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sábado, 20 de abril de 2013

Eu sou o outro


                             
                          

                              Eu e o Outro em mim

Ela não me telefona; tampouco eu lhe telefono. E este sábado, em que o coração, se acostumando à ausência e resignando-se ao destino ingrato de todo amante que se precipita ao amor, sem que sequer lhe vislumbre a profundidade, vai, aos poucos, devolvendo-me à alma as feições desgostosas da desilusão. Quiçá, a ordem dos acontecimentos subsequentes não seja a que tão infelizmente pressinto ou suponho. Talvez, esta noite me pareça mais amena e o sol de amanhã, mais tolerável. Não quero, contudo, dar a este texto uma fisionomia lírica, que traga à cena discursiva fantasmas românticos que expulsei da ópera de minha alma, porque insistiam em desafinar quando ousavam cantar o amor exagerando seus contornos, alargando seu território, expandindo seus limites, já há algum tempo reconhecidos por mim como frágeis e quebradiços. Silencio o lirismo do coração, conquanto eu reconheça, desde já, que silenciá-lo totalmente, durante o curso destas palavras, me é impossível – e até indesejável. O coração, essa metáfora para o ventre dos sentimentos, das emoções, dos calores da alma, dos cantos divinizados dos versos, ocupará um lugar de coadjuvante neste palco discursivo onde as palavras são os atores e atrizes. Mas não lhe nego a importância do papel que desempenha na representação discursiva: ele bombeia o ânimo para a alma e mantém o corpo ativamente envolvido nessa prática laboriosa de expressão verbal.
Certa feita, declarei a uma amiga que, malgrado nossa paixão pela leitura, nosso gosto irresistível pelos livros (eu diria nosso apego a eles), os livros não nos salvam. De que exatamente? De nós mesmos. Uma pessoa minimamente informada sobre psicologia e psicanálise não terá dificuldade de entender o que quero dizer com “salvar-nos de nós”. Nós, homens e mulheres, então adultos, trazemos em nós uma herança de conflitos, de traumas, de dores, decepções, medos. Acreditamos na soberania do nosso próprio ‘eu’, acreditamos na sua unidade, ao mesmo tempo em que vivemos a mentira sobre nossa própria condição humana. É verdade que não escapamos ao recalcamento (posteriormente definirei esse termo), e de sua adequada realização depende a normalidade de nossa vida psíquica. O viver humano depende, aliás, de que operemos uma repressão básica, qual seja, a do terror da morte. A percepção da verdade de nossa condição – animais conscientes do seu destino mortal – é fonte de angústia. A percepção da verdade de nossa condição é lucidamente descrita por Becker, em seu A Negação da Morte (2012), no que se segue:

“Este é o horror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia íntima pela vida e pela auto-expressão – e, apesar de tudo isso, morrer (p. 115-116)”.


Não quero me delongar sobre esse tema e se o retomei aqui foi para tentar elucidar a crença que acalento na ineficácia salvífica dos livros. Ainda que os cuidemos âncoras por meio das quais não vivemos à deriva, eles não nos livram de nos haver com nós mesmos e de nos confrontar com o ser-aí, ou seja, o mundo empírico, o ser absurdo. Nós, então bebês, quando arrancados do conforto e da segurança da condição da vida intra-uterina, fomos arremessados à existência, condição esta em que deixamos nua nossa fragilidade e nossa impotência para a sobrevivência por nossa própria conta. Sem o amparo e os cuidados dispensados por nossos pais (ou outros significativos responsáveis), morreríamos prematuramente. Se os livros não nos salvam de nossa conflituosa condição humana, ao menos eles nos ajudam a examiná-la, compreendê-la, fornecendo-nos as ferramentas necessárias para suportá-la.
São exatamente 16h 10 da tarde e não há sinal algum de que uma reconciliação entre nossos desejos de ventura amorosa será possível, pelo menos hoje.
Cuido-me uma pessoa ansiosa. Sofro tanto de ânsia quanto de ansiedade. Acho que devo discernir os dois conceitos. A ânsia pode ser definida tanto como desejo ardente quanto como um tormento espiritual causado por um sentimento de expectativa e incerteza. Muito embora confundida, quase sempre, no senso-comum, com a ânsia, a ansiedade, por sua vez, é, em psicanálise, definida como um estado de tensão emocional, que compreende sentimentos irrealistas de apreensão, angústia e medo. A ansiedade está na base da neurose. Convém acrescentar, sob pena de pecar na exatidão, que a ansiedade pode também incluir a percepção de um perigo real. Nesse caso, a ansiedade se chama ansiedade realista. Se, contudo, no estado de ansiedade, os perigos são desconhecidos pelo indivíduo, temos a ansiedade neurótica. Freud discrimina, tendo em conta cada fase da vida de uma pessoa, fatores que a determinam: a) o medo do nascimento; b) o medo de separação da mãe (que está na origem da histeria); c) o medo de castração (que dá origem a fobias); d) o medo do superego (que causa as neuroses obsessivas); e, finalmente, e) o medo da morte.
Antes de fazer incursão no terreno da neurose, circunstância em que eu me reconhecerei como uma pessoa neurótica (na verdade, todos somos, em alguma medida, neuróticos, mas desenvolverei essa discussão mais adiante), gostaria de referir e definir um tipo de ansiedade, que Freud chama ansiedade primordial, visto que me parece adequada para explicar a ansiedade inerente às minhas vivências enquanto adulto. A ansiedade primordial ocorre no bebê quando é separado de sua mãe ao nascer. Segundo Freud, esse evento primordial constitui a causa da repressão. Essa ansiedade, tal como definida por ele, parece acometer todos os bebês, mas, no meu caso, quiçá, ela possa ter sido mais dramática ou traumática. A essa altura, gostaria de que o leitor retivesse a ideia, que me parece bem estabelecida em psicanálise, de que viver é acumular traumas; ou, dito de outro modo, é impossível viver sem que nossa personalidade não seja afetada por traumas.  
Quando se deu a separação entre mim e minha mãe, por ocasião de meu nascimento, tive de ser conduzido urgentemente a uma mesa de cirurgia. Durante os primeiros seis anos de vida, várias separações se sucederam, dada a necessidade de realização de várias cirurgias e internações.
Um dos princípios previstos pela teoria psicanalítica de Freud consiste na ideia de que nosso passado exerce influência decisiva na formação de nosso psiquismo. Postula o pai da psicanálise que as experiências da primeira infância (que vai do 0 aos 3 anos de vida) vão ser determinantes da forma de nossas experiências psíquicas na fase adulta. Grosso modo, aquilo que nos tornamos, na fase adulta, será definido em nossas experiências primevas da primeira infância. Freud, aliás, resumiu bem essa condição, ao nos legar a frase: “A criança é pai do homem”.
Do exposto acima, se depreende que a criança sobrevive no indivíduo adulto. O adulto não deixa de “hospedar”, nas suas profundezas psíquicas, por assim dizer, a criança que um dia foi. De minha parte, as sessões de psicanálise que frequentei, em algumas ocasiões num passado não muito longínquo, contribuíram para amenizar os traumas da infância de minha alma. Reconheço, na verdade, que elas contribuíram fundamentalmente para me libertar de um estado aterrador de depressão, que eu arrastava na alma durante anos. A depressão é uma síndrome, já que reúne vários sintomas, entre os quais abatimento físico (tristeza, fadiga), ideias ou tentativas de suicídio, perda de interesse, de amor-próprio e desolação.
Observei, mais acima, que todos somos neuróticos em alguma medida. E Teles (2004) vem em socorro dessa ideia, ao nos ensinar:

“(...) todos nós temos nossos traços neuróticos, todos temos momentos ilógicos, por menores e mais invisíveis que sejam. Todos temos medos, inseguranças, conflitos, ansiedades, sentimentos de culpa. Todos usamos os recursos dos mecanismos de defesa para proteger o nosso ego, a nossa auto-estima (p. 21)”.


A autora, logo em seguida, nos chamará atenção sobre o confronto necessário de nossa condição com a realidade dura do mundo:

“A verdade é que temos que crescer e enfrentar a realidade e a hostilidade do mundo, mas, no fundo de nós, habitará sempre a criança impotente diante de um mundo, de uma natureza e de um infinito que não compreende. Habitará sempre em nós a consciência de que nada é permanente, de que tudo morre, deteriora-se e passa, até mesmo nós (ib.id.)”.


Ao enfocar, doravante, a neurose, terei sempre em conta a forma como me envolvo nas experiências afetivo-amorosas. São muitas as teorias sobre neurose (Teles, 2004, p. 22). Karen Horney, por exemplo, entende que os conflitos neuróticos seriam produtos da repressão da agressividade infantil, fato este que desencadearia a ansiedade básica, que persistiria e impregnaria a personalidade do indivíduo adulto. Por ansiedade básica, a psicóloga culturalista entende o sentimento de impotência e de solidão, que se origina na infância, em face de um mundo considerado hostil. A criança, impotente e solitária, confronta-se com o mundo que considera hostil.
Para Teles, há, na neurose, um desacordo, uma discrepância entre o “eu real” e o “eu ideal”. A autora refere várias características do comportamento neurótico, entre as quais estão: sentimentos de insatisfação difusa, insegurança, inadequação, inferioridade, inibições exageradas, tensão, conflitos sem solução, dependência constante da aprovação e do afeto de outrem e excessiva proteção contra todos e contra tudo (p. 28).
O comportamento neurótico é desencadeado sempre que, irrompendo um desacordo entre o eu e o mundo, o indivíduo não é bem sucedido na busca por recursos que restaurem a conciliação entre ambos. A neurose pressupõe um comportamento em descompasso com a dinâmica dos comportamentos aceitos ou bem avaliados com base nos padrões culturais de uma sociedade. A pessoa neurótica, observa Horney, buscará solucionar seus conflitos, mas ao fazê-lo, as medidas tomadas serão menos satisfatórias do que as dos demais indivíduos. Essa busca é feita à custa de muito dispêndio de energia e de grandes sacrifícios para a personalidade. Horney, em A personalidade neurótica de nosso tempo (p. 22), define a neurose como um distúrbio psíquico decorrente de medos e defesas empregadas contra esses medos, distúrbio que se caracteriza por tentativas de buscar soluções para os conflitos.
Uma constante nas neuroses são os conflitos. Eles se dão no interior do eu do indivíduo, em grande parte inconscientemente. Os conflitos incluem o medo e a agressividade, os sentimentos de culpa e a necessidade de amor (que pode tornar a pulsão sexual em obsessão). Desses conflitos resulta um estado constante de ansiedade, que se acompanha de perturbações físicas ou mesmo de entorpecimento emocional, caso da depressão. O doente neurótico ignora os desejos recalcados. Por recalcamento, entende-se um tipo de repressão completa, isto é, a proibição à representação de uma pulsão (em geral, sexual ou agressivo) na consciência. Os conteúdos recalcados, ou seja, afastados completamente da consciência (por serem causa potencial de desprazer ou punição) permanecem inconscientes.
É possível também pensar a neurose, como o faz Freud, como uma doença da libido. Nesse caso, ela surge como consequência da ruptura do equilíbrio entre a libido e o eu. A neurose é, assim, um fracasso do recalcamento. Ainda que eu pudesse me esforçar por desenvolver um pouco mais essa ideia, tal me levaria muito longe. Há vários tipos de neurose e eu não suponho padecer de vários tipos, evidentemente. Um tipo, entretanto, me despertou a atenção; trata-se da neurose objetiva. Nela o conflito psíquico se exprime por sintomas considerados compulsivos (ideias obsessivas, compulsão à realização de atos penosos, ritos, etc.), mas também por um pensamento submetido à ruminação mental, à dúvida e a inibições de toda sorte. Por vezes, me apercebo de que fico a ruminar ideais que provocam muita ansiedade, a alimentar dúvidas que engendram muita insegurança e medo. Essas ideias estão quase todas ligadas às experiências sexuais-afetivas ou amorosas.
Neste instante mesmo, em que o silêncio entre mim e ela permanece intocável, esforço-me, na elaboração deste texto, por domesticar minha ansiedade, por defender-me contra o medo que ela envolve. Há dúvidas que me fustigam a alma, nesse momento; e receio saber a verdade sobre a condição de nosso relacionamento de amor promitente.
A relação que a criança estabelece com seus pais, nos primeiros anos de vida, exercerá um papel importante também nas escolhas amorosas em sua fase adulta. O indivíduo, portanto, então adulto, buscará nas suas escolhas amorosas a forma da relação amorosa experienciada com seu pai e sua mãe. Essa relação amorosa acabará por ser um modelo para as suas experiências amorosas futuras com outrem.
Ainda implicada na questão da neurose, há que se destacar a importância da tendência neurótica. Ela diz respeito à organização de tendências que visam à segurança máxima do eu, quer no sentido de aproximar-se das pessoas, quer no sentido de afastar-se delas, quer ainda no sentido de opor-se a elas.
Decerto, os livros não nos salvam. Não nos livram de nossas tendências neuróticas. Eles não impedem a nossa infelicidade, as nossas decepções, não evitam nossos embaraços, tampouco nossos medos. Pelo menos, no entanto, eles nos munem do conhecimento indispensável para manter-nos conciliados com o mundo ou com nossa libido.
Eis um princípio básico da psicanálise, enunciado por Freud, e que o leitor não pode esquecer: o homem não é o senhor de si. Freud escreveu, na verdade, “O eu não é o senhor em sua própria casa”, visto que sua vida consciente é determinada por forças inconscientes que lhe são ignoradas e que lhe escapam ao controle. Ou seja, não somos senhores absolutos de nossos atos; uma grande parte das causas de nosso comportamento é desconhecida. Não estamos totalmente no controle de nossa vida psíquica. O eu não é o responsável por todos os seus pensamentos; há pensamentos que assomam à consciência que não são de responsabilidade do "eu".
Algumas palavras sobre o inconsciente se fazem necessárias, doravante. Para Freud, o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, é sua natureza mais íntima e mais estranha. Trata-se de uma realidade muito desconhecida de nós. Embora possamos pensar o inconsciente lançando mão da metáfora do iceberg, de modo que a parte maior, que fica submersa, corresponde ao inconsciente, ao passo que a parte menor, que fica à tona, é a consciência, importa entender o inconsciente como uma hipótese psicanalítica, pela qual se explica a estrutura da vida emocional do indivíduo. Por outro lado, o inconsciente é também um sistema lógico que opera na mente das pessoas. Ele é estruturado como uma linguagem (Lacan).
O inconsciente é o próprio psiquismo, é a base fundamental da vida psíquica; nele se encontra concentrada a totalidade da energia libidinal. Como é no inconsciente que se encontram as representações e desejos recalcados, ele é o próprio recalcado. Freud supunha que nossa vida psíquica consciente é inteiramente determinada pelo inconsciente. Duas ideias me parecem fundamentais para que compreendamos o inconsciente: a primeira é que ele é desconhecido de nós; o que foi recalcado não nos é acessível; as forças que atuam sobre o eu, forças inconscientes, nos são estranhas. A segunda ideia toca ao fato de que, no inconsciente, os conteúdos de nossas vivências pessoais jazem reprimidos e esquecidos. Como o inconsciente é responsável por determinar nossa vida psíquica consciente, o eu não pode ser senhor de sua casa, não pode estar no domínio pleno da estrutura psíquica. Toda a atividade do inconsciente tende para o prazer e busca evitar o desprazer. O inconsciente é regido pelo princípio do prazer.
E já são sete horas desta noite que segue arrastando minhas dúvidas e cozinhando-as na caldeira de meu coração. Receio não conseguir considerar a problemática do sujeito psicanalítico, questão cujo desenvolvimento seria indispensável à compreensão do sujeito como necessariamente cindido. Basta dizer que o sujeito não pode ser pensado e definido fora do âmbito da linguagem. Ele é um sujeito situado no domínio social e, como tal, se constitui na relação com o outro (pelo imaginário) e com o Outro no campo da linguagem. O “Outro” (com maiúscula) é uma categoria proposta por Lacan e compreende não só o adulto mais próximo, mas também a estrutura de significantes dessa ordem social e cultural que ele encarna – ordem estruturada por ideologias, valores, significações. Esse Outro pertence à ordem do simbólico. Esse Outro é a estrutura material e simbólica dessa ordem social e cultural (que, como disse, se constitui de valores, crenças, significações, ideologias, etc.). O outro (com minúscula), por sua vez, é o meu ego alterado, é um alter-ego, no qual projeto minha própria imagem. É nesse outro que o eu encontra uma imagem idealizada de si mesmo. O sujeito da psicanálise é sujeito do inconsciente. Ele se constitui numa relação simbólica com o Outro e imaginária com o outro. Esse Outro do inconsciente me determina como sujeito. Saliento que esse Outro que me determina como sujeito, que é o Outro do inconsciente e que encarna toda uma ordem social e/ou cultural, é desconhecido de mim como sujeito.
Agora, começarei a tatear uma questão que se me apresenta emaranhada. Eu não sou a pessoa suficientemente competente para avaliá-la, é claro. No entanto, em alguns lampejos de consciência, seus contornos me parecem nítidos. Trata-se da questão da sexualidade. Começo logo rechaçando o equívoco em reduzi-la ao coito. Também não pode compreender apenas zonas erógenas e órgãos sexuais. Não se reduz ao prazer do sexo. Em psicanálise, a sexualidade toca à totalidade dinâmica do ser humano, definindo-o tanto como organismo físico quanto como ser psíquico. A sexualidade penetra-lhe o ser mesmo.
A energia que está na base dos impulsos sexuais chama-se libido. Os sintomas neuróticos funcionam como formas de satisfação substitutivas dos desejos sexuais recalcados. Na sublimação, as pulsões sexuais são desviadas do objeto sexual e orientadas para atividades socialmente valorizadas (trabalho, arte, literatura...). Segundo Freud, toda sociedade exige de seus indivíduos sacrifício de seus instintos sexuais em favor do trabalho ou de outras atividades elevadas socialmente.
Sinto que recaiu um véu, neste instante, sobre o curso da história do desenvolvimento de minha sexualidade. Eu é que lanço este véu, quer porque esteja cansado, quer porque me custa me deter a pensar sobre ela. O leitor, quiçá, não esteja mais frustrado do que eu. 

quinta-feira, 3 de março de 2011

O outro escondido em nós

             

Freud e a condição humana
  Quem é o homem?



     Gostaria de principiar este texto, convidando o leitor a pensar no quanto, nós, seres humanos, somos esquisitos, estranhos e absurdos. Quantas pessoas conhecemos que se mostram insatisfeitas com tudo? Quantas pessoas conhecemos que vacilam entre ação e omissão? Quantas pessoas não conseguem explicar os seus sentimentos? Quantas pessoas não sabem o que desejam? Veja-se o que nos ensina o psiquiatra Fábio Herrmann. O trecho foi colhido de um artigo que se acha no livro da série primeiros passos, da companhia círculo do livro.

“(...) os homens divertem-se demais com os próprios pensamentos. São os únicos bichos, ao que se sabe, tão estúpidos que podem ficar imaginando e esquecer-se de comer; e, o que é pior, quando pequeninos e famintos, parece que conseguem ficar sonhando que estão a comer e contentar-se algum tempo com isso (...)”.
(pp. 53-54)


Quando preguei meus olhos nesse excerto, dei-me conta, com estúpida satisfação, de que eu me identifico com os homens que se distraem com seus próprios pensamentos e se esquecem de se alimentar. Se, por um lado, a razão e o intelecto conferem-nos uma posição especial na filogenia das espécies; por outro lado, parece que nos tornam seres bem estúpidos, na medida em que oferecem aos nossos impulsos primários substitutos de espécie vária, enganando-nos a nós mesmos por alguns instantes.
Reza a psicanálise que os homens se negam a reconhecerem-se como agentes responsáveis pela criação do mundo. Esse mundo domesticado, fabricado, transformado incessantemente, produto do desejo humano, gera irritabilidade nos próprios homens, justamente no momento em que se dão conta de que esse mundo corresponde bem ao seu desejo. Estranho? Freud explica.
A psicanálise ensina-nos que os homens não sabem bem o que desejam, que eles não desejam realmente o que querem. Nosso verdadeiro desejo, como se verá, permanece inconsciente, conquanto se manifeste sob outras formas à vida psíquica. Convém atentar para as palavras de Fábio Herrmann a seguir:

“(...) O mundo edificado por nossa cultura humanizou-se tanto, no sentido de ser tão fabricado, que sua sombra, o lado desconhecido do desejo humano, acabou por aparecer mais do que devia. O real começou a ficar um tanto duvidoso, e o homem a ver-se, a malgrado seu, cada vez mais absurdo para si mesmo.”

A psicanálise se ocupará com o estudo do inconsciente, visando a contribuir para que o homem, apercebendo-se do absurdo que o constitui essencialmente, reconcilie-se com esse absurdo e consigo mesmo. Uma leitura rápida em qualquer texto que trate de psicanálise nos levará à compreensão de que a consciência humana é determinada por impulsos inconscientes, ou seja, a vida consciente é determinada pela vida inconsciente. Agimos motivados por forças que não dominamos e das quais não estamos conscientes.
A essa altura, convém referir as três fontes de sofrimento humano, segundo Freud. Leia-se o seguinte nesse tocante, em O mal-estar na cultura (2010):

“O sofrimento ameaça três lados: a partir do próprio corpo, que, destinado à ruína e à dissolução, também não pode prescindir da dor e do medo como sinais de alarme; a partir do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças superiores, implacáveis e destrutivas, e, por fim, das relações com os outros seres humanos”
(pp. 63-64)

Em suma, o sofrimento humano advém de três fontes: da fragilidade do corpo; da força destrutiva e inexorável da natureza; e dos conflitos das relações sociais.


O animal humano

A razão, a linguagem e a cultura são instâncias do universo humano responsáveis por atribuir aos homens um lugar de destaque na cadeia evolutiva. Diferenciamo-nos, fundamentalmente, das demais espécies animais porque somos capazes de falar, de fazer cultura, de pensar, de ter consciência da morte, de ter, enfim, autoconsciência.
Um ser humano, ao nascer, já encontra um mundo fabricado que veio antes dele, cabendo a ele adaptar-se a esse mundo para poder sobreviver. A despeito da especialidade do ser humano, todo bebê, ao nascer, é frágil e vulnerável. Ele não consegue prover sozinho sua própria alimentação, não é capaz de se defender contra os perigos do mundo real; ao contrário, a maioria dos animais é auto-suficiente ao nascer. O animal é dotado de instintos, mas não o homem: este tem impulsos, reflexos, necessidades, reunidos sob o rótulo de pulsões. Para sobreviver, os seres humanos precisam passar por vários  processos de aprendizagem ao longo da vida. Os animais já estão condicionados geneticamente para procriar na época adequada, para buscar seu alimento, etc. O homem tem impulso para sobrevivência, é potencialmente capaz de sucção (reflexo necessário para ingerir o leite materno), necessita de alimentação, etc, mas para satisfazer às suas necessidades de sobrevivência terá de aprendê-lo.
Os homens aprendem a sobreviver em contato com as normas e regras de sua sociedade que, através de processos formativos educacionais, vai “lapidando” a criança, adaptando-a ao meio social complexo, já então construído antes de seu nascimento. Os homens, pela aprendizagem, que é um processo pelo qual se modifica o comportamento na experiência, ajustam-se à estrutura de sua sociedade. Convém dizer que o animal, como orangotangos e chipanzés, por exemplo, também podem aprender, mas são menos capazes para tanto, porque lhes falta a capacidade de raciocínio, própria da espécie humana. Também, aqui, há que reconhecer o papel da linguagem, no processo de adaptação da criança à sua sociedade. Nesse tocante, dá-nos a saber a psicóloga Maria Luiza Teles, no livro da mesma série:

“(...) se a criança usa uma palavra ligada ao sexo, em nossa cultura, ela é reprovada com uma cara fechada, uma bofetada, palavras de repressão ou mesmo um castigo. Ela aprende, então, três coisas: que a palavra não deve ser dita; que, se for dita, será considerada uma agressão; e, ainda, que o sentido implícito, sexo, não é algo bem aceito em sua sociedade”.
(p. 21)

Conquanto a humanidade se orgulhe de faculdades como a razão e o pensamento, dever-se-á notar que a psicanálise ensina que a consciência não pode tudo e que ela representa uma pequena parte da estrutura psíquica humana. Freud, aliás, ensinou que o “eu” não é “senhor de sua própria casa”. Foram três os golpes sofridos por nosso narcisismo:

1) Copérnico provou que a Terra não era o centro do universo, abalando a crença antropocêntrica, segundo a qual os homens são o centro do mundo;

2) Darwin mostrou que os homens descendem dos primatas e os reduziu, assim, apenas a um estágio da cadeia evolutiva das espécies, e não seres especiais criados por um Deus para dominar a natureza;

3) Freud mostra que o eu não é o senhor de sua vida psíquica e que a consciência é uma pequena parte do complexo mental.

No que toca ao abalo 3), é interessante notar que há pensamentos que não são de responsabilidade do ego (eu). Muitos pensamentos escapam ao seu controle.




O inconsciente

Do que se ocupa a psicanálise? Em geral, percebemos uma preocupação constante dos psicanalistas com os sonhos; de fato, os sonhos constituem um meio importante para se chegar à compreensão de outra realidade. Essa outra realidade, que é o objeto de estudo da psicanálise, chama-se inconsciente. O inconsciente só é acessível através de um método de interpretação psicanalítico desenvolvido por Freud. Esse método consiste em levar o paciente a fazer associações entre palavras ou lembranças. O psicanalista diz ao paciente uma palavra e pede que este diga a primeira palavra que lhe vem à mente. Em geral, o paciente reage às palavras, deixando de pronunciar a que lhe vem à mente, censurando-a por algum instante. Circunstâncias há em que o paciente fica muito agitado e fala muito, quando da associação das palavras. Por esse método, busca-se compreender a vida inconsciente do paciente.
Antes de discorrer sobre o inconsciente, cabe notar que as experiências e lembranças que podem ser trazidas à consciência em algum momento se dizem pré-conscientes. O inconsciente abriga, assim, os estados mentais que não podem ser recuperados, a saber, trazidos à consciência em circunstâncias normais.
O que é o inconsciente? É uma hipótese teórica e não uma coisa localizada no fundo de nossa cabeça. É um sistema lógico que, em tese, opera em nossa mente. Esse sistema explicaria os motivos que nos impelem a agir e reagir de tal ou qual modo. O inconsciente constitui-se, assim, de forças que impulsionam a vida mental. Essas forças ou pulsões dizem respeito a necessidades básicas do organismo humano, tais como fome, sexo, curiosidade, etc. O inconsciente apresenta uma lógica diferente: nele cifra-se o que, pela interpretação psicanalítica, busca-se decifrar. Essa interpretação visa a explicar o processo que deu origem a uma ideia ou ação.
Um conceito importante para a compreensão do inconsciente é a repressão. Experiências ou pensamentos que se mostram incompatíveis com os padrões sociais tendem a ser reprimidos, ou seja, afastados da consciência. O eu foge a eles. Trata-se de um mecanismo de defesa mediante o qual uma pessoa busca evitar conflitos interiores.
As pulsões do inconsciente estão, assim, reprimidas, visto que a sua manifestação, em geral, são contrárias às normas de boa educação e da civilização. Por exemplo, um desejo forte de pintar a sala com fezes, comum entre as crianças, se realizado, causaria espanto e punição social. Assim, tal desejo precisa ser disfarçado (sublimado) e censurado, para que não chegue à consciência.
No tocante aos sonhos, Freud, ao tentar compreendê-los, assumiu o pressuposto de que eles fazem sentido, embora esse sentido nos esteja velado. O procedimento adotado pelo pai da psicanálise era o seguinte: considerando várias partes de um sonho, levava o sonhador a associar ideias e lembranças. Assim, pôde concluir que os sonhos dizem respeito a acontecimentos do dia anterior e, ao mesmo tempo, estão relacionados a comportamentos de nossa primeira infância. Os sonhos são formas de linguagem simbólicas, materializados em imagens. Para Freud, todo sonho é uma tentativa de realização do desejo. É somente pela interpretação das palavras, dos sonhos, das lembranças e gestos do paciente que se tem acesso à sua vida inconsciente.
Deve-se ficar claro que, ao contrário do que acredita o senso-comum, Freud, embora tenha dado especial destaque à sexualidade, conceito que foi por ele ampliado, na explicação dos fenômenos psíquicos, é errôneo dizer que ele procurou explicá-los, por uma espécie de reducionismo, pelo papel do sexo na vida dos homens.  A sexualidade, portanto, passou a recobrir toda forma de prazer que envolve o corpo. Ensinou que os bebês encontram prazer, primeiramente, nos estímulos orais (fase oral) e, posteriormente, nos estímulos anais (fase anal). Também coube a ele advogar que o menino sente desejo sexual pela mãe (complexo de Édipo), ao mesmo tempo em que teme a castração pelo pai.
O que Freud defendeu foi que as repressões encontram origem na primeira infância (até os cinco anos) e são, basicamente, de natureza sexual. Vou desenvolver esses pensamentos na seção seguinte.




O aparelho psíquico

A estrutura de nossa mente se organiza em três instâncias: o ego, o id e o superego. O ego é o “eu”, portanto, a consciência. É a sede de quase todas as funções mentais. É o ego o responsável pelo contato com a realidade exterior. É ele também responsável pelos atos mentais, tais como perceber, pensar, julgar, etc. O ego é submetido aos desejos do id e à censura do superego. Sua realidade fundamental é a angústia, já que, não podendo manifestar os desejos do id, que o tornariam imoral e destrutivo, e não podendo submeter-se totalmente ao superego, sob pena de enlouquecer, precisa adequar-se à realidade do mundo (o ego se guia pelo princípio de realidade), para não ser aniquilado. O ego, portanto, busca objetos que satisfaça o id, sem transgredir as imposições do superego.
O que são o id e o superego? O id é um substrato inteiramente inconsciente, dele provêm as pulsões. É a instância original da psique; ao nascer, segundo Freud, o indivíduo é todo id, que é reorganizado à medida que esse indivíduo é submetido aos processos formativos de sua sociedade. O id é constituído de pulsões, que são os impulsos e desejos inconscientes. A mente humana se estrutura de tal modo que busca evitar o desprazer; nossa vida psíquica é regida pelo princípio de prazer: buscamos experimentar o prazer constantemente. O id é a energia que impulsiona a busca pelo prazer. As pulsões são de natureza sexual e elas são designadas pelo nome libido. O id é um reservatório da libido. A sexualidade não se restringe, assim, ao ato sexual, mas compreende todos os desejos que exigem satisfação e podem ser satisfeitos em qualquer parte de nosso corpo.
O superego, a seu turno, é uma espécie de juiz social; é a voz da censura e da repressão interiorizada na psique por força dos processos formativos impingidos pela sociedade. Particularmente, o superego representa a repressão sexual. O superego é consciência moral e se manifesta por meio de interdições e proibições que dada cultura impõe ao indivíduo. O superego forma-se entre os 6 e 7 anos e o início da puberdade. Embora aja como uma consciência moral, o superego é fundamentalmente inconsciente.
A psicanálise reza que muitas doenças psíquicas e distúrbios de comportamento estão em nossa sexualidade na tenra infância. Freud apontou três fases da sexualidade infantil. Essas fases estão relacionadas ao desenvolvimento do id entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos. A primeira fase é a fase oral. Nessa fase, o desejo e o prazer estão na boca e na ingestão de alimentos, e o seio materno é objeto de prazer (ou um de seus substitutos, a saber, a chupeta, a mamadeira ou o dedo). A segunda fase é a fase anal, na qual a criança sente prazer na excreção e na retenção das fezes. Nessa fase, os objetos de prazer e o desejo estão ligados ao órgão genital masculino, ou seja, ao falo. O menino e a menina só reconhecem o falo, nessa fase. A mãe torna-se o objeto de prazer do menino; e o pai, o da menina.
É na terceira fase que surge um fenômeno que determina toda a vida psíquica, a saber, o complexo de Édipo (suponho que o leitor conheça a tragédia de Édipo). O complexo de Édipo é o desejo incestuoso da criança pelo pai ou pela mãe. Esse desejo é que determinará a totalidade de sua vida psíquica, a saúde dela depende do modo como atravessamos essa fase que, em geral, é conflituoso. O complexo de Édipo acarreta o surgimento de outro complexo, denominado de complexo de castração. Esse complexo explica o temor da criança de perder o falo ( e cabe lembrar que as meninas imaginam que também o possuem) como punição pelo desejo incestuoso pelos progenitores.
Gostaria de volver, antes de encerrar, à angústia do ego. O ego cumpre um papel importante na vida psíquica, visto que a ele cabe recalcar os desejos demasiado fortes do id, satisfazendo ao imperativo do superego. O recalcamento é, pois, uma repressão forte imposta pelo ego ao id, evitando que as pulsões deste cheguem à consciência. No entanto, cabe ao ego também satisfazer o id, sob pena de viver um profundo e constante desprazer. Nossa vida consciente normal e saudável é resultado dessa dupla função do ego, desse equilíbrio produzido por ele, quando busca interditar os desejos arrebatadores do id e, ao mesmo tempo, limitar o poder do superego. O inconsciente oferece à consciência formas compensatórias de experimentar o prazer. O substituto oferecido pelo inconsciente satisfaz o id e o superego. Constituem substitutos a chupeta, o dedo, tintas, pintura, uma pessoa amada no lugar da mãe ou do pai, além dos sonhos, lapsos, atos falhos, etc. Através deles, realizam-se os desejos inconscientes de natureza sexual. O sonho, o ato falho e os lapsos de memória indicam que nossa existência não se dá ao acaso, nossa vida é determinada (daí o determinismo assumido por Freud, segundo o qual todo evento tem uma causa) pela natureza da libido. Em nossa vida psíquica, os objetos e as pessoas se revestem de sentido afetivo-sexual, são alvo de nossa adoração ou ódio, ou são objeto de nosso temor, sem que o saibamos.
Ao mencionar o papel dos substitutos para a satisfação do id, descurei de observar que o recurso pelo qual o inconsciente oferece alternativas à satisfação do id e do superego, dá-se o nome de sublimação. Na sublimação, os desejos inconscientes são satisfeitos, pois que transformados em outra coisa valorizada positivamente: obras de arte, ciência, religião, filosofia, ações éticas, etc.
As palavras de Marilena Chauí põem termo a este texto e nos lembram que a consciência é frágil, mas, porque dotada de vontade e razão, decide aceitar ou abalar as opiniões e ideias estabelecidas:

“A consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco de desvendar e decifrar o inconsciente. Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento de que somos um caniço pensante”.


domingo, 14 de novembro de 2010

Amo quando me sinto significado no coração do outro

 

                          Amar o próximo como a si mesmo?


No capítulo quinto do livro O mal-estar na civilização (2010), Freud convida-nos a refletir sobre a lição evangélica de sentido universal que, para ele, é anterior ao próprio cristianismo, Amarás o próximo como a ti mesmo. Sua argumentação se estriba em alguns pressupostos que convém conhecermos, pois que eles dão sentido ao desenvolvimento dela. São eles:
a) Os seres humanos são naturalmente agressivos; há uma inclinação natural do homem à agressividade;
b) A vida civilizada ou aculturada constitui um meio de que se serviram os homens para coibir seus instintos agressivos;
Tais pressupostos podem ser confirmados, se atentarmos para os dois excertos a seguir tomados a Freud, no referido trabalho.
“O ser humano não é uma criatura afável e carente de amor que, no máximo, é capaz de se ofender quando é atacada, mas que ele pode contar com uma cota considerável de tendência agressiva no seu dote de impulsos. Por esse motivo, o próximo não é apenas um possível objeto sexual, mas também uma tentação para se satisfazer nele a agressão, explorar sua força de trabalho sem recompensá-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, apropriar-se de seus bens, humilhá-lo, causar-lhe dor, torturá-lo e matá-lo”.
(p. 124)
“A cultura precisa fazer de tudo para impor limites aos impulsos agressivos do homem, para deter sua manifestação através de formações psíquicas reativas”
(p. 125)
Freud, ao cabo deste último excerto, cita o famigerado pensamento do filósofo inglês Hobbes – “O homem é o lobo do homem”, com vistas a avalizar a sua tese. O autor também nos lança um desafio, ao nos perguntar:
“quem, a partir de todas as experiências da vida e da história, terá coragem de contestar essa máxima?”
(idem).
Decerto, a História da humanidade está repleta de exemplos do poder destrutivo dos instintos agressivos dos seres humanos; escusa elencá-los; mas também não rareiam os casos em que são patentes os sentimentos de caridade, de filantropia, de amor desinteressado. Poderíamos argumentar que a perspectiva de Freud é reducionista ou unilateral. Sucede que o que está em questão aqui é: por um lado, a crença de Freud em que a agressividade está alicerçada na estrutura psíquica humana; portanto, essa agressividade é universal; por outro lado, a crença em que nossos instintos agressivos são domados mediante os mecanismos repressores e disciplinadores da cultura. Na perspectiva de Freud, as práticas de amor são experiências a que somos induzidos, com repressão. Destarte, segundo o psicanalista
“(...) o emprego de métodos que têm o propósito de estimular os homens a identificações e relacionamentos amorosos de meta inibida, daí as limitações da vida sexual e daí também o mandamento ideal que ordena amar o próximo como a si mesmo, e que realmente se justifica pelo fato de nenhuma outra coisa se opor tanto à natureza humana original”.
(p. 125)
Enquanto escrevo, o Fantástico exibe reportagens sobre casos de agressão a idosos e a bebês (estes últimos são vitimados, não raro, pelo próprio pai). Em outra ocasião, assisti, pela televisão, a grupos de estudantes desferindo socos e pontapés uns nos outros, numa cena de selvageria lastimável . Certamente, esses fatos constituem fortes argumentos para validar a tese de Freud; mas, ainda assim, devemos levantar uma questão: os homens são, como Freud acreditava, naturalmente, agressivos ou, senão toda, grande dose de sua agressividade poderia ser colocada na conta da sociedade? Essa é uma questão que o autor nos suscita. Deixemo-la em aberto, por ora.
Volvamos ao amarás o próximo como a ti mesmo e nos detenhamos na interpretação que Freud faz dessa máxima. De um modo geral, o argumento de Freud consiste em fazer ver que o amor é um bem muito valioso que não pode ser desperdiçado. Para Freud, a consciência de que entre mim e o outro há uma relação filogênica, ou seja, de que ambos somos seres humanos, ambos compartilhamos da mesma dignidade humana, não é suficiente para que eu possa amá-lo. Escreverá Freud:
“O meu amor é algo valioso para mim, que não devo desperdiçar sem prestar contas. Ele me impõe deveres, que devo estar disposto a cumprir com sacrifício. Se eu amar uma pessoa, ela deve merecê-lo de algum modo (...). Ela o merece se, em aspectos importantes, for tão parecida comigo que eu possa amar a mim mesmo nela; ela o merece se for mais perfeita do que eu, de modo que eu possa amá-la como ideal de minha própria pessoa; tenho de amá-la se for filho de meu amigo, pois a dor de meu amigo, quando algum sofrimento o atinge, também seria a minha dor, e eu teria de partilhá-la”.
(pp. 119-120)
O autor preconiza que não podemos amar um estranho, alguém com quem sequer temos afinidade, com quem sequer compartilhamos uma história afetiva, experiências de sentimentos de benquerença. Convém destacar dois aspectos na argumentação de Freud, como fora desenvolvida no excerto acima: por um lado, parece-me clara uma disposição narcísica para manifestar amor, ou seja, o que amo não é o outro, o que procuro amar no outro não são as suas qualidades, os seus atrativos, mas a mim mesmo refletido nele; por outro lado, de maneira paradoxal, a disposição para amar é motivada por um sentimento de solidariedade, como no caso do filho do amigo, a que o autor se referiu.
O cenário que nos apresenta Freud é caracterizado pelo egoísmo, pelo individualismo: o estranho, segundo o autor, antes de merecer amor, merece desprezo e mesmo ódio, visto que ele mesmo não parece demonstrar amor por seu “próximo”. Os homens, na perspectiva de Freud, tendem à imoralidade; estão sempre dispostos a tirar proveito de alguma situação que se lhes apresente favorável. Não obstante sua posição, o autor confessa-nos:
“Se esse grandioso mandamento dissesse “Amarás o teu próximo como o teu próximo te ama”, eu não protestaria”.
(pp. 121-122)
Aqui, ele abre-nos mais um caminho longo para cultivar férteis reflexões, pois que, implicitamente, nos diz que amar implica reciprocidade. Cabe lembrar que, até o momento, sequer levantei a dúvida acerca do conceito de amar entrevisto na máxima em torno da qual venho desenvolvendo este discurso. Decerto, não se trata do amor sexual, tampouco do amor maternal ou paternal. Trata-se de um amor que pode ser definido como um sentimento que nos inclina a fazer o bem e jamais prejudicar quem quer que seja. A medida desse amor se avalia na quantidade de lágrimas que derramamos, caso o objeto de nossa benquerença morra. Decerto, a dor que sinto pela morte de um mendigo ou de qualquer outro estanho não é comparável à dimensão da dor que experimento na morte de um ente querido. Há laços afetivos cuja intensidade e solidez a máxima do Amarás o próximo como a ti mesmo não é capaz de recobrir.


O social está em nós


Em face do universo frio e insensível de Freud, o que dizermos ao nos deparar com as seguintes palavras, colhidas do livro A sociedade individualizada (2008), de Zygmunt Bauman?


“Aceita”, “compartilha”, “dignifica” – dignificada pelo ato de compartilhar e pelo acordo franco e tácito de respeitar é o que é compartilhado. O que chamamos de “sociedade” é um grande aparelho que faz apenas isso; “sociedade” é outro nome para concordar e compartilhar, mas também o poder que faz com que aquilo que foi acordado e compartilhado seja dignificado”.
(p. 8)




Decerto, não é possível existir sociedade sem acordo, sem compartilhamento; ao mesmo tempo, cabe à própria sociedade dispor de mecanismos que garantam a sustentação desse acordo. Bauman nos ensinará serem as sociedades “fábricas de significados” (idem), donde se segue que todas as nossas experiências sociais são fundadas em significados e se orientam por eles. Nossa condição humana sofre, contudo, de um embaraço: por um lado, somos arremessados a uma sociedade que veio antes de nós, ou seja, que pré-existia à nossa própria existência e que continuará a existir após a nossa morte; por outro lado, nossa condição é autotranscendente; somos seres que se inclinam à transcendência e que não encontram outro modo de viver, senão pela busca de transcendência, que consiste numa forma de desafiar a própria vida. Diferentemente dos animais, somos seres conscientes da morte; sabemos que vamos morrer. Não há possibilidade de sentido e de felicidade fora da sociedade. Se, por um lado, ela se nos apresenta como uma entidade supra-individual infensa à realização de nossa felicidade, não há possibilidade de experienciá-la fora de seus limites. Nossa felicidade depende, fundamentalmente, dos vínculos sociais.
Em Amor Líquido, no capítulo intitulado de Sobre a dificuldade de amar o próximo, Bauman retoma a reflexão de Freud sobre a máxima do Amarás o próximo como a ti mesmo e a orienta no sentido de enfatizar o amor a si mesmo. Vou apresentar, de imediato, a tese do autor, que se exprime nas palavras seguintes:


“(...) para termos amor-próprio, precisamos ser amados. A recusa do amor – a negação do status do objeto digno do amor – alimenta a auto-aversão. O amor-próprio é construído a partir do amor que nos é oferecido por outros. Se na sua construção forem usados substitutos, eles devem parecer cópias, embora fraudulentas, desse amor. Outros devem nos amar primeiro para que comecemos a amar a nós mesmos”.
(p. 100)
(grifo meu)



O amor-próprio, segundo Bauman, constitui um fundamento para a própria sobrevivência humana. O autor nota que os animais não precisam dele para viver. É esse fundamento que torna a vida humana diferenciada. Assim, fazendo eco a Freud, escreverá: “o preceito do amor ao próximo desafia e interpela os instintos estabelecidos pela natureza, mas também o significado da sobrevivência por ela instituído, assim como o do amor-próprio que o protege” (p. 99).
Para Bauman, “aceitar o preceito do amor ao próximo é o ato de origem da humanidade” (p. 98). Está clara a importância conferida pelo autor à moralidade. Lançando outro olhar sobre o preceito, Bauman buscará nele a expressão da importância de considerar “a singularidade de cada um” (p. 101).
Depois de encerrar o capítulo anterior, ensinando-nos sobre a influência reificadora do mercado consumidor no modo como experienciamos nossas relações afetivas, o autor nos convida a pensar no valor do amor como ingrediente indispensável à força de vida, à vontade de sobreviver, de existir. Suas ideias vêm em socorro de minha tese, já esposada em outros textos, segundo a qual amar é estar vulnerável. Para mim, há dois ingredientes que tornam o amor um sentimento que vai na contramão de qualquer pretensão individualista: a reciprocidade e a vulnerabilidade. Lêem-se as palavras de Bauman:


“Se os outros me respeitam, então obviamente deve haver “em mim” – ou não deve? – algo que eu lhes posso oferecer. E obviamente existem esses outros – não existem? – que ficariam satisfeitos e gratos por isso lhes ser oferecido. Eu sou importante e o que penso e digo também é. Não sou uma cifra, facilmente substituída e descartada. Eu “faço a diferença” para os outros além de mim. O que digo e sou e faço tem importância – e isso não é apenas um vôo da minha fantasia. O mundo à minha volta seria mais pobre, menos interessante e promissor se eu subitamente deixasse de existir ou fosse para outro lugar”
(p. 101)



O prazer de sentir-se amado decorre da consciência de que nossa singularidade é reconhecida, admirada e desejada pelo outro. É a consciência de que fazemos a diferença na vida daquele que é nosso objeto de amor que nos torna felizes.
A proposição de Bauman – vale reiterar, segundo a qual só posso amar a mim mesmo na medida em que me sinto amado pelo outro – semeou-me algumas ideias. Uma delas é que o autor lança-nos um desafio; deveras, um desafio à ideologia individualista que reza a necessidade de valorizar a si mesmo em detrimento do outro, de reservar a si mesmo o posto mais alto das prioridades da vida. Sucede que, em matéria de amor, não há espaço para a centralidade do ego. Se todos assumirem o amor-próprio como um fundamento para se precaver contra as desilusões das experiências amorosas, viveremos uma vida emocionalmente miserável; cheios de brio, encouraçados num sentimento de auto-suficiência, fazendo nossas emoções orbitarem em torno do ego, mas arrastando uma existência atolada num lamaçal de solidão.
Não é possível amar com armadura; para amar, é preciso despir-se; não de nossas roupas, que vestimos e retiramos com facilidade; mas dos sentimentos que nos enganam, pois que semeiam em nossa mente a crença de que evitar os vínculos afetivos basta; no entanto, não basta, é como uma anestesia, seu efeito há de passar. Superado o estado de anestesiamento, sentimo-nos dispostos a beber da fonte inesgotável do amor, pois só ele é capaz de nos restituir a alegria inocente e cândida, que residia em nossos sonhos de infância.
A pessoa cheia de si é vazia e se perde em seu vazio, porque, simplesmente, se esquiva ao fato de que nossa condição de seres mortais e de seres desejosos de sentido impõe-nos o desafio da transcendência. Estar consciente da morte é também estar consciente do envelhecimento – uma das vias de acesso a ela. Quem haverá de querer envelhecer sozinho? Se a morte é inevitável e inexorável, e se ela arrebanhará a todos, inclusive aqueles a quem tanto amamos e com os quais compartilhamos nossas experiências afetivas mais densas, mais significativas, mais viscerais, que homem ou mulher não desejará percorrer o breve caminho de sua existência encontrando, em toda noite, fria ou estrelada, enluarada ou sombria, nos braços de um amor, o conforto de sua lassidão, o recôndito de sua angústia, o jardim florido de sua tristeza?
Decerto, aprendo a amar a mim mesmo, porque fui amado por outros, com quem construí uma existência significativa. Esses outros são, evidentemente, nossos pais, nossos irmãos, nossos tios; enfim, todos aqueles que compõem a nossa família. Amo-me, porque fui amado nos seios de minha mãe, porque fui neles nutrido, porque eles proveram meu alimento e dele aproveitei a energia necessária para que eu suportasse uma existência que não fora escolhida por mim.
Bauman nos leva a pensar sobre o amor que não se encerra nos limites do ego, sobre um sentimento transcendente que proclama a comunhão de singularidades; o amor pressupõe dois; se concentrado no desejo centrípeto do ego, converte-se num sentimento ardiloso, pois que nos convence da ideia de que o regime ditatorial do ego nos basta.
O amor talvez seja isto: uma nau que nos permite navegar nos mares da existência cujas ondas se derramam e beijam a morte. E não queremos que esse beijo sele uma vida desencantada!