não admira que a disciplina seja tão pouco atraente aos estudantes. Ao se dirigir à classe docente, confessa o filósofo francês:

“(...) muitas vezes, ao ouvi-los, tenho a impressão de escutar uma filosofia morta, que não tenha a opor ao pedagogismo reinante nada mais que um filosofismo caduco e irrisório”.
(p. 139, ênfase no original)


Por pedagogismo – preciso esclarecer -, Sponville entende um sistema de ideias, atitudes e práticas que privilegia a educação em prejuízo da instrução. Esse padagogismo carreia certo número de forças – ideológicas, profissionais, sindicais – que estão intimamente ligadas ao meio docente. Nesse sistema ideológico, reza-se que a escola seja libertadora não só dos indivíduos, mas também da sociedade. Essa apregoada libertação de que a escola deve ser promotora assume a forma de uma promessa de prosperidade para a sociedade que tenha em seu horizonte o futuro e em seu projeto a recusa à transmissão e à conservação do passado – função esta que, segundo Sponville, deve ser imputada à escola. Nas palavras do autor,

“(...) cumpre lembrar que a escola não é o lugar da invenção do futuro (que somente os cidadãos podem e devem assumir), mas da conservação do passado na reprodução do presente”.
(p. 138)


Se a escola tem, consoante pensa Sponville, uma função eminentemente conservadora, não se segue daí que se deve confundir o projeto pedagógico conservador da instituição escolar com o conservadorismo político. Do mesmo modo, não se deve tomar esse projeto como um caminho para a consolidação de práticas reacionárias. Trata-se senão de um compromisso com a conservação de um passado, de uma história, de um patrimônio cultural, que é a própria história do desenvolvimento da cultura ocidental.
Quando se debruça sobre o conteúdo e a finalidade da filosofia, Sponville é enfático: “a filosofia tem (...) fora de si mesma, seu objeto (o real) e seu fim (a sabedoria)” (p. 140). Uma filosofia apartada do real, divorciada da materialidade imanente ao mundo não passa de uma verborragia enfadonha e despropositada. Como poderiam os jovens se sentir atraídos por um discurso (logos) desconectado com a própria existência que o torna possível? Esse logos se reduz, se não encarnado no real, a uma tagarelice que beira à loucura – para parafrasear Sponville (p. 140).
Estando a filosofia comprometida com o real, deverá ela responder aos anseios humanos; e qual outro é tão facilmente universalizável quanto o anseio de felicidade? Tendo em conta o fato de que a felicidade jamais estivera ausente do horizonte humano, oportuno é lembrar a definição de filosofia dada por Epicuro: “a filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”. Mas não devemos nos apressar em concluir que a filosofia por si mesma é suficiente para nos conduzir à felicidade. Não percamos de vista o fato de que também a felicidade e a possibilidade de sua fruição são colocadas como uma questão para a filosofia. Ademais, a definição oferecida por Epicuro deve ser entendida à luz de seu ensinamento ético, que propunha como finalidade a ataraxia (ausência de perturbações). O homem feliz, para Epicuro, é o homem que eliminou a dor, o sofrimento mental e físico; é o homem que se libertou do jugo de seus temores. Somente o estado estável de prazer leva à felicidade. Deixemos, no entanto, Epicuro, não sem reter a íntima relação entre filosofia e a vida vivida, para retomar as considerações de Sponville.
Segundo Sponville, o ensino de filosofia serve para dotar os estudantes de conhecimento e instrução. Serve, ademais, para propiciar-lhes a experiência da alegria do repouso na verdade (Espinosa).
Concentrando-se na questão do ensino da filosofia, Sponville identifica os seguintes desafios à prática do professor – que são os desafios de todo professor (não só de filosofia) preocupado com o ensino de leitura e escrita. O primeiro desafio consiste em enfrentar o estado de incultura dos alunos; o segundo, no enfrentamento do domínio deficiente da língua escrita; o terceiro, em enfrentar a desvalorização da abstração e do trabalho com conceitos; finalmente, o quarto desafio repousa no enfrentamento do culto ingênuo das vivências, do imediatismo e da espontaneidade.
A rejeição a assumir esses desafios é desistir do esforço por evitar que a filosofia se torne uma filodoxia, conforme nota o autor:

“Os debates de opiniões substituiriam então os estudos dos textos, a impaciência presunçosa dos falsos saberes triunfaria sobre a paciência do conceito e a filosofia se apagaria, enfim, diante da filodoxia”.
(p. 135)


Sempre que nos ocorre perguntar-nos “o que é filosofia?”, não é sem-razão começar por assumir o óbvio: não se filosofa senão com palavras. Se preferirmos, com discursos. Mas não com quaisquer palavras ou discursos, decerto. As palavras precisam designar ideias gerais ou conceitos. Que a filosofia se faz pelo encadeamento de raciocínios é lugar-comum, mas esses raciocínios devem nos guiar na busca da verdade necessária e universal. A filosofia demanda um trabalho intelectual, rigoroso, metódico, disciplinado. Ela é uma prática teórica, que visa a resultados gerais ou universais. Como prática teórica, não é científica, porque não pode ser logicamente demonstrada, como a matemática, nem empiricamente refutada (à semelhança das ciências experimentais).
A filosofia supõe um trabalho de transcendência realizado pelo próprio homem. O seguinte passo de Sponville, colhido de sua obra A Filosofia (2005), ilumina-nos em que consiste este trabalho de transcendência:

“Filosofar é pensar mais longe do que aquilo que se sabe e do que aquilo que se pode saber”.
(p. 20)


A filosofia não só torna o homem consciente de seus limites, mas também o estimula a ultrapassá-los. Ao que escreve Sponville, eu acrescentaria, fazendo eco a tantos especialistas na área, que filosofar é também submeter ao exame e convocar ao tribunal dos questionamentos, presidido pela razão, as opiniões, as crenças e saberes correntes e cristalizados, que tomam a forma de verdades “sagradas”, inabaláveis, intocáveis.
A filosofia não é a única forma possível de conhecimento, evidentemente. A fim de melhor compreender sua natureza, vamos confrontá-la com o que se costuma chamar de senso-comum. Decerto, enquanto empreendimento de uma razão crítica, a filosofia rejeita as ingenuidades e os preconceitos típicos do senso-comum. Mas o que é o senso-comum?
Em primeiro lugar, devemos reconhecer que ele ocupa um lugar privilegiado na vida de qualquer um de nós, já que ele é o conhecimento imediato, espontâneo, vivido que nos guia em nossas vivências diárias. Assim, podemos definir o senso-comum como a forma de compreensão da realidade imediata pelos indivíduos em suas experiências da cotidianidade. É um saber coletivo que encerra opiniões, hábitos, crenças, superstições, formas de pensamento, valores, ideologias de que se vão apropriando os indivíduos em coletividade de modo acrítico. Essa forma de saber serve, como disse, para orientá-los em suas vivências cotidianas. É o senso-comum que guia as suas ações, as suas formas de perceber/compreender a realidade.
Quando um indivíduo assume uma atitude filosófica, ele, necessariamente, se compromete com a superação desse senso comum, responsável por conformar maneiras de pensar e entender, por determinar hábitos de pensamento. É preciso frisar: mesmo esse indivíduo imbuído de atitude filosófica e, portanto, disposto a examinar toda sorte de opiniões e representações do senso comum, que acaba por conservar uma grande maioria num estado de compreensão superficial e empobrecida da realidade, não consegue prescindir totalmente do senso-comum, dada a sua natureza utilitária, visto que serve para orientá-lo nas suas vivências ordinárias.
O pensamento filosófico surge da urgência de questionar as verdades do senso-comum, por isso não pode prescindir dele. Para o que me interessa, é preciso ficar claro que o senso-comum é uma forma de conhecimento superficial, porque não atinge os fundamentos ou as raízes da realidade; assistemático, porque desprovido de organização e coerência internas; não-metódico, já que o seu desenvolvimento não se dá por etapas predeterminadas, mas segundo as necessidades emergentes das circunstâncias. Para o senso-comum, o poder da tradição é determinante para a manutenção de certas formas de agir e saber. Vale o conhecimento que se demonstrou útil ou eficaz no passado.  Segundo a lógica do senso-comum, as ações, os comportamentos  e os conhecimentos assumidos no presente se justificam com base em sua eficácia ou valor fixados pelas gerações precedentes. Consoante observam Luckesi e Passos (2012):

“O senso comum não está preocupado com as incoerências de suas partes, e muito menos se esse entendimento é válido aqui e acolá ou se só aqui ou só acolá. Sabe que, aqui e agora, nesse momento prático, ele é útil, o depois... e o acolá... do conhecimento são dimensões que não cabem no seu horizonte”.
(p. 38)


O homem acostumado ao labor filosófico busca prevenir-se contra as ilusões que lhes são inculcadas por força de sua socialização. O leitor de Schopenhauer, por exemplo, tendo-o em conta, não descuidará do fato de que a faculdade de deliberação no homem está entre as coisas que mais acarretam dor à sua existência. As dores que experimentamos, muitas vezes, têm sua origem em noções abstratas, em pensamentos que a própria racionalidade fabrica. Se a lucidez no homem pode ser fonte de sofrimentos, a razão também lhe permite ponderar sobre esses sofrimentos e suas consequências. No homem, a faculdade de deliberação é indissociável da faculdade de abstração, de sorte que o próprio comportamento deliberativo no homem se determina por representações abstratas.
Gostaria, doravante, de situar minhas reflexões sobre o valor da filosofia no domínio da urgência de diversão. A filosofia se nos apresenta como um espaço dialógico de resistência à necessidade alienante de “di-vertimento”. Do latim “de-vertere”, diversão significa “desviar a atenção para outro lado”. Pascal entendia a diversão como uma atividade em que o homem se ocupa para evitar defrontar-se com o seu vazio existencial, com sua insignificância num universo infinito, cego e indiferente. Tudo de que se ocupa o homem, desde o exercício de sua profissão, passando pelas atividades políticas, negócios, até o hábito de se deixar estar por longas horas a navegar pela internet pode ser definido, segundo a perspectiva de Pascal, como “di-versão”.
Não só Pascal vem em socorro da ideia de que a filosofia, não negando ao homem os prazeres da diversão, ilumina-lhes o caminho para que se liberte de sua tirania, mas também Kierkegaard e Heidegger. Este último, que também se preocupou com a existência concreta do homem no mundo, estava consciente do fato de que o Dasein do cotidiano (o impessoal) é o homem que se diverte como todo mundo se diverte, que vê e julga como todo mundo, que considera escandaloso o que se comumente considera um escândalo. Para Heidegger, o homem imerso na impessoalidade habituou-se a reproduzir formas homogêneas de pensamento. Seus di-vertimentos também são produtos de hábitos determinados por sua sociedade. Esse homem tende a abordar os problemas de relevância social, cultural, política, histórica, universal segundo os modelos engessados de opinião estabelecida.
A respeito desse homem conformado à cotidianidade e moldado às formas de di-vertimento padronizadas em sua sociedade, mas também prisioneiro dos estímulos sensoriais provenientes da exterioridade, que o faz desarrancar-se de si, Melendo, em Iniciação à Filosofia – Razão, Fé e Verdade (2005), nota:

“(...) justamente entre estes últimos o domínio das modas, das categóricas frases feitas, dos reiterados comportamentos rituais, é o que se manifesta em geral e com mais ênfase. E isso impressiona sobremaneira, porquanto vai acompanhado da ingênua certeza de estar desafiando uma sociedade que, de fato, sem que eles o saibam, submete-os às suas leis (...) às regras de consumo, aos jogos de poder, ao status quo estabelecido”.
(p. 35)


O homem que vive anonimamente no fluxo das massas tende a entreter-se com palavreados, com notícias e debates oferecidos superficialmente pelos meios de comunicação de massa. As palavras de que se serve comunicam conteúdos em torno dos quais se estabeleceu um domesticado consenso. Esses conteúdos são agastadamente reproduzidos. Para ele, a realidade está toda ela revelada e apreendida nesses conteúdos. Os temas de que se ocupa são esvaziados de sua importância e tendem a ser enfocados de uma perspectiva predominantemente subjetiva, valorativa e estreita.
Em suma, o bombardeamento de informações desconectadas de seus contextos reais de existência, o excesso de estímulos sensoriais a que esse homem está suscetível desencorajam-no de imergir no sentido profundo dos acontecimentos e das ocorrências do real.
Antes de me deter a considerar a lição de Kierkegaard sobre a existência concreta do homem – lição que nos ajudará também a compreender o valor da filosofia, quando a consideramos como uma prática discursiva que responde às necessidades vitais do ser humano, quero me demorar um pouco na exposição do aspecto impessoal da natureza do Dasein, segundo Heidegger.
Das Man (o impessoal) é o conceito cunhado por Heidegger para designar os aspectos de nossas vidas que são comuns e que se situam na esfera do anonimato. Esse conceito recobre as vivências dos indivíduos em nossas sociedades de massas, nas quais eles não se distinguem uns dos outros. Mas Heidegger argumenta que o “eu” é sempre impessoal e que não pode ser concebido como substância. Isso não o impede de distinguir um “eu” autêntico do “si-mesmo-impessoal”. Esse eu será cada vez mais autêntico quanto mais capaz de se distanciar das multidões.
Heidegger, no entanto, nega que seja possível ao “eu” ser univocamente autêntico. O eu do Dasein cotidiano é o “si-mesmo-impessoal”. Para esse “si-mesmo-impessoal” a existência não se apresenta como um problema sobre o qual ele deve se debruçar.
De minha parte, considerando-se a filosofia em sua relação dialética com o “si-mesmo-impessoal”, ela se lhe apresenta como um caminho íngreme através do qual pode superar o conformismo, a apatia, o imediatismo das vivências ordinárias.
Kierkegaard também se ocupou da reflexão sobre o homem individual no mundo. Nesse sentido, ele se opõe às filosofias que tenderam a negligenciar a dimensão individual da existência humana, como, por exemplo, as de Spinoza, Hegel e Marx. Para os meus propósitos, considerarei os dois tipos de homem identificados e definidos por Kierkegaard, quais sejam, o homem normal e o homem autêntico.
O homem normal, também chamado por Kierkegaard de filisteu, é o homem que exibe uma “neurose normal”. É o homem que não se diferencia da multidão de que toma parte sua existência cotidiana, cirurgicamente moldada pelos padrões de sua sociedade e cultura. Esse tipo de homem receia arriscar-se; evita defender seus significados, preferindo a imitação de modelos, preferindo perder-se na insignificância da multidão.
Esse homem sente-se bem acomodado ao mundo. O mundo é para ele como um lar onde suas práticas e pensamentos se deixam domesticar. Ele vive no circuito rotineiro de suas obrigações e se confunde com os deveres sociais.
O filisteu, em Kierkegaard, é este homem acomodado numa existência que, raramente, reclama-lhe indagações. Ele conserva-se na crença de que o equilíbrio de sua existência deve ser mantido com vivências que se seguem às vivências “normais” da coletividade. Ele se tranqüiliza com o trivial. Receia enfrentar sua precária condição humana.
O homem autêntico, por outro lado, desafia sua própria fraqueza. É criador de si mesmo. Não teme defender seus significados, suas visões de mundo, mesmo que isso lhe custe dissensões na sociabilidade e um relativo isolamento. Não se posiciona em face do social como um sofredor estéril ou um sonhador que prefere esconder-se. Ele imerge visceralmente na existência, sem receio de enfrentar, em algum momento, seu absurdo.
Esse é o homem deslocado socialmente, que resiste às formas de adaptação das massas à engrenagem social. Autônomo, porque rejeita a heteronomia. Porque não delega a outros atores sociais o trabalho de pensar e decidir em seu lugar. Esse homem é atravessado, penetrado pela inquietude intelectual.
O homem que abdica de viver sob a luz de seu espírito crítico busca, por esse estratagema, escapar à angústia legada por sua própria condição humana. Ele vive num estado de embaçamento, no tocante à compreensão de sua condição. Vive confinado a hábitos de existência que lhes estorvam as percepções da realidade.
A angústia a que me refiro envolve a percepção do homem de sua condição de criatura. A angústia resulta da consciência de que, embora seja uma espécie de animal, o ser humano é cônscio de sua finitude. A angústia envolve um terror, tão bem caracterizado por Becker, em A negação da morte: uma abordagem psicológica sobre a finitude humana (2012):

“(...) ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia pela vida e pela auto-expressão – e, apesar de tudo isso, morrer”.
(p. 116)


Filosofar é aprender a viver


Encaminhando estas reflexões a um desfecho que, não encerrando a problemática em torno do valor da filosofia e das razões por que o homem a ela se entrega, possa satisfazer os objetivos aqui perseguidos, volvo olhares sobre a filosofia como uma forma de conhecimento indissociável da vida prática.
Proponho que tomemos a seguinte questão: por que conhecemos? Em outros termos, por que o homem produz conhecimento? A resposta salta evidente: para sobreviver. Para que o homem possa orientar sua vida no mundo, ele precisa conhecer esse mundo. O conhecimento ilumina sua práxis. Não nego que o conhecimento possa servir a outros propósitos, certamente pouco apreciáveis ou mesmo execráveis. Mas, sem conhecer o mundo em que vive, o homem viveria em um eterno estado de escuridão, que o impediria de nele atuar de modo significativo e satisfatório.
A filosofia, enquanto forma de conhecimento (cujas especificidades já apontei em outras ocasiões e que retomo aqui em linhas gerais), deve estar a serviço da vida. Por ser crítica, a filosofia se propõe compreender radicalmente o mundo. Mas também constitui um sistema que fornece ao homem princípios na base dos quais ele orienta suas ações, seus comportamentos, suas práticas. O conhecimento filosófico, portanto, não se fecha em si mesmo, mas se apresenta ao homem como conhecimento-ação que lhe permite atuar critica e lucidamente sobre o mundo, com vistas a atender às suas necessidades que emergem da vida prática.
A filosofia instrumentaliza o homem para que ele transcenda o viver imediato, liberte-se do imediatismo da realidade empírica do cotidiano, enfrente a precariedade de sua condição como ser destinado, desde que chega ao mundo, a morrer (não sem ter de sofrer, muitas vezes, com enfermidades no auge de sua juventude, com a decrepitude, ou mesmo pela morte dos seus) e torne mais eficiente e significativa a sua práxis.
Não há filosofia que não expresse a vida humana, que não se ocupe de questões que tocam à existência humana. São os homens que fazem filosofia e é a eles que ela se dirige, é aos seus problemas, aos seus temores, às suas angústias, às suas tragédias, à sua insensatez, à sua natureza, etc. A filosofia – convém insistir – não é um conhecimento divorciado da vida.
Finalmente, é forçoso reconhecer que a ação sem o conhecimento é cega. O homem, a fim de agir no mundo, precisa saber, precisa conhecer sua estrutura e funcionamento. Quando consideramos as ações na dimensão da existência humana, devemos reconhecer também que essas ações são dotadas de sentido. A razão é também a faculdade que torna possível ao homem atribuir sentido ao mundo e às suas ações no mundo.
A filosofia, portanto, serve ao homem como uma atividade racional, investigativa e metódica que lhe permite por em questão o próprio sentido do mundo e da existência. Nas palavras de Luckesi & Passos (2012):



“(...) o ideal da filosofia não será, de modo algum, manifestar-se como uma forma inconsciente de compreender e orientar a ação; o seu objetivo, pelo contrário, é ser um modo consciente e crítico de pensar e direcionar a vida”.
(p. 79)



É a este propósito, qual seja, “o de pensar e direcionar a vida de modo consciente e crítico” que a filosofia serviu para Onfray, muito tempo depois de ter vivido os anos de terror no orfanato Giel. A filosofia é um antídoto contra os ressentidos e o ressentimento. É, como ensina Luc Ferry, uma forma de o homem “salvar sua própria pele”, com os recursos de que dispõe, pela força motriz de sua razão. Não se filosofa para lamentar, tampouco para fugir às frustrações, aos medos, às angústias. É justamente o contrário. Filosofa-se para, compreendendo as disposições contrárias do universo aos nossos anseios de felicidade, compreendendo a nossa impotência, as nossas limitações, enquanto seres mortais e finitos, compreendendo as nossas habilidades, possamos claramente determinar nosso raio de liberdade de ação e enfrentar, sem recorrer a subterfúgios consoladores, as dores e os sofrimentos que, ainda que muitos de nós prefiramos retocar com a maquiagem de nossas vãs esperanças, insistem em irromper das malhas finas da existência. Preferir a lucidez ao conforto, mesmo que aquela nos revele a miserabilidade, o terror, a tragédia, a ausência de sentido da existência, a verdade crua do sofrimento, a fluidez da felicidade, a fragilidade da vida, as incertezas do futuro, a conspiração inocente e aterrorizante da natureza, é, em suma, o caminho que escolhemos quando nos inclinamos à filosofia.