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quarta-feira, 7 de março de 2012

"Se estivermos sempre de acordo, é sinal de que nos acomodamos" (BAR)

                                    

                                                Conche
                                   E a felicidade da filosofia
                                             Reflexões incipientes sobre ser filósofo e ateu

Coloquei uma pilha de livros junto a mim. Terminei de ler um capítulo de um deles e, tão-logo iniciara a leitura de um capítulo de outro livro, inquietaram-me “vastas tempestades elétricas cerebrais” (Nicolelis, 2011: 55), a que chamamos de “pensamentos”. Eis aí a definição neurocientífica de pensamento. Longe de representar a experiência fenomenológica que temos de pensamento – experiência esta de base simbólica (pela força do signo) -, essa definição encerra a base neurofisiológica do pensamento. Não é este tema que me ocupará nesta nova oportunidade que tenho de escrever. Vou-me ocupar com reflexões sobre o testemunho de Marcel Conche, em seu livro Análise do Amor (livro cuja leitura recomendo a todos que me leem).
A grande maioria de meus textos que divulgo neste espaço dá testemunho da aturada convivência que tenho com os livros. A leitura me fertiliza os pensamentos. E os trechos de Conche, sobre os quais recairão minhas reflexões, vêm a propósito justamente num dia em que, há pouco, ocupava-me a alma a robusta ideia do direito que tem a voz ateísta de também fazer-se massivamente presente nas redes sociais de relacionamentos virtuais. Apercebi-me de que abundam, naqueles espaços on-line, mensagens de inspiração religiosa. Também, nós, ateus, temos o direito de manifestar nossas posições, através de pensamentos nossos ou alheios, de postagens com imagens (embora não depreciativas) que representem a(s) verdade(s) ocultada(s) pela religião.
O texto de Conche é, como dizia, um testemunho de seu amor à filosofia, um testemunho de como se tornou filósofo, de como a filosofia contribuiu significativamente para que ele se desafogasse do emaranhado de ideias, crenças e convicções lapidadas no obscurantismo, na ignorância, na falsidade da tradição cristã de que ele foi herdeiro. Assim é que, em suas palavras confessionais, plasmei uma imagem de mim. Sentia-me representado nas experiências em que ele estivera envolvido e que tratava de representar com aquelas palavras. É disso, pois, que tratarei, ao procurar reler este texto, ou melhor, parte dele. Os trechos que citarei constam do capítulo Tornar-se grego, no qual Conche conta-nos sobre sua descoberta dos sábios gregos, a cujos conhecimentos deve não só o reconhecimento do valor humano da filosofia, mas a assunção de sua condição de ateu. Sim, Conche se reconhece ateu no momento mesmo que descobre a filosofia, mormente o espírito filosófico dos gregos antigos.
Cuido poder, agora, enunciar minha tese, que tem a forma que se segue:

A superação do pensamento religioso-místico só é possível pela descoberta do espírito filosófico.

Entendo por espírito “consciência”, ou, se preferirem, “pendor”. E por que falo em “descoberta” desse pendor filosófico? Nesse tocante, minha tese é consonante com a posição de Conche, que será por mim aqui explicitada e (re)pensada. Estou de acordo com Conche quanto ao fato de o normal no homem é viver indagando, questionando, entregando-se ao exame crítico do mundo em que vive. Por isso, todos nós somos filósofos em potencial. Todos os indivíduos, sempre que lhes são dadas as condições necessárias, são capazes de descobrir esse “espírito filosófico” adormecido em sua mente. É o que sucedeu comigo, com Conche e, provavelmente, com todos que se decidiram pelo valor da razão.
Leiamos o trecho com que Conche inicia o capítulo, já referido acima:

“Filosofar parece-me a única atividade normal do homem: do homem qualquer, entendo, sem gênio particular, mas também do homem de gênio (do artista, do poeta) na medida em que é, vivo ou moribundo, um homem como outro; porque  o que é normal para o homem não é – não é simplesmente – comer, beber, dormir, amar, coisas que os bichos também fazem, não é viver – limitar-se a viver – nem trabalhar para comer e comer para viver, mas é não viver sem refletir, isto é, sem se perguntar o que faz no mundo, o que é o mundo, o que significa a vida – em suma, o que é normal para o homem é não viver sem filosofar (...). Vou contar agora como se tornar filósofo: para mim significou tornar-me grego”.

(p. 103)
(grifo meu)

Lendo este trecho de Conche, rememorei momentos remotos da minha vida (talvez, não tão remotos assim, embora por tê-los abandonados, mo pareçam) em que escrevia com desgosto pela superficialidade das vivências sociais. Em meus escritos mais antigos, eu demonstrava minha insatisfação com a convivência com pessoas psicologicamente superficiais, que vivem à superfície da vida, que, existindo, limitavam-se a boiar em seu cotidiano intelectualmente infértil. Sentia-me profundamente deslocado, dessituado. Faltava-me  conseguir afinidade intelectual, o que não encontrava nas pessoas com quem conversava. A solidão daqueles tempos fecundou-me exuberantemente o espírito, mas, ao mesmo tempo, apartou-me das convivências diárias com certas pessoas, visto que nelas não encontrava eco de intelecto que me atraísse, tão-só os assuntos de sempre, triviais e cansativos. Esse sentimento de desconforto, esse desagrado de que me imbuía inspiraram-me o pensamento “Há sempre um livro entre mim e o outro”. O leitor poderá compreendê-lo melhor agora quando resgato vivências passadas. É possível que construa outros sentidos para ele; mas eu, com ele, pretendia anunciar: convivo com pessoas para as quais o livro é um estranho, sendo eu também um estranho para elas. O leitor poderia também interpretar o livro como um silêncio que intermediava a minha relação com o “outro” (que não tem face, que poderia ser qualquer um). Sinto que, se eu me aventurar a pensar sobre o que escrevi, sobre os pensamentos que registrei no papel, iniciarei um vasto e doloroso processo de escavação de meu ser, ou desse “eu” que é um conjunto de imagens de si, que mudam e que são contraditórias. Ensinou-me isso o psicanalista J. D. Nasio, em seu livro Meu corpo e suas imagens (2009). Isso parece confirmar a verdade sobre nossas intuições de nós mesmos: o “eu” que não é senão uma “entidade imaginária”, uma ficção de nosso cérebro; este “eu” nos escapa, e isso explica o sentimento que temos dele como algo inexplicável. Nós não nos entendemos, desconhecemos, em profundidade, esse “eu” imagético. Convém voltar às reflexões de Conche.
Conche mostrará a importância da filosofia na formação do indivíduo como um todo complexo. Lembrar-nos-á que o indivíduo “é antes de mais nada produto de uma coletividade em que, por uma educação de caráter tradicional, não racional, ele é formado para a particularidade, tão longe da singularidade” (ibid.id.). A singularidade é alcançada tornando-se filósofo. A essa altura, num claro movimento polifônico, evoca as vozes que nos ensinam sobre a atitude filosófica, melhor seria, sobre o que é ser filósofo. Não me canso de insistir sobre essa atitude, visto que ela determina a forma como escolhemos viver: conformados ou inconformados? Resignados ou revoltados? Tolos ou argutos ? Desinteressados ou comprometidos? Alienados ou atentos? Escreverá o autor, na mesma página:

“O filósofo terá de se tornar singular e, para tanto, terá de romper com os juízos prontos, com os valores estabelecidos, com os imperativos de uma sociedade fechada, por ter feito a escolha da razão, isto é, do universal.A razão espera, em cada um de nós, que a escolhamos; ela é o poder de rejeição, de questionamento, de liberdade, inerente a cada um de nós. Porque todo indivíduo humano tem vocação para se tornar filósofo; e, no entanto, tornar-se um homem filósofo, a pressão da coletividade é tamanha que isso não acontece”.
(ibid.id.)

O século XX, após testemunhar as duas Grandes Guerras, foi também uma época marcada por acentuados questionamentos sobre o valor e o poder da razão. Parece-me que, nos dias atuais, as tempestades efusivas de ataques à razão tenham encontrado um ponto de descompressão. Estamos mais sóbrios, mas conscientes dos limites, das pretensões da razão; há esforços contínuos no sentido de discutir, por exemplo, a problemática gerada pela aplicação da tecnologia nas ciências, pela influência do que ficou conhecido por razão instrumental (objeto de crítica do filósofo Jürgen Habermas) – aquela que, servindo ao estabelecimento de meios para alcançar fins determinados, acarreta a dominação técnica do mundo, destituindo o bem de sua autonomia, que passa a ser submetido às regras que entram em jogo na dominação técnica do mundo natural -,etc.
Conche não deixa de nos lembrar a importância da razão como condição para a compreensão de nós mesmos e do mundo em que vivemos. A despeito das suspeitas lançadas sobre a razão – suspeitas que as religiões organizadas adoram alardear, para depreciar o compromisso racional que os homens tem com o mundo – ainda continuaremos a falar da razão (ou razões), que é produto histórico, porque o mundo social, natural e nossas ações fazem sentido. Onde houver a busca pelo sentido, haverá a voz da razão. A razão é, então, esta condição que nos permite compreender como se constrói os sentidos do mundo. A razão nos habilita a produzir sentidos, explicações, a compreender o mundo. Disso se segue que não falta razão aos religiosos, tampouco aos sistemas de crenças que defendem; afinal, tais sistemas procuram produzir um sentido para o universo, para a vida humana, para as relações humanas (ainda que falso). Vale dizer que o sentido na religião se trama na fantasia; só pela razão crítica é possível desconstruí-lo. Não obstante, tanto ateus quanto religiosos exibem uma atitude racional em face do mundo (embora estes últimos não o façam quando se comprometem em defender a doutrina a que aderem). Chauí, à página 84, de seu Convite à Filosofia, dá-nos a saber o seguinte:

“(...) A atitude racional de conhecer a realidade não é senão o trabalho do pensamento para apreender, compreender e interpretar o sentido das coisas, dos fatos, das ideias, ações e valores humanos. É esse ideal do conhecimento que é conservado quando continuamos a falar em razão”.

A razão permite-nos interpretar e conhecer a realidade pelo exercício do pensamento elaborador e reflexivo. A razão permite-nos construir o sentido das coisas. Nos sistemas religiosos, contudo, a razão perde autonomia, está submetida a representações da fantasia, da imaginação. Ela serve à produção da ficção. Ela é sufocada em face de construções (discursivas) de modelos de mundo imaginário. Nesse domínio, a razão se deturpa, se contamina por ideias ou crenças (já que só crenças nos movem, fazem nos comportar de uma dada maneira, por elas lutamos, e muitos de nós por elas morremos) que vão determinar a estruturação de nossos raciocínios. Estudos científicos mostram como nosso cérebro pode aceitar como verdadeiras ideias ou crenças que, libertos das pressões de determinadas formas de “lapidação social”, consideraríamos indubitavelmente falsas.
Doravante, importa ver qual não foi meu sentimento de cumplicidade com autor nas experiências que, nos trechos a seguir, nos relata. Veja-se como a voz da razão bramiu do interior de seu ser. O autor nos confessa ter nascido num ambiente católico, mas a herança cultural que recebera deixou de satisfazer o seu espírito questionador.

“Tendo nascido num país cristão, numa família católica, enquanto, de um lado, meu poder de reflexão despertava e minha vocação filosófica se revelava desde o início da minha adolescência, de outro, eu me via confrontado com as noções de “Deus”, “alma”, “imortalidade da alma”, “pecado”, “arrependimento”, “amor ao próximo”, etc., que, por efeito da pressão e da impregnação educativas haviam adquirido uma espécie de evidência”.
(p. 104)

“A pressão e impregnação educativas” ainda mantinham firmes minhas crenças religiosas, na adolescência. A descoberta do espírito filosófico deu-se em mim mais tardiamente. No entanto, o sentimento de verdadeira libertação do obscurantismo religioso, experimentado por Coche, me foi o mesmo. Preciso dizer que, a despeito de conservar minha crença em Deus, ainda na adolescência, manifestava, sempre que podia, severas críticas à doutrina e às posições da Igreja. Parecia-me ser possível (como o é para muitos ainda que acreditam em Deus) a cisão entre Deus e Igreja, de sorte que eu podia crer em Deus sem defender a Igreja e sua doutrinação (sempre que esta era tomada para parâmetro de avaliação de questões sociais sérias, como o aborto e o uso da camisinha). Sem me delongar nesse tocante, a descoberta por mim da filosofia foi determinante do abandono de uma tradição que me condicionou a aceitar ideias e crenças sem examiná-las com rigor racional. Escreve-nos Conche:

“(...) minha razão me premia a afastar a ideia de transcendência. O sofrimento das crianças, considerado mal “absoluto”, pareceu-me constituir um argumento invencível a toda e qualquer teodicéia. Como Deus sem Providência me parecia inconcebível, afastei a noção de Deus. Vi-me ateu, para grande satisfação da minha razão, talvez também para minha satisfação pessoal”.
(ib.id.)

A razão, em mim, rugiu e tomou o lugar honroso que lhe cabia. Na página seguinte (p. 105), Conche patenteia-nos o significado do cristianismo:

“O cristianismo havia significado e significava para mim o sofrimento: o sofrimento da razão, porque a ideia de Deus não é clara, as “provas” não provam, os testemunhos são duvidosos, os milagres impossíveis – mas eu tinha posto fim a tal sofrimento afastando a ideia de Deus, que agora eu sustentava que só tinha sentido se se admitisse a Revelação, logo apenas para e pela fé; em seguida, o sofrimento da alma e do coração, por eu me viver como um “pobre pecador”, isto é, sempre com uma ideia deprimente de mim mesmo”.

Desejo me deter um pouco neste trecho, porquanto entendo repercutir ele vivamente em meu espírito. É o que eu sentia também, nos momentos mais tenebrosos e aterradores de minha depressão. A imagem do “eu” que construía era demasiado negativa, aviltante. Às visões cristãs do homem, do mundo, da existência mesma pecaminosa do homem, devo as interpretações distorcidas e punitivas que eu fazia de mim mesmo. Entendamos isso. Conche nos ajuda a compreender o cristianismo como religião do sofrimento, por um lado; e religião da culpa, por outro. Nunca me esqueço do momento em que, iniciando a missa, o padre convocava a multidão a bradar em uníssono “somos culpados e reconhecemos nossa culpa”. Não me lembro exatamente da forma das expressões, ou seja, como os enunciados eram proferidos, mas a prática discursiva ainda me lembra: éramos instados a reconhecer que somos pecadores e culpados pelos nossos pecados e devíamos ali pedir perdão a Deus. O sentimento de culpa, no cristianismo, deve ser constantemente alimentado, martelado na cabeça dos fiéis, porque é esse sentimento que os mantém presos à crença na Igreja, como instituição porta-voz da Vontade de Deus, e no próprio Deus, como Juiz cósmico e absoluto. O sentimento de culpa causado pela natureza inalteravelmente pecaminosa do homem é o “arreio” que mantém preso e disciplinado o rebanho. Esse mecanismo de escravização da consciência, que consiste em infundir sentimento de culpa com vistas a conservar a adesão dos fiéis ao universo simbólico e ritualístico da sua religião (no caso especial, da religião cristã) não pode ser percebido como tal, já que ele é construção ideológica e, portanto, coerente com o sistema doutrinário e teológico, que lhe confere base explicativa. 
A doutrina capta um dos sentimentos que nós experimentamos, muita vez: o de culpa; mas ela também capta a consciência que temos de que tendemos a desobedecer a autoridades, de que tendemos a subversões, e também de que temos grande suscetibilidade às nossas paixões (somos coléricos, somos egoístas, ambiciosos, desejamos os excessos, etc.). Vejam-se os sete pecados capitais! Disso se segue que ela impõe a obediência irrestrita a Deus, ou a sua Vontade, exige muito de nós, em sacrifício de nossa natureza. Ela nos implode no íntimo (no ser), na medida em que coloca-nos imperativos que nossa natureza é incapaz de seguir, como “amar a Deus sobre todas as coisas” ou “amar ao próximo como a si mesmo”.
Insisto sempre que o cristianismo se desenvolveu com uma retórica que promove o aviltamento da condição humana. Donde se segue o anunciar que somos pecadores desde o início dos tempos. O cristianismo é a religião do excesso ou extrapolação do imperativo moral. Não nego seu valor na construção de nossa moralidade ocidental, mas quero fazer ver que, em certa medida, suas exigências excedem os padrões humanos, ou melhor, excedem os limites de nosso senso moral (que se desenvolveu, em parte, para alguns, no longo processo da evolução natural). A moralidade pode ter raízes evolutivas na espécie humana, mas claro é também que seu desenvolvimento depende de processos formativos pela cultura.  E quero insistir em que a Bíblia, se lida cuidadosamente, não pode servir de parâmetro para a moral de homens justos que vivem no ocidente do século XXI.
No cristianismo, sofrimento é uma virtude. Isso é patente quando ouvimos ou lemos coisas do tipo “o sofrimento nos faz crescer”, “o sofrimento nos fortalece”. Há, na ideologia cristã, dignidade em sofrer. Cristo encarnou essa dignidade. É ele a figura central graças à qual essa concepção pôde tornar-se o pilar da fé. O sofrimento de Cristo é um exemplo de sofrimento para os cristãos. Com a mesma força e resignação com que Cristo suportou seu suplício até a morte pela crucificação, também os cristãos deverão enfrentar seu sofrimento, seus percalços. Na lógica cristã, não devemos nos revoltar com o sofrimento que nos acomete, devemos aceitá-lo, devemos nos resignar a ele e devemos nos sentir conformados na consciência de que o merecemos, porque somos pecadores. O sentimento de culpa mantém-nos resignados ao sofrimento, porque ela fornece uma justificativa coerente. Somos culpados pelo nosso sofrimento - eis a lógica cristã: o reconhecimento da culpa ou mesmo a necessidade obsessiva de nos sentirmos culpados nos leva a aceitar o sofrimento.
A fé não se abala com o sofrimento; ao contrário, ganha mais força. Isso já foi notado por homens mais competentes do que eu, mas não nos deixa de surpreender até hoje. A fé estará sempre divorciada da razão, nesse sentido, porque não nos permite entender que o sofrimento não nos torna dignos, não nos beneficia, que todo esforço da vida segue no sentido de evitá-lo. Não há, definitivamente, recompensa alguma em sofrer. Não há benefício no sofrimento. A fé não nos permite ver isso. A razão prescreve: "se algo não lhe serve para livrá-lo do sofrimento, dispense-o!" A fé, ao contrário, prescreve: “ainda que algo não lhe sirva para afastar ou evitar o sofrimento, não o dispense, agarre-se a ele com mais força”. Isso explica porque encontramos ainda hoje aqui e ali masoquistas cristãos que se flagelam. O cristianismo é a religião do culto ao sofrimento e da dor. Assim, o cristianismo ensina que o sofrimento é justo, porque pecamos e só podemos chegar a Deus pelo reconhecimento de que somos culpados. Só  pode, contudo, se inclinar a Deus aquele que se arrependeu, após ter se reconhecido culpado. Pecado-sofrimento-culpa-arrependimento esse é o caminho torturante e aviltante, único aliás, que nos leva a Deus. A consequência pode ser desastrosa para o psiquismo humano: o pecado, um flagelo psíquico; o sofrimento, o bem necessário; a culpa, uma auto-punição reconhecida; e o arrependimento, uma dor ofertada a ideia de Deus em sacrifício. O fiel se sacrifica, é ele também o cordeiro sacrificado para a adoração da ideia de Deus.
Conche, então abandona a religião, permitindo que a filosofia ocupe o lugar que antes era ocupado por aquela:

“(...) a filosofia significava para mim a felicidade e, dia após dia, me proporcionava tal felicidade”.
(ibid.id.)

Não era, entretanto, qualquer filosofia que lhe acarretou felicidade.  Era a filosofia de Montaigne, de Lucrécio, de Epicuro, dos céticos e dos pré-socráticos. Confrontada ao espírito religioso, o espírito filosófico descoberto por Conche permitiu-lhe estimar o homem e o coração humano.

“(...) Montaigne considerava Sócrates uma figura mais elevada do que Jesus Cristo; constatei que, sendo o evangelho impotente para modificar o coração do homem, não havia cristãos de fato; perguntei-me enfim se havia sentido em propor, como Jesus Cristo, um ideal impossível aos homens. (...) senti crescer minha estima pelo homem e pelo coração humano.”

(p. 106)
(grifo meu)

Conche seguirá meditando sobre o significado de “tornar-se grego”. Observará, no decorrer de suas meditações, que há muitas filosofias gregas e que teve, por isso, de escolher umas por exclusão de outras. As preocupações do filósofo que daí se seguem não me interessarão aqui.
A esta altura, e intentando pôr um  termo a este texto, posso apresentar algumas conclusões a que se pode chegar após a leitura deste texto:

1a) clara está a influência que os livros exercem na minha formação intelectual e humana; clara está a minha intimidade com os livros, a minha insistência em recorrer a eles como espaços de abertura para o diálogo com o leitor;

2a) Uma posição ateísta bem fundamentada depende de que esteja nela pressuposto um espírito filosófico. Dele depende sua consistência. Lembro que a filosofia desanuviou-me a consciência, abrindo caminhos para que eu me tornasse ateu;

3a) Tanto a descoberta do espírito filosófico quanto a adoção do ateísmo tiveram uma repercussão muito benéfica em minha alma. Tanto uma quanto outra infundiram em mim um sentimento de profunda libertação e felicidade;

4a) Não há demérito em abandonar um conjunto de crenças e convicções sedimentadas na consciência por força de uma longa tradição cultural, para assumir um sistema de visão de mundo contrário, que nos pareça vantajoso ou útil.

A tradição não pode nos determinar, não pode ditar quem somos ou seremos. Ela não pode servir, para todos os atos de nossa vida, como parâmetro inquestionável.  Não é porque cresci e me formei numa tradição que me inculcou valores e crenças aparentemente coerentes sobre como o mundo funciona que tenho eu, forçosamente, que me agarrar a ela até a morte. Comportar-se, assim, é rejeitar a possibilidade de descobrir o espírito filosófico em si. É evitar avançar na compreensão mais profunda e sólida do mundo (eu diria “mais verdadeira”).É preciso ousar! É preciso desconfiar, ao menos uma vez, para descobri-lo. Eu ousei! Eu decidi por outros valores: não mais a Bíblia e seus discursos que, hoje, descobri resultarem de falsificações e fabricações por escribas inescrupulosos; e sim o saber filosófico com seus vastos jardins de reflexões.
Não mais o dogmatismo, mas o exercício do pensamento livre e crítico. Não mais as respostas prontas que dizem “verdades” insuspeitas, mas as questões; as dúvidas mais do que as certezas definitivas; o debate racional e equilibrado, e consistente, mais do que a pregação cansativa, as ladainhas e a martelação dos dizeres cristalizados, dos clichês vazios e enfadonhos.
Para uns, posso parecer enfadonho e desagradável; para outros, interessante e admirável. Não pretendo agradar a todos; não sou mais cristão! Ou não traz o cristianismo ainda um sentido universalizante, a saber, a pretensão de ser uma religião universal - e única verdadeira? Não sou mais o dono da verdade, não detenho verdade, mas esforço-me por buscá-la onde quer que ela esteja; julgo válida a empresa; por isso também a religião tornou-se-me dispensável e somente quando eu a abandonei repousei minha alma na felicidade filosófica.







quarta-feira, 31 de agosto de 2011

"Se a morte é inevitável, a felicidade é necessária" (BAR)

                               

                           A felicidade
             Reflexões para a maturidade



      Quem quer que suponha que eu não sinta certa inquietude no momento exato em que me ponho a lançar sobre o papel minhas concatenações verbais equivoca-se redondamente. Quem quer que suponha que eu não sinto dificuldade para expressar com a devida coerência a complexidade das nebulosas de pensamentos que vão, não sem muito custo espiritual, tomando formas palpáveis e límpidas, à medida que vou dedilhando este teclado, está igualmente equivocado.
      A inquietude e a dificuldade experimentadas decorrem da seriedade com que desempenho tão laboriosa tarefa: escrever para fazer-me sentir e compreender. Uma manhã que começou ensolarada cedeu aos ventos atormentados que prenunciavam a mudança do tempo. Não tardou para que o azul do céu fosse dissipado pelo acúmulo de nuvens densas de água. Uma chuva fina caía dolorosamente como se estivesse sendo espremida pelo céu. Não sei que haja outra atmosfera favorável ao recolhimento do espírito aos espaços abertos pelas palavras. Creio ser o clima convidativo para longínquos vôos espirituais.
            Penso não errar ao dizer que todo o labor filosófico consiste em pôr em debate nossas crenças comuns, nossas opiniões correntes e quase nunca questionadas. Penso ainda não errar ao afirmar que a atividade filosófica é trabalho de reflexão sobre conceitos. Eu poderia valer-me de uma autoridade como Deleuze para assegurar a validade dessa afirmação, mas já o fiz em outra oportunidade. Por isso, ficarei satisfeito se o leitor não objetar ao axioma já referido e que exprimo nestes novos termos: a filosofia é trabalho espiritual sobre conceitos.
           Não precisamos ser especialistas em filosofia para saber que toda pergunta iniciada com o que é...? é fundante em todo empreendimento filosófico. Sabemos que Sócrates inquiria seus conterrâneos sobre o que eram muitas coisas: o que é a virtude?; o que é a liberdade?; o que é a justiça, etc. Sabemos também que a palavrinha “ser” (é) foi, ao longo da vasta história da filosofia ocidental, muito cara aos filósofos. A pergunta com “ser” é a pergunta sobre a essência mesma das coisas. No entanto, como em matéria de filosofia as respostas não são tão importantes como as perguntas, ao perguntarmos sobre o quê das coisas, estamos mais preocupados com o processo discursivo, racional de avaliação e justificação de nossas afirmações, crenças sobre o mundo.
          Acrescentaria ainda mais: a filosofia ousa questionar o óbvio. Tudo que nos é óbvio raramente é (re)pensado. É óbvio que somos livres, porque não estamos encarcerados ou mantidos em cativeiro. É óbvio que o amor é preferível ao ódio, e assim por diante.
      Então, eu gostaria de convidar o leitor a refletir comigo sobre a felicidade. Lembro aqui a lição do filósofo Daniel Dennett, segundo a qual importa aos filósofos a forma como a pergunta é feita, já que os filósofos se destacam por ser grandes perguntadores. A capacidade de perguntar é o que os notabiliza. Começo, pois, com a pergunta clássica: o que é a felicidade?
            Não nos apressemos. Não convém tentar respondê-la com declarativas simplistas, tais como a felicidade é isso ou aquilo. Desde já, quero que saiba o leitor que eu não vou me delongar nas alusões ao pensamento de filósofos sobre o tema. Não quero abarrotar a sua cabeça com meditações de outras mentes que, embora reconhecidamente dignas de referências e reverências, poderiam inibir ou tornar pouco produtivas nossas reflexões. No entanto, penso ser um bom caminho inicial a posição de Aristóteles, ao pensar a felicidade como a satisfação experimentada pelo homem em seu íntimo quando se dá conta da harmonia entre suas atividades e os objetivos a que elas visam. Para o filósofo estagirita, a felicidade depende da realização do homem enquanto homem, ou seja, a realização de suas qualidades específicas, a saber, racionalidade, linguagem e sociabilidade.
       Gostaria de que o leitor retivesse essas três qualidades e percebesse a relação intrínseca entre elas, tendo ainda em conta que a linguagem é fundante, isto é, está na base da racionalidade e da sociabilidade.
     Aristóteles permite-nos situarmo-nos num terreno discursivo mais sólido, o que significa dizer que não vamos ficar a pensar a felicidade como algo abstrato, que dependa de uma comunhão do nosso eu com o astral ou qualquer dimensão metafísica imaginável. Por outro lado, também a felicidade parece estar associada a certos estados de serenidade espiritual, ou seja, estados caracterizados por ausência de preocupações. Práticas que contribuem para esvaziar o ‘eu’ como o budismo podem contribuir para a felicidade interior, mas certamente a felicidade não se reduz à mansidão.
          Há algum tempo, o programa Globo Repórter exibiu uma reportagem sobre pessoas que preferem viver apartadas do convívio social; pessoas que optam por velejar durante meses sozinhas em mar aberto. Mas havia pessoas também que, uma vez tornadas viúvas, ficaram acometidas de depressão em decorrência da solidão. Para essas pessoas, depois de muitos anos de casamento, a vida sem o parceiro amado as tornou muito infelizes. Decerto, o amor é uma fonte abundante de felicidade. E quando penso em amor o leitor deve inferir a palavra reciprocidade.
           A reportagem nos leva a pensar que a felicidade está intimamente ligada à sociabilidade. Em outras palavras, para muitos de nós, é difícil ser feliz sem estar em relação com os outros. Não podemos negar que nós somos seres para sociabilidade. Afirmar o homem é um ser social é afirmar o óbvio. No entanto, devemos ter em conta que nascemos dotados para a sociabilidade; digamos, temos uma natureza que se inclina à vida social. Mas ainda aqui teremos de nos defrontar com alguns problemas. Tenho de forçosamente trazer à cena um pouco do pensamento de Freud, em O mal-estar na cultura. Espero que o leitor paciente, porque creio contribuir para o bom encaminhamento das reflexões feitas até aqui. Antes de referir a posição de Freud, vale atentar para os pressupostos básicos de sua reflexão sobre a condição humana. Ei-los abaixo:

a) os homens são seres dotados de impulsos que visam à satisfação; uma grande dose desses impulsos são agressivos;

b) a cultura se funda na necessidade de repressão do impulso de Eros (prazer) e de Tanatos (morte);

c) é o programa do princípio de prazer que estabelece a finalidade da vida humana.

O princípio de prazer significa que o homem busca o prazer e se esforça para afastar o desprazer. Nesse tocante, nos ensinará Freud:


“(...) Esse princípio [o de prazer] comanda o funcionamento do aparelho psíquico desde o início; não cabem dúvidas quanto à sua conveniência, e, no entanto, seu programa está em conflito com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Ele é absolutamente irrealizável, todas as disposições do universo o contrariam; seria possível dizer que o propósito de que o homem seja “feliz” não faz parte do plano da Criação”
(pp. 62-63)

      
       Em o futuro de uma ilusão, Freud argumenta que todo indivíduo é inimigo da cultura e que esta é resultado de um esforço por conter-lhe as paixões, muito embora pare ele, indivíduo, se volte o interesse geral.
       O que devemos ter em conta é que: a) Freud não concebe o ser humano como inatamente propenso à fraternidade e ao amor, mas como um ser dotado de uma grande propensão à agressividade e à aversão social, sempre que seus impulsos não são satisfeitos como deseja; b) ele também entende a cultura como uma organização essencialmente repressiva, que impõe limitações à satisfação dos impulsos humanos.
        No mundo de Freud, a felicidade plena é inalcançável em virtude das próprias condições culturais da existência humana. Os seres humanos desejam a permanência do estado de prazer e dele não querem mais sair. No entanto, a cultura não pode, pela sua própria constituição repressora, tornar plenamente feliz esse homem que está destinado a ser permanentemente insatisfeito. Nesse sentido, Freud lança-nos de cara contra a nossa ilusão, ao escrever em O mal-estar na cultura:


“Aquilo que em sentido estrito é chamado de felicidade surge antes da súbita satisfação de necessidades represadas em alto grau e, segundo sua natureza, é possível apenas como fenômeno episódico. Toda permanência de uma situação anelada pelo princípio do prazer fornece apenas uma sensação tépida de bem-estar; somos feitos de tal modo que apenas podemos gozar intensamente o contraste e somente muito pouco o estado. Dessa forma, nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição. Muito menores são os obstáculos para experimentar a infelicidade”
(p. 63)
(grifo meu)



         Como se vê, Freud atribui à própria constituição humana (quer psíquica, quer fisiológica, quer social) a causa das limitações de satisfação de nossa felicidade. Mas devemos deixar esse aspecto - importante, decerto – de lado, para nos atermos ao que ele afirma sobre a experiência de infelicidade.
         A experiência é, sem dúvida, um terreno seguro para fertilizar quaisquer reflexões. É razoável que nos valhamos dela para buscar a confirmação da validade de nossas crenças, para sustentar alguma verdade em nosso trabalho argumentativo. Freud defende ser a felicidade um fenômeno episódico. E devo dizer que, antes de iniciar este texto, enquanto ainda formulava alguns pensamentos sobre o tema, ocorreu-me que experienciamos uma felicidade episódica. Muitos de nós parecemos concordar com a ideia de que são raros os momentos felizes na vida e que devemos aproveitá-los intensamente. Reunir toda a família no Natal está entre esses momentos de felicidade tão cara a nós.
     Custa-me aceitar pensamentos triviais como ‘a felicidade é já estar vivo’, ‘viver já é motivo de felicidade’, já que ignoramos completamente as condições socias de existência humana. Os homens, ao longo dos tempos, buscaram muitos caminhos para a felicidade, mas acredito que certas condições básicas são necessárias à felicidade, tais como alimentação, saúde, educação, moradia e lazer. Essas condições dependem também do alicerce familiar, do amparo e amor, primeiramente, de nossos pais, mas também de nossos avós, tios, etc.
     Sabemos que não basta estar vivo para sentirmo-nos felizes. O que dirá se você estiver preocupado com a possibilidade de perder o emprego? O que dirá se você tiver um ente querido hospitalizado, padecendo de uma doença incurável? O que dirá se você  tiver experienciado o legado da traição da pessoa que você amou e a quem dedicou grande parte de sua vida? O que dirá se você estiver com o coração dolorosamente afetado pelo desprezo da pessoa com quem você compartilha uma vida conjugal? O que dirá se você estiver enfrentando a triste e difícil situação de ver um filho sucumbir ao vício de entorpecentes? Em qualquer condição referida aqui, certamente, você não estaria feliz.
        Fico tentado a trazer à cena o valor incomensurável da experiência amorosa como uma fonte de felicidade abundante. Mas vou protelar essa intenção, por ora.
      Eu não disponho de tempo nem de espaço para avaliar, com a disciplina que nos exige uma reflexão séria, se há algum sentido de verdade na afirmação freudiana sobre a existência de menos obstáculos à infelicidade. Decerto, as relações sociais são uma das causas do sofrimento (e, portanto, da infelicidade) dos seres humanos apontadas pelo próprio autor . Não podemos escapar à infelicidade e ao sofrimento; mas podemos contar com pessoas que nos ajudem a enfrentá-los.
        No prólogo de A morte da Fé,  Sam Harris põe-nos diante de nossa condição humana, aos nos lembrar:


“Não sabemos o que nos espera depois da morte, mas sabemos que vamos morrer. Obviamente, deve ser possível viver eticamente – com uma preocupação genuína pela felicidade de outros seres sencientes – sem ter a pretensão de saber coisas sobre as quais somos absolutamente ignorantes. Considere o seguinte: todas as pessoas que você já conheceu, todas as pessoas que você viu passar na rua hoje, vão morrer. Todas as que vivem bastante sofrerão a perda de amigos e parentes. Todas perderão tudo que amam neste mundo. Até que isso aconteça, por que não desejaríamos ser generosos com todas as pessoas?
(p. 263)
(grifo meu)



              É possível supor que, para Freud, essa disposição para a generosidade não se daria sem alguma retribuição satisfatória, já que os homens, ao demonstrá-la, visariam a alguma forma de benefício recompensador exterior. No entanto, deixando de lado a concepção de Freud sobre a natureza humana, o que Harris nos ensina é pertinente à reflexão que até aqui vim desenvolvendo. O autor nos lembra que o sofrimento e a infelicidade estão à nossa espreita e que afetará a todos nós, homens destinados à morte. Resta-nos, entre o nascimento e a morte, a vida; e isso, certamente, é muito, se consideramos a possibilidade de que não poderíamos estar aqui para pensar sobre isso.
      Harris nos sugere que a felicidade é um sentimento que deve ser proporcionado, possibilitado aos que conosco compartilham suas vidas. Mas, decerto, ele vai mais além: defende que a felicidade deve ser extensiva a todos os seres humanos e devemos nos esforçar para fazer os outros (mesmo os que nos são estranhos) felizes.
       Não consigo deixar de pensar na distinção entre bem-estar e felicidade. Em nosso cotidiano, experienciamos, muito frequentemente, sensações de bem-estar. Desde que não sejamos acometidos de algum aborrecimento ou enfermidade, podemos gozar de períodos longos de bem-estar (físico ou mental, ou ambos). Mas a felicidade deve habitar as zonas mais profundas e íntimas do ser. Não tem ela nada de superficial, por isso não penso a felicidade como sentimento resultante da aquisição de riqueza material. Não está no acúmulo de dinheiro e de capital (imóveis, carros, etc.).
        Não creio que possamos ser felizes em longos estados de solidão. A consciência da morte, legado de nossa condição de seres de inteligência superior, de seres racionais, leva-nos a rejeitar longos períodos de solidão. Nosso próprio nascimento inaugura as possibilidades de uma vida destinada a relacionamentos. Se encontramos um bebê abandonado por sua mãe em algum canto por onde passamos, nosso instinto para a sobrevivência e para evitar a morte de um ser inocente e indefeso nos orientará a ação. Podemos levá-lo ao primeiro hospital que encontrarmos para que lhes sejam dispensados os cuidados devidos. Ora, a solidão desse bebê o levaria à morte. Sabemos que, para ele sobreviver, deverá contar com pessoas de bom coração que o alimentem, o vistam e o acolham. Ele deverá ser destinado à adoção e, sendo adotado (caso a mãe não possa ser localizada) por uma família que lhe possibilite as condições indispensáveis ao seu desenvolvimento físico, cognitivo e emocional, ele terá grandes chances de ter experiências de felicidade.
        Se, com Freud, no que estou de acordo, a felicidade é uma experiência episódica, se só nos resta experienciar momentos de felicidade e nunca a felicidade permanente, podemos viver momentos de felicidade plena. A experiência amorosa parece prová-lo. Quando amamos, sentimo-nos plenamente felizes. E o terreno de abundante felicidade está no desejo do outro e no desejo compartilhado com o outro. É que a felicidade do amor se ancora no interior. A comunhão favorecida pelo amor é, certamente, um sentimento fértil de felicidade. Diante dela, nenhuma riqueza outra tem valor suficiente para nos contentar.
      O amor permite-nos que sejamos felizes com a felicidade do outro; ao sentir o outro feliz, também nos sentimos felizes. As outras formas de felicidade tendem a ser egoístas, porque centradas no ‘eu’ que a experiencia. Mas, no amor, a felicidade que proporciono à pessoa amada é também a minha felicidade. Quem ama, afinal, sente felicidade ao dar-se conta de que o outro é feliz.
     É claro que o amor impõe-nos, por assim dizer, um desafio à experiência de felicidade, sempre fugaz e episódica. Esse desafio consiste em reconhecer que a felicidade é um bem que deve ser partilhado e comum, ou seja, extensivo a ambos os envolvidos; uma felicidade recíproca, em suma.
    No amor, esforçamo-nos para a realização da felicidade mútua, e não individual. Certamente, podemos amar e desamar e amar quantas vezes forem necessárias para sentimo-nos felizes na felicidade do outro. Se o amor não fosse uma fonte abundante de experiências de felicidade – e de uma felicidade essencial – ele não valeria sequer uma gota de tinta da pena de nossos corações desejosos de vida.
       A felicidade está para o amor assim como a vida está para a morte: há um vínculo necessário. Uma vez vivos, morreremos; enquanto vivos, desejaremos amar para sermos plenamente felizes.