Mostrando postagens com marcador Morte. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Morte. Mostrar todas as postagens

domingo, 18 de setembro de 2016

"O desespero: forma negativa do entusiasmo" (Cioran)

                Resultado de imagem para queda no abismo


                    Pensamentos dispersos
           Sobre a crueldade do real e o morrer

“Os homens esperam tudo do tempo, que seus ideais se cumpram no futuro, que suas esperanças se tornem realidade e que a morte chegue “a seu tempo”.

“Que a consciência de nossa missão derive de uma infinita comunhão com o instante, da fúria exaltada de uma vida que se reclama plena, a despeito do nada temporal”.

“Irmãos! Nunca perguntaram por acaso por que nossas alegrias são tão raras e tão grandes? Nunca perguntaram por que respiramos em meio a tantos suspiros e por que tão raramente nos sentimos estremecer de alegria? Nunca pensaram alguma vez que o preço da alegria é a dor? Que as grandes alegrias são dores transfiguradas?

Cioran.

A quem recorrer? Decidi não mais frequentar consultórios de terapia psicanalítica para me curar, ou para acreditar-me curado, mas, na verdade, sinto que não tenho feito outra coisa senão desocupar-me de meus abismos, de minhas tendências neuróticas, de minhas perturbações, de minhas necessidades afetivas.  Sinto que o maior dos infortúnios recaiu sobre mim, mas não posso responsabilizar ninguém por isso, nem mesmo a Deus, que, se existisse, deveria carregar toda a culpa pelo sofrimento injustificável que grassa no mundo. Se Deus existisse, ao menos eu teria um adversário para combater, a quem eu poderia culpar por toda a eternidade.  Não é tanto a crueldade do real que deve nos provocar indignação, mas sim a impossibilidade de imputá-la a um agente responsável. Se Deus existisse, ao menos eu poderia acusá-lo do sofrimento dos justos, do sofrimento das crianças, mormente das que já nascem vitimadas. O que há de tormentoso na crueldade do real é sua gratuidade. O real é cruel e não podemos fazer nada a respeito disso.
Se a existência de um número incalculável de desgraçados pudesse ser atribuída à influência de forças demoníacas, se todo mal que recai sobre os bons e justos pudesse ser identificado como efeito produzido por entidades sobrenaturais maléficas, a quem pudéssemos atribuir responsabilidade, estaríamos, ao menos, certos de que o mal e o sofrimento podem ser racionalmente explicados. No entanto, grande parte do sofrimento que recai sobre nós é consequência da ação de organismos patológicos destituídos de consciência e responsabilidade, organismos que visam apenas a reproduzir cópias de si mesmos. Eles não estão conscientes do mal que causam; na verdade, eles sequer causam mal. Eles atuam segundo um determinismo estritamente biológico. Uma bactéria que se hospeda em nosso corpo, causando-nos uma grave doença, só quer reproduzir-se, manter sua sobrevivência. O mal que nos causa é um efeito colateral.  Ela não se importa conosco, tampouco pode ser responsabilizada pelo mal que nos provoca.
Não é tanto a crueldade do real que me dói; é o modo como as massas a ignoram tão naturalmente. Ou ainda, para ser mais exato, o que me dói é a tendência geral destes milhares de milhões de transeuntes que marcham em direção à morte inevitável de confortar-se em face do caráter cruel do real agarrando-se a esperanças injustificáveis. Acho extremamente indecoroso, ofensivo, repulsivo consolar a quem sofra pela morte de um filho vitimado por leucemia com dizeres promitentes de um descanso num além-mundo. Quem acredita que todo sofrimento deste mundo pode ser justificado por uma vida eterna em outro mundo deprecia a vida atribuindo valor maior a uma ilusão. E mais: subestima a dor de quem se encontra em tormentoso sofrimento. Se uma mãe chora a morte de um filho, que não resistiu às longas e extenuantes sessões de quimioterapia, devemos chorar em solidariedade a ela, se pudermos, ou nos calar. O silêncio dá testemunho de nosso respeito e sinaliza nossa impotência em face da dinâmica cruel da vida. Não há apelação! Não há que tentar confortá-la com palavras vazias de qualquer significação. Não devemos buscar atribuir significado a uma morte que, por si mesma, repele toda tentativa de ser significada. A insignificância de um ser humano em face da imensidão do universo pode ser medida se nos pormos a pensar que um ínfimo mosquito hospedeiro de um vírus é suficiente para levar à morte uma pessoa.  Eis o que a maioria das pessoas se nega a admitir: que todo sofrimento é despropositado, é sem sentido. Que sofrer é parte inerente da dinâmica da existência, ela mesma também desprovida de qualquer sentido. Embora para mim a vida seja um suplício, não acredito no caráter absoluto dos valores transvitais pelos quais me sacrificaria.” – escreveu Cioran. Todos os valores transvitais a que nos agarramos são ficções produzidas por nós mesmos a fim de tornar a crueldade do real suportável. Tenho pena das pessoas que se negam a acolher esses pensamentos que articulo nesta página. Cuido-as escravas de suas próprias crenças que não podem ser justificadas, sem apelar para o desejo. Assim, a maioria dos homens e mulheres crê que haja um Deus pelo simples fato de que deseja que haja um Deus. Ninguém pode apresentar uma justificativa razoável para tal crença. É claro que muitas pessoas buscam justificar essa crença apelando para experiências pessoais, para suposições igualmente injustificáveis. Não estou justificado para concluir do fato de que uma criança se curou de um câncer (o filho de minha amiga, por exemplo) que Deus existe, já que a constatação de que outras crianças não conseguem se curar parece sinalizar que fatores biológicos envolvidos são os melhores candidatos para a explicação do porquê de uma criança alcançar a cura e outra não. Se mantivermos a crença de que Deus existe porque uma criança se curou do câncer, então deveremos buscar uma explicação sobre a razão por que Deus não concedeu a cura a outra criança. A ausência de uma explicação satisfatória para a negligência de Deus, ou mesmo a impossibilidade de fornecer uma explicação para o caso, torna a crença em Deus absurda. Se ela, no entanto, persiste no modo como as pessoas buscam interpretar os acontecimentos do mundo, é porque elas temem o desespero total que lhes provocaria a admissão da irracionalidade da vida, o reconhecimento de que tudo é tão inexplicável que nosso apego à vida é simplesmente irracional. Não podemos saber por que vivemos e por que não cessamos de viver? Por que continuar vivendo em vez de suicidar-se? Se tudo é insignificante, se o caráter deveniente da vida é impiedoso, é cruel, se os justos e os bons não são poupados da positividade da dor, se a infelicidade é a condição mais bem distribuída no mundo, por que razão prolongar uma existência que se demonstra de ponta a ponta contingente e absurda?


                 

                                             §§

Resultado de imagem para queda no abismo


“Após a morte, serás o que foste antes de nascer”.

“Certamente, a morte deve ser vista como o verdadeiro objetivo da vida: no momento em que se dá, é decidido tudo aquilo que fora apenas preparado e introduzido ao longo de todo o curso da vida”.

                     Schopenhauer


                  “O nada é primordial (por isso, no fundo, tudo é nada); o Eros se faz, a consciência é derivada”.

Cioran


Em breve, a morte irá me solicitar; ela é o guia desconhecido que me trouxe para a vida” – escreveu Schopenhauer. De acordo com essa perspectiva, a morte não é mais do que o retorno a um estado originário, qual seja, o estado inorgânico. Freud, ao teorizar sobre a pulsão, fez notar que ela, como impulso inerente ao organismo, tende a restituir um estado anterior que o organismo se viu obrigado a abandonar por influência de forças externas. Toda vida tende primordialmente para a morte ou para o estado inorgânico, estado este originário, pois que “os seres inanimados existiam antes que existissem os viventes”. Assim, afinado com uma longa linhagem de pensadores, da qual se destacam Schopenhauer e Nietzsche, Freud argumenta que o acontecimento da vida é atravessado radicalmente pelo combate indefinido, contínuo, perpétuo entre a pulsão de vida e a pulsão de morte., de modo que a morte não é um acontecimento que, por assim dizer, nos atinge “de fora”, nos toma de assalto como um estrangeiro que vem nos roubar nossos bens, mas é uma tendência inerente à dinâmica agonística do viver. O tecido vital é marcado pelo conflito entre vida e morte, entre as forças de preservação da vida e as forças de destruição da vida, de tal sorte que estar vivo é já estar na morte, ou no jogo perpétuo e conflitivo de vida e morte. Eros e Tânatos não podem ser pensados separadamente: um luta contra o outro, destroem-se, mas também co-operam um com o outro na repetição e na diferença. O curso do mundo, já notara Empédocles, é marcado pela luta sem trégua entre concórdia e discórdia, ódio e amor, numa dinâmica em que vida e morte se incluem e se separam incessantemente.

Ainda não conheci uma mulher (com quem pudesse conviver movido por uma conformidade entre modos de ser) que, assumindo as consequências dessa compreensão da vida, vivesse sua própria vida em conformidade com ela. Que alegria seria encontrá-la! Em geral, as pessoas são covardes. Vivem inconscientemente como se não fossem morrer. Não assumem as consequências do que significa ser verdadeiramente um ser-para-a-morte. Acreditam que as coisas se arranjarão favoravelmente no tempo que lhes será conveniente. Creem na Providência, creem que não morrerão enquanto não realizarem seus projetos. Creem que a felicidade é um bem a que terão acesso por direito; creem na implicação mútua entre bondade e felicidade (porque são boas serão felizes, são felizes porque são boas; nada mais platônico, nada mais cristão, nada mais contrário à dinâmica cruel do real). Raramente meditam sobre a inevitabilidade da própria morte que as acompanham desde que nascem. Que a vida não passe de um breve sonho é no que não querem pensar. Que tudo que tenham vivido não passe de uma irrealidade é o que lhes sugere ao íntimo o pensamento sobre sua finitude . Pois, se a morte é retornar ao nada, estar morto é como não ter nunca vivido. O morto não tem memória, não tem sentimentos, não tem consciência. É nulidade total. Se a nulidade total é nosso destino, sem apelação, viver é uma experiência de desespero radical que o amor – e somente ele e a despeito de seu caráter frágil e perturbador - deve tornar suportável. Ser-para-a-morte é constitutivo de nosso modo de ser enquanto humanos. Porque somos seres-para-a-morte, flertamos, todos os dias, com a possibilidade do “nunca mais”. A questão mais perturbadora não é então por que devemos morrer (porque, afinal, o resultado da vida é a morte); a questão mais perturbadora é: se a vida é uma experiência destinada a dar errado, a ser interrompida a qualquer momento, o que nos motiva a amarrar os sapatos todos os dias, pegar ônibus, ir para o trabalho, estudar para aquela prova, frequentar salas de aula de filosofia, etc.?

O pensamento sobre a morte é, na verdade, um pensamento que se orienta para a questão do bem viver. Pensar cotidianamente sobre a própria morte é pensar sobre como bem viver a própria vida. Desde que nascemos, já estamos morrendo, porque a morte, escreve Schopenhauer, “é a inutilização gradual de todas as partes do organismo, com sofrimento crescente, até a sua destruição completa.”

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

"Há tempo substituí a prece pela sabedoria filosófica. Nossos mortos deveriam ser lembrados não com orações, mas com lições sobre o bem viver. Aos que pranteiam a morte de um ente amado, deveriam ser oferecidas lições sobre o saber morrer. Que a sabedoria filosófica esclareça nossos enterros" (BAR)

                                


                                               Nossa mortalidade

A mãe que abraça a seu filho com o apego próprio de quem ama profundamente deve saber e aceitar que a quem está abraçando deve, necessariamente, morrer. É no amor e no cuidado que pressentimos a necessidade da perda. Lei inexorável: o que nasce tem de perecer. “Erras se pensas que apenas na navegação a vida se distancia pouco da morte: em todo lugar essa distância é tênue. A morte não se mostra em todos os lugares, mas em todos os lugares ela está próxima” (Sêneca).
Vivemos sempre na iminência da morte. Mas nosso estado habitual é o da negação dessa iminência. Saber que compartilhamos com os outros um mesmo destino determinado desde nosso nascimento não é ainda estar absorvido na angústia dessa iminência. A angústia em face da irrupção inesperada do Nada, do Irremediável, do Abismo intransponível permanece em sono profundo no homem do cotidiano. Mas eis que a proximidade da morte de um ente querido irrompe na estrutura nebulosa de nossas vivências ordinárias para sentirmos nossa constituição fisiológica estremecer, nosso corpo latejar e se lembrar de sua inerente impermanência. E com abissal clareza nosso espírito apreende-se como uma totalidade orgânica também perecível. Sentimos o desamparo, o abandono; experienciamos na profundidade sem fundo de nosso ser nossa impotência em face do Inevitável. E que não haja um após, uma possibilidade de reencontro, de retorno, de transfiguração no Eterno, que a vida seja nada mais do que um intervalo de um espetáculo do Acaso, um hiato entre dois nadas, que sejamos apenas “defuntos adiados”, é isto que parece à maioria dos homens intolerável. Que a vida seja um empréstimo de um Credor inquebrantável e pontual, que a vida não passe de um sintoma do Nunca Mais é isto que os apavora, enquanto permanecem ignorando que o morrer é seu modo de ser.


“É preciso, enfim, que a morte triunfe, pois lhe pertencemos pelo próprio fato do nosso nascimento, e ela não faz senão brincar com a presa antes de devorá-la” (Schopenhauer)

“Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que te admires, durante toda a vida se deve aprender a morrer” (Sêneca).




"O tempo da vida humana: um ponto. Sua substância: um fluxo. Suas sensações: trevas. Todo o seu corpo: corrupção. Sua alma: um remoinho. Sua sorte: um enigma. Seu renome: uma cega opinião. Resumindo, tudo, em sua matéria: precariedade. Em seu espírito: sonho e fumaça. Sua existência: uma guerra, a etapa de uma viagem. Sua glória póstuma: esquecimento. Que nos pode então servir de guia? A filosofia, apenas isso".

(Marco Aurélio - Meditações, p. 25)

terça-feira, 17 de março de 2015

"O que para o indivíduo é o sono, a morte é para a vontade como coisa em si" (Schopenhauer)

             

                      



            A indestrutibilidade do querer-viver
          A metafísica da morte segundo Schopenhauer


Não intento submeter a uma análise acurada a metafísica schopenhaueriana da morte. Por conseguinte, os problemas suscitados pela abordagem que Schopenhauer faz da morte no quadro de sua metafísica estão, forçosamente, fora do escopo desta exposição. Meu objetivo é, deveras, cerceado: estou interessado apenas em passar em revista, em linhas gerais, o tratamento dispensado por Schopenhaeur ao tema da morte à luz de sua metafísica, em cujo cerne está o conceito de Vontade.
Principio minhas considerações com o seguinte excerto que penso ser uma síntese da doutrina metafísica da morte, em Schopenhauer:

“O fim da pessoa é tão real quanto era o seu começo, e no mesmo sentido em que não éramos antes do nascimento, não seremos mais depois da morte. Entretanto, a morte não pode suprimir aquilo que foi posto pelo nascimento, ela não pode arrebatar, portanto, aquilo pelo que, antes de tudo, o nascimento foi possível. Nesse sentido, nascido e desnacido é uma bela expressão. Ora, todo conhecimento empírico não fornece mais que meros fenômenos: só estes são, por isso, atingido pelos acidentes temporais do nascimento e da morte, mas não é atingido aquilo que aparece neles, o ser-em-si. Para este, a oposição criada pelo cérebro entre o nascimento e a morte não existe: ela não tem mais sentido, nenhuma significação”. (OMVR, p. 59, ênfase minha).


Detenho-me a analisar o trecho, por etapas. Tome-se, então, a primeira parte:

“O fim da pessoa é tão real quanto era o seu começo, e no mesmo sentido em que não éramos antes do nascimento, não seremos mais depois da morte.”

Nesse primeiro momento, Schopenhauer reconhece como certa a morte da pessoa e igualmente certo o fato de que sua existência transcorre entre dois “nadas”: uma infinidade de tempo precedeu ao aparecimento da pessoa (ou seja, ao seu nascimento), e outra infinidade de tempo se seguirá à sua morte. A essa verdade, Schopenhauer contrapõe outra pretensa verdade. Considerando-se o que se segue,


“Entretanto, a morte não pode suprimir aquilo que foi posto pelo nascimento, ela não pode arrebatar, portanto, aquilo pelo que, antes de tudo, o nascimento foi possível.”




é necessário esclarecer o que foi posto pelo nascimento. Cada ser vivo encerra em si um querer-viver. Ao nascer, cada ser traz em si esse querer-viver. É esse querer-viver que é posto pelo nascimento. Esse querer-viver não é aniquilado pela morte. Esse querer-viver é a coisa-em-si, a expressão da própria Vontade. A Vontade é a condição de possibilidade para o próprio nascimento. Em tempo, vou elucidar o que é a Vontade, para Schopenhauer. Prossigamos, considerando o próximo fragmento:


“Ora, todo conhecimento empírico não fornece mais que meros fenômenos: só estes são, por isso, atingido pelos acidentes temporais do nascimento e da morte, mas não é atingido aquilo que aparece neles, o ser-em-si. Para este, a oposição criada pelo cérebro entre o nascimento e a morte não existe: ela não tem mais sentido, nenhuma significação”.


Schopenhauer segue Kant, ao sustentar que ao conhecimento só são dados os fenômenos e não a coisa-em-si. O nascimento e a morte recobrem apenas os fenômenos, mas jamais o ser-em-si. O ser-em-si jamais é atingido pelo nascimento e pela morte.
O que é a Vontade, pois? Em primeiro lugar, não é a vontade individual. A Vontade, em Schopenhauer, é um princípio metafísico. A Vontade é a coisa-em-si, é um princípio indestrutível; é o fundo sobre o qual repousa o corpo e junto deste a consciência (a consciência não existe sem o corpo). Esse princípio, a Vontade ou a coisa-em-si, se manifesta à consciência como vontade, mas o conhecimento não pode ir além da manifestação da vontade, de modo que a vontade em sua essência íntima permanece desconhecida. Acrescente-se que a Vontade é uma vontade cega, é inconsciente, uma simples tendência. E o mundo é a objetivação da Vontade. A Vontade – enfatize-se – é a coisa-em-si, é a substância do fenômeno. O homem é o fenômeno mais perfeito da Vontade.
Essa Vontade não se extingue com a morte e, na medida em que ela produz o corpo, que é imagem da vontade, ela representa no homem o que nele há de imperecível. Portanto, o que morre é o corpo, a consciência, o intelecto; em suma, a individualidade. Mas a vontade de vida (o querer-viver) que existe no indivíduo, e também no gênero, é indestrutível. Por isso, Schopenhauer pode corroborar o que observou Spinoza: “nos sentimos e nos experienciamos como eternos”.
Schopenhauer afirma terem errado os filósofos que viram no intelecto o princípio metafísico, indestrutível e eterno do homem. Esse princípio está exclusivamente na vontade, que é inteiramente diferente do intelecto. O próprio Schopenhauer advertiu seu leitor de que o cerne de sua doutrina consiste na diferenciação entre intelecto e vontade. A vontade é unicamente primitiva. Acompanhemos Schopenhauer no seguinte passo:

“Sendo a vontade a coisa-em-si, a substância, a essência do mundo; e a vida, o mundo visível, o fenômeno, não sendo mais que o espelho da vontade, segue-se daí que a vida acompanhará a vontade com a mesma inseparabilidade com que a sombra acompanha o corpo: onde houver vontade, haverá também vida, mundo. A vida está, portanto, assegurada ao querer-viver, e por quanto isto subsista em nós, não devemos preocuparmo-nos com nossa existência nem mesmo diante da morte” (p. 32)


Ponderemos sobre esse trecho. A Vontade, diz Schopenhauer, é a coisa-em-si ou a essência do mundo. A vida, o mundo acessível à experiência sensível, o fenômeno são espelhos da Vontade. São objetivação da Vontade. A vida se sustenta num querer-viver, que é a manifestação da Vontade em cada ser vivo.
A esta altura, gostaria de ressaltar a influência do bramanismo e do budismo no pensamento schopenhaueriano. Por um lado, em consonância com essas duas sabedorias orientais, Schopenhauer argumenta que o ser mesmo do homem é indestrutível e indissociável da totalidade do mundo. Por outro lado, admite ele que precedeu ao nascimento uma existência que se prolonga após a morte. Não há, portanto, um começo e um fim para o ser em si do homem. O meu ser verdadeiro é indestrutível; ele não se identifica com o meu eu, que é temporário e perecível. Nosso ser verdadeiro, dirá Schopenhauer, não é atingido pela morte, está a salvo da morte.
Na esteira do platonismo, Schopenhauer distingue entre o mundo dos fenômenos, com suas formas, que são o tempo e o espaço, as quais são princípio de individuação, e o mundo das coisas em si – mundo independente daquelas formas. O tempo e o espaço são princípio de individuação, porque, seguindo de perto Kant, Schopenhauer nega-lhes uma existência absoluta. Schopenhauer os pensa como formas do conhecimento que temos de nossa existência, de nossa natureza e de todas as coisas.
Com base na distinção entre o mundo dos fenômenos e o mundo das coisas em si, Schopenhauer argumenta que a morte só é o destino do indivíduo humano quando se considera o mundo fenomênico. Nesse mundo, o indivíduo morre, mas o gênero humano permanece infinitamente. Por outro lado, no mundo das coisas em si, a diferença entre o indivíduo e o gênero se esvaece, “e todos os dois são imediatamente uma só e única coisa”.
A vontade de vida existe tanto no indivíduo quanto no gênero, de sorte que a permanência da espécie espelha a indestrutibilidade do indivíduo. A morte, sustenta Schopenhauer, jamais atinge o indivíduo em seu querer-viver, que é o íntimo do seu ser. Somente o corpo, junto da consciência individual, os quais se ligam ao fenômeno, desaparece.
Parece, contudo, que a doutrina de Schopenhauer falha na tentativa de oferecer uma consolação filosófica em face do medo que o homem tem da morte. Ela parece falhar porquanto ignora o valor atribuído pelo homem, um animal metafísico, a sua individualidade. Ao homem não parece contentar a ideia de que apenas seu ser verdadeiro permanecerá após a morte quando o que se dissipará é sua individualidade que lhe é tão cara.
Para encerrar, é preciso reconhecer que a capacidade de reflexão, o advento da razão se fizeram acompanhar da necessidade metafísica, do questionamento do homem sobre a existência de todas as coisas e sobre sua própria existência. A morte, numa conexão necessária com a razão, acarretou o surgimento da religião e da filosofia, implícita aí a possibilidade tanto de cegueira quanto de lucidez. Toda uma tradição sapiencial mostra que não é da razão que decorre o medo da morte; pelo contrário, pelo bom uso da razão, o homem pode libertar-se do medo da morte. Esse medo da morte encontra sua origem em outro lugar. Devemos reconhecê-la na dimensão imortal de nosso ser (no querer-viver). De fato, o apego à vida decorre de um querer cego, do nosso ser mais profundo. Por conseguinte, é a dimensão imortal de nosso ser que torna a morte temível, e é justamente a dimensão mortal (intelecto) que faz com que não a temamos.



terça-feira, 23 de dezembro de 2014

"Tem a cada dia diante dos olhos a morte, o exílio e tudo o que parece assustador, principalmente a morte: jamais terás então qualquer pensamento baixo ou qualquer desejo excessivo". (Epicteto)

                               


                                A caminho da morte
                                  Confrontos filosóficos



Neste texto, pretendo apresentar e discutir o problema da morte, tal como dele se ocuparam Max Scheler (1874-1928) e Martin Heidegger (1889-1974), procurando assinalar pontos de proximidade e distanciamento entre as reflexões desenvolvidas por estes dois filósofos. Na primeira parte do texto, elucido a perspectiva de Scheler, à qual se seguirá uma breve crítica. Na segunda parte, dou a saber o modo como Heidegger desenvolve o tema da morte, tarefa à qual se seguirá também uma breve crítica.


1. Quem foi Max Scheler

Max Scheler (1874-1928) foi um filósofo alemão, nascido em Munique, que se notabilizou por ter adaptado o método fenomenológico de Husserl ao tratamento de questões de ética, teoria dos valores e da cultura, e antropologia filosófica. Na fase inicial de sua obra, foi um pensador católico. Sua concepção de ética se desenvolveu em oposição ao formalismo da ética kantiana, que deveria ser superada por uma apreensão vivida dos valores éticos e também estéticos, calcada sobre a fenomenologia.
Scheler integra-se ao círculo de filósofos da vida cujo pensamento se desenvolveu em oposição a algumas correntes do pensamento científico, as quais professavam um mecanicismo e um finalismo levados ao extremo. Essas correntes concebem a morte como um acontecimento mais ou menos catastrófico, externo ao indivíduo e semelhante a um acidente mecânico e artificial.


1.2. A visão naturalista da morte

Scheler se distancia do idealismo alemão, segundo o qual a morte não afeta o ser humano. Ao contrário, sustentará Scheler que todo ser humano se caracteriza essencialmente por um esgotamento interno dos agentes vitais dos quais depende o desenvolvimento da espécie. Assim é que a morte, na visão de Scheler, é um fenômeno ligado à essência do ser vivo. Ela faz parte da forma e da estrutura de toda a vida. A vida não pode, portanto, ser pensada sem a morte. Creio ser possível depreender daí, com Scheler, que pensar sobre a morte é pensar a vida, em sua totalidade. Quem se ocupa de refletir sobre a morte está ocupado com a reflexão sobre a vida.
A tese basilar endossada por Scheler é a de que a existência humana é orientada para a morte. Nesse sentido, Scheler pavimenta o caminho que será trilhado pelo pensamento de Heidegger, para quem também a morte não acontece como um acidente ou uma catástrofe, contrariamente ao que pensavam Lévinas e Sartre. Tanto Scheler quanto Heidegger estarão de acordo no tocante ao fato de que a existência humana é orientada para a morte: “Tão logo um homem chega à vida, ele está já bastante velho para morrer” – lembrará Heidegger. Mas a aproximação entre os dois cessa por aqui. Scheler pensa a morte no domínio ôntico; ao passo que Heidegger a pensará no domínio ontológico. A diferença entre os métodos adotados levará esses dois filósofos a resultados distintos.
Scheler rejeita o método experimental do empirismo clássico em seu trabalho de investigação do fenômeno da morte. Sua reflexão tanatológica dispensa uma discussão sobre as teses cartesianas ou kantianas, bem como rejeita uma compreensão fisiológica e psicológica da relação entre corpo e alma.
Ao se ocupar da atitude do homem moderno – um tipo coletivo - em face da morte, Scheler nota que esse homem nega, na realidade, a “essência e o ser da morte”, na medida em que se esquiva da certeza intuitiva de sua morte, deixando de viver “na presença da morte”. A morte é um a priori de toda observação e experiência indutiva. Ela imiscui-se em cada fase do desenvolvimento da vida. Scheler, assumindo que a existência do ser vivo tem necessariamente um conteúdo limitado, manterá que é a experiência de esgotamento do futuro e do aumento do passado que constitui a experiência íntima de nossa orientação para a morte.
O homem moderno identifica-se, para Scheler, ao homem do ocidente europeu, que se habitou a afastar de sua consciência a morte, considerando-a apenas um fato que, um dia, lhe acontecerá.

1.2.1 O conhecimento intuitivo da mortalidade


Reza o senso comum que eu chego à certeza de “minha morte” futura com base na experiência empírica, fundada na observação, ela mesma calcada sobre processos indutivos pelos quais da morte dos outros concluo que eu também deverei morrer. Scheler rejeita resolutamente essa visão, lançando-se à empresa, como faria mais tarde Heidegger, que consiste em buscar uma razão pela qual um homem solitário, que nunca tivesse observado o acontecimento da morte de outros – entendida como a transformação de um ser humano em cadáver – chegaria à certeza de sua condição mortal.
Tomando-se para exemplo o eremita, como, pergunta Scheler, ele poderia alcançar aquela certeza? Num primeiro momento, sem ainda atingi-la, o eremita teria um pressentimento de seu fim se comparasse as diferentes fases de sua vida, assim como se levasse em consideração experiências tais como o envelhecimento, o sono e a doença.
Naturalmente, isso não bastaria para que o eremita concluísse pela certeza de sua mortalidade, mas tão-somente pela possibilidade de seu fim. Ora, como esse sujeito solitário pode ainda saber que a curva de suas experiências não se desenvolverá ilimitadamente? Ou seja, nada lhe garante ainda o conhecimento seguro de que não seja esse o caso. Afinal, a sua vida poderia se caracterizar por uma abertura para possibilidades infinitas.
Se, tomadas em conjunto, a observação da morte dos outros, as conclusões da indução, as lembranças do eremita quando ele compara as fases de sua vida, só podem levar à probabilidade, decerto elevada, mas não à certeza absoluta, da sua morte, resta a Scheler recorrer ao sentimento como meio para explicar como é possível a esse indivíduo solitário chegar à certeza de seu fim.
Mesmo que imaginássemos um ser humano que jamais apresentasse sinais de fraqueza, que não conhecesse cansaço e doença, ele poderia atingir a certeza de sua condição mortal pelo sentimento que ele tem de sua vida, segundo crê Scheler. O sentimento lhe dá a experiência vivenciada da estrutura de cada fase da vida. E é por essa experiência que ele alcançaria o conhecimento seguro de sua mortalidade.
Convém esclarecer esse ponto.
Segundo Scheler, a ideia de morte está entre os elementos constitutivos da consciência. Scheler assume aqui a tese de que a morte faz parte da essência da vida, da sua forma e estrutura. Segue-se daí que a morte já está fundamentalmente presente em cada fase da vida. Uma vez tenha limitado sua análise ao nível biológico, Scheler observa que a vida se apresenta de duas maneiras:

1) a vida é um grupo de fenômenos particulares de ordem morfológica e motora que se dá à percepção comum e sensível dos seres vivos;

2) a vida é um processo de uma consciência especial que se desenvolve com base no corpo.

Esse processo, num momento de seu curso, que é indivisível, apresenta uma forma própria que é idêntica em todos os seres vivos. O estudo dessa estrutura desindividualizada do ser vivo é que permite a experiência da morte, que está presente em cada fase da vida. É por esse estudo também que percebemos intuitivamente a essência da morte e, desse modo, chegamos à certeza da condição mortal do ser humano.
A morte se apresenta, portanto, para Scheler, como um a priori para toda observação e experiência indutiva do conteúdo variável de cada processo vital real. Mas essa percepção da morte não deve ser confundida com o sentimento de proximidade da morte ou o pressentimento do fim da existência, tampouco com o desejo de morrer ou o seu medo. Ela se situa num nível de ser mais profundo. Temos experiência da diminuição do passado e essa experiência, segundo advoga Scheler, é a experiência íntima de nossa orientação para a morte. A experiência da estrutura de um instante de vida alicerça a certeza de nossa condição mortal e revela a realidade da morte natural.


1.2.2.  A estrutura do processo vital

Cabe esclarecer de que modo, segundo Scheler, se atinge a certeza da morte pela experiência da estrutura do processo vital. A estrutura do processo vital num instante indivisível T se divide em três atos – que são distintos qualitativamente - , todos correlatos a esse instante: o presente, o passado e o futuro. Esses atos são imediatos de qualquer coisa. A cada ato se atribui uma extensão. A percepção se vincula ao presente; a lembrança se prende ao passado; e a expectativa se atrela ao futuro. Essas três extensões – percepção, lembrança e expectativa – se diferem das extensões mediatas cujos meios são o raciocínio e a reprodução. Scheler postula que a totalidade T vivida em cada instante se expande com o desenvolvimento do indivíduo.
Argumenta ainda o filósofo que a consciência do ser vivo percebe intuitivamente, num instante do processo vital, não só as três dimensões imediatas, mas também e principalmente a totalidade (T). Essa totalidade se divide novamente à medida que o processo vital progride objetivamente numa direção característica, a qual representa um fato específico da experiência vivida. O crescimento da extensão do conteúdo do passado, acompanhado da repercussão imediatamente experimentada desse mesmo passado, se dá concomitantemente com a redução da extensão do conteúdo do futuro imediato; também a ação que se antecipa para ele vai diminuindo.
Cumpre reter que o domínio do presente fica mais comprimido entre o passado, dilatado, e o futuro, encurtado. À proporção que a vida flui, tendo em conta todos os instantes vividos, diminuem as possibilidades de experiência na expectativa vital imediata. Na medida em que a totalidade é constante, sustenta Scheler que, aumentando o passado, tanto o presente quanto o futuro diminuem necessariamente.


1.3. Crítica à tanatologia de Scheler

Dentre as dificuldades suscitadas pelo modelo de análise tanatológico de Scheler, destaque-se como a principal o ter ignorado a importância da experiência ôntica da morte do outro como meio de possibilidade de atingir um conhecimento intuitivo da mortalidade.
Decerto, a morte é o limite natural do ser vivo, inclusive do ser humano. Ela participa de sua constituição biológica presente. Também está fora de questão o fato de que o ser vivo é projetado numa direção irreversível, que é a de seu termo: a morte.
Todavia, continua problemático ignorar que o ser humano só parece ter consciência de sua condição mortal, da inscrição da morte na estrutura da vida, pela experiência com a morte do outro.
Outro problema suscitado pela análise de Scheler consiste em não ter ele demonstrado que a temporalidade está delimitada por um passado e um futuro precisos. O homem não tem consciência, a priori, de que o campo de suas possibilidades diminui, de que a extensão de sua vida se encurta. Ora, sem se apoiar na experiência empírica com um cadáver e sem por indução concluir que essa condição é a sua, o sujeito humano está justificado na suposição de que sua projeção para o futuro é ilimitada.


2. Heidegger: a morte como minha possibilidade mais própria

Não há dúvida de que o ser-para-a-morte heideggeriano determinou o curso da filosofia ocidental no exame da morte. Heidegger separou, radicalmente, por princípio metodológico, a análise da morte da questão sobre uma possível imortalidade, a qual foi circunscrita ao domínio ôntico – domínio que colocou fora da alçada de sua perquirição. Ademais, Heidegger procurou ver a morte no interior da série de fenômenos da vida. Sua originalidade consistiu em desenvolver uma reflexão sobre a morte no nível ontológico, separado esmeradamente do nível ôntico no qual se situou a visão de seus predecessores Simmel e Scheler.
Para Heidegger, o propriamente morrer representa o Dasein na sua essência do “poder-ser”. A fim de que compreendamos esse momento do desenvolvimento do pensamento do filósofo de Fribourg, necessário será trazer à luz as categorias de fim, possibilidade e devir. Igualmente importante é ter em conta sua definição de morte como a possibilidade da impossibilidade de ser.
Começarei por apresentar a distinção por ele estabelecida entre os domínios ôntico e ontológico; passarei, em seguida, a considerar a sua afirmação, em consonância com Epicuro, segundo a qual é impossível experimentar a minha morte, entendida como “estado de morte”. Posteriormente, darei a saber como o filósofo de Fribourg procurou demonstrar não ser possível alcançar a noção exata de seu propriamente morrer pela análise da morte do outro. Em seguida, discuto a sua proposta para a aquisição da certeza da mortalidade, a qual se estriba no conceito de ser-para-a-morte.
Como o conceito de ser-para-a-morte repousa sobre a noção de temporalidade, entendida ontologicamente, outros conceitos recobertos por ela deverão ser contemplados, tais como o de poder-ser, possibilidade, ser-antes-de-si e ser-para-o-fim.
Por fim, esboço uma crítica ao projeto heideggeriano de fundar a certeza da morte unicamente em uma ontologia da temporalidade apartada completamente de uma perspectiva ôntica.

2.1. O retorno ao ser: a distinção entre o ôntico e o ontológico

Cuido lícito dizer que é extremamente difícil compreender o desenvolvimento da investigação teorética de Ser e Tempo, sem que compreendamos o princípio metodológico que a norteia. Tal princípio consiste na distinção entre os domínios ôntico e ontológico que se ilumina pela busca heideggeriana de fundamentar sua analítica existencial no domínio ontológico, para cuja tarefa ele apela a que seja retomada a questão central de toda a ontologia clássica, a saber, o significado do ser. Trata-se, segundo Heidegger, de um problema ainda não resolvido e que perpassou toda a filosofia grega. O primeiro passo dado por Heidegger foi revisitar a questão do ser na esteira da tradição platônico-aristotélica. Para os gregos, dirá Heidegger, o ser é presença. O ser é presença constante. Todavia, o que mais interessou a Heidegger foi o fato de os gregos terem assumido um horizonte temporal específico, a saber, o presente para, então, determinar o ser. O ser é determinado tendo como referência necessária o tempo.
Vou-me cingir a sublinhar este fato: ao propor um retorno ao ser, Heidegger revisita o pensamento original dos gregos. Destarte, busca pensar o ser sem o ente, e esse ser, que é impessoal, revela-se e se esconde em um acontecimento atemporal, ao qual o homem tem de submeter-se. O ser de Heidegger pode ser comparado ao apeíron de Anaximandro, indiferente às perguntas e às interrogações do homem.
Com vistas a esclarecer a distinção entre os níveis ôntico e ontológico, cumpre notar que Heidegger parte da diferenciação entre as ciências ônticas, como a biologia e a medicina, a antropologia e a história, cujo objeto é o ente particular regionalmente delimitado, um ente já dado antes mesmo que a ciência tenha lhe fixado o estatuto de objeto, e a ciência ontológica, a filosofia, ciência por excelência, que se caracteriza pela universalidade e radicalidade. Ela transcende a regionalidade das ciências ôniticas.
O objeto dessa ciência ontológica – a filosofia – é o ser enquanto fundamento dos entes e condição a priori de possibilidade de aparecimento dos entes. O ser não se apresenta como tal no mundo, mas determina o que aí aparece.
Heidegger instaura, assim, uma barreira intransponível entre os níveis ôntico e ontológico, ao mesmo tempo em que pretende que a ciência ontológica fundamente as ciências ônticas. Estas se ligam àquela, embora lhe sejam completamente distintas.


2.2. A impossibilidade de experimentar minha própria morte

No nível ontológico de sua análise, Heidegger identifica o propriamente morrer, parte integrante do poder-ser do Dasein. Esse propriamente morrer impregna o Dasein desde seu nascimento. No nível ôntico, que Heidegger não considerará, ele distingue entre dois tipos de fim, dos quais se ocupam as ciências ônticas: 1) o perecer, que é próprio do animal, dado que ele é incapaz de se interessar pela morte como tal, e 2) o falecimento, acontecimento pontual que Heidegger descreve como sendo intermediário entre o propriamente morrer e o perecer. O falecimento expressa a fase derradeira do Dasein; é o próprio Dasein enquanto o único ente capaz de ter acesso à morte como morte.
O Dasein só pode falecer na medida em que, ontologicamente, está morrendo. Com efeito, somente o Dasein – um ser-para-a-morte – está pronto para propriamente morrer. Somente ele pode falecer, portanto.
É necessário esclarecer que, consoante Heidegger, o Dasein não pode ser sua morte – quando por morte entendemos o estado de morte, o qual escapa a uma experiência possível por quem morre. Heidegger nega ser possível a quem morre a experiência de sua própria morte. O Dasein não sente esse deixar de ser. A morte, como estado de morte, não pode ser integrada à estrutura própria do Dasein. Somente o pode o propriamente morrer. O Dasein só experimenta a morte ontológica, que é o propriamente morrer. A esta altura, é urgente ter em conta a distinção entre o estado de morte e o propriamente morrer. O primeiro é inacessível ao Dasein e se situa no domínio ôntico; o segundo integra a estrutura do Dasein e se situa no domínio ontológico. Essa distinção se tornará mais clara ao longo desta exposição.
Em certa medida, Heidegger retoma a posição de Epicuro, para quem enquanto existimos, a morte não está; e quando ela estiver, nós já não estaremos mais. Em outras palavras, enquanto o Dasein existe, o estado de morte não se atualizou; quando ele se atualizar, o Dasein já não existirá. O estado em que se “encontra” o defunto é o de não-mais-ser, ou seja, o de destruição total e irreversível do indivíduo humano.
Tanto Epicuro quanto Heidegger situam a morte, entendida como estado de morte, exteriormente ao sujeito. O estado de morte é, deveras, cotejável com um encontro ao qual o Dasein não comparece. A presença de um significa necessariamente a ausência do outro. Se admitirmos, com Epicuro, que o estado de morte não faz parte da experiência do morto, segue-se daí que a morte significa o desaparecimento total e irreversível da pessoa, a volta ao vazio do Dasein. Ela é a impossibilidade possível da existência, a impossibilidade eterna dos meus projetos, da realização de minhas possibilidades.
A existência do Dasein é um acidente entre dois vazios representados pela concepção e pela morte. Ela parte do nada e se representa como objeto afetivo da angústia. O Dasein é atravessado por uma finitude original e radical. Ele é o ser-para-a-morte que tem seu fim inserido ontologicamente em sua própria estrutura.
Retomarei o conceito de ser-para-a-morte na próxima seção, já que ele ocupa um lugar de destaque na analítica existencial de Heidegger. Prosseguirei, por ora, apresentando o modo como Heidegger demonstra a impossibilidade de se experienciar o estado de morte a partir da experiência com a morte do outro.
Uma vez assegurada a certeza da impossibilidade de o defunto experienciar sua própria morte, Heidegger se debruçará sobre a questão de saber se essa experiência do estado de morte é possível por meio da experiência com a morte do outro.
Os que continuam a viver constatam, a respeito do estado de morte, em primeiro lugar, o acontecimento ôntico de morrer, o falecimento; em segundo lugar, a condição externa do cadáver que conserva sua aparência humana por algum tempo. O cadáver se faz presente sob a forma de representação corporal da pessoa que há pouco tempo estava viva. Por fim, constatam as consequências dessa morte sobre si mesmos e sobre a comunidade humana.
Heidegger observa que o cadáver, longe de constituir uma coisa material, ainda se encontra num estado que denomina de o ser-somente-ainda-ai. O defunto não é abandonado, mas, ao contrário, inspira preocupações dos vivos que o acompanham prestando-lhe homenagem nos cultos fúnebres.
Não obstante essas diversas experiências com a morte do outro, os que permanecem vivos não chegam a experienciar, deveras, o estado de morte em que se acha o defunto, tampouco experienciam a essência da transformação que ele sofreu tendo morrido. O sobrevivente-espectador não dispõe de meios de vivê-la internamente, não assume o ponto de vista do morto, já que permanece sempre exterior ao morto ou à morte do outro.
Os que ainda vivem só podem assistir o estado de morte. Esse estado se lhes afigura como uma perda justamente porque eles a experimentam como uma perda. Mas eles não experimentam, a rigor, o estado de morte que tornou uma pessoa antes viva um cadáver.
Em suma, os espectadores só têm acesso à morte do outro enquanto representação de uma perda que eles “sofreram”. Também o falecido não sofreu sua própria morte, no sentido de que quem morre, já que, por definição, não mais existe, não pode experienciar a própria morte. Heidegger não se preocupou em pensar sobre a perda existencial sofrida por aquele que sobrevive ao falecimento de um ente amado, tampouco levou em conta a importância do trabalho de luto. Claro parece que a morte de um ente querido pode provocar-nos – e com frequência nos provoca – um questionamento sobre nossa visão de mundo, um abalo existencial, tal como o sofrido pelo jovem Agostinho.
Quando consideramos um ato de amor e amizade que une duas pessoas, não nos é custoso compreender que para aquele que permanece vivo a morte é essencialmente uma perda do ser e da vida terrestre. O sobrevivente é levado, pela experiência diante do defunto, que se despediu definitivamente do mundo, a deduzir, por analogia, que chegará também o dia em que ele terá de se despedir da vida.
Heidegger mantém que o morrer ôntico (o falecimento) e o morrer ontológico (o propriamente morrer) são essencialmente meus, isto é, ninguém pode morrer a minha morte. Cumpre, em suma, sublinhar duas ideias caras à argumentação de Heidegger. A primeira consiste em insistir na impossibilidade de os que sobrevivem experienciar a morte dos outros. A segunda ideia é a de que a morte é a minha possibilidade mais própria e intransferível.
Ontologicamente, eu morro sempre só, mesmo que, onticamente, enquanto cadáver, eu esteja acompanhado de pessoas que choram por meu falecimento, que velam o meu corpo. É somente ao morrer que posso dizer absolutamente que “eu sou” (nesse sentido, Heidegger estabelece seu próprio cogito), visto que a morte é constitutiva da essência do Dasein. O caráter exclusivo da morte e sua intransferibilidade constituem a característica essencial da subjetividade.


2.3. O ser-para-a-morte

Vimos que Heidegger rejeita ser possível ter acesso à morte do outro, como também nega ser possível ao defunto a experiência de seu estado de morte. Não obstante, Heidegger persegue o problema que consiste em compreender a morte como tal. Importa-lhe, nesse sentido, compreender a totalidade do Dasein, articulando-a a sua imutável incompletude.
Para tanto, duas observações se impõem no caminho da reflexão heideggeriana. Primeiramente, não tendo mais nada em face de si, o Dasein é fundamentalmente aberto e incompleto, ou seja, aberto a possibilidades e definitivamente incapaz de experimentar a sua totalidade, a sua completude, o seu acabamento.
Heidegger se confronta com o problema da coexistência entre incompletude e totalidade; no entanto, não deixa de atacá-lo, para o que ele lança mão dos conceitos de ainda-não-ser e fim, sempre de um ponto de vista ontológico.
Convém lembrar alguns pontos dessa discussão. Heidegger está a empreender uma análise ontológica do Dasein e da temporalidade (que supõe uma experiência interna do tempo). A morte ontológica é denominada por ele de o propriamente morrer. A questão que o ocupará, doravante, é a de determinar se uma análise ontológica do Dasein e da temporalidade pode conduzir a uma fenomenologia da morte. Em outros termos, posso compreender a morte tal como é a partir do exame ontológico da estrutura do Dasein e da temporalidade?
O propriamente morrer é entendido tendo como referência a estrutura ontológica “projetiva” do Dasein. Isso significa dizer que o Dasein não é pura e simplesmente ser dado, ser no presente, mas é um existente (ele ek-siste) na medida em que se lança para a sua possibilidade, mantendo-se fora do domínio do “ente-aí-defronte”.
A categoria da possibilidade é ontologicamente constitutiva do Dasein. É ele “prioritariamente ser-possível”, sempre aberto para uma gama infinita de possibilidades de existir. Enquanto estiver existindo, o Dasein sempre terá diante de si a possibilidade de ser. Enquanto existir, ele agirá em conformidade com seu fim que é poder-ser – que expressa seu caráter antecipativo. O Dasein está sempre a caminho de suas possibilidades, está sempre encaminhando-se para o querer-ser propriamente, o poder-ser de si mesmo.
Ora, vê-se que essa característica projetiva do Dasein expressa seu ser como “possibilidade no porvir” . Ele deixa de ser no momento em que o por vir não vem de maneira radical. O futuro tem primazia sobre o presente e o passado, ou seja, a temporalidade se realiza originalmente a partir do futuro, “lugar” de possível atualização das possibilidades do Dasein.
Heidegger rejeita a concepção vulgar do tempo como retenção-protensão, que remonta a Husserl e também rechaça a posição de Agostinho, segundo a qual o presente é o domínio principal. Para Heidegger, é o futuro que é o sentido donde todos os existentes extraem sua origem. Assim, o Dasein é sempre antecipado em relação a si mesmo em seu ser. Ele é já sempre “além de si”. Ele se volta sempre para um poder-ser que é ele próprio. O poder-ser é a essência do Dasein.
Dado que é originariamente projeção para seu próprio poder-ser, sempre voltado para o porvir, o Dasein é fundamentalmente um ser-na-frente-de-si. Retome-se aqui a ideia de incompletude que atravessa a estrutura do Dasein. O Dasein é irremediavelmente incompleto, ou seja, ele se caracteriza por um estado de incompletude perpétua, porquanto seu poder-ser de ser si mesmo ainda não se “realizou”. O que é esse poder-ser de ser si mesmo não realizado? Heidegger argumenta que há um limite final, uma possibilidade última própria do Dasein, uma possibilidade de ser que ainda está por vir.
Com vistas a elucidar essa possibilidade última do poder-ser do Dasein, faz-se mister dar a conhecer as duas acepções em que Heidegger faz uso do vocábulo fim. Há duas maneiras de compreender o fim, segundo Heidegger. Quando referido ao Dasein, fim significa o fato de chegar realmente ao termo, ou seja, é ser-no-fim. Nesse sentido, o fim é o termo de processo de atualização de possibilidades. Segue-se daí que a morte, de um ponto de vista ôntico, é a conclusão do Dasein, é seu termo. É claro que a experiência cotidiana patenteia, com muita frequência, que a morte surpreende o ser humano privando-o de suas possibilidades futuras, de seus projetos promissores. Está fora de dúvida que a morte nem sempre ocorre como o estágio final de uma série de possibilidades realizadas. Dizemos de alguém que morreu na flor da idade que foi privado de realizar seus projetos. O fim do Dasein não coincide, portanto, necessariamente, com a sua conclusão.
Por outro lado, não há dúvida de que o fim é uma relação com o termo: o ser-para-o-fim. O não-ainda do fim não é a antecipação de uma completude futura, nem é alguma coisa a ser realizada no porvir. O não-ainda-ser não é exterior ao ser, mas pertence formalmente ao presente porque é um elemento constitutivo do Dasein, que é sempre-já-seu-não-ainda. Seu poder-ser constitui a essência do Dasein; na medida em que existe, o Dasein deve “não-ser-sempre-ainda uma coisa”. É porque ele é que ele é seu não-ainda, que é sua morte, no sentido de que ele é um ser-para-o-fim.
A morte se enxerta nessa tensão própria do Dasein para seu fim. O fim próprio do Dasein não é exterior a ele e não se dá num futuro distante, mas é inerente a seu ser. O Dasein “já é seu fim”, ou seja, sua morte.
Para Heidegger, o Dasein jamais atinge sua completude; no entanto, se dirige para a realização dela até que a morte lhe venha interromper o movimento projetivo de totalização. O poder-ser íntimo do Dasein, sua morte, é intangível. O Dasein existe enquanto ser que se projeta para seu fim. O propriamente morrer é expressão de uma relação do Dasein com seu fim necessário que o impregna a partir do momento em que aparece na mundanidade. Daí a fórmula referida por Heidegger, já apresentada no limiar desta exposição – “Tão logo um homem chega à vida ele já está velho bastante para morrer”. A morte pertence ao Dasein por excelência – repitamos: é sua possibilidade mais própria.
Heidegger fundamenta o solipsismo existencial, o princípio de individuação do Dasein, no “estou morrendo”, ou no “estou destinado a morrer”, o qual dá sentido ao “eu sou”. O propriamente morrer é objeto de uma certeza absoluta e serve de fundamento para as outras certezas. O Dasein é sua morte, visto que é propriamente morrer que torna possível o “eu sou” (cogito heideggeriano: ‘morro, logo sou’).
A possibilidade da impossibilidade de ser constitui a estrutura do Dasein, o fundamento de seu ser. O propriamente morrer precede o sou e lhe confere sentido. O ser do Dasein é o ser-possível orientado para o extremamente possível que é a morte.
A certeza absoluta do propriamente morrer, que Heidegger demonstra ser independente das experiências ônticas, está fundamentada numa ontologia da temporalidade, a qual recobre as categorias de possibilidade, porvir  e de fim. Essa certeza se acompanha, todavia, da incerteza sobre o momento do falecimento, que escapa a toda determinação. Destarte, a morte é o que há de mais certo e, ao mesmo tempo, indeterminado.
A noção de possibilidade – cumpre esclarecer – define o propriamente morrer, uma dentre as possibilidades de ser do Dasein. O propriamente morrer é a possibilidade pura e simples impossibilidade. Mas essa possibilidade, que deve ser entendida no nível estritamente ontológico, jamais pode ser atualizada, não se realiza. Ela exprime o fato ontológico de o Dasein tender para a realização de sua completude, sem que jamais chegue a atingi-la porque destinado a morrer. Não obstante, essa possibilidade se expressa como movimento de relação com a possibilidade extrema da morte. O ser para a morte caracteriza o Dasein enquanto ser que se projeta para seu fim. O fim inerente ao ser-antes-de-si se depreende de sua própria finitude. Esse fim é sua morte, a qual nega todos os possíveis.
O Dasein é, em sua essência, um ser-para-a-morte, o que faz da morte uma possibilidade certa e uma impossibilidade possível devido à indeterminação que caracteriza o momento do falecimento, cuja vinda é factual.
É forçoso protelar para outra ocasião o tratamento da questão que Heidegger define como atitude de antecipação da morte, que nada tem que ver com a realização concreta da morte. Circunscrevo-me a notar que essa atitude de antecipação da morte torna possível vivenciar a angústia em si como angústia em face do vazio.


2.4. Crítica à tanatologia de Heidegger

Sem visar à exaustão – na verdade, sendo bastante esquemático -, é preciso fazer  ver que constitui um problema no estudo sobre a morte levado a efeito por Heidegger o ter rejeitado que a experiência com a morte do outro, mormente se ele é um ente querido, torna claro o fim do ser-antes-de-si, o meu propriamente morrer.
Da tensão do Dasein para o porvir não se segue, logicamente, a conclusão de que sua existência supõe um fim. O fim não está contido ontologicamente no ainda-não-ser, nem no ser-antes-de-si. Parece razoável que não se pode conceber a condição do ser-para-a-morte com base exclusivamente na condição de ser um possível orientado para o futuro.
Novamente, o ter negligenciado a experiência com a morte do outro como meio pelo qual chego à compreensão de mim enquanto ser-para-morte é uma lacuna não contornável pela alegação da abertura fundamental do ser-antes-de-si. Seu futuro não está limitado de modo essencial.






domingo, 12 de outubro de 2014

"A morte é a maneira de ser que a realidade humana assume desde que passa a existir. Tão logo um homem começa a viver, já é suficientemente velho para morrer".(Heidegger)



A morte como minha possibilidade própria

A interpretação existencial da morte de Marin Heidegger


Os passos abaixo de Fernando Pessoa, dois dos quais colhidos de seu O Livro do Desassossego, servirão para ancorar o desenvolvimento deste breve e despretensioso estudo sobre como o problema da morte foi abordado na filosofia de Martin Heidegger (1889-1976).
O primeiro enunciado de Pessoa, que se topa logo abaixo, rejeita a separação entre sensibilidade e razão, entre sensação e pensamento. Essa indissociabilidade entre pensar e sentir deve, desde já, ser conectada à noção de compreensão de que se serviu Heidegger, a qual encerra a sensibilidade. Ademais, essa indissociabilidade deve também se articular ao modo como o homem tem acesso ao próprio ser. Heidegger dirá que a existência é, primeiramente, sentida. Não é chegado ainda o momento em que faremos incursão no pensamento de Heidegger; por isso, consideremos, por ora, o segundo passo de Pessoa.


 “O que em mim sente está pensando”.
    

Neste passo a seguir, Pessoa põe o pensamento a serviço do sentir e identifica o pensar com o viver. Sentir e pensar são o mesmo que viver. É importante retermos essa indissociabilidade entre pensar, sentir e viver, em primeiro lugar, porque a própria experiência de leitura é forma de vivência que articula pensar e sentir; em segundo lugar, porque desejo que o leitor, mais do que pense com Heidegger, compreendendo aquilo de que ele deu testemunho, sinta também, a seu modo próprio, evidentemente, o modo como ele procurou dar conta da dimensão existencial da morte.


  “Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar”    (p.101).


Sem tencionar uma análise do excerto abaixo, limito-me a externar sobre ele algumas palavras. Seu tópico textual é a morte, conforme se vê claramente. Chamo atenção para o fato de que Pessoa reconhece o que Heidegger, conforme veremos, já havia reconhecido: mesmo em face de um morto, nós não temos uma experiência de morte. Experimentamos o pesar, o luto, mas jamais o evento existencial da morte. Trata-se, nesses casos, da morte como um fato do qual tomamos consciência imediata, de uma morte alheia. É desse modo que o homem imerso na cotidianidade percebe a morte: a morte é percebida como um acontecimento do mundo, genérico. Certamente, há muito que se por a descoberto no texto de Pessoa; no entanto, deixo ao leitor essa tarefa de escavação de sentidos. Deleite-se!



“Considero então que coisa é esta a que chamamos de morte. Não quero dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver. A humanidade tem medo da morte, mas incertamente, o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribuiu a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Por que o há-de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo, nem sei como alguém pode assemelhar-se a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que comparar. A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira” (p. 71).



1. Martin Heidegger (1889-1976)



       Heidegger é reconhecidamente um dos filósofos alemães mais importantes que atuaram no século XX. Nascido em Messkirch, foi professor na Universidade de Freiburg (1916), onde estudou com Hurssel.
Sua obra mais importante é Ser e Tempo (1927). Esse estudo, inacabado, marca seu distanciamento relativamente à fenomenologia de seu mestre Hurssel e inaugura um modo próprio de encaminhar a reflexão filosófica sobre o sentido profundo da existência humana, bem como sobre a metafísica, e o significado de sua influência no desenvolvimento do pensamento ocidental.
A tradição o situa entre os filósofos da Existência, muito embora ele próprio, Heidegger, recusasse esse rótulo. Os estudiosos de Heidegger concordam, em geral, em que ele é um filósofo cujo pensamento é extremamente difícil de entender, o que torna a tarefa de estudar sua filosofia bastante espinhosa, mormente para aqueles que, sem algum treinamento prévio, entram em contato diretamente com sua obra.
As dificuldades que estorvam a busca pela compreensão de Heidegger são de duas ordens. A primeira das quais diz respeito ao vocabulário de que se serviu o filósofo (sabe-se que Heidegger criou uma terminologia própria, a fim de dar forma às suas concepções). A segunda dificuldade repousa na incompletude de sua obra, o que torna seu discurso reticencioso.
Tais dificuldades não devem constituir razão suficiente para nos desencorajar de experienciar a originalidade de seu pensamento. Heidegger buscou recuperar a importância fundamental da questão do ser, que, na esteira do pensamento moderno, foi relegada em favor de questões atinentes ao conhecimento e à ciência. Seu objetivo consistiu em recuperar o sentido original do ser, não sem antes lançar por terra a ontologia tradicional.


2. O ponto de partida: a morte é constitutiva da essência da existência

Porque se situa no limite da existência, a morte é, por definição, o não-experimentável. Ainda que se postule a possibilidade de uma continuidade do ser, após a morte, a experiência do fim continuaria impossibilitada enquanto evento existencial.
Heidegger tomará como ponto de partida de suas reflexões sobre a morte a concepção da morte como constitutiva da existência mesma. Em Ser e Tempo, seu esforço consistirá em mostrar que a morte é um evento singular, uma possibilidade própria de cada um, e não uma mera negação da existência.



             2.1. O sentido original do Ser

Antes de me deter a considerar como o problema da morte foi desenvolvido por Heidegger, é necessário esclarecer a busca do sentido original do ser, levada a efeito por ele (sentido negligenciado pela metafísica, que remonta a Platão e a Aristóteles).
Heidegger notará que, na metafísica tradicional, a diferença ontológica entre ser e ente se diluiu, de modo que a pergunta pelo sentido do ser se reduziu à pergunta pela essência dos entes. Mas o ser de que nos falava, por exemplo, Parmênides, não é o ente, mas a condição de possibilidade dos entes. Perguntar-se pelo sentido do ser equivale, portanto, a perguntar-se pelo horizonte em que o ser se constitui como possibilidade de compreensão (aqui se deve entender “entrar em relação com”) dos entes. O ser é da ordem da condição que torna possível a existência dos entes, que são os indivíduais. O ser é da ordem do acontecimento inaugural, presença totalizante, do qual os entes, tomando parte, são dados imediatamente acessíveis à experiência sensível. Daí a trivialidade que Heidegger redescobrirá: todo ente é no ser. É aí que reside o espanto para os gregos. O ente recolhido no ser tornou-se para os gregos o mais espantoso, nota Heidegger.



            2.2. O Dasein e o mundo

O ser humano, para Heidegger, é existência. Heidegger pensará o ser humano como ser-no-mundo. Em primeiro lugar, cumpre notar, com Heidegger, que, desde o nascimento, antes mesmo de desenvolver qualquer reflexão teorética sobre o mundo, o ser humano está envolvido com o mundo, nas diversas atividades de que participa: brincando, estudando, trabalhando, convivendo, etc. O mundo, portanto, não é externo ao homem; não preexiste a ele. Por isso, o homem surge como ser-no-mundo, isto é, envolvido com o mundo; e o mundo é copresente com o homem. O homem é um ente ocupado com o mundo; o mundo e a existência deste ente privilegiado que é o homem, porque é ele que se pergunta pelo sentido do ser – são dados de forma imediata.
Vale frisar esta ideia: não há ser humano sem mundo, nem mundo sem ser humano. Esclareça-se o termo Dasein, agora. O Dasein se costuma traduzir como ser-o-aí. Essa forma de tradução sugere que a condição humana está sempre lançada numa situação ou circunstância no mundo. Acrescente-se que o Dasein é um índice formal da condição humana, que, diferentemente do que sucede com os demais entes, existe na indeterminação de seu ser. O homem ou Dasein é ente indeterminado em seu ser. Basta dizer, por ora, que estamos longe da concepção tradicional de homem como ser racional.
Tome-se, agora, a indeterminação do Dasein, enquanto ser-no-mundo. Como ser-no-mundo, o Dasein está irremediavelmente lançado nesta condição: estar no mundo estrutura fundamentalmente o seu ser. Esse ser é sempre indeterminado, é ser de possibilidades. Somos o que somos em função do que realizamos em dadas circunstâncias; e sempre realizamos com base nas possibilidades que se abrem em contextos previamente fixados. Aqui cabe dizer que a postura teorética é sempre posterior a essa relação primeira e engajada do Dasein com o mundo.
O ser humano não só propõe a questão sobre o sentido do ser, mas já é o ente que compreende implicitamente esse sentido, ente que compreende os demais entes com que se relaciona e o ser que ele é.
Em vista do exposto, cabe reter que Heidegger mostrará que a busca pelo horizonte de compreensão do ser impõe a análise prévia do ser humano, graças à qual se revela a estrutura da compreensibilidade do ser. Compreende-se que se deve buscar o sentido do ser pela análise existencial do Dasein. Essa tarefa recebeu o nome, em Ser e Tempo, de Analítica Existencial.


3. A analítica existencial

Cumpre, nesta etapa, compreender qual é o objetivo a que se destina a analítica existencial. Notemos, desde já, que esse objetivo é revelar o horizonte humano de compreensão do ser. Mas não se trata de procurar uma nova definição do ser humano. O Dasein não pode ser explicado por meio de categorias precisas; ele é pura indeterminação. Urge salientar que, agora, não há mais um fundamento metafísico em que se deve apoiar a existência humana. O ser humano é um projeto; como tal, ele se realiza na existência. Como projeto, o Dasein se faz a si mesmo a partir das possibilidades abertas nos contextos em que se encontra.
Conquanto seja o ser humano um ente que existe no modo de possibilidades, sempre a fazer-se, não se segue daí que as possibilidades de existir no mundo sejam ilimitadas. Somos seres de possibilidades, mas essas possibilidades são limitadas por contextos geográfico, político, econômico, social e cultural. A isso Heidegger chamou de facticidade. A facticidade é o fato de o Dasein estar sempre lançado em possibilidades limitadas pela estrutura do mundo.
A morte terá um lugar de destaque no quadro da analítica existencial, porquanto a morte, em sua imprevisibilidade, indica a indeterminação da essência humana. A importância de pensar a morte nesse quadro de análise repousa no fato de que ela, a morte, introduz o elemento da finitude e torna possível pensar a temporalidade da existência. Pela morte, torna-se possível pensar o Dasein em sua condição existencial.
Portanto, Heidegger não está interessado em examinar a morte como fenômeno biológico ou como um fenômeno genérico de extinção. Devemos antecipar um ponto que trataremos de desenvolver mais adiante. Heidegger não se ocupa de pensar a morte como um fato que atinge a todos os seres humanos, mas como uma possibilidade própria de cada um. Evidentemente, ele reconhecerá que a forma de conceber a morte como fato do mundo é comum ao homem imerso na cotidianidade. Mas veremos, em tempo, que a morte, considerada no quadro da analítica existencial, é uma dentre as possibilidades – a possibilidade suprema, decerto – abertas ao Dasein.



            3.1. A existência decadente

Segundo Heidegger, a experiência comum e cotidiana da morte mascara seu sentido originário. É justamente por sua condição de ser-no-mundo que o homem facilmente acaba por existir na não-verdade, compreendendo a si mesmo e o mundo a partir das representações coletivas, das crenças recorrentes em sua sociedade. Esse modo de existir na não-verdade Heidegger chamará de decadência.
O mundo das ocupações cotidianas é também um mundo compartilhado. Os outros estão dados de modo tão imediato quanto o mundo e a própria existência. Sucede, contudo, que, no cotidiano, o convívio assume a forma de uma absorção no modo de ser dos outros. Pensemos, por ora, na função dos padrões culturais. Os indivíduos que vivem num dado contexto cultural assumem modos de ser, sentir, agir e pensar determinados pelos padrões estabelecidos por sua cultura. Cada um é como o outro é em seu modo de ser. A própria necessidade de identificação com o grupo depende da incorporação de certos hábitos de pensar, agir e sentir fixados pela cultura a que pertence os indivíduos.
É fácil ver como, no cotidiano, o homem é absorvido no impessoal. O impessoal não é ninguém determinado; mas é o modo padronizado de conduzir a existência, que cada um assume, sem disso ter consciência. Heidegger dirá que, no mundo cotidiano, “cada um é igual ao outro e nenhum é ele mesmo”.
Há, portanto, um modo de ser fundamental da cotidianidade, qual seja, o da decadência. O que é esse modo de ser? É o que o ser humano é na cotidianidade: um ente de tal modo ocupado com o mundo, que se deixa absorver por esse mundo, sem disso aperceber-se. Trata-se de uma condição tranqüilizadora, embora inautêntica. Mas a própria inautenticidade é uma possibilidade dentre as possibilidades de ser. Na impessoalidade, o Dasein não se reconhece como ser de possibilidades, tampouco assume sua condição de agente responsável pelo próprio ser. Ele tão-só deixa-se conduzir pelo modismo, pelas opiniões correntes, repisadas, pelos modos de se comportar gerais, os quais são assumidos como “o jeito certo de ser”.
No tangente à morte, na inautenticidade, o Dasein a assume como evento alheio, como um fato do mundo, como ocorrência que arrebanha a todos os outros. Morre-se todos os dias; a morte é um acontecimento conhecido, já dado no mundo. Na cotidianidade, o homem foge da morte na medida em que a trata como um acontecimento que lhe é comum (não só eu morrerei como os outros também), estranho (trata-se da percepção da morte como a morte dos outros), e por vir (situada fora do domínio de sua existência, enquanto ser ocupado com o mundo).



             4. O ser-para-a-morte


A compreensão existencial da morte supõe a admissão de que o Dasein é também um ser-para-a-morte. Mas ainda não atingiu a autenticidade quem não singularizou o ser-para-a-morte.
Inicialmente, deve-se entender que a expressão ser-para-a-morte caracteriza a condição de estar destinado à morte. Mesmo no modo impessoal de existir, as pessoas costumam aceitar que caminham para a morte; elas têm certeza de que morrerão, mas esse caminhar para a morte é ainda generalizado; afinal, todos caminhamos para a morte inevitável.
Heidegger, no entanto, argumentará que, no cotidiano, o homem não consegue perceber a morte em seu sentido pleno, a saber, enquanto fenômeno existencial irrecusavelmente próprio e irremediavelmente indeterminado. Esse ente absorvido no modo do impessoal se acostumou a esquivar-se de considerar a iminente possibilidade da própria morte. Na medida em que o Dasein é um projeto (seu ser é indeterminado), sempre aberto a possibilidades, deve ele assumir a possibilidade da própria morte, sob pena de incorrer numa “inconsistência existencial”. Destarte, ele continua impossibilitado de alcançar uma compreensão autêntica de seu ser.
Percebendo a morte como sempre possível, um sempre aí inscrito na estrutura de sua existência, o ser humano reconhece-se como sempre inacabado, em construção, como projeto a realizar-se em suas possibilidades de existência; por outro lado, a perspectiva da certeza da própria morte e da indeterminação de seu acontecimento, revela aquilo que talvez não se realize.
A interpretação existencial da morte pretende, portanto, revelar a estrutura ontológica da morte como ser-para-o-fim, articulando-a à compreensão fenomenológica do ser humano como projeto lançado no mundo. Como ente lançado no mundo, o homem está constantemente construindo a si mesmo a partir de possibilidades não determinadas. Uma vez sendo no mundo, o Dasein tem em face de si inúmeras possibilidades de ser, donde resulta a constatação ôntica segundo a qual jamais se pode predizer, no momento do nascimento, o que será e como viverá uma pessoa.
Por outro lado, sendo projeto, o ser humano está desde sempre sujeito à possibilidade suprema – que é a morte: “a morte está sempre flertando com as possibilidades do ser humano” (Doro, 2011, p. 138). Evidentemente, ela é da ordem da impossibilidade, do nunca mais das realizações humanas. A morte é a possibilidade da impossibilidade das possibilidades humanas. Até aqui, creio estar claro que a morte é, para o ser humano, como um abismo para o qual se orienta a caminhada. Por isso, “para morrer basta estar vivo”. A morte é interrupção sem deixar nada pendente, uma vez que o ser humano é caminho aberto, nunca completado.
Da libertação da concepção cotidiana da morte depende a compreensão que o homem tem de si como ser-para-o-fim. Ele só pode alcançar essa compreensão quando remover as formas de encobrimentos do mundo público do impessoal. Mas aquela compreensão não se alcança por meio da reflexão; o acesso ao próprio ser só se dá pelos sentimentos. A existência, dirá Heidegger, é primeiramente sentida. Desses estados de humor pelos quais o homem compreende-se verdadeiramente como ser-para-a-morte, destaca-se o papel da angústia.
A angústia, não tendo um objeto próprio, é gerada por nada, ou pelo próprio existir no mundo (condição esta indeterminada). Ao contrário do medo, que tem uma causa que o desencadeia (medo de altura, de barata, etc.), a angústia é desprovida de causa ou objeto. Ela se acompanha do tédio, o qual revela a gratuidade insignificante do mundo das ocupações: as coisas e as tarefas se esvaziam de sentido e a existência se experiencia em sua facticidade. Ou seja, a angústia esfacela a tranquila familiaridade do mundo cotidiano, do que resulta seja a condição de ser lançado sentida profundamente.
Uma vez rompida a tranquilidade do mundo das ocupações, uma vez liberto do modo de ser impessoal, pela angústia, o homem se dá conta do modo como, de fato, está no mundo: entregue à própria responsabilidade. Agora, o homem experiencia-se como o autor da própria vida; por isso, sua responsabilidade sobrecai-lhe como um peso: ele é responsável pelas possibilidades de ser. É nesse instante mesmo em que se percebe responsável pelas possibilidades próprias de ser que a possibilidade mais própria, qual seja, a de ser-para-a-morte, se revela intransigente e insuperável.
O tédio, que acompanha o estar angustiado, é o sentimento de urgência para passar o tempo. Por isso, o homem tende a não hesitar em recorrer aos passa-tempos, como meio de escapar à angústia. Ora, ocupando o tempo, o passa-tempo não permite que o tempo convoque o homem a assumir suas possibilidades existenciais.
O homem só existe para a morte: é um ser-para-o-fim. É essencial e constitutivamente um ser-para-a-morte, o que significa viver angustiado. Advirto o leitor de que não deve interpretar o “para”, em “existe para a morte”, como índice de finalidade; mas de ‘direção’. Essa condição a que o homem está lançado irremediavelmente quando do seu nascimento não deve paralisá-lo. O ser-para-a-morte é ser angustiado, é verdade; mas essa condição é também libertadora. Estar angustiado não se confunde com melancolia ou desânimo. Estar angustiado é o estado existencial de quem assume total responsabilidade pelo próprio existir. Por isso, a angústia, em vez de paralisar o homem, o liberta da alienação – isto é, da inautenticidade determinada pelo impessoal, de tal modo que ele se torna livre para escolher suas próprias possibilidades de ser. “Eu sou minhas possibilidades”, escreve Heidegger..




5. De que modo a compreensão da possibilidade da morte é decisiva para a condução da existência?


Com a questão que dá título a esta seção, levo a cabo este texto. Heidegger sustentará que é tão somente pela consciência da finitude e da gratuidade da vida que o ser humano pode determinar o curso de sua existência, sem o peso das influências do meio social – influências estas que a controlam.
Eis, portanto, o núcleo do conceito existencial da morte, segundo Heidegger: encarada como possibilidade própria e intransferível, a morte torna possível a condução autêntica da existência.
Compreender-se como o ser-para-a-morte significa tomar o indivíduo humano enquanto ente que antecipa a possibilidade da morte. Não se trata, evidentemente, de por-se sob o risco de morrer, tampouco de compreender a morte como um fato. Ser-para-a-morte é perceber, num nível fundamental da existência, a dimensão afetiva da angústia como modo de o homem sentir-se como ser-no-mundo, ser entregue à sua responsabilidade. Não é a reflexão – insisto nisto – que dá ao ser humano o acesso ao seu ser; mas a angústia que o faz de modo originário. Tampouco o medo diante da morte o faz.
Um exame detido da estrutura do Dasein deveria levar em conta, entre outras, a dimensão que, necessariamente ligada à morte, foi, no entanto, desconsiderada: a da temporalidade. O Dasein está entretecido no tempo; seu ser é fundamentalmente futuro. Contente-se o leitor com o fato de que eu não poderia jamais estender-me para além dos limites fixados pelo estágio de minha compreensão da filosofia de Heidegger. Minha contribuição foi bastante modesta: mais do que provocar no leitor um entendimento de Heidegger, gostaria de que  incorporasse o sentido existencial da morte num nível pré-reflexivo; enfim, que ele sentisse o que significa o “tão logo nasce, o homem já é suficientemente velho para morrer” (Heidegger).