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sexta-feira, 7 de agosto de 2015

"O conhecimento é uma chaga para a vida, enquanto a consciência é uma ferida aberta no âmago da vida" (Cioran)

                            

          A filosofia do desespero: o Nada e o Indivíduo [1]


Apresentação e Justificação

Inscrevendo-se no lugar de encontro entre a filosofia trágica e a filosofia pessimista, este projeto vincula-se ao programa de pesquisa em cujo escopo repousa a questão da inscrição do sagrado no pensamento filosófico contemporâneo, reconhecidamente afetado pelo niilismo, que será posicionado, no próprio trâmite investigativo, em cotejo com a metafísica cristã. Nosso intento consiste em investigar o modo como a hierofania (manifestação do sagrado) se inscreve no pensamento dos filósofos Sören Kierkegaard (1813-1855) e Emil Cioran (1911-1995), dois expoentes do que podemos chamar de filosofia do desespero. O instrumental conceitual de que nos serviremos para empreender nossa investigação será fornecido por Nietzsche e Heidegger, filósofos que, como patenteia Cabral (2014), abrem caminho para pensar a inscrição do sagrado na experiência niilista que profundamente marca a vida e o pensamento filosófico contemporâneos. A Nietzsche tomaremos os termos vontade de poder, diosinio, eterno retorno e além-do-homem, os quais, a despeito de suas especificidades semânticas, se enfileiram num campo hermenêutico que sustenta sua filosofia, enquanto filosofia de afirmação da vida. Todos esses termos dão testemunho do esforço empreendido pelo filósofo para superar o niilismo, cujas raízes ontológicas podem ser compreendidas pela consideração da questão da morte de Deus. Já em Heidegger, na medida em que a questão da reinscrição do sagrado se articula à verdade do acontecimento do ser enquanto tal, estaremos interessados em acompanhá-lo no percurso de seu método fenomenológico-hermenêutico, que lhe serviu para investigar a vida fática do ser aí humano. De modo algum, temos a pretensão, de resto infactível, de recobrir toda a extensão da analítica heideggeriana. Estaremos, por isso, interessados em, partindo do seu apelo a que se retome a questão do Ser em geral, acompanhá-lo em sua análise do Dasein (ser-no-mundo), naquilo que ela nos aproveita para a investigação do modo como o sagrado se inscreve e se ressignifica num pensamento que pensa o ser-no-mundo  a partir do lugar do desespero.
Urge dizer que a primeira questão que se nos apresentou de modo premente, antes mesmo de nos pormos a redigir este projeto, e que acena ao primeiro e fundamental desafio, consiste em como pensar a hierofania no interior de um pensamento filosófico que se faz na relação de um eu desesperado com um mundo esvaziado de qualquer sentido orientador. Não menos urgente é assinalar a importância que terá o conceito de modo de ser em nossa pesquisa. Nesse tocante, nossa investigação se norteará pela hipótese segundo a qual o niilismo, sobre o qual discorreremos mais adiante, enquanto acontecimento histórico e estrutural, foi decisivo para a produção do modo de ser próprio do homem contemporâneo: o homem desesperado. Daí a pertinência da questão sobre como é possível pensar a reinscrição do sagrado nessa existência desesperada.


  1. O Niilismo e a Morte de Deus

1. 1. O Niilismo como princípio de determinação

Principiamos com a observação de que, segundo Cabral (2014, p. 12)[2], o niilismo é um princípio de determinação da história ocidental. A morte de Deus, que é uma conjuntura do nosso tempo, por seu turno, revela a positividade do niilismo. Citemos o autor: o niilismo “é o acontecimento fundamental de nossa história atual” (p.16). Não perdemos de vista, com base em Cabral, o fato de que o niilismo não pode ser pensado reducionalmente em termos de deteriorização dos antigos princípios vinculativos (p. 23). Ainda segundo Cabral (p. 25), a caracterização negativa do niilismo que toma como causas os sintomas, quais sejam, “negação da instituição familiar, dissolução dos paradigmas políticos, rejeição da autoridade dos antigos saberes”, remonta ao romance do escritor russo Ivan Turguêniev.

“As interpretações hodiernas se mostraram insuficientes, pensando o niilismo como perda dos princípios vinculativos da tradição, e as interpretações não se preocupam em questionar a condição de possibilidade dessa perda. Sintomatológicas, elas gestaram diversas estratégias nostálgicas e remoralizadoras (...). Trata-se de assumir o niilismo como conjuntura atual do Ocidente e reconduzi-lo à sua condição de possibilidade” (Cabral, 2014, p. 26)


No esforço por repensar o niilismo, é indispensável, portanto, trazer à tona, na investigação, suas raízes ontológicas. O niilismo não se reduz às suas manifestações culturais. O que é preciso investigar é o lugar de determinação de sua essência.
A compreensão do niilismo como um fenômeno com raízes ontológicas torna razoável nossa hipótese de que ele contribui decisivamente para “produzir” um modo de ser característico do homem pós-moderno[3]: o modo de ser desesperado. A estrutura ontológica do mundo é abalada. O mundo não é mais a casa, o lar em que se encontra o homem. O mundo não mais se apresenta como um campo de sentidos sólidos, garantidos por uma heteronomia. A relação entre o homem e o mundo sofre uma irreparável fissura, através da qual irrompe no ser do homem o desespero. Essa relação entre o homem e o mundo passa a ser uma relação desesperada, uma relação em que o homem experiencia um excruciante abandono. Tome-se o que entendemos por “mundo”.
Note-se, de inicio, que sem linguagem, não há psiquismo, mas tão-somente processos fisiológicos, porquanto o que define o conteúdo da consciência são fatores sociais. A consciência se constitui do conjunto dos discursos que o indivíduo interioriza ao longo de sua vida. O homem aprende a compreender o mundo pelos discursos que interioriza e, na maior parte do tempo, os reproduz em sua fala.
O que chamamos de mundo humano não é somente a totalidade das coisas existentes como dadas à experiência sensorial humana. O conceito de mundo não se reduz, evidentemente, à noção de planeta em que habitamos.
O que é, então, o mundo? Num primeiro momento, realçando a importância da dimensão do simbólico na definição de “mundo”, podemos dizer que o mundo é um campo experiencial entretecido de significados em relação ao qual se constitui o homem e onde ele se conhece. O mundo só existe para o homem, porque é apenas para ele que esse mundo pode ser nomeado. O mundo é tudo aquilo que pode ser dito; é a totalidade ordenada passível de ser nomeada, de modo que as coisas só podem existir para uma consciência humana na medida em que são passíveis de receber um nome. Mas o vocábulo “coisas” designa não só os objetos materiais, acessíveis à nossa experiência sensível, mas também as entidades mentais, como ideias, sentimentos, entes imaginários, etc.
Não há existência possível para o homem fora da dimensão simbólica: tudo que existe para o homem tem um nome. Aquilo que não tem nome, em última instância, não existe, tanto no mundo exterior quanto no mundo interior da mente. O que não tem nome não pode ser pensado; e se não pode ser nomeado nem pensado, não existe.
Embora a linguagem verbal seja o sistema fundamental de criação e significação do mundo – a base fundamental da cultura e da sociedade -, não ignoramos a existência de outras formas de linguagem, como a da matemática, a das artes, as gestuais, etc. Aliás, a linguagem corporal é parte constitutiva do processo de produção de nossas interações verbais. Quando falamos, fazemos gestos com as mãos, revelamos expressões faciais, por exemplo, franzindo as sobrancelhas quando não concordamos com o que nos dizem, etc. As expressões de nosso corpo estão em sintonia com o significado de nossas expressões linguísticas. Não franzimos as sobrancelhas ao mesmo tempo em que demonstramos verbalmente contentamento. Franzir as sobrancelhas pode sinalizar reprovação e é de esperar que se acompanhe de expressões linguísticas que demonstrem reprovação ou insatisfação.
O mundo humano é também um gigantesco acervo de conceitos e conhecimentos. Quanto mais palavras conhecemos, quanto mais conceitos conseguimos articular, maior será o nosso mundo, maior é a extensão e alcance de nossa consciência. A extensão de nossa linguagem é proporcional à extensão do conhecimento que temos do mundo.
Num segundo momento, devemos reconhecer que estamos ativamente envolvidos com o mundo; tanto o mundo como as coisas são então percebidos como dotados de significado em função desse envolvimento ativo. A objetividade do mundo deriva de nossa experiência subjetiva com ele. Essa experiência subjetiva é primária. Os nossos processos cognitivos têm por base mesma a percepção e nossas capacidades sensório-motoras. Nossa cognição resulta dessas capacidades e de nossas ações no mundo.
O Dasein é sempre um ser interessado no mundo. O significado das coisas deriva do nosso interesse nelas, e disso resulta o caráter de nosso envolvimento com elas. Naturalmente, nosso envolvimento com o mundo não é tão-somente intelectual ou teórico, mas também emocional, prático, estético, imaginário, etc.
Nossa experiência é sempre um mundo pleno de significados. O mundo que um indivíduo percebe é, em certo sentido, o seu próprio mundo, diferente do mundo percebido por outro indivíduo. Esse mundo próprio é um mundo significativo e os significados que têm são aqueles que o indivíduo percebe.
Uma vez que o mundo é o horizonte a partir do qual é possível a experiência humana, o mundo não se reduz ao meu próprio mundo. O mundo e as coisas que nele encontro têm uma propriedade que independe de meus desejos e de meus interesses, de modo que grande parte dos significados das coisas que nele se topam são significados que encontro no mundo. A ideia de mundo como totalidade de significados implica a assunção de que as coisas só ganham significado na sua relação com outras coisas e seus significados, no horizonte da totalidade do mundo.
Finalmente, o sujeito, que não existe senão no mundo e em sua relação ativa com o mundo, é sempre sujeito que age sobre o mundo e sofre dele uma ação. Esse sujeito não se identifica com uma consciência abstrata, mas é sujeito corporificado. A experiência que temos do mundo tem como base nosso corpo: o mundo não é só objeto de reflexão e de interpretação; é mundo que experimentamos com o corpo, ao qual respondemos subjetivamente com o corpo. Em última instância,  o mundo, antes de ser mundo que compreendemos, é mundo que sentimos.
Com vistas a compreender melhor a dimensão do abalo niilista, ponderemos, brevemente, sobre o significado de existir. Existir é, decerto, mais do que o viver biológico. Se os animais são, se a planta é ( em-si, segundo Sartre), o homem é ser para-si, ao que nós acrescentaríamos, ser-com. Existir é um movimento relacional com o sentido, que é seu fundamento. Para o homem, existir é estar consciente da relação com o em-si. A existência do para si (a consciência humana), dirá Sartre, é liberdade e transcendência, pois que nega sua facticidade tanto quanto os objetos. O homem existe sabendo o que não é. E a relação com o sentido é sempre de abertura para um além de sua facticidade, de sua condição natural. O sentido é lugar de transcendência do homem em relação a essa condição, que não pode negar completamente, é claro (não pode deixar de ser finito), mas que lhe permite continuar a existir na condição de ser-para-a-morte (Heidegger). Ora, se o Dasein é constitutivamente um ser-para-a-morte, se a morte é sua possibilidade mais autêntica, se essa condição é fonte de angústia, não pode o homem abrir mão do sentido, de existir tecendo sentido. Se existir é correr para a morte inevitável; se, como notara Durkheim, a sociedade é um bando de homens que caminha em direção à morte inevitável, o homem está condenado, ao longo dessa corrida, a produzir sentidos, a tecer de significados as malhas de sua existência.
Um exemplo extremamente interessante que ilustra a indispensabilidade do sentido para o existir humano é o fenômeno do suicídio.  É um truísmo dizer que somente os seres humanos são capazes de se suicidar, mas o que daí se segue tem importância filosófica. O homem é o único ser que, deliberadamente, pode dar cabo de sua própria vida e não deixa de ser espantoso, para muitas pessoas, que alguém que goze de perfeita saúde  possa se matar. É possível que as razões para explicar o suicídio variem bastante, mas vistas em conjunto, de uma perspectiva filosófica, elas indicam a percepção pelo indivíduo da absurdidade de sua existência. O suicídio também ajuda-nos a ver a importância da dimensão do sentido para a própria conservação da existência. O suicídio parece testemunhar em favor do fato de que, para o ser humano, a manutenção do viver é dependente de sua coerência simbólica. Pessoas se matam porque a vida deixou de fazer sentido para elas. O niilismo dilui o enraizamento ontológico do homem no mundo, de modo que o homem se sente existindo num vácuo que lhe inspira terror.
Tomemos, agora, a importância do anúncio da morte de Deus. Novamente é Cabral (p. 26) que nos adverte de que a questão da morte de Deus, longe de servir à caracterização definitiva do niilismo, constitui o caminho para a compreensão de suas raízes ontológicas.
É claro que o niilismo exibe um caráter histórico, mas apenas na medida em que marca a presentidade de um processo histórico. O niilismo não só é “um princípio constitutivo de nosso presente histórico”, como também “vigora como determinante do desdobramento de nosso tempo” (p. 27). O niilismo é estrutural, e o é porquanto não se reduz às suas manifestações culturais, mas “acomete o modo de determinação do mundo histórico que é o nosso” (p. 27).



2. O niilismo, segundo Heidegger

Heidegger se lançou à investigação fenomenológica do niilismo, tendo em vista a descrição de suas raízes históricas e mais profundas. Para tanto, situou sua análise no lugar de abertura do ser, na ‘clareira’ (Litchung) do próprio ser.  É este o lugar de abertura de revelação-ocultamento do ser ao homem, que caracteriza a história do pensamento ocidental.
O homem ocidental experiencia o ente que se lhe apresenta de diversas formas, ao longo do tempo: algo gerado pela natureza ou artefato, criação divina, coisa extensa, objeto, matéria submetida à análise, à prova e à pesquisa cientificamente orientada. Vê-se, pois, que o “ser do ente” é algo que se apresenta cada vez de um modo diferente.
Heidegger observa, no entanto, que o homem, cada vez em que se debruça sobre a compreensão do que são os entes em seu ser, ele transcende o plano dos entes. Essa transcendência é metafísica. A metafísica é, portanto, para o homem ocidental, o modo fundamental de compreensão do ser do ente. A metafísica acontece no “apresentar-se” do ente, de uma certa forma, ao homem que se ocupa de compreendê-lo.
Quando o ente é definitivamente compreendido e determinado num dado momento histórico, por exemplo, como vontade de poder ou como trabalho, quando o que mais importa é se apropriar do ente como fonte possível de energia como coisa a serviço do trabalho técnico-científico, a abertura originária do ente, isto é, seu ser suscetível de diferentes compreensões se fecha. Disso resulta não só o esquecimento do ser, como também o esquecimento desse esquecimento. É justamente essas duas formas de esquecimento que caracteriza, para Heidegger, o niilismo. O niilismo, na visão heideggeriana, é esta situação em que “não há mais nada” do ser – donde a necessidade premente de retomar a pergunta sobre a essência do ser.



3. A morte de Deus como imperativo histórico

Em primeiro lugar, é premente considerar a pergunta “o que é Deus, para Nietzsche?”. Para Nietzsche, Deus congrega em si diversos conceitos metafísicos tradicionais: o ser, o incondicional, o Bem, o verdadeiro, o perfeito. Deus, nesse sentido, dota o devir de um estrutura de sentido sob uma pluralidade de elementos aparentemente caóticos (p. 29). Mas Deus também representa o princípio que articula e determina as diversas ações humanas, mormente em razão da influência do pensamento medieval cristão. Segundo Cabral (ib.id.), “o conceito de Deus aparece também como sentido existencial para as ações e, assim, justifica o devir teórico e praticamente”.
O que sucedeu, então? O acontecimento histórico da morte de Deus acarretou no homem o sentimento de abandono, visto que esse acontecimento significou a dissolução da estrutura sólida de caráter metafísico-existencial (p. 29-30). Enfatize-se que Deus encerrava em si o princípio metafísico e o sentido último da existência. Daí se segue que Deus era o signo que permitia pensar o absoluto, ter acesso a ele. Deus também representava a instância de estruturação e normatização das ações e dos pensamentos. Sua morte, portanto, assinala o desmoronamento daquele sentido último estruturante da existência. Sua morte impede o acesso ao absoluto ou ao “em si”, já que estes não mais existem. O devir carece de fundamento ontológico, e as ações não mais encontram apoio em um sentido último e absoluto.

“(...) O acontecimento da morte de Deus, que nada mais é do que um imperativo histórico de nosso tempo, permite a abertura de um novo campo hermenêutico que se diferencia do pensamento metafísico, por não se desdobrar com vistas ao em si. Isso porque a morte de Deus deflagra, dentre outras coisas (...), a instabilidade da perpetuação das metanarrativas ocidentais, o que produz o descerramento de um horizonte interpretativo não mais marcado pelo gesto metafísico de busca por fundamentos últimos ou absolutos dos entes e do mundo” (Cabral, 2014, p. 30, grifos nossos).


É oportuno retomar aqui a concepção do sentido como algo em aberto com vistas a compreender o que se pode concluir dessa abertura de um novo campo hermenêutico que se distingue do pensamento metafísico. Ora, o pensamento metafísico opera sempre com base na crença na unicidade do sentido e no controle sobre o sentido. Esse pensamento, na sua modalidade religiosa, se estrutura num discurso autoritário, onde mais expressamente se manifesta a dominação pelo uso da palavra. Por outro lado, o campo hermenêutico que se abre, com o imperativo da morte de Deus, não é mais coagido por um “em si” que sustenta a unicidade do sentido. Sua abertura é, pois, um alargamento do horizonte de possibilidades de sentido.



4. O suicídio

Num horizonte pessimista, o suicídio aparece como uma questão premente. Afinal, é razoável supor que um pessimismo exacerbado pode culminar com a própria negação da vida num domínio não mais teórico, mas prático. Camus – é oportuno lembrar – foi assertivo ao considerar o suicídio, em seu O Mito de Sísifo (2009).  Logo de início, ele escreve: “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia” (p. 17). De modo algum, estamos a sugerir que todo pessimismo filosófico traz em germe o desejo pela consumação do suicídio, tampouco que os filósofos denominados de pessimistas recomendam como solução última para o drama da existência, para a absurdidade do homem, o suicídio. Notemos que Schopenhauer afirma ser o suicídio um ato insensato. Vale acompanhar a posição de Schopenhauer nesse tocante, a qual será apresentada aqui de modo bastante esquemático. Para Schopenhauer, o suicídio é o aniquilamento do indivíduo, enquanto fenômeno, e não da vontade. O que se nega no suicídio não são os males da vida, mas sim as alegrias. O suicida deseja a vida, quer a vida. Sua insatisfação não decorre senão das contradições de que está impregnada a vida. Prossegue Schopenhauer, argumentando que, ao destruir o corpo, o suicida renuncia à vida, sem jamais negar o querer-viver. O suicida deseja a vida e até aceitaria a existência, se ela não fosse continuamente marcada por circunstâncias infelizes e penosas.
Ocorre que o suicídio – e aqui reside um aspecto importante para a nossa argumentação – se nos revela a contradição do querer-viver consigo mesmo. No grau mais elevado da objetivação da vontade, isto é, no indivíduo humano, essa contradição se manifesta com uma força poderosa: o indivíduo declara guerra contra si mesmo; ele quer ardorosamente a vida ao mesmo tempo em que, com ímpeto, se lança à tarefa de remover as adversidades; mas a vontade individual prefere suprimir o corpo a deixar-se sucumbir à dor. Schopenhauer concluirá dando-nos a conhecer a seguinte condição paradoxal: o suicida cessa de viver porque não pode deixar de querer. Não interessa nos deter nas consequências envolvidas na tentativa de Schopenhauer rejeitar o suicídio como solução para a dor de existir. Parece-nos, em todo caso, que Schopenhauer desloca o problema do suicídio da dramaticidade da existência individual (diríamos, com Merleau-Ponty, da corporeidade do vivido) para o domínio do em-si indestrutível e abstrato, de uma Vontade que não carece nunca de fenômenos. Schopenhauer parece recomendar uma resignação do indivíduo à essência da vontade, que é a dor, como um caminho para a salvação que deseja e que, ao contrário do que crê, não alcançaria com a morte, pois esta, eliminando o fenômeno, permite que a Vontade se afirme. A necessidade acompanha o aparecimento da vontade, e o indivíduo é impotente para suprimi-la, e ilude-se ao supor que o faz pondo termo a sua vida corporal. Há uma série de pressupostos que, forçosamente, silenciamos, como, por exemplo, o de que, para Schopenhauer, a morte não é aniquilação, o de que o suicídio não nos oferece o não-ser, o de que o suicídio constitui ele mesmo um obstáculo à redenção, etc.
É preciso abandonar, no entanto, o curso dessas reflexões para assinalar o que, deveras, concerne à nossa argumentação: no horizonte do pessimismo filosófico, a problematicidade do suicídio parece suscitar a necessidade da consideração da reinscrição do sagrado como uma presença silenciosa que desencoraja a consumação desse ato ao qual a vida debilitada no desespero se inclina. Faz-se mister uma observação aqui: acreditamos poder encontrar em Kierkegaard – como esperamos fique claro mais adiante – um terreno seguro em que nos movimentaremos para pensar a questão do desespero; mas, na medida em que a questão da reinscrição do sagrado deverá ser pensada à luz de uma filosofia do desespero que não se orienta por nenhuma promessa metafísica, ou melhor, de uma filosofia em cujo horizonte desapareceu o lugar de Outro transcendente que responde pelo sentido último, segue-se daí que o desespero deverá ser interpretado como desesperança, isto é, como perda profunda e irremediável de qualquer esperança numa redenção por uma transcendência. O estado de desespero é, portanto, aquele experienciado por quem já não aguarda, não espera nada mais além do real, por quem orienta sua vida unicamente pela imanência. O desespero, quando consumado, pode, no entanto, ser alegre e ativo (ativo porque liberta o homem da passividade suposta na esperança). Estamos, neste momento, pensando com Spinoza, ao definir a alegria, em sua Ética (2011: 141), como “a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior”. Trata-se de encaminhar uma reflexão sobre o desespero em que ele se revele não como mera perda e abandono, mas como estado em que o homem, não sem esforço, não sem enfrentamento de si mesmo, quer realizar a sua perfeição. Esse estado de perfeição, Spinoza chamou de beatitude (p. 232).
Diferentemente do que sucede em Kierkegaard, em cujo pensamento ainda se vê Deus como a instância ontológica responsável pela origem do sentido existencial em relação à qual o homem se esforça por realizar a síntese entre o finito (corpo) e a alma (infinta), em Cioran, essa instância dá lugar ao Nada. Cioran pergunta-se sobre o modo como pode encontrar sentido em seus tormentos, o que sugere que o sentido pudesse de algum modo ser descoberto nas regiões desérticas e aterradoras do seu ser. A intuição do Nada e a evidência do sofrimento elidem a possibilidade do sentido. O sentido se põe então como um problema para a existência desesperada: não se trata mais de buscar sentido, esperar um sentido já posto, mas de produzi-lo, construí-lo. É o homem (o indivíduo humano) que precisa construir sentido em face de um universo indiferente, infinito e escuro. Do que se expôs até aqui, segue-se a urgência da questão: o que há na condição humana desesperada que a move em seu desespero? O que a faz, apesar do desespero, prosseguir em sua marcha, de resto, absurda? A nossa hipótese nos encaminha à busca por uma resposta mediante a especulação sobre a reinscrição do sagrado.





[1] Este texto é parte do miniprojeto Niilismo e Teofania: a reinscrição do sagrado na filosofia do desespero : uma abordagem de Kierkegaard e Cioran, submetido à FAPERJ como requisito para obtenção de uma bolsa de iniciação à pesquisa (UERJ).
[2] CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o deus não-cristão, vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014.
 [3] LYTOARD, J.F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 2008.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

"Toda existência é trágica na medida em que ela é vivida antes de ser pensada" (Rosset)

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             O trágico como anticonceito filosófico
            Prelúdios de uma sabedoria trágica


Explicar, do latim explicare (‘tornar inteligível’, ‘interpretar’, ‘justificar’) – esta é a tarefa a que me devoto com o intento de oferecer-me não só a oportunidade de alguma fruição de prazer mais gratificante, porque prolongado, como também reanimar o diálogo, prematuramente interrompido, com um colega que, tanto quanto eu, aprecia o curso criativo das conversações filosóficas.  É imprescindível dizer que este meu texto não pretende ser expressão de qualquer ensinamento. Cuido-me capaz de ensinar alguma coisa apenas na área do conhecimento em que me especializei e em que, portanto, obtive uma competência satisfatória. Não obstante, nesse domínio, estou continuamente aprendendo, visto que, no exercício do ensino, há sempre aprendizagem. Segue-se daí que ensinar é aprender não só o conteúdo ensinável, mas também aprender a ensinar o que é passível de ser ensinado.
Estando claro que nada posso ensinar, no domínio da filosofia (sobretudo, porque a filosofia não é ensinável), espero, portanto, que meu principal interlocutor, ao dar-se o trabalho de ler este texto, tome-o como um espaço necessariamente dialógico. Com a produção deste texto, ao longo da qual pretendo explicar minha escolha filosófica – meu modo de viver – espero descerrar um horizonte à luz do qual diálogos ulteriores possam ser possíveis e fecundos.
O momento em que se deu o estancamento do fio dialógico que dava consistência ao intercurso de nossas reflexões foi justamente o momento em que meu interlocutor rejeitou o caráter trágico da existência. A conversa foi entabulada com o meu interesse de consultar meu interlocutor sobre o proveito do exercício filosófico. Toda resposta que se elabore na tentativa de demonstrar que há algum valor neste exercício, ou que dele se pode extrair um proveito que não encontra par em qualquer outra forma de reflexão/ atividade pressupõe uma concepção do que é filosofia. A questão “o que é filosofia” é ela mesma problematizada pela própria filosofia; e são inúmeras as respostas oferecidas a ela. E todo aquele que se aproxima da filosofia, que a ela dedica seu tempo e sua atenção, terá, mais cedo ou mais tarde, de prestar esclarecimentos sobre o que entende por filosofia. Quero dizer que o exercício filosófico começa por uma compreensão das respostas oferecidas pela tradição à questão “o que é filosofia” num processo que envolve discussão das respostas e adoção por parte do iniciado na filosofia de uma concepção de filosofia (que não significa, necessariamente, mera apropriação) com base na qual uma forma de elaboração de pensamento filosófico que lhe seja própria possa ser trazida à luz.
Parece-me que é parte da maturidade filosófica de quem exercita a filosofia e se exercita, enquanto existente, na filosofia, a escolha de uma orientação filosófica que melhor testemunhará seu modo de viver. O filósofo não é apenas aquele que pensa e constrói sistemas; mas é, em essência, aquele que sabe viver e morrer em consonância com o seu sistema. Por conseguinte, o exercício da reflexão filosófica, a atividade própria do filósofo, se caracteriza, fundamentalmente, por uma perfeita harmonia entre o seu sistema de ideias e seu sistema de vida. Para os antigos, a filosofia é um modo de ser, uma escolha de vida. Originalmente, portanto, a filosofia é uma prática de vida destinada a cunhar modos de ser. Aos colegas que junto a mim se dedicam ao estudo acadêmico da filosofia, faço, pois, um apelo para que não se esqueçam jamais do vínculo necessário entre filosofia e modo de viver, para que, atendendo à recomendação de Aristóteles, experienciem a atividade filosófica como um exercício que se deve estender por toda a vida. Apelo, finalmente, para que não duvidem, por um instante sequer, de que a prática da filosofia visa à transformação radical do eu de quem a ela se dedica; no exercício filosófico, não só nossa visão de mundo se transforma, mas também é nossa personalidade que se metamorfoseia.
Evidentemente, a escolha a que não se deve esquivar aquele que pretende viver uma vida filosófica não é possível senão depois do contato com certo conjunto de orientações filosóficas. O contato com essas diversas orientações filosóficas é parte do estudo acadêmico da filosofia. Os estudantes de filosofia só poderão (talvez a maioria) escolher a orientação que melhor expressa uma coerência com seu modo de viver após ter entrado em contato com as diversas orientações filosóficas ao longo do curso de filosofia. Não só após o contato com elas; mas, sobretudo, após o convívio aturado com elas fora da sala de aula.
A escolha de uma orientação filosófica por quem se dedica ao exercício da filosofia constitui uma questão cujos desdobramentos interessam à própria filosofia. Sua pertinência deverá ficar aqui, no entanto, apenas sugerida e ensombrecida, porquanto não é sobre ela que estendo minha preocupação neste texto. Malgrado a necessidade de abandonar a questão, neste estágio de minhas reflexões, não posso silenciar sobre o fato de que meu encontro com a filosofia, que se deu há dez anos, quando do ingresso no mestrado em Estudos da Linguagem na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), foi e continua sendo profundamente marcado pelo lugar de tangência entre a filosofia trágica e a filosofia pessimista.
No esforço por reinstituir um espaço dialógico com meu interlocutor, devo preveni-lo de que a exposição que faço do tema do trágico como elemento caracterizador de uma orientação filosófica, denominada de filosofia trágica se desenvolverá não sem fraturas no tratamento das questões implicadas na compreensão da filosofia trágica. Ademais, a cada vez em que dou um investimento verbal à abordagem do tema, instauram-se, por força da natureza da linguagem, espaços de silenciamentos. Tal é a condição fundante da própria possibilidade de haver sentidos. Por maior que seja a extensão de um texto, por mais exaustivo que seja o tratamento dispensado a um objeto de pensamento, jamais é possível esgotar as possibilidades de dizer, de significar, de produzir sentidos. Será forçoso esclarecer a questão da significatividade do silêncio, por ora, apenas entrevista ao me referir à condição fundante da possibilidade de sentidos. O tema as formas do silêncio é desenvolvido no interior dos estudos da Análise do Discurso pela analista do discurso brasileira Eni Pucinelli Orlandi. Não obstante a limitação ao domínio do discurso, o modo como o tema se desenvolve mobiliza um exercício de pensamento claramente filosófico. Não reside nisso, contudo, o meu interesse por considerá-lo; se o faço, é porque pretendo demonstrar quão ilusória a crença em que, ao dizer, esgotamos as possibilidades de outros dizeres, de outros sentidos. Terminada esta etapa de minha exposição, atacarei o problema que consiste em precisar o que se entende por trágico quando se defende, filosoficamente, a posição segundo a qual a condição de todo ente, particularmente e de modo especial, do ente humano é uma condição trágica. A discussão desse problema envolverá a necessidade de definir a extensão semântica da palavra trágico e a de esclarecer o que faz de um pensamento filosófico um pensamento trágico. Creio em que a suspensão do diálogo com meu colega e interlocutor se deveu menos ao fato de ele ter rejeitado ser a existência constitutivamente trágica do que à suposição nossa de que estávamos de acordo no tocante ao significado da palavra trágico no contexto de nosso diálogo. Não só ele parecia assumir, de antemão, o conteúdo semântico de trágico, como também eu não dispunha das condições necessárias para iluminá-lo, para o que seria indispensável fazer alguma digressão que, possivelmente, nos distanciaria do escopo de nossas reflexões. Numa conversa informal, tal digressão não teria como consequência senão estorvar os próprios participantes.

1. As formas do silêncio

Todo dizer é expressão de uma relação necessária com o não-dizer. Há uma dimensão de silêncio que remete ao caráter da incompletude da linguagem. A incompletude da linguagem se prende ao reconhecimento:
a) da errância dos sentidos (a sua migração);
b) da vontade de um (da unidade, do sentido fixo); do lugar do non sense, o equívoco.

A incompletude da linguagem é o lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível. Portanto, a errância dos sentidos, a vontade de unidade, do sentido fixo, o lugar do non sense, o equívoco e a própria incompletude da linguagem (para a qual voltarei olhares mais adiante, a fim defini-la melhor) estão no cerne do funcionamento da linguagem.
Em seu As formas do silêncio (2007), Orlandi escreve: “As palavras transpiram silêncio” (p. 12). Há, pois, silêncio nas palavras. O silêncio é fundante: ele funda a possibilidade de sentido. O silêncio é um lugar de recuo onde se pode significar, a partir do qual o sentido faz sentido. Novamente, ouçamos Orlandi:

“O silêncio como horizonte, como imanência do sentido (...) aponta-nos que o fora da linguagem não é o nada mas ainda sentido” (p. 13).


O silêncio, pensado em sua historicidade constitutiva, não é ausência de som, mas é um acontecimento que atravessa as palavras, que existe entre elas, que indica que o sentido pode ser sempre outro. As palavras produzem silêncio; o silêncio “fala”; as palavras silenciam (p. 14).
O silêncio garante o movimento de sentidos. Dizemos sempre a partir do silêncio. Cada palavra enunciada “apaga” necessariamente outras palavras. Isso se dá porque o silêncio também é constitutivo do dizer. Assim, observa Orlandi

“O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à interpretação: tudo tem de fazer sentido (qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico” (p. 29-30).


Portanto, o silêncio não é falta. A linguagem é excesso. O silêncio não fala simplesmente; ele significa. No silêncio, o sentido é. (p. 32).

“A linguagem é conjunção significante da existência e é produzida pelo homem para domesticar a significação” (ib.id.).


O silêncio é disperso, e a fala o segmenta, o estrutura. O silêncio é o que torna possível a significação, todo dizer. O silêncio é presença, é “o elemento místico” (Wittgenstein). O sentido do silêncio não deriva do sentido das palavras. Nem o sentido, nem a linguagem são transparentes.
Não se pode não significar. O silêncio se relaciona, necessariamente, com a significação, e a linguagem é o movimento incessante das palavras para o silêncio e do silêncio para as palavras. É necessário insistir em que as palavras estão carregadas de silêncio. Por um lado, não podemos suprimir das palavras o silêncio; por outro lado, não podemos recuperar o silêncio só pela verbalização.
Por fim, retomando-se a noção de incompletude da linguagem, reitere-se que a incompletude é uma característica fundamental da linguagem. O fenômeno da incompletude da linguagem recobre a) o fato de serem diversas as formas de manifestação da linguagem; b) o fato de que o sentido está sempre em aberto; c) o fato de que o texto é multifuncional enquanto objeto simbólico. A incompletude repousa no fato de que o dizer é aberto. A crença numa “palavra final” é efeito de uma ilusão. O dizer não tem um início verificável; e o sentido toma múltiplas direções; está sempre em curso. A incompletude da linguagem decorre, portanto, do fato de que a própria linguagem é categorização dos sentidos do silêncio; é um modo de domesticá-los.
A linguagem também é opaca. A opacidade da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem interpretação. A opacidade ou não-transparência da linguagem consiste também na propriedade de o sentido poder ser sempre outro.
Tendo em vista o exposto, ao procurar aqui dizer o trágico jamais posso ter a pretensão de dizer tudo. Ademais, estando eu preocupado  tão-só em fixar-lhe um horizonte semântico mais preciso, a consideração que dele farei será marcada por fraturas, por rupturas, por saltos que se evitariam num tratamento que se pretendesse minucioso e articulado.

2. O filósofo trágico não é um pessimista

Filósofos como Lucrécio, Montaigne, Pascal e Nietzsche são reconhecidos como filósofos trágicos. A primeira questão que se nos apresenta ao sugerir a possibilidade de uma filosofia trágica consiste em definir o que significa tragédia. Sabe-se que tragédia é um gênero de expressão artística, particularmente marcante na história do teatro. No domínio da arte, a tragédia, segundo alguns teóricos, não recobre apenas adversidades, sofrimentos, iniqüidades, mas, principalmente, uma corajosa resistência ao destino. A tragédia deve, pois, expressar a reação a um evento, e não apenas o evento fatídico em si. Para alguns teóricos, a tragédia começa com a arte, que a vida imita. Com o tempo, o significado da tragédia foi estendido do domínio da arte para a vida, restando aqui um eco da arte, o qual foi silenciado quando a tragédia passou a caracterizar o modo de configuração da própria vida. Atualmente, para a maioria das pessoas, tragédia significa uma ocorrência da vida, caracterizada por dor, sofrimento, infelicidade injustificáveis. Isso, no entanto, não impede vários teóricos de argumentar que, na vida real, não existe tragédia, com base no pressuposto, deveras criticável, segundo o qual, na tragédia, enquanto manifestação artística, é sempre possível revelar o valor que a destruição libera. Segunda essa perspectiva, o sofrimento da vida real é passivo, horrível e indigno; ao contrário, na arte trágica, o sofrimento traz o selo do esplendor heróico da resistência, razão por que a arte é dotada de uma gratificação que falta à vida. Essa perspectiva buscará nos convencer, por exemplo, de que o Holocausto não foi uma tragédia, mas a morte da tragédia. No entanto, assentada na crença de que a tragédia se define por uma resistência heróica às condições adversas, essa perspectiva trai a si mesma, no momento em que não reconhece o fato de que houve uma heróica resistência de alguns judeus ao nazismo; além disso, certamente, muitas pessoas lutam bravamente contra enchentes, doenças, invalidez, genocídio, etc.
Não se pode ignorar o fato de que, a despeito da discrepância entre a tragédia como arte e a tragédia como modo de configuração da vida, grande parte das obras de arte trágica se construiu por meio da suposição segundo a qual a tragédia parece ser uma experiência real e não meramente um fenômeno estético.
Também não devemos perder de vista o fato de que a tragédia, de Hegel a Nietzsche, migrou para a especulação teórica. Desde então, a tragédia passou a ser uma Ideia majestosa, uma forma de contrailuminismo, uma teodiceia, mais do que uma questão de suplicio e aflição.
Na visão trágica de Nietzsche, por exemplo, o mundo é, essencialmente, caótico, ilegível, e o conhecimento trágico necessita da arte para tornar tolerável a própria existência. Esse conhecimento trágico supõe a percepção de que o mundo é desprovido de significado. No respeitante a Pascal, sua crítica ao racionalismo não é uma crítica à razão. Pascal não estava preocupado em denunciar os limites da razão. Na verdade, a crítica ao racionalismo levada a efeito por ele se orientou pelo interesse de fazer ver que o racionalismo deve sua impotência àquilo que se oferece à razão. O que se oferece à razão é, nota Pascal, irremediavelmente indiferente. Não se trata, portanto, para Pascal, de denunciar uma suposta fraqueza da razão, mas de demonstrar que o objeto da razão não é cognoscível. A razão, assim, está apta a conhecer, mas não se lhe apresenta nada para conhecer. A razão não pode pensar como uma natureza a existência, porque esta é uma não-natureza. Natureza aqui designa a constituição do ser cuja existência não resulta nem do acaso, nem da vontade humana. Natureza supõe uma totalidade ordenada. Pascal nega que haja tal totalidade ordenada; para ele, a existência não abriga qualquer razão oculta (lógos), nenhuma estrutura secreta, nenhum princípio do diverso inacessível ao conhecimento humano, em virtude de supostos limites da razão. À luz de tal perspectiva, nem as “verdades” nem os “erros” conduzem a alguma grande consequência filosófica. No tangente às primeiras, elas só acrescentam fatos a fatos; os erros, por sua vez, não estorvam nenhuma verdade. No seu livro Lógica do pior (1989), assinala Rosset:

“Se se busca o que resta de trágico nos cem mil mortos de Hiroxima após a intervenção da interpretação histórica, sociológica, política, militar, que resta? Cem mil mortos, ou seja, um morto como todos os mortos, algo de banal, de cotidiano, de silencioso, enfim, de trágico – desse trágico ao qual o espetáculo das maçãs no jardim convida já, de maneira mais imediata e simples. A morte em si mesma não é a priori trágica: não mais, em todo caso, do que a vida nem do que quer que seja, desde que esse algo resista à interpretação” (p. 65-66).


Esse trecho deve nos levar à compreensão de que o trágico está, por um lado, em toda parte, impregna a cotidianidade; e, por outro lado, é o próprio silêncio, ou seja, resiste a qualquer tentativa de interpretação. Ao se passar do silêncio para o pensamento do trágico, faz-se falar o trágico pela impossibilidade de interpretá-lo.
Considere-se a asserção que constitui o título desta seção: o filósofo trágico não é um pessimista.  É necessário reconhecer duas diferenças básicas entre uma filosofia trágica e uma filosofia pessimista. A primeira diferença diz respeito à suposição de que há “algo” (uma natureza ou o ser). O pessimista supõe que existe algo do qual afirma o caráter insatisfatório. O pessimismo filosófico baseia-se na afirmação do pior, a partir da suposição de uma certa ordem (natureza), de um certo sentido, cujo caráter incoerente não cessa de demonstrar. Para o filósofo pessimista, há uma totalidade ordenada que não pode ser legitimada. Há ordem, mas não há um “ordenador”. Donde se segue que a filosofia do “dado” (a filosofia pessimista) culmina com uma filosofia do absurdo.
Sabe-se que Schopenhauer, sendo um expoente da filosofia pessimista, procurou pensar o mundo por meio da postulação de um “dado”, que chamou de Vontade – uma Vontade cega, ilusória, repetindo-se mecanicamente. Embora desprovida de propósito, a Vontade permite superar o caos do mundo, a fim de lhe revelar sua ordem. Isso significa afastar do horizonte hermenêutico da filosofia pessimista o princípio do acaso.
O pensamento trágico, por sua vez, mantém que o que existe carece de “natureza”, de “ordem”, não é nem ser, nem objeto adequado de pensamento. Na filosofia trágica, não há a condição de possibilidade dos acontecimentos. Só há encontros, ocasiões, que não pressupõem jamais o recurso a qualquer princípio que transcende as perspectivas trágicas da inércia e do acaso. Por conseguinte, a filosofia do trágico é uma filosofia do acaso. O pensamento trágico afirma a insignificância radical de tudo que acontece. Aliás, o pensamento de Pascal, se examinado até as últimas consequências nos levará a uma verdade que se impõe irrecusável – “não sou um ser necessário”. Dizer que não sou um ser necessário significa reconhecer que eu, enquanto existente, poderia nunca ter existido. Em outras palavras, a minha existência não tem uma necessidade que me impede de sentir que eu poderia não ter existido. Não sou um ser necessário afirma correlativamente sou um ser contingente.
Cumpre ainda dizer – e, fazendo-o, silencio muita coisa -, que o pensamento trágico é aprobatório, embora não deixe de considerar o seu contrário, que é o suicídio. Aqui está a segunda diferença entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista: o pensamento trágico assente à existência; o pessimista, por outro lado, reconhecendo que a ordenação do mundo é má, não pode aprovar a existência.
A aprovação é o único ato disponível ao sujeito da ação, isto é, ao homem. Ou ele se solidariza com a sua viagem à semelhança de um passageiro de avião de uma grande empresa aérea, que não tem acesso aos comandos da direção (Pascal), ou a recusa pelo suicídio. No pensamento trágico, a aprovação é um privilégio justamente por seu caráter incompreensível e injustificável. O homem não carece de nada; e toda a alegria de viver é irracional. Essa alegria é experienciada no cotidiano sem que seja possível justificá-la. O homem é excesso; por isso o espanto do filósofo trágico: seu maravilhamento na alegria e na dor.
Não se deve estabelecer uma distinção absoluta entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista, se consideramos que tanto o primeiro quanto o segundo são duas lógicas do pior. Mas a lógica do pior de que é expressão o pensamento pessimista não tem relação com o pior da lógica trágica. No pensamento trágico, afirma-se a impossibilidade de um dado enquanto natureza constituída; no pensamento pessimista, há uma ordem já dada, reconhecida.
A título de conclusão, sem pressupor, no entanto, que esteja suficientemente esclarecida a significatividade da visão trágica da existência, insisto em que a verdade a que nos quer conduzir o pensamento trágico consiste em ver o mundo como obra do acaso ou do destino. Sendo obra do acaso, o mundo carece de uma natureza, isto é, de um princípio estruturador, ordenador, e a vida não é mais que um derivado, entre outros, da realidade fundamental da morte. É oportuno tornar clara uma relação que, embora aparentemente inusitada, elucida o horizonte a partir do qual o “drama ontológico” revelado pelo pensamento trágico é constitutivo da ideia de trágico. Trata-se de evidenciar a relação entre a festa e o trágico.
Em certo sentido, a relação entre a festa e o trágico pode ser estabelecida pelo fato de o pensamento trágico ser uma experiência filosófica de aprovação em função de uma busca do pior.  Ademais, essa relação se torna possível quando levamos em conta o acaso como regra de exceção e princípio da festa (Rosset, 1989, p. 129). Já no sentido que toca à constituição da própria lógica do pior, de que é expressão o pensamento trágico, a relação entre o trágico e a festa pode ser estabelecida se compreendemos que, sendo o mundo obra do acaso, se, por isso mesmo, o mundo carece de uma “natureza” (ou ser, essência), resta-nos senão viver num estado de indiferença em relação a tudo o que acontece e existe. Essa indiferença, contudo, não é a indiferença do tédio, estado em que esperamos o acaso com certeza, mas a indiferença que consiste em nada esperar, já que tudo é acaso. Indiferença da festa, portanto – se tudo é acaso, o mundo é uma festa. O mundo da festa é o mundo da exceção (ausência de regras ontologicamente fixadas). Nele, o acaso sobrevém sempre. Nele, o que acontece, o que existe apresenta as características da festa: irrupções inesperadas, excepcionais, irreproduzíveis; ocasiões que se apresentam uma única vez, num lugar e para uma pessoa. Ensinamento trágico: teoria do kairós (o tempo oportuno). Tudo que acontece deve ser apreendido no único momento possível. Cada instante vivido tem as características do jogo, da festa, do júbilo.
O pensamento trágico, como vimos, rejeitando a ideia de natureza, afirma ser o mundo obra do acaso. O acaso que tem em vista o pensamento trágico é o acaso original ou constituinte. O acaso é original porque recusa a ideia de natureza na origem de sua possibilidade, isto é, nesse caso, recusa a existência de uma natureza, a saber, uma totalidade ordenada, da qual irromperia, num tempo e lugar determinados, o acaso; ele é constituinte, porque é origem produtora de tudo que pode acontecer e que se reconhece sob o nome de natureza. O acaso original, portanto, é anterior a todas as formas de existência e impregna todo o modo de configuração vital.




sábado, 3 de janeiro de 2015

"Não há homem livre do desespero"

                  

            
             A existência como tarefa e criação
       Considerações sobre o desespero em Kierkegaard


Com este texto, inicio, neste ano de 2015, a produção do conjunto de novos suspiros da alma. A frequência com que escrevo para publicar neste blog tem sido cada vez mais embargada pelas flutuações de meu humor, que não cessam de me alertar sobre a inutilidade desta inveterada prática. É evidente que escrever me apetece e, não raro, me parece que esse hábito rivaliza, em termos de importância, com outras atividades necessárias em meu cotidiano. Isso, contudo, não é suficiente para me dissuadir da certeza de que os textos que eu escrevo e que eu divulgo, neste espaço virtual, não carreiam nenhum sentido transformador, não visam a transformar nada no mundo, conquanto eu esteja convencido de que usar a linguagem é sempre, em todos os casos, agir sobre o mundo e sobre os outros, com vistas a produzir algum tipo de modificação em seu estado.
Receio que, se eu me detiver em longas ponderações sobre meu desânimo costumeiro, que acompanha o labor da escrita, acabarei por protelar a confecção deste texto. Engana-se o leitor que pensa não ser custoso para mim construir meus edifícios verbais. Como eu persiga a perfeição ao longo da atividade de tessitura do texto, isto é, como eu esteja sempre preocupado em realizar as escolhas mais significativamente adequadas, despendo uma quantidade considerável de potência orgânica quando me detenho para decidir entre as possibilidades de realização lexical e sintagmática. Agora mesmo me assombra o fantasma da escassez verbal.
É chegado o momento de me apressar. Que comece o trabalho! Ele me tomará uma grande parte do dia!

1. O itinerário

No horizonte de minhas reflexões, que visam a retornar ao pensamento de Kierkegaard, se topa o interesse por esclarecer o tema do desespero em sua antropologia, à luz da qual a existência é pensada em seu devir, em seus paradoxos.
A essa tarefa que consiste em identificar e esclarecer, no interior da antropologia de Kierkegaard, devem preceder algumas considerações com as quais procurarei pôr em evidência a pertinência de uma série de conceitos que, se não apresentados e iluminados de antemão, dificultam uma compreensão satisfatória do lugar relacional que ocupa o desespero no desenvolvimento do pensamento existencialista de Kierkegaard. Por conseguinte, impõe-se-me a urgência de apresentá-los e esclarecê-los.

1.2. O irracionalismo

Sören Kierkegaard (1813-1855) é considerado um dos pensadores que integram o movimento do irracionalismo, marcante no final do século XIX. O irracionalismo tinha como meta a crítica da supremacia da razão, a qual era entendida como o único instrumento capaz de estabelecer a verdade, mormente depois de Hegel.
Os pensadores irracionalistas buscavam reanimar a questão da verdade, tomando como ponto de partida o processo da existência. Destarte, Kierkegaard afirmou a necessidade de viver uma verdade que fosse verdadeira para o eu.
Kierkegaard advogava que a existência humana tem por essência a auto-relação. Essa relação determina o modo de o homem – o indivíduo humano – estar no mundo. Essa relação se dá em três estádios, designados por Kierkegaard de estético, na qual o indivíduo assume uma posição de pura exterioridade; de ético, em que ele busca mediar o exterior e o interior; e de religioso, caracterizada por uma profunda interioridade, na qual o indivíduo se relaciona com Deus.
Kierkegaard criticou a falta de religiosidade do clero da Igreja Luterana e a influência negativa de Hegel no meio intelectual.

1.3. O devir do sujeito e a existência como tarefa

Destaco, inicialmente, que, ao se debruçar sobre o devir real do sujeito, Kierkegaard antecipou e descreveu o caráter dialético do que os psicólogos contemporâneos denominam de processo de subjetivação. Esse processo foi pensado por Kierkegaard enquanto ele o vivia. Com efeito, sua filosofia existencialista, resultando da união da inquietude humana com um empirismo metafísico, opõe-se radicalmente às nossas contemporâneas “ciências do homem”.
Ora, para Kierkegaard, não se trata de pensar a existência como objeto; trata-se, na realidade, de tomá-la como a origem a partir da qual cada indivíduo humano pensa e age. No homem e para o homem, existir não se identifica com o ser ou com o possuir uma existência objetiva, imediata. O homem é o único existente de fato; por isso, ele se diferencia dos outros entes que têm uma existência empírica e ignoram quem são.
Por outro lado, para o homem (entendido sempre como individuo, e não como a espécie), a existência é um trabalho, uma exigência: o homem existe enquanto tem de vir a ser, enquanto tem de edificar-se. O homem – sempre enquanto indivíduo – é um ente particular porquanto está adiante de si mesmo, está perpetuamente ocupado consigo, e interessado por si mesmo. É, ademais, um ente que se projeta para as suas possibilidades, para o poder ser, embora sempre situado em face de suas opções.
O indivíduo se determina por meio de seus atos, arrancando-se da imediatidade das coisas, impondo seu ato livre. Por conseguinte, ele ek-siste, isto é, mantém-se fora de si mesmo, em seu projeto, na relação com o que é. O existente é o único ente capaz de existir na abertura ao ser. Isso suscita a pergunta: o que significa existir para o homem?
Ora, segundo Kierkegaard, a existência, não constituindo objeto de uma consciência imediata, vai-se revelando progressivamente no curso do tempo como um apelo a que o existente se realize a si mesmo na relação com a verdade eterna, que é de ordem ontológica. A existência, para o homem, é ao mesmo tempo não ser Deus nem ser simplesmente como os demais entes e coisas que apenas existem na inconsciência da imediatidade e da coincidência consigo mesmo.
A antropologia de Kierkegaard assenta no seguinte axioma: se o homem se faz a si mesmo com liberdade, não o faz a partir do nada. Ora, ele está numa condição específica, na qual se acha a necessidade de se arrancar de sua animalidade, determinando para si a tarefa de realizar sua pessoa concreta.
O processo de subjetivação, na perspectiva de Kierkegaard, consiste num tipo de trabalho ao longo do qual o homem se faz a si mesmo, tomando consciência do eu que é, de sua liberdade que o convoca incessantemente a apropriar-se desse eu, a escolher-se, a decidir o que quer ser.

1.4. O espírito: a emergência da reflexividade

Lançado no mundo sob a forma biológica do corpo e de sua repercussão psíquica (a alma), o homem, sob a forma da imediatidade, precisa desenvolver o espírito, que é a faculdade de síntese reflexiva. O homem é, assim, uma síntese entre a alma e o corpo, e essa síntese não pode ser concebida, se tanto a alma quanto o corpo não estiverem unidos no espírito.
No esforço por tornar claro o conceito de espírito em Kierkegaard, precisarei me ater à definição de existência como cisão entre opostos. Essa cisão precede à tarefa de estabelecimento da sua síntese. Consoante Kierkegaard, a existência não se dá senão sob uma tensão insuperável.
Platão já intuía ser a existência atravessada por um tensão. Ensinava Platão que o homem se compõe de mortalidade e imortalidade e que ele se esforça por se libertar da finitude, de sua existência, que é representada pelo corpo mortal. E acreditava que o homem podia fazê-lo, porque ele é, em sua alma, essencialmente, imortal. Quando, por meio de Sócrates, Platão assevera que filosofar é “aprender a morrer”, estava a limitar essa morte ao corpo, já que este era considerado o túmulo da alma ou sua prisão.
A doutrina cristã se apressou em acompanhar esse helenismo, quando se afastou de sua origem judaica. Assim é que, para o cristianismo, o homem não se encontra em casa neste mundo; todavia, o cristão crê que a fé permite ao homem escapar, de certo modo, ao mundo, na esperança de que, no cumprimento da história, possa retornar à presença de Deus.
Sublinhemos que o homem é marcado pela clivagem entre a alma e o corpo, entre a interioridade e a exterioridade. É justamente no momento em que se opera essa cisão que irrompe a autoconsciência reflexiva, ou o espírito. O espírito dissolve, num primeiro momento, a unidade pré-consciente do corpo com a alma para, em seguida, unir novamente esta àquele.
Kierkegaard descreve esse estado de imediatidade recorrendo ao relato do Gênesis. Adão e Eva não conheciam aquela cisão quando habitavam o Paraíso. A separação entre aqueles elementos opostos – alma e o corpo – se seguiria à desobediência deles ao mandamento de Deus. O espírito, como sinal de liberdade, não só leva a efeito a cisão entre a alma e o corpo, como também o relacionamento entre eles (“e viram que estavam nus”).
É tarefa do homem, doravante, efetuar a síntese entre o finito (o corpo) e o infinito (a alma), e essa síntese é precisamente a essência do homem. Kierkegaard reconhece o problema, que não é mais o do ato de ascensão do espírito a Deus, pela desertificação do corpo ou do mundo, mas o do como da relação do eu consigo mesmo, a qual constitui a existência em sua divisão e em seu diálogo com Deus.
Kierkegaard não se cansou de lembrar que aquela relação não é possível senão pela mediação de seu fundamento comum, que é Deus. A síntese cristã demanda um esforço que não mais se pauta por um dualismo: é necessário realizar uma síntese, a qual é uma complexidade constituída de três termos – a alma, o corpo e o espírito.
A essência do homem consiste em lograr sucesso nessa relação em cuja base está Deus; por isso, de modo algum, o homem poderia furtar-se a ela. Kierkegaard não preconiza nenhuma fuga ao mundo e identifica como fim do homem a apropriação da existência enquanto existência: aqui e agora, em cada instante.
O espírito só advém com a referida cisão. O espírito instaura a consciência reflexiva de si. O homem só pode tomar consciência de seu corpo como corpo a não ser quando tem acesso ao espírito.
Uma observação se nos impõe, antes de terminar esta seção. Se é certo que a obra de Kierkegaard, conforme deve ter ficado claro, restitui ao indivíduo cartesiano uma proeminência ontológica, em contraste com os pensamentos de Spinoza, Hegel e Marx, para quem o indivíduo é subestimado em proveito do caráter determinístico do todo, não é menos certo também que Kierkegaard não foi cartesiano, quando se considera a totalidade de sua obra, que fundou na paixão a confiabilidade epistemológica. Um de seus epigramas famosos reza que “as conclusões da paixão são as únicas confiáveis”. Kierkegaard denunciou a carência de paixão em sua época.


1.5. A angústia, segundo Kierkegaard


Mesmo em estado de inocência, argumenta Kierkegaard, mesmo experienciando a calma e o repouso a que se liga um estado de ignorância, o homem não é animalidade bruta. O espírito, mesmo nesse estado de imediatidade, experimenta angústia diante do nada.
A alma de Adão e de Eva estava em união imediata com sua natureza. Eles ainda não existiam na modalidade do espírito, mas tão-só como possibilidade de espírito, tal como sucede com cada um de nós ao nascer. È apenas no momento em que tomam consciência de sua nudez que o espírito se faz presente no estado de esboço que cinde a alma e o corpo, circunstância esta que permite o surgimento da vida interior.
Kierkegaard entende que a angústia irrompe na ação do espírito que simultaneamente realiza a clivagem e a síntese entre a alma e o corpo, os quais passam a ser percebidos como separados pela consciência reflexiva. O homem toma consciência de sua imediatidade corporal e a vincula à exterioridade. Nesse momento, se experimenta a si mesmo como interioridade capaz de se determinar. A angústia, segundo Kierkegaard, prende-se a essa reflexividade nascente, à experiência originária que toca ao fato de existir, o qual é experienciado como ato de existir. A existência deixa de ter uma dimensão meramente factual para ser percebida como apelo a que ela se realize em cada ato, em cada escolha operada pelo indivíduo.
A angústia se apodera da consciência em face de todos os possíveis. Essa angústia decorre da intuição humana de que aquela síntese a se realizar, na maioria das vezes, fracassa na própria tarefa destinada à sua realização. A angústia é, pois, o lugar de emergência do si mesmo. Ela é desprovida de objeto, diferentemente do medo que o supõe; tampouco é intencional. Ela é o pathos em cujo bojo o indivíduo começa a tomar consciência de si mesmo. A angústia se põe na origem em que o indivíduo, confrontado com seu nada, com o abismo sem fundo do possível, do virtual, toma consciência de sua situação.
Reforce-se, aqui, a ideia de que a existência é o indivíduo livre, e não no sentido biológico. Esse indivíduo se define pelo cuidado com o ser. Ele é o homem que lança seu destino no tempo, no âmago da finitude e na presença da morte; é o homem que, por decisão sua, pode perder-se ou ganhar-se, vir a ser ou fracassar. Esse poder de ser e de não ser o abala profundamente, pois que esse indivíduo se descobre como “eu”. A angústia é o rugido da liberdade que confere vida à realidade de cada um e que leva cada um à condição de escolher, de se fazer responsável por si mesmo.


1.6. O eu como relação entre a alma e o corpo

Cumpre-me agora responder à questão O que é o eu para Kierkegaard? Começo por notar que é a totalidade da finitude que deve relacionar-se com o infinito. Essa finitude é complexa e estruturalmente fadada ao conflito interior, ao desequilíbrio entre elementos – alma, corpo e espírito - que se tornaram heterogêneos por força da consciência e pela divisão que ela, consciência, estabelece entre a alma e o corpo, a interioridade e a exterioridade.
O eu, segundo Kierkegaard, não é uma identidade abstrata ou um substrato substancial estático. O eu é, essencialmente, relação e, sobretudo, relação viva consigo mesmo. O eu é a reflexividade da relação entre a alma e o corpo, que se desdobra dinamicamente no tempo, tornando possível a realização da síntese entre o infinito e o finito, entre o temporal e o eterno, entre a liberdade e a necessidade, entre o absoluto e o relativo, entre o incondicionado e a condição. Todos esses pares constituem os polos assimétricos da condição humana.
O eu é a relação entre a alma e o corpo que se relaciona reflexivamente por meio do espírito. A reflexividade constitui o eu, que é a singularidade de cada um. Essa reflexividade arranca o indivíduo à impessoalidade da espécie.
Adverte Kierkegaard que o homem não se reduz a essa relação. A relação é estruturalmente mais complexa. O eu, enquanto relação que se relaciona consigo mesma, ou deve ter sido posta por si mesma, ou deve ter sido posta por outra coisa. Kierkegaard argumenta que o eu é incapaz de se estabelecer por si mesmo, de modo que ele foi posto por aquilo que, não sendo causado, é causa de toda a relação. Assim, o espírito se relaciona com o que é responsável por toda a relação, a saber, com Deus. Segundo Kierkegaard, resgatar de maneira consciente a relação com Deus da qual procedemos inconsciente e originalmente é nascer para si mesmo de verdade. Esse resgate é designado por Kierkegaard como uma espécie de segundo nascimento de um indivíduo que, depois de enfrentar as agruras espirituais, se sente renovado e é capaz de se renovar a cada novo dia.
Sucede, contudo, que essa alegria da renovação não pode ser alcançada sem dor. Há, deveras, uma tensão na interioridade, já que o eu não é determinado: ele se determina, ou seja, ele é que se escolhe. Ser determinado é negar o ser eu. Esta liberdade é responsabilidade, e existir é estar pleno de paixão pela liberdade, é estar consciente de que cada um de nós é infinitamente responsável pelo que escolhe vir a ser de modo definitivo. O eu só é eu quando assume sua própria singularidade por uma decisão moral que consiste em escolher a contingência que se é, que consiste em fazer da necessidade liberdade, contribuindo para a livre criação de si mesmo, na relação com a força ontológica verdadeira – Deus.
É oportuno lembrar o drama de Kierkegaard, que se expressou na forma do desequilíbrio entre o espírito e o corpo. A educação austera que recebera foi decisiva para a hipertrofia de espírito. Ainda que ele rejeitasse o asceticismo, acabou por se tornar um penitente, após deixar uma tumultuária noite de bebedeira, na qual foi lançado aos braços de uma prostituta por seus companheiros de embriaguez. Essa experiência representa o ápice da cisão. A lembrança desse trauma lançou-lhe na alma tormentos.
Dessa experiência traumática resultou sua convicção de que a vida humana é um dever de encarnação no tempo daquilo que Deus – a fonte eterna – doa ao espírito. Ele reconheceu que, abandonado a si mesmo, fracassou. Não soube equilibrar em si o eterno e o temporal, o infinito e o finito.
O processo de subjetivação, portanto, passa pelo reconhecimento de que o sujeito existente é, ao mesmo tempo, ser-no-mundo (imanente) e ser-superior-ao-mundo (transcendente). Ele é uma consciência que se desenvolve progressivamente quando descobre a sua verdade e procura encarná-la. Assim, existir é simultaneamente devir e ser. É por isso que a existência demanda a fé que, no fundo, é apreensão progressiva da eternidade através do tempo.
Para Kierkegaard, acompanhando Hegel, a fé é a certeza interior que antecipa a infinitude. Ela não se confunde com uma fuga ao mundo, um enclausuramento numa subjetividade exaltada. A fé é um esforço para descobrir o sentido da existência, ou seja, para viver uma vida dotada de sentido. A fé é tanto mais indispensável quanto mais se reconhece que a questão do sentido constitui um desafio filosófico que dá ao pensamento um outro interesse que não é o simples conhecimento.
Enquanto confiança, a fé é, por conseguinte, um caminho para o crescimento no ser, é abertura do tempo à eternidade. Destarte, é possível ao homem nutrir-se dela para viver da própria eternidade no tempo. A fé, sem jamais desarrancar o homem de sua condição temporal, lembra-lhe a sua vocação para a experiência da eternidade.


2. O desespero e suas formas

O percurso que nos conduziu até aqui foi trilhado com o propósito de assegurar o esclarecimento do conceito de desespero na antropologia kierkegaardiana.
Retome-se, aqui, a visão segundo a qual a existência é o aparecimento abrupto da liberdade em face do estado factual da existência. Existir é encarado, a partir de então, como uma tarefa pela qual o indivíduo assume a sua liberdade para se determinar a si mesmo no tempo, nutrindo-se, no entanto, da eternidade, donde procede sua vida.
Deve-se enfatizar este pressuposto básico: o desespero é uma característica essencial do ser humano. O desespero é um sentimento que o indivíduo experiencia em face da escolha de si mesmo.
A primeira forma de desespero liga-se à experiência de angústia em face do peso da liberdade que tem o sujeito para realizar sua tarefa mais autêntica, qual seja, a de ser humano, a de realizar a síntese entre a alma e o corpo. Mas essa síntese não pode ser bem sucedida a um ponto que se venha a dissipar a angústia. Ora, a angústia é angústia em face do salto de liberdade para a liberdade, e a liberdade é a essência do espírito.
O desespero decorre dessa impossibilidade de o homem esquivar-se de sua liberdade, para fugir à angústia. A existência não se nos apresenta como algo acabado. A passividade é-nos uma condição também desesperadora.
Outra forma de desespero prende-se ao receio de fracassar na tarefa de vir a ser. Nesse caso, o homem que quer ser mais teme não conseguir ser. O desespero é esse não conseguir ser. O desespero é uma determinação do espírito que se relaciona com o eterno em nós. Vale dizer que a impossibilidade de desfazer-se do eu é o desespero para o homem. A essa forma de desespero Kierkegaard chama de pecado. O desespero é pecado porque é o estado em que se encontra o homem que, em face de Deus, não quer ser o eu mesmo que é. Kierkegaard vê também no pecado, por extensão, o afastamento do homem em relação a Deus. O contrário do pecado não é a virtude, mas a fé. A fé não pode ser provada e não se explica. O pecado por si mesmo é a luta do desespero.
Se o desespero se vincula ao grau do desenvolvimento da consciência do eu, ou seja,  se é certo que o homem tende a ser mais desesperado quanto mais consciente de si mesmo estiver, quanto mais o seu eu estiver desenvolvido, o desespero permanece latente ou inconsciente também naquele indivíduo cuja consciência é menos desenvolvida. Seu desespero é um desespero inconsciente. Ele pode passar a vida inteira sem saber que está desesperado, porquanto não tomou consciência de ser um eu que deve construir-se a si mesmo em oposição às forças do “destino”. Tal é o caso do esteta, que vive na inconsciência de seu desespero, entregue inteiramente aos prazeres da sensualidade.


2.1. O desespero como doença mortal

Recapitule-se que o eu só existe quando é auto-relação, quando se volta sobre si mesmo e a própria relação assume a forma de um terceiro termo, de sorte que cada um desses termos passa a se relacionar com o relacionamento do eu consigo.
Tendo em conta o que se expôs, o homem pode, então, assumir duas atitudes: pode querer relacionar-se consigo, independentemente de quem o pôs nessa relação, ou pode não querer relacionar-se. Quando o homem se nega a relacionar-se consigo, posiciona-se no domínio da ficção. Pretende, assim, em vão, escapar a si mesmo; ele só poderia fugir de si mesmo, no entanto, matando-se.
Ora, essa impossibilidade de fugir de si mesmo produz, no homem, o desespero. Kierkegaard chama a esse desespero de desespero que não quer. Trata-se da forma de desespero que decorre da impossibilidade de o homem escapar-se a si mesmo.
Pode ainda suceder que o homem, por outro lado, deseje entrar em relação consigo, aceitando essa relação, mas negando-se a reconhecê-la como uma relação fundada por um Outro, isto é, por Deus. O homem exaspera-se por procurar uma origem para essa relação e o faz identificando-a com um ídolo ou se divinizando na crença ilusória de que está na origem dessa relação. O homem crê-se criador de si mesmo. Kierkegaard chama a esse desespero de desespero de quem quer ser por conta própria.
O desespero é uma doença mortal, porque, na condição de afecção, altera continuamente o equilíbrio em que o eu desejaria instalar-se. Destarte, o eu se manifesta continuamente como um desequilíbrio que se estabelece na auto-relação entre o que é e o que ignora que é.
O desespero se caracteriza pela discordância que se instala nessa síntese interna – síntese do finito e do infinito – de que resulta o eu enquanto auto-relação. Na origem, não existe tal discordância, porque o eu é pura possibilidade de ser e de não-ser. A discordância só existe na síntese, ou seja, a discordância entre o eu e si mesmo só há na síntese estabelecida pelo eu.
O desespero é a consciência da luta entre a vida e a morte, que martiriza qualquer indivíduo, ora brutalmente, ora de modo mórbido, ora ainda de modo tênue, mas sempre acenando com uma presença indicativa do fim. Afinal, o homem sabe que vai morrer, e esse é seu único e último projeto determinante.
O homem bem instalado no mundo das máscaras sociais, na lida cotidiana não percebe a face do desespero. Ele imagina-se um outro, para poder evadir-se de si. A questão central que se impõe a Kierkegaard, nesse ponto, é, portanto, o fato de o homem não poder libertar-se de si. Quem se desespera quer, no seu desespero, ser ele próprio, quer viver. Mas a vida não permite esperança.
A verdadeira face do desespero é, pois, o dilaceramento entre a imagem (autossuficiência) que o homem constrói de si e a sua origem (a de ser síntese). O desespero é a contradição que se depreende do querer ser ele mesmo e, ao mesmo tempo, não querer ser a sua origem. O desespero se assenta no solo da liberdade. O homem teme ser absurdamente o nada.


2.2. A universalidade do desespero

Não há homem livre do desespero. Sucede, contudo, que o homem é solicitado a viver de modo despreocupado em face do mundo. O homem vive imerso na banalidade da vida, na qual encontra satisfação imediata. Nessas condições, ele não se dá conta do desespero. Tampouco se apercebe da flutuação entre saúde e doença que acenam com a fragilidade da vida. Ele vive em segredo, e a vida lhe passa desperdiçada.
Kierkegaard nega que a felicidade se encontre no prazer. A felicidade é uma miragem, enquanto busca de um bem durável, no plano da finitude e do possível. Todo homem, por natureza, é desesperado.


2.3. O desespero e suas relações

O indivíduo humano é uma permanente relação que se dá através da liberdade. A síntese que é o homem – síntese do finito e do infinito – não é dada a priori, mas decorre de uma escolha. O eu, como vimos, é liberdade. Mas a liberdade envolve a contradição entre as categorias do possível e do necessário.
A consciência de si, no homem, é tanto maior quanto mais intensa é a vontade: um homem sem vontade é esvaziado do eu. Kierkegaard situa, pois, o desespero relativamente à dialética entre o finito e infinito e às categorias do possível e da necessidade, tendo em conta a consciência.




2.3.1. O desespero e as categorias de finito e do infinito

A análise do desespero, à luz das categorias do finito e do infinito, implica a compreensão dessa síntese que é o eu, dilacerado entre o desejo de se tornar concreto e o apelo a ser mais, espiritualmente.
O eu é livre na medida em que se orienta por conta própria. Entanto, o homem vive oscilando entre o desejo de viver na concretude da corporeidade e o desejo de ser mais espiritualmente. Essa oscilação está sempre impregnada de desespero. Todo equilíbrio no tempo é fugaz.
Na sua relação com a infinitude, o desespero leva o homem a escolher viver fora do real. Nesse caso, o indivíduo se projeta no imaginário e neste se perde, e se torna, assim, privado do seu próprio eu. Essa projeção no imaginário pode dar-se no domínio do conhecimento, do sentimento e da vontade. Ele se projeta para fora de si infinitamente.
O homem que vive de imaginação ama obstinadamente, de modo impessoal e sem vínculo. Ele vive privado de seu próprio eu. Conhece sem ligar-se ao objeto que estuda. E sua vontade é a de um eu que nunca realiza seus projetos. O isolamento no campo do imaginário também leva ao impedimento da relação com Deus.
Na sua relação com o finito, o desespero atormenta aquele que não ousa ser plenamente si mesmo, em toda a sua singularidade, assumindo sua inteira responsabilidade sobre a escolha entre os contrários. Esse indivíduo se dilui na banalidade do cotidiano, se encarcera no finito.


2.3.2. O desespero e as categorias do possível e da necessidade

Para que o eu se transforme e chegue a ser ele mesmo, tem de viver tanto no domínio do finito quanto no domínio do infinito. Essa necessidade é, fundamentalmente, dramática.
Na sua relação com o possível, o homem, como ser de possibilidades, só se realiza no domínio da necessidade. Mas, sempre que não se dá conta dos limites impostos pela realidade à realização de seus projetos, acaba por enlear-se nas teias da imaginação e do desejo.
Na sua relação com a necessidade, o eu não pode esperar nada além do que o real, visto que, do contrário, falsifica a sua condição como ser inacabado e carente, que tende ao infinito. A existência humana tem, segundo Kierkegaard, uma dimensão ou finalidade espiritual.



2.3.3. O desespero e a categoria da consciência

Consoante observa Kierkegaard, à medida que o indivíduo vai se desencantando das ilusões próprias ao mundo dos sentidos, ele vai adquirindo mais consciência da existência nas suas profundas contradições. Nem sempre, contudo, isso significa libertação. Pode suceder que essa consciência intensifique o desespero.
Cumpre definir dois tipos de desespero identificados por Kierkegaard.

a) desespero-fraqueza (tipo passivo)

Esse tipo de desespero é próprio de quem sabe o que significa ser existente – ser livre e determinado, mas não aceita e não deseja ser essa realidade.

b) desespero-desafio (tipo ativo)

Trata-se do tipo de desespero que afeta o homem consciente de si, que curte a sua solidão e aumenta progressivamente a consciência de seu eu. Para ser ele próprio, abusa desesperadamente da eternidade, inerente ao eu. Mas é precisamente por estar em face da eternidade que esse desespero se aproxima da verdade e, paradoxalmente, dela se vai afastando infinitamente. Isso se explica por que o homem deixar de reconhecer a força ontológica fundadora, em suma, não pode pretender ser como Deus. O indivíduo afetado por esse tipo de desejo quer dispor-se de si, fazer do eu o que quer ser. Como um estóico, um eu ativo, não reconhece nenhum poder acima dele.
Silencio sobre os três estádios em que se desdobra a existência, momento do pensamento kierkegaardiano contemplado em outro texto postado neste blog. Remeto o leitor à leitura desse texto, que trata do tema da angústia em Sartre e em Kierkegaard como um meio de integralizar sua compreensão.

Levando a cabo esta exposição,  cumpre notar que Kierkegaard pretende que alcancemos a compreensão de que o coração do drama humano repousa sobre a relação da existência com uma transcendência que torna possível a abertura da primeira para além de si mesma, ou seja, a existência significa poder de decisão, possibilidade de ser e de nada, significa existência como dúvida e fé, como uma ação interior da liberdade que se convoca a fazer escolhas decisivas.