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quarta-feira, 15 de setembro de 2021

"Todos os seres vivos são membros de comunidades ecológicas ligadas umas às outras numa rede de interdependências" (Fritjof Capra)

 



LIVRANDO-ME

 

            Quando um livro se nos abre, um vasto e complexo mundo se abre também; mas este mundo que se abre em sua complexidade e vastidão não se põe ao sujeito leitor como um simples objeto a ser esquadrinhado, inspecionado, examinado, conhecido. O mundo que se abre, que se desvela no folhear das páginas de um livro, é um mundo como campo de possibilidades de experiências afetivas, cognitivas, linguísticas, dialógicas que nos inundam todo o corpo, até o profundo de suas camadas nervosas, sensoriais, emocionais. Livros não são objetos de consumo, os quais se deterioram no próprio ato de consumo. Livros são espaços de experiências cognitivas, afetivas, culturais dialogais. O mundo que se nos abre na abertura de um livro é um mundo que nos desabitua, que nos desloca, que nos retira do conforto do mundo comum cotidiano em que costumeiramente nos instalamos e em cuja superfície perambulamos, tagarelamos e vivemos a vida rala e rasa através das lentes do senso comum. Quão custoso me é externar minha paixão (páthos) pelos livros, minha afeição (philotés, philía) ao bem de que eles me dão regozijar! Quão custoso me é tornar inteligível ao outro esta minha cumplicidade fisiológica, biológica com os livros, este meu dispor-se afetuosamente a eles com a gratuidade e a alegria dos enamorados! Que fique, ao menos, claro que, para mim, os livros não são utensílios, objetos de que me sirvo para atingir fins determinados; a vida sem a leitura é, para mim, empobrecida, é uma vida esquálida, é uma vida atrofiada, uma vida desperdiçada em seu tempo finito, de uma longenvidade tão incerta; é uma vida amputada em suas capacidades de autopoiese; é uma vida deficitária, uma vida que se vive sob o modo da insuficiência; é uma vida que se arrasta, que se leva adiante por uma simples indisposição para com a morte. Que me perdoem se tomo aqueles que não comungam deste meu vínculo afetivo com os livros, que vivem divorciados da intimidade do convívio com eles, como miseráveis a mendigar e a ruminar as sobras de um mundo limitado, esquemático, simplificado pelas telas do viver comum; perdoem-me se os tomo por prisioneiros de um mundo visto pelas grades estreitas da cotidianidade fragmentada pela hiperinformatividade de nossas sociedades digitais. Pudera que todos, sem exceção, se tornassem leitores-amantes, que deixassem de ser meros consumidores de informação, de corpos-imagens, de vidas estranhas celebrizadas, do banal espetacularizado, do mundo das marcas-sonhos sem alma, para se tornarem habitantes de um outro mundo - mais vasto, mais complexo, mais profundo, mais vigoroso, mais potente, pleno de intensidades afetivas e ilhas de conhecimento: o mundo dos corpos-leitores.

 


DESCULPE-ME, VOCÊ NÃO É A COROA DA CRIAÇÃO

 

        A visão mecanicista de mundo da física newtoniana e a visão mecanicista da vida de Descartes há muito foram superadas. No século XXI, em que se tornam cada vez mais flagrantes os problemas sistêmicos que ameaçam a vida em nosso planeta, predomina, nas ciências físicas e biológicas, a visão sistêmica de mundo, calcada sobre uma ecologia profunda. Do ponto de vista sistêmico, as únicas soluções possíveis para os problemas de nosso tempo - energia, degradação do meio ambiente, mudança climática, segurança alimentar e financeira -, são soluções sustentáveis. Uma sociedade sustentável significa uma organização social cujas atividades econômicas, comerciais, tecnologias e estruturas físicas não ameacem a capacidade inerente da natureza de sustentar a vida. Contrariamente à metafísica ocidental, que com Descartes, no século XVII, entronizou a consciência como a parte distintiva e mais elevada do homem, a ponto de considerar os animais não-humanos como meras máquinas, a visão sistêmica de mundo e a ecologia profunda de que se nutre preconizam que a consciência e a cognição não são privilégios humanos. Na visão sistêmica da vida, desenvolvida por estudiosos como Humberto Maturana e Fritjof Capra, o ser humano, como todo organismo vivo, está imerso em interações mútuas com a totalidade da vida no planeta; o homem é um fio da teia complexa da vida. A dicotomia metafísica cartesiana entre “coisa pensante” e “coisa extensa” é puro devaneio idealista. Como ensina Maturana, a cognição é uma atividade intrínseca ao processo da vida, ela está implicada na autogeração e na autoperpetuação das redes vivas. Plantas, animais e seres humanos são dotados de cognição e interagem cognitivamente com o ambiente em que vivem. Assim, vida e cognição são inseparáveis: “toda a estrutura do organismo participa do processo de cognição, quer o organismo tenha ou não um cérebro e um sistema sistema nervoso”. A consciência é um fenômeno emergente; é um tipo especial de processo cognitivo que se desenvolve quando a cognição alcança certo nível de complexidade. A cognição é um fenômeno mais amplo do que a consciência. É um preconceito metafísico separar os organismos vivos entre os que possuem consciência e os que não a possuem. Como fenômeno emergente, a consciência foi se complexificando e se diferenciando apenas em termos de graus entre os organismos vivos. O que se segue vale tanto para nós, macacos pelados, quanto para outras espécies de animais e plantas: “ as interações de um sistema vivo com seu meio ambiente são interações cognitivas, e o próprio processo de viver é um processo cognitivo”. Seguem-se da visão sistêmica da vida alguns postulados que não podem mais ser ignorados:

1. O planeta Terra é um sistema vivo e autorregulador;

2. O mundo material é uma rede de interações, de padrões;

3. O cérebro, o sistema imunológico, cada tecido corporal e cada célula é um sistema vivo e cognitivo;

4. A evolução não é mais concebida como luta competitiva pela sobrevivência, mas uma espécie de dança cooperativa, na qual a criatividade e a constante emergência da novidade são forças propulsoras.

 




sexta-feira, 6 de agosto de 2021

"Todo o existente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por encontro imprevisto." (Sartre)

 




A um amigo enlutado

 

Supondo oportuno este momento em que você ainda está em trabalho de luto, compartilho alguns sentimentos angustiantes que me são familiares e que, de um tempo para cá, têm se me tornado mais dilacerantes e assíduos. Estou eu cá com um livro, como de costume, envolvido em uma leitura densa... E subitamente sou tomado por uma carreata estrondosa de pensamentos e sentimentos que me levam a me questionar por que me dedico tanto aos livros, por que os cumulo, para que leio tanto, para que tenho tantos livros, se só tenho uma vida apenas, tão débil e incerta, que pode ser mais breve do que eu esperaria que fosse e que, portanto, pode apagar-se, a qualquer momento, como a chama de uma vela? Sartre dizia que a morte é absurda... sim, de fato... a morte é um corte muito profundo e irremediável, uma ruptura definitiva com tudo aquilo que valorizamos e amamos na vida... a morte não só nos priva do convívio com as pessoas que amamos, mas também com aquele mundo de coisas e atividades que apreciamos, como a leitura, por exemplo... quando eu morrer, não poderei mais ler os livros que gostaria de ler ou continuar lendo... e estes livros que hoje me valem tanto terão um destino que ignorarei, porque os mortos têm uma inveterada e impertinente mania de serem indiferentes, de serem desapegados, de serem insensíveis... ( e os livros serão doados? Vendidos? Destinados ao lixo? - que me importa!)...nunca mais os reencontrarei, nunca mais terei o prazer de lê-los... nunca mais estarei aqui com eles ao redor disponíveis para que eu os leia e me demore na nudez de suas páginas durante horas... nunca mais, nunca mais, nunca mais... a morte também me priva de tudo que eles me oferecem e me possibilitarão, dos saberes que esperava compartilhar... saberes que morrerão comigo... Quando envelhecemos, deveríamos nos habituar ao desapego... o envelhecimento é um processo de desligamento, de despedida gradativa de tudo aquilo que outrora superestimávamos... nós deveríamos evitar cumular coisas à medida que envelhecemos (embora eu conheça velhos que não fazem senão acumulá-las, num ato inconsciente de protesto e resistência vã contra o processo de desfazimento da vida)... mas eu também acumulo... acumulo livros que provavelmente se tornarão coisas inúteis, quinquilharias que o tempo, o mofo e as traças consumirão... à medida que os anos passarem, que as rugas fizerem sulcos em meu rosto, que o meu corpo ficar ressequido, debilitado, carcomido e que o sentimento da vanidade de tudo tornar-se o sentimento soberano e uníssono em minha existência, nem mesmo os livros valerão o tempo que lhes dedico... quando jovens, raramente o temos, tudo tem graça, vibração, colorido e sentido... mas o envelhecimento vai erodindo uma a uma nossas ilusões sobre a vida... “Amadurecer é aproximar-se da morte e sentir o cheiro da insignificância de tudo”, escreveu Pondé... Como o negar?

quinta-feira, 5 de março de 2020

"A vida só tem um charme verdadeiro, é o charme do Jogo. Mas se nos é indiferente ganhar ou perder?" (Baudelaire)


                                    Resultado de imagem para Baudelaire entediado

                                     Inquietações empedernidas


Eu tenho horror à mediocridade. Do latim mediocritas.atis, “mediocridade” quer dizer meio, medida e diz-se das pessoas que carecem de talento ou têm pouco valor. Se restava algum receio de que um dia os idiotas viriam a dominar o mundo por se sobressaírem aos demais homo sapiens em quantidade, me parece inegável admitir que os medíocres são suficientemente numerosos para constituírem verdadeiros impérios. A maior parte da humanidade é medíocre – isso me parece estar fora de questão! E os 7,7 bilhões de pessoas que ocupam o globo terrestre são cosmologicamente irrelevantes. Cada novo indivíduo que nasce para integrar esse quantitativo de irrelevância cosmológica é um mero acidente. No entanto, tanto os idiotas, que são, de fato, bastante numerosos, quanto os medíocres, cuja quantidade quiçá seja ainda maior, são ou ineptos demais ou covardes para atingir tal nível de lucidez.

Meu horror à mediocridade como modo de vida se deve ao fato de que o medíocre é como um camelo cuja vida é limitada a carregar carga; no caso dos medíocres, a carga é a da tradição, dos costumes, dos valores e modos de pensar com os quais se habituaram e os quais se limitam a reproduzir por força das condições socioculturais em que nasceram. Como esteja submetida às maneiras comuns como vivem e pensam os indivíduos pertencentes a um grupo ou sociedade, a vida medíocre é uma vida à qual falta uma liberdade mais fundamental: a liberdade do pensamento (e não de pensamento!). Os medíocres podem até se crer livres e podem até o ser do ponto de vista político-jurídico, mas não o são num nível mais elementar, porque vivem e se comportam como membros de rebanhos. Os medíocres são animais de rebanho. Por isso, não é de admirar que se tornem facilmente aduladores de uma personalidade carismática, como a de um líder político, e passem docilmente a defender, com unhas e dentes, essa personalidade, por mais estúpida que ela seja, acreditando estar assim exercendo seu papel como membro de uma comunidade política. Que a política seja inevitável para a garantia da coexistência dos homo sapiens não resta dúvida, mas a política traz em si um grande perigo, qual seja, o de reforçar e animar, com frequência, nossa tendência instintual e primitiva para sermos animais de rebanho. O animal politikón é, naturalmente, um grex animalis. (...)

Meus estudos sobre a obra de Cioran me permitiram compreender melhor esse pensador... Posso dizer, seguramente, que, hoje, compreendo melhor seu pensamento do que há alguns anos. E, mais do que compreender o pensamento de Cioran, encontro-me em ressonância de sentimento com o modo como Cioran sente a vida e experiencia o mundo. Esse místico sem deus recusou qualquer forma de salvação e confessou ter compreendido o Essencial. Tendo atingido tal grau de Lucidez, Cioran deu adeus à filosofia. Não porque teria se tornado sábio, mas porque a filosofia, para ele, tendo procurado dar razão, apresentar justificação, deixou de ter importância. Cioran reconheceu o Insolúvel. Sinto-me mais aparentado ao pensamento cioraniano. Também eu chego à conclusão de que compreendi o Essencial. O Essencial beira o inefável, mas vale o esforço por dar-lhe um investimento verbal. O Essencial significa reconhecer que o nada é primordial, que, por isso, no fundo, tudo é nada, ou seja, o ser é nada. Eros ou a vida se faz; a consciência é derivada.

 

(...)

O poeta que um dia ousei ser está morto. Mas me crer poeta me parece hoje exagerado... uma petulância. Nunca fui verdadeiramente um poeta. Meus poemas são sintomas de uma doença, são abortos de um tempo remoto em que eu cultivava o adoecimento. Estranhamente, porém, tenho saudade desse tempo cadavérico. Eu cultuava o sofrimento, hábito que agora me parece pueril e irrelevante. Quiçá o cultuava porque o sofrimento tinha certo gosto epifânico. O que se me revelava nesse doentio hábito? A estética da profundidade, abismos psicológicos...

Eu sempre nutri uma aversão às vidas superficiais, aos modos de viver das superfícies... Outrora, sentia-me deslocado, descompromissado com minha época, com esta forma histórica da modernidade que a tudo superficializa, que transforma o trivial em produto de consumo, que espetaculariza o cotidiano para o deleite de um rebanho espiritualmente anestesiado (hoje, em face dessa maciça espetacularização da realidade, característica marcante da modernidade tadia, experimento enfado nauseante...). Quando à lembrança me vêm como fumaça os escritos que destilavam tão impertinente lirismo, não consigo esquivar-me de me perguntar o que pretendia eu, tendo sido muito ingênuo – até mesmo ridículo – com eles? Ser compreendido... Talvez, a única pessoa que deveras me compreendeu até hoje tenha sido minha terapeuta... Mas, que importa isso agora? Já não sou mais aquele paciente padecente das misérias de um lirismo exacerbado e inapropriado, porque démodé.

Embora habituado a frequentar a orla dos abismos, embora tendo sido absorvido num tormentoso infernal abismo, consegui assomar à superfície e pôr-me a caminhar na companhia de todos os riscos...

Meu ingresso formal na vida filosófica constitui um marco em minha biografia (se é que posso chamar assim uma existência tão comum e banal que sequer foi narrada)... A filosofia operou uma transformação radical em meu modo de ser... Isso soa como um clichê, mas não deixa de expressar uma experiência subjetivamente decisiva... A filosofia me desvirginou, libertou-me da escravidão da inocência... Tornou-me mais aborrecido, mais enfastiado... Tendo sepultado o último facho de fé, expôs-me o fétido sepulcro de Deus.

Ainda não chegou o tempo em que poderei lograr o privilégio de dar adeus à filosofia, tal como o fez Cioran... Se bem que a filosofia de gabinete, a filosofia sistemática praticada com fins puramente acadêmicos não me interessa... A filosofia nasceu da mais íntima e profunda necessidade humana de fazer ruído no vasto silêncio imperturbável de um universo indiferente... A institucionalização da filosofia é sua enfermaria.

 

Pausa:

Escreve Baudelaire:

Há momentos da existência onde o tempo e o entendimento soam mais profundos, e o sentimento da existência ampliada imensamente.”

 

“Levar sua lucidez até o êxtase” – pontua Camus. Isso me parece inconveniente, terminantemente dispensável...

Ao concatenar esses apontamentos eivados de vivências impressionistas, não pretendo eu fazer-me compreender... Jamais se totaliza, se esgota o sentido; quanto mais se diz mais se silencia, mais se fazem aberturas, sulcos cavos para os mal-entendidos, para as incompreensões, para as inconsistências de toda sorte, para outros tantos sentidos imprevistos... Dizer é sempre silenciar; é pontuar silenciamentos.

Por que devo temer o fracasso? O fracasso nos humaniza, nos revela a miserabilidade de nossa condição humana... Já fracassei tantas vezes... Depois de frequentar tantos filósofos, depois de visitar e revisitar filósofos com cujo pensamento sinto-me mais aparentado, tudo me parece, em última instância, insignificante, sem importância. Há uma solidão visceral, mais íntima: a solidão da Lucidez – é preciso habitá-la; é ao que nos convida Cioran. “O deserto interior está sempre fadado à esterilidade”.

 

Eric Fromm admirou-se do fato de o número de pessoas loucas não ser maior, já que a existência é um fardo terrível – mas, se tivesse considerado a diferença entre a loucura de hospício e a loucura normal, talvez reconhecesse que a maioria esmagadora dos homens é fisiologicamente protegida contra os perigos da Lucidez e do Desespero total.

Para quem não está empregado, dizer que se manteve ocupado com os livros soa a outrem afrontoso. As pessoas, em geral, não veem o estudo como uma forma de ocupação, como uma forma de trabalho... Acontece que nunca me relacionei com os livros como quem se relaciona com meros utensílios... Nunca estabeleci com eles uma relação instrumental e esporádica. Ler não é para mim um passatempo ou uma atividade a cuja realização me obrigo para atender a certas exigências institucionais... Tampouco ler é um meio para a obtenção de conhecimentos úteis segundo os padrões de organização de nossas sociedades técnico-científico-informacionais. A leitura, tendo atingindo certa maturidade, sempre se impôs como uma necessidade existencial, isto é, uma necessidade que comporta a mesma pressão com que sobre mim recaem as necessidades básicas da sede e da fome. Receio não conseguir externar adequadamente, por meio de imagens, o que significa, para mim, a prática da leitura. Sei, no entanto, que viver privado dos livros seria, para mim, uma morte em vida. Encontrar-me-ia amputado de todos os meus membros, caso fosse privado de frequentar os livros.

Custa-me – devo confessar – compreender como podem tantas pessoas viver divorciadas dos livros... Não posso evitar de considerá-las como animais de carga a arrastar uma vida empobrecida e supérflua (ainda que, quando consideradas de uma perspectiva existencialmente radical, todas as vidas são supérfluas!). Não obstante, cuido que aqueles que vivem apartados da experiência da leitura são facilmente cativos das condições históricas que, nutrindo de sentido as suas vidas, as submetem continuamente a processos de normatização.

Certa feita escrevi, ainda num tempo em que a inocência poética se me aninhava no espírito, que há sempre um livro entre mim e o outro... Presunção de um diletante? Quiçá!

Não obstante, um testemunho de refinado gosto.  


segunda-feira, 5 de março de 2012

"A leitura é para o intelecto o que o exercício é para o corpo." (Joseph Addison)

                                           


                                           Um convite à leitura
                                  Meditações sobre o ato de ler

Novamente, a voz de Fernando Pessoa conduz-me as palavras que aqui exponho. Dispenso o rigor na feitura deste texto. Não sei ainda, contudo, que caminhos verbais percorrerei. Vale a pena percorrê-los e esse é o convite que faço ao leitor. Percorramo-los juntos! Sem mais, leiamos estes passos de Pessoa:

“Leio e estou liberto. Adquiro objectividade. Deixei de ser eu e disperso. E o que leio, em vez de ser um trajo que ainda vejo e por vezes me pesa, é a grande clareza do mundo externo, toda ela notável, o sol que vê todos, a lua que malha de sombras o chão quieto, os espaços largos que acabam em mar, a solidão negra das árvores que acenam verdes em cima, a paz sólida dos tanques das quintas, os caminhos tapados pelas vinhas, nos declives breves das encostas.
Leio como quem abdica. E, como a coroa e o manto régios nunca são tão grandes como quando o Rei que parte os deixa no chão, deponho sobre os mosaicos das antecâmeras todos os meus triunfais do tédio e do sonho, e subo a escadaria com a única nobreza de ver.
Leio como quem passa. E é nos clássicos, nos calmos, nos que, se sofrem, o não dizem, que me sinto sagrado transeunte, ungido peregrino contemplador sem razão do mundo sem propósito, Príncipe do Grande Exílio, que deu, partindo-se, ao último mendigo, a esmola extrema da sua desolação”.
(p. 86)


        Pretendo que este texto instaure um espaço dialógico  com o leitor caracterizado pela informalidade. Por isso, eu o tratarei como “você”. É a você, leitor, que me dirijo. E, desde já, lhe confesso que esses passos de Pessoa acarretam-me alguma dificuldade; situada, é verdade, mas momentaneamente instransponível. Não sei o que significa “Príncipe do Grande Exílio”. Mas esta lacuna é ilustrativa de um princípio básico em matéria de interpretação/ compreensão textual; eu diria melhor, em matéria de construção da coerência do texto: o leitor que não dispuser dos conhecimentos prévios necessários à produção do sentido para o texto terá dificuldades para levar a cabo tal empreendimento. É claro que tais dificuldades podem não prejudicar a compreensão global do texto (a coerência é global). Algumas dificuldades, ou seja, lacunas no conhecimento de mundo compartilhado entre o autor e o leitor, podem perturbar o processo de interpretação/ compreensão do texto. Falta-me o conhecimento sobre o referente da expressão “Príncipe do Grande Exílio”, que, escrita em maiúscula, pode remontar a um codinome de um rei de Portugal, ou à obra política O Príncipe, de Maquiavel. Veja, leitor, que, quando lemos, estamos continuamente produzindo hipóteses, fazendo inferências. Elas serão confirmadas ou rejeitadas ao longo da leitura, sendo necessário, para tanto, recorrer, eventualmente, a outras fontes de conhecimento (como outros textos do autor, sobre dados de sua biografia, textos de seus críticos, resenhas sobre a obra lida, etc.).
Deixando de lado essa dificuldade pontual, vou propor a minha leitura. E isso é importante: muitas leituras são possíveis, dependendo das experiências de mundo de quem lê. Os textos potencializam muitos sentidos (embora excluam outros). Muitos, certamente, são possíveis, embora não todos. Podemos “ver” muitas coisas num texto, de acordo com o acervo de conhecimentos que vamos acumulando em nossas experiências de mundo. Para produzir um sentido para o texto que lemos, nós ativamos modelos cognitivos, que estruturam os conhecimentos (linguístico, encilopédico, pragmático, macrotextual, etc.) adquiridos nas nossas mais diversas experiências de mundo.
Quando assumimos o princípio da Linguística Textual (e também da Análise do Discurso) segundo o qual os sentidos estão abertos, são múltiplos, temos, forçosamente, de lidar com a questão dos limites da interpretação. Trata-se do problema de que se ocupa Umberto Eco, em seu Interpretação e Superinterpretação (2005).  Leiamos com atenção como o autor nos coloca o problema aqui referido:

“Poder-se-ia dizer que um texto, depois de separado do seu autor (assim como da intenção do autor) e das circunstâncias concretas de sua criação (e, consequentemente, de seu referente intencionado), flutua (por assim dizer) no vácuo de um leque potencialmente infinito de interpretações possíveis”.
(p. 48)

Quero que você tenha em conta dois problemas inferíveis do texto de Eco: 1o) o espaço escrito ou a modalidade escrita instaura, necessariamente, um distanciamento entre o escritor e o leitor (o texto produzido é um espaço dialógico, potencialmente repleto de significações, que o escritor instaura e do qual o leitor participa). 2o) Uma vez instaurando esse espaço, ou seja, uma vez produzindo seu texto, o escritor o destina a espaços sociais (sócioideológicos) para a leitura; logo, o autor não está mais sobre o domínio dos sentidos que poderão ser produzidos pelos leitores; o texto não mais “pertence” ao autor-escritor. Quando o texto, então escrito, é trazido a lume, passa a ser um objeto de interpretação; digo melhor, um objeto social de interpretação sócio-histórica. Os leitores são sujeitos sociais interpretantes e o texto um objeto sócio-histórico interpretável.
Todo escritor experiente, quer seja renomado, quer escreva no anonimato, lida com esses dois problemas. Muitos grandes escritores o reconheceram. Vejamos o caso do filósofo Ludwig Feuerbach, em Preleções sobre a Essência da Religião. Á página 16, na sua 1a preleção, o filósofo aponta para o primeiro problema por mim mencionado, relativo ao processo de produção escrita:


“(...) existe uma enorme diferença entre a palavra oral e escrita. A oral se relaciona com um público determinado, presente, real; a escrita, porém, com um público indeterminado, ausente, que existe para o escritor somente na imaginação; a palavra tem por objeto homens, a escrita, espíritos; porque os homens para os quais escrevo existem para mim somente no espírito, na imaginação (...)”.


Frisemos bem os aspectos da escrita apontados pelo filósofo alemão:
1o) a relação entre produtor do texto e receptor se dá in absentia, ou seja, há um distanciamento espaço-temporal entre o momento da enunciação (da produção do texto) e o da recepção (onde se situa o leitor). O receptor está ausente no momento em que o escritor produz seu texto. Ele lê em outro contexto, em outro momento;

2o) O leitor ou a audiência é produto construído discursivamente no momento mesmo em que o escritor produz o texto. É o que Feuerbach exprime com o termo imaginação ou espírito. Decerto, o escritor “imagina” destinatários para o seu texto, mas imagina-os durante o processo mesmo de construção de seu discurso. Por isso podermos dizer que o leitor é produto do discurso socio-historicamente produzido. Quando escreve seu texto, ou produz o seu discurso, o escritor produz uma “imagem do leitor”, não o leitor de carne e osso, evidentemente.

O reconhecimento destes aspectos da modalidade escrita, aspectos que tocam ao evento de enunciação dessa modalidade envolve outros problemas, tais como o fato de o escritor não poder prever todas as possibilidades de sentido para o seu texto. E a isso acrescento – coisa que a experiência de escritor de qualquer um de nós o atesta – nós, quando escrevemos, sentimos que não estamos no controle dos significados produzidos por nosso discurso. Parece-nos que as palavras nos escapam, os sentidos são fugazes, se esfumaçam. E aqui cabe um esclarecimento. Nós nunca dizemos tudo que pretendemos dizer. Não nos comunicamos dizendo tudo, se assim fosse, se entulhássemos nossos enunciados de palavras, certamente o sistema linguístico tornar-se-ia pouco eficiente comunicativamente. A dinamicidade e a flexibilidade  da língua dependem de que não precisemos buscar a suficiência do sentido. Tanto isso é verdade que, se uma pessoa insiste nos rodeios durante sua fala, seu discurso torna-se cansativo e nos aborrece. É que as lacunas de nossos discursos, os silêncios, aquilo que fica por ser enunciado, que se cala, são preenchidos com informações/ conhecimentos oriundos de nossos contextos sociocognitivos compartilhados. Esse contexto sociocognitivo encerra o conjunto de conhecimentos pressupostos (enciclopédico, sociointeracional, etc.) e partilhados entre os interactantes (no caso, escritor e leitor). As lacunas do discurso enunciado são supridas na base do compartilhamento, nunca total, mas parcial, dos contextos sociocognitivos dos interactantes.
Não devemos nos inquietar, contudo, uma vez que a linguagem não é transparente, os sentidos não são fechados. Não há completude de sentidos. E nós, escritores ou falantes, não estamos no controle total do que dizemos, ou melhor, dos significados que pretendemos produzir. Isso, para mim, é instigante, fascinante. Por isso, a linguagem, para muitos de nós, parece apresentar “armadilhas”. Às vezes, as palavras nos traem e surgem mal-entendidos. As interações sociais estão repletas deles. Quando usamos a língua, estamos, em todo momento, negociando significados: uns serão acolhidos; outros mais rejeitados, reelaborados, reinterpretados, criticados.
Eu, ao compor este texto, tenho um projeto de sentido e espero que o leitor o aceite. É possível que o leitor não o aceite completamente, discorde, complemente com suas ponderações, com seu discurso. Mas voltemos à minha proposta de leitura dos excertos de Pessoa.
Chama-me a atenção o fato de o poeta iniciar cada um dos parágrafos com um enunciado iniciado com “leio”. Essa reiteração confere coesão e contribui para a construção da coerência do texto. Note você, leitor, que os enunciados que se seguem em cada um dos parágrafos relacionam-se ao conteúdo do enunciado inicial com “leio”. As categorias semânticas base do primeiro parágrafo são ‘liberdade’ e ‘objetividade’. A leitura liberta o olhar egocêntrico, dando-lhe objetividade, um olhar que se lança ao exterior (ao mundo). Há leveza quando nos desprendemos desse olhar egocêntrico que só “vê” a aparência do “eu” (o eu não é real, é uma imagem de nós construída por nosso cérebro). O eu é um ilusão forjada pelo cérebro, é sentimento de si. O poeta, lendo e liberto, consegue ver claramente o mundo e, ao vê-lo com clareza, percebe que o mundo também ganha atributos humanos. O mundo se humaniza no olhar do poeta liberto. Note que isso é verdade quando percebemos a sequência de presopopeias (figura de linguagem que consiste na atribuição de sentimentos ou comportamentos humanos a coisas, objetos): “o sol que vê a todos”, “a lua que malha de sombras o chão quieto”, etc. Quero fazer ver aqui quão fascinante é a linguagem: ela nos permite construir realidade, modificar nossos modelos de mundo “consensuais”; ela nos permite recriar universos de sentidos, permite-nos experimentar o real de outras maneiras. É claro que o sol não pode ver, mas quando atribuímos um verbo como “ver” que designa uma experiência sensorial própria de seres animados a seres inanimados como o sol ou a lua, obtemos efeitos de sentido. A realidade não está mais “estática” aos olhos do autor; ao percebê-la, ela também o percebe; ao senti-la, ela também o sente, o abrange.
Eu poderia dizer, receando produzir um lugar-comum, que o ato de ler nos abre uma janela para o mundo, permitindo-nos experienciá-lo com mais objetividade, permitindo-nos vê-lo de modos variados. Ao ler, o mundo nos fala, nos revela a nós. O autor abandona seu ser disperso, portanto, desatento, espalhado, que outrora não apreendia as coisas com exatidão e clareza.
No segundo parágrafo, diz-nos o poeta que “lê como quem abdica”. É interessante ver que efeito de sentido tem a palavra “abdicar”, uma ação que associamos a autoridades régias. De fato, essa relação está clara no texto. Basta ver a ocorrência de “Rei”, “mantos régios”, “coroa”. Ao propor minha interpretação, quero fazer ver a você, leitor, como o processo de interpretação se desnuda; quero pôr a nu o próprio processo de construção do sentido que proponho. Penso – e não me equivoco (haverá de concordar comigo, espero) – que aquelas palavras, vale dizer, “Rei”, “mantos régios” e “coroa” estão relacionadas ao campo semântico de “Poder”. Elas evocam a ideia de Poder, de Governo Absoluto. Note o que escreve Pessoa:

E, como a coroa e o manto régios nunca são tão grandes como quando o Rei que parte os deixa no chão, deponho sobre os mosaicos das antecâmeras todos os meus triunfais do tédio e do sonho, e subo a escadaria com a única nobreza de ver.”

Quando o Rei (símbolo máximo do poder monárquico) abandona sua coroa e seu traje real (que são símbolos de seu poder), que lhes confere majestade, grandiosidade, onipotência diante dos seus súditos, quando os abandona no chão (lugar baixo), não os ostentando na cabeça (coroa) e no corpo (traje), tais símbolos deixam de representar o Poder do Rei. O Rei, ao deixá-los ao chão, destitui-se de Poder. Do mesmo modo, o autor se despe de seus triunfos, êxitos, de seus sucessos, todos alimentados no tédio e no sonho. Na subida, a única nobreza (que não é mais como a de um Rei) a de “contemplar” (ver). Aqui também há o componente semântico da liberdade, da libertação captado no primeiro parágrafo e que assumi como básico.
Vamos prestar atenção, agora, no último parágrafo, que se inicia com “Leio como quem passa”. Uma leitura que não se apega, que não se prende a princípios dogmáticos. A ocorrência de palavras como “sagrado”, “ungido” nos remete ao discurso religioso. As religiões buscam dar sentido à vida; um sentido fechado, acabado, inquestionável. Mas o autor reconhece que não há propósito no mundo. E ele o contempla sem pretender ter razão, sem pretender explicá-lo definitivamente. O sentido último do mundo não lhe interessa; o autor é indiferente a ele. Por isso, dá ao mendigo um punhado (esmola) de sua tristeza extrema (desolação). Ele compartilha, como transeunte, que não se detém num lugar, do sofrimento humano com aqueles cujas vozes não são ouvidas - vozes ignoradas dos indigentes transeuntes que habitam o mundo sem propósito.
Caberia vê-lo como um Cristo desmitificado, como um Cristo impotente diante do sofrimento humano? Um Cristo que precisou exilar-se, compartilhando apenas de sua miséria com os miseráveis? Deixo aqui este caminho interpretativo em aberto. No que me baseio para sugerir essa possibilidade interpretativa? Ora, justamente a passagem “me sinto sagrado transeunte, ungido peregrino”. Cristo peregrinou e fora ungido (ou batizado por João Batista). Conta-se a lenda que, naquele momento, teria pousado sobre ele o Espírito Santo. Evidentemente, se levarmos adiante essa possibilidade interpretativa, estaríamos diante de um Cristo desconstruído, não mais o Cristo bíblico, o personagem carismático forjado nas Escrituras; mas o Cristo humano (e apenas humano) transeunte, que passa indiferente, muito embora contemple, mas só; não age em favor do bem-estar de seus semelhantes. E sua única generosidade consiste em compartilhar sua miséria. Exilar-se, é, pois, afastar-se sendo indiferente ao sofrimento do mundo.
Voltemos ao significado de leitura, então. Que imagens de leitor nos oferece Pessoa? Quero dizer, aqui, que estou simplificando um pouco as coisas, quando falo em autor ou uso o nome de Pessoa. Claro é que, como já tive a oportunidade de discutir, o autor é uma abstração e o responsável pela unidade de seu discurso, mas ele se manifesta na forma de uma função: a função de sujeito. É o sujeito que diz de um determinado lugar social. O autor é, como ensina Maingueneau (2010: 30), “[sic.] a instância de estatuto historicamente variável que responde por um texto”. Mas deixemos de lado os detalhes teóricos, embora eu os julgue relevantes para o desenvolvimento da competência de leitura dos leitores. De fato, o leitor comum atribui uma voz unívoca e absoluta ao autor; dá a ele o poder de ser senhor do que diz. E a partir dele formula perguntas tais como “o que quis dizer?”, “o que isso significa?”, quando deveria levantar outras perguntas, tais como “para que ele o diz?” e “como o diz?”. O “para que” remete ao propósito, ao objetivo, à intenção de quem enuncia; o “como” ao modo como o que se diz é dito (o enunciador adere ao que diz, se distancia, assume atitudes de dúvida, certeza, insatisfação?, etc.) O “como” diz respeito a “como o enunciador se representa (encena) no discurso", no sentido mesmo teatral.
Que imagens de leitor nos oferece Pessoa? Ora, em síntese, em todos os parágrafos, retém-se a ideia de um leitor que se liberta, através da atividade de leitura. E essa liberdade experienciada, uma liberdade do ego, do olhar centrado em si mesmo, o faz olhar o mundo, o faz ouvir falar o mundo. Tanto a abdicação quanto o comportamento de transeunte envolvem um movimento de liberdade, ou de libertação. Não o prende, depois que ele lê. A leitura o faz compreender o mundo, compreender também as coisas sobre as quais ele não tem poder. A miséria é um fato reconhecido e compartilhado. O leitor, cidadão do mundo, é um leitor que se exila. Este exílio é também um refúgio. Pode a indiferença ser nosso refúgio? Digo, refúgio como estratagema para evitar a “desolação”?
Note você, leitor, como a leitura demanda sempre um trabalho intertextual. Um texto remete a outros textos. Por exemplo, agora me ocorreu que o filósofo Marcel Conche, em Análise do Amor, escrevera a respeito da busca pela felicidade. Enquanto folheava o seu livro à caça do trecho pertinente, reconhecia “coisas” que me passaram despercebidas. Li o livro há tempo; hoje, se eu retomar a leitura, ela não será a mesma, porque, desde então, acumulei mais conhecimentos, à luz dos quais produziria outros gestos interpretativos. Lamento não ter encontrado o trecho. E me custa agora continuar a procurá-lo. Conche nos fala de uma felicidade dependente de certa indiferença ao sofrimento alheio. Ele reconhece a importância da solidariedade, entenda bem! Ensina-nos que a vida é um movimento de criação de obstáculos à morte. Para ele, a morte nos abraça a todos; sentimo-nos filiados uns aos outros pelo sentimento de morte. Morreremos, é fato! Para  Conche,

“A morte está onipresente em nossa época. (...) A moral se inscreve nas estratégias de sobrevivência. (...) A obrigação moral significa que a morte diz respeito a todos nós, que é necessário enfrentá-la juntos, porque estamos vivos juntos. O egoísmo é uma insensatez porque cada um só tem sentido por via dos outros”.
(p. 47)

Para validar sua posição, com base em Heidegger, lembra Conche que o ser do homem é um ser-com os outros, um ser de relação com (os outros). Não me aprofundarei no conceito de “outros”, segundo Heidegger.
O que Conche, ao cabo, nos ensinará é que a felicidade (que ele distinguirá entre superficial e profunda) depende de que não nos afundemos nos problemas alheios. Se acumulamos as preocupações, os problemas dos outros, tomando-os como nossos também, o resultado será catastrófico e a felicidade impossível. Quiçá, me pareça válida a lição de Epíteto, para quem só podemos mudar nossas opiniões sobre as coisas, nossos sentimentos em relação a elas. Se uma dada ordem de coisas, após tê-lo avaliada, não puder ser alterada pelas nossas ações, se não dispomos de meios para tanto, se não nos cabe agir sobre ela, então não devemos buscar culpados e nos apoquentar. A felicidade depende de serenidade, prudência, capacidade de auto-exame e ponderação sobre as circunstâncias que nos parecem adversas. Nossas formas de ver as coisas, nossas opiniões sobre as situações do mundo, estas sim, segundo Epíteto, podem ser alteradas. Para Epíteto, só há felicidade se nossas formas de se relacionar com o mundo forem orientadas pela serenidade, pela calma e firmeza.
Fui longe demais, reconheço, e meus passos espirituais poderiam ser ainda mais largos, não duvide disso você que me lê. Não quero cansá-lo mais do que já o cansei.
Quero, apenas, compartilhar com você a minha satisfação ao compor este texto, ao chegar a esta altura com a débil segurança (mesmo que isso lhe pareça antitético) de que logrei sucesso. A bem da verdade não era esse meu projeto. Eu pretendia escrever sobre a neurose e sobre as noções de normalidade e anormalidade, que me foram sendo esclarecidas, à medida que lia um livro interessante, intitulado de O que é neurose? Encontrei aí passagens férteis para reflexões, instigantes mesmo. Veja, a título de exemplo, o seguinte passo:

As pessoas são únicas, expressões singulares da natureza, e de uma complexidade psíquica profunda, sendo nossa ignorância quanto a elas muito grande.
Muitas vezes são os homens retos e puros, espontâneos e autênticos, corajosos, criativos e rebeldes que são considerados “anormais” por uma sociedade que, no fundo, teme as mudanças que eles possam provocar”.

A psicanálise põe em derrocada todas as nossas pretensões à normalidade, anunciando que todos somos neuróticos em alguma medida. Todos lançamos mão de certo número de mecanismos de defesa, em face das frustrações e situações que nos ferem, nos injuriam. Os neuróticos adoecidos abusam de tais mecanismos e temem mudanças. Neles, as experiências dolorosas, mal vividas e compreendidas não são verbalizadas; ficam acumuladas em silêncio. Também os neuróticos tendem a agarrar-se às suas convicções, assumem-se como donos da verdade, não admitindo serem contrariados. Não conseguem conviver com a diversidade (de opiniões, de visões de mundo, crenças, comportamentos, hábitos). Tudo isso me levaria á concepção de Freud de religião como uma “neurose coletiva”. Ah! Mas aí, certamente, eu iria muito longe... Falta-me pavimentação nos caminhos que se me encurtam, agora, ao espírito.