segunda-feira, 21 de julho de 2025

"Um princípio básico do estado capitalista moderno é que os custos e riscos são socializados ao máximo possível, enquanto o lucro é privatizado." (Noam Chomsky)

 

                                       

                             





                       Capital e capitalismo

                                Capital como valor em movimento

 

 

1.   Introdução

 

No texto intitulado O conceito de capital, publicado neste blog, busquei dar a conhecer ao leitor o conceito de capital no âmbito da economia, da sociologia e, de modo especial, no pensamento de Karl Marx. Vimos que Marx definia o capital como uma relação social; mas será necessário articular a essa concepção marxiana de capital uma outra, também desenvolvida por Marx: o capital como valor. Na esteira de Harvey (2018), que se dedicou a estudar a concepção de capital e valor na obra de Marx, buscarei esclarecer o que significa dizer que o capital é valor em movimento. Todavia, sem que se entenda previamente o que é valor na teoria de Marx, não se conseguirá compreender o que significa dizer que o capital é valor em movimento. Principiarei, portanto, por esclarecer o que Marx entende por “valor”, no âmbito de sua teorização do capitalismo.

Este texto, além de orientar-se pelo objetivo de discutir a concepção de capital como valor em movimento, é destinado, por força de seu próprio percurso analítico, à abordagem do capitalismo. Ao ocupar-me do capitalismo, pretendo responder às seguintes questões: 1) o que é o capitalismo? e 2) como ele funciona? Ao me concentrar na análise de seu funcionamento, espero que o leitor tenha em mente que o capitalismo molda nossas vidas, fabrica valores, subjetividades, discursos, poder, imagens, de sorte que pensar o modo como funciona o capitalismo é ir além da compreensão do capitalismo como sistema econômico ou modo de produção de mercadorias baseado na extorsão da mais-valia. Conquanto não convenha, neste texto, descer a pormenores sobre a concepção de capitalismo como modo de produção de mundo, como sistema de produção de uma civilização, de um modo específico de ser, de viver e se relacionar com o mundo, é imperioso não limitar nossa compreensão do capitalismo aos seus aspectos constitutivamente “econômicos”. Como nos ensina Bobbio (1995), o capitalismo deve também ser entendido como uma formação social, historicamente determinada pelo seu modo de produção. O capitalismo, à luz dessa concepção, designa uma forma geral de relação social. Destarte, o capitalismo é um fenômeno social, político e histórico.

No texto anteriormente escrito, mencionado no início desta exposição, preteri a apresentação dos tipos de capital discriminados na literatura especializada. Vou apresentá-los no que se segue, mas não sem antes retomar a concepção de capital como riqueza. É verdade que capital e riqueza não são conceitos equivalentes; todavia, é inegável que, no imaginário social, eles estão associados ou mesmo são confundidos. Assim, pensar o capital como riqueza é reconhecer, antes de mais nada, que o objetivo principal de quem dispõe de capitais (e veremos que são vários os seus tipos), no sistema de produção capitalista, é tornar-se rico. Entretanto, “riqueza” tem um significado diferente para o indivíduo e para um país. A fim de que se esclareça a diferença entre esses dois modos de perceber a riqueza, considere-se a lição de Dowbor abaixo:

 

(...) Tomemos o exemplo de uma pessoa que comprou uma casa abaixo preço, prevendo que a área em que ela se situa sofrerá uma valorização geral. Depois de seis meses, a mesma pessoa revende a casa, digamos, pelo dobro do preço. É indiscutível que essa pessoa enriqueceu. Mas, do ponto de vista do país, da economia como um todo, houve alguma modificação? É óbvio que não, pois o interessado não construiu nada, não aumentou o patrimônio de riqueza da sociedade. (Dowbor, 2004, p. 10).

 

Tome-se, agora, outro exemplo. Imaginemos uma pessoa que investiu seu dinheiro na construção de um prédio. Por uma série de razões, ela acabou perdendo dinheiro, pois não conseguiu recuperar o valor investido inicialmente. Não obstante, o prédio existe e servirá de moradia para várias famílias. Em suma, o indivíduo perdeu, mas a sociedade ganhou. Da lição de Dowbor, deve-se concluir, portanto, que, ao equacionar o capital à riqueza, necessário é distinguir o que significa riqueza para um indivíduo e o que é riqueza no âmbito da sociedade como um todo. Sempre que um indivíduo ou alguns poucos enriquece à custa de outros, por meio de especulações financeiras, jogo sobre preços, venda de ações, há transferência de riqueza para essa minoria, enquanto uma maioria perde. O país nada ganha com isso. É oportuno lembrar que a especulação financeira pode arruinar um país. O economista Joseph Stiglitz, laureado com o Nobel, explica-nos como isso é possível. Quando um especulador de Wall Street toma um empréstimo num banco na Tailândia, em moeda local, ele, então em posse de bilhões nessa moeda, passa a comprar dólar no mercado local, ciente de que são limitados os recursos desse país. O dólar sobe rapidamente, porque outros agentes econômicos locais também passam a comprar dólar. Num breve espaço de tempo, o valor do dólar duplica, e o especulador de Wall Street revende uma quantidade de dólares suficiente para saldar a dívida com os bancos credores da Tailândia, e ainda leva para a casa 400 milhões de dólares para cada bilhão de que dispunha. Ele ganhou rios de dinheiro, sem produzir nada. Sua operação especulativa acabou por desorganizar a economia de um país já pobre e empobreceu os poupadores que lá vivem.

Volverei a considerar o modo como funciona o capital no domínio das especulações financeiras, depois que elucidar o que é capital financeiro. Espero que tenha ficado claro, mais uma vez, por que não devemos tomar o capital como sinônimo de riqueza social. Vejamos, doravante, os tipos de capitais e o modo como eles se inserem como elementos constitutivos do funcionamento do modo de produção capitalista.

 

2.     Tipos de Capital

 

 O primeiro tipo de capital, que mais próximo está da concepção de capital do senso comum, é o capital fixo. O capital fixo recobre os imóveis, os aparelhos e o maquinário possuídos por indivíduos ou uma empresa. Sua contraparte é o capital circulante, que Marx chamará de capital variável. O capital circulante é formado pelos meios líquidos e pelo crédito necessários para pagar os salários, adquirir materiais (que entram na produção das mercadorias, como, por exemplo, o couro na fabricação de sapatos), para pagar serviços necessários durante o ciclo produtivo (por exemplo, o pagamento dos fornecedores dos materiais).

Pode-se também distinguir o capital industrial do capital comercial. Essas duas modalidades de capital abrigam não só o capital fixo e o capital circulante, como também as formas fenomênicas que o capital assume nos diversos momentos de sua circulação e reprodução, e as relações sociais que se estabelecem entre a indústria, o sistema bancário e o aparelho distributivo – ou entre os papéis que os representam.

Fala-se também em capital fixo social para se aludir ao conjunto de meios de transporte, estradas, escolas, energia elétrica, obras hidráulicas, etc., que está à disposição de uma comunidade.

No marxismo, distingue-se o capital constante do capital variável. O primeiro recobre o valor dos meios de produção propriamente dito, das matérias-primas. O segundo é constituído pelos salários pagos por uma empresa. A relação aritmética entre o capital constante e o capital variável é chamada de composição orgânica do capital, a qual será, por isso, tanto mais alta quanto menor for o capital variável, ou seja, os salários pagos. Antes de avançar considerações sobre o processo de valorização do capital constante, vale observar, en passant, que os recursos naturais, como a terra, por exemplo não são considerados capital. Assim, o conceito de capital compreende apenas os meios de produção social, ou seja, tudo aquilo que é utilizado em atividades que se inserem na divisão do trabalho. No modo de produção capitalista, o capital abrange os recursos usados na produção de bens e serviços destinados à venda. Não integram o capital aqueles meios de produção que são utilizados para a satisfação das necessidades dos produtores. Na teoria marxista, o capital é o resultado da acumulação da mais-valia, obtida pelos empresários na exploração do trabalho de seus operários.

Quando nos referimos ao capital de uma empresa, referimo-nos aos seus recursos produtivos, isto é, aos seus equipamentos, instalações, estoques. Se esses recursos são propriedade da empresa, eles formam o seu capital próprio. Nesse caso, seus proprietários gozam do direito de receber os lucros gerados por esse capital. Se aqueles recursos tiverem sua origem em empréstimos, então eles constituem o capital de terceiros, caso em que seus proprietários recebem juros como remuneração.

Outro tipo de capital que podemos encontrar na literatura econômica é o capital real, a saber, o conjunto dos meios de produção de uma sociedade, o qual se expande à proporção que novos meios de produção são inseridos na atividade produtiva. A propriedade do capital real é certificada por títulos negociáveis. Uma vez postos em circulação no mercado financeiro, esses títulos terminam por incorporar um valor que não corresponde ao valor do capital de que se originou, mas às expectativas dos agentes financeiros sobre sua lucratividade futura. É oportuno, pois, a esta altura, referir outro tipo de capital, hoje hegemônico globalmente – o capital financeiro

O capital financeiro recobre todas as parcelas do capital de uma empresa que se encontram em estado de liquidez, ou seja, que podem ser transformadas em qualquer ativo físico de forma imediata. De passagem, vale observar que os ativos são recursos ou bens que, possuindo valor econômico, podem gerar renda ou crescimento econômico. Constituem exemplos de ativos o dinheiro, os depósitos bancários, veículos, imóveis, etc. Situado no domínio macroeconômico, o capital financeiro é todo capital empregado nos mercados de títulos (Bolsas de Valores, Bolsas de Mercadorias) e todo aquele movimentado pelos bancos e instituições financeiras em geral. O capital financeiro constitui o capital representado por títulos, obrigações, certificados e outros papéis negociáveis e que podem ser convertidos em dinheiro rapidamente.

Historicamente, o capital financeiro é a forma do capital que se originou da fusão do capital dos monopólios bancários com o capital dos monopólios industriais nos países imperialistas. Uma das características fundamentais do imperialismo é a existência do capital financeiro e o consequente surgimento de uma oligarquia financeira. A formação do capital financeiro, nas últimas décadas do século XX e nas primeiras décadas do século XXI, foi resultado da elevada concentração e centralidade do capital nos setores industrial e bancário, geradas na Europa ainda no século XX. Segundo Lênin, a história do nascimento do capitalismo financeiro é a história da concentração da produção, da fusão dos bancos com a indústria, é a história também da formação de monopólios que decorreu daquela concentração. Destarte, servindo-se de recursos monetários livres, os bancos não apenas concedem às empresas industriais empréstimos a curto prazo, mas também créditos a médio e longo prazo. Por conseguinte, os bancos passam a poder participar do desenvolvimento e da administração das empresas, bem como podem influir no destino delas. Os recursos bancários são transferidos também para a indústria, mediante a compra de ações, o que possibilita a criação de um sistema de participações por meio do qual um pequeno capital bancário passa a controlar volumes muito grandes de capitais industriais. Concomitantemente, ocorrem a concentração e a centralização do próprio capital financeiro, através da formação de grandes conglomerados empresariais que se tornam capazes de influir não somente na direção de um setor, mas também na direção de toda a economia nacional, estendendo seu poder sobre o mercado internacional.

Em grande medida, é através do capital financeiro que os países imperialistas estendem sua dominação sobre os países periféricos. Vamo-nos deter um pouco mais na descrição do poder do capital financeiro, examinando a relação entre aplicações financeiras e capital. Consoante Dowbor (2004, p. 11), “os especuladores gostam de chamar o que fazem de “investimento”, quando na realidade se trata de aplicações financeiras”. Ademais, também chamam de “capital” o que não passa de “movimentos especulativos”. Mas não nos deixemos enganar pelos seus “cantos de sereia”. O capital é o processo de enriquecimento da uma sociedade. Uma sociedade só se desenvolve economicamente, quando os recursos sociais são usados para aumentar a quantidade de bens já disponíveis (a riqueza) nela. Por isso, é indispensável distinguir entre o enriquecimento pessoal e o enriquecimento social, a que já me referi.

Ser rico, para um indivíduo, é ter bastante dinheiro para trocar por produtos, bens e serviços que são realmente úteis e que produzem satisfação pessoal. Para um país, por outro lado, ser rico não se define pela quantidade de dinheiro em caixa. O dinheiro, da perspectiva de um país, é apenas papel ou sinais magnéticos numa conta bancária. O Estado pode imprimir milhões de toneladas de papel-moeda, sem que a população viva melhor por isso, sem que as suas condições reais de existência melhorem. Para que famílias e grupos sociais gozem uma educação de qualidade, um sistema de saúde eficiente, gozem de uma alimentação adequada, é preciso que escolas, universidades, hospitais, clínicas de família, postos de saúde sejam construídos; é preciso, além disso, que médicos e professores sejam formados, etc. Em suma, é preciso que se realize um processo concreto e trabalhoso de produção de bens e serviços. Devemos, portanto, atender na lição de Dowbor acerca do significado de riqueza no âmbito social:

 

Em outros termos, é necessário ter presente que riqueza, do ponto de vista social, não é constituída por papel-moeda, nem cheques, ações, nem títulos: estes são meros instrumentos de transferência de bens e serviços de uma mão para a outra. Levam a riqueza a mudar de mãos, mas não criam riqueza alguma. (Dowbor, 2004, p. 12).

 

Do ponto de vista social, riqueza é a capacidade de produzir bens e serviços. Portanto, uma das condições para que uma população possa melhorar suas condições de vida é aumentar a produção. Não existem técnicas, nem milagres monetários que façam um país enriquecer.

 

3.     O capital e o processo de produção

 

Nesta seção, interessa-me analisar o funcionamento do modo de produção capitalista, fazendo ver como os diferentes tipos de capital a ele se integram. Para tanto, começo por desenvolver a distinção entre capital constante e capital variável no pensamento de Marx. O capital constante é aquele empregado na compra dos meios de produção: máquinas, matérias-primas e outros materiais. Segundo Marx, o valor dessa forma de capital não se altera durante o processo de produção; por isso não pode constituir a fonte do aumento do capital inicial. Por seu turno, o capital variável é a quantidade de capital gasto na compra da força de trabalho e tem seu valor aumentado no processo de produção. Esse aumento se realiza por meio da mais-valia, o que faz do capital variável o fator responsável pelo aumento do capital inicial. Segundo Sandroni (2014), o capital constante se desenvolveu na fase comercial da Idade Média. Nesse período, criaram-se novas formas de escrituração mercantil para o controle dos negócios e o capital era a quantia de dinheiro com a qual se começava qualquer atividade comercial.

 

À medida que seu uso foi se consolidando, seu significado foi ganhando conotações mais amplas: assim, após os grandes descobrimentos, representava o acervo das companhias comerciais ou as parcelas de dinheiro com que os associados contribuíam para a formação de uma companhia. Capital era dinheiro investido, nada tendo a ver com bens nos quais o dinheiro fora aplicado. (Sandroni, 2014, p. 114).

 

 

Foi com Adam Smith que se estabeleceu a diferença entre capital individual e capital social. O capital individual designa a parte da totalidade da riqueza de um indivíduo que é utilizada para suprir suas necessidades de consumo diário. Por outro lado, o capital social é a parte utilizada para a obtenção de renda ou lucro. É essa parte que constitui o capital propriamente dito, pois, para que engendre lucros, ele precisa ser investido em alguma atividade econômica, saindo da posse de seu investidor para retornar, posteriormente, a ele na forma de lucro. É, portanto, em tal circulação, que o capital adquire seu caráter social.

A fim de que se alcance uma compreensão satisfatória do funcionamento do processo de produção, retenha-se a ideia de que o capital é gerador de lucro; se não o gera, não é verdadeiramente capital. Em outras palavras, o lucro obtido, ao final de todo o processo produtivo, decorre da reprodução e acumulação contínua do capital.

Consideremos o caso de uma pessoa que decide produzir sapatos para vender. Para fazê-lo, ela conta com dinheiro próprio (capital inicial). Com esse dinheiro, ela compra um conjunto de bens e serviços que possibilitarão iniciar a produção. Ela necessitará adquirir três tipos de mercadoria, os quais constituirão os componentes básicos do processo de produção:

 

1)    a mão-de-obra: os trabalhadores indispensáveis à fabricação de sapatos;

2)    a matéria-prima: o couro, pregos, cola e a energia necessária à fabricação de sapatos;

3)    o equipamento: as máquinas, as instalações, o prédio e outros utensílios que são utilizados pelos trabalhadores para transformar a matéria-prima no produto a ser comercializado.

 

Esses tipos de mercadorias estão presentes em qualquer setor da produção econômica. Com efeito, para produzir pregos, necessário se faz contratar trabalhadores que, por sua vez, utilizarão máquinas para transformar o metal. Igualmente, a produção de arroz necessita do agricultor, que utiliza a enxada para semear a semente. Para formar pessoas aptas a participar do processo social, a se inserir no mercado de trabalho, no processo de produção, necessitamos de professor, livros e salas de aula.

Do exposto, segue-se que o processo de produção se compõe de: D = dinheiro inicial; M = mercadoria (capital produtivo); C = capital constante; Cc = capital circulante (matéria-prima, energia, etc.); Cf = prédios, instalações, máquinas...); P = processo produtivo; M = mercadoria final (capital-mercadoria); D’ = dinheiro obtido como resultado da venda da mercadoria. Exposto está, pois, o ciclo do capital, que começa com o dinheiro – capital inicial – num movimento de valorização contínua do capital – para gerar dinheiro como lucro final.

Aparentemente complicado, o esquema apresentado é, na verdade, bastante simples e lança luzes sobre o processo de produção. O ponto de partida é o dinheiro, também chamado capital-dinheiro, sempre que é aplicado na produção. Na segunda etapa, encontra-se a mercadoria produtiva, também chamada de capital produtivo, que se divide em dois outros tipos: a mão-de-obra, ou seja, a quantidade de força de trabalho a ser utilizada na produção, e a mercadoria como capital constante, que compreende o conjunto de despesas que não são consequentes do trabalho da mão-de-obra.

Destarte, o capital se divide em duas grandes partes: o capital circulante, como, por exemplo, o couro, a energia elétrica, os pregos, etc., utilizados para produzir os sapatos, e o capital fixo, que é empregado muitas vezes no processo de produção e só é substituído quando sofre danos. Um exemplo de capital fixo é a máquina, que resiste à produção de milhares de sapatos, ou a enxada, que será empregada em várias safras. Por outro lado, o couro e a semente só entram a fazer parte do processo de produção uma única vez.

O capital se diz circulante, porquanto entra no processo de produção apenas uma vez, de sorte que o couro, por exemplo, usado para fabricar sapatos, uma vez incorporado a eles, se torna inutilizável. Portanto, quando combinados entre si o trabalho, o capital fixo e o capital circulante, temos um processo de produção, cujo resultado é uma nova mercadoria que incorpora o valor dos diversos elementos integrados a ela – o trabalho, a matéria-prima, o desgaste das máquinas. Essa nova mercadoria é o sapato, que constitui o capital-mercadoria. A essa altura, chamo a atenção do leitor para a onipresença do capital em todo o processo, pois que todos os elementos que entram para constituição do processo de produção são convertidos continuamente em capitais. Assim, o que, em economia, se chama capital abrange o dinheiro inicial, o capital produtivo e o capital-mercadoria. Essas três formas de capital são inseridas num ciclo de valorização, que se consagrou chamar de reprodução do capital. Dizer, portanto, que o capitalismo é um sistema de produção calcado sobre a acumulação e reprodução contínua do capital é dizer que o capitalismo, ou melhor, seu modo de produção carreia um processo de valorização contínua daqueles três tipos elementares de capital que entram a fazer parte do processo de produção. Em nenhum momento desse processo de valorização do capital, a mercadoria-trabalhador é valorizada. Ela é apenas um meio para a valorização daquelas três formas de capital.

O capital inicial, ou o dinheiro necessário ao início da produção, constitui, em si, um problema econômico. De onde vem esse dinheiro? É a poupança de um agricultor que pode semear numa única área? É dinheiro tomado de empréstimo a um banco onde pessoas o depositaram? É originado de um subsídio do Governo? O problema que o capital inicial descerra é o do acesso ao dinheiro que permite a algumas pessoas adquirirem capital produtivo e, assim, tornarem-se capitalistas.

Também a força de trabalho (a mão-de-obra) suscita um problema, que toca à condição do trabalhador no interior do processo de produção. O valor pago por tempo de trabalho será maior ou menor, segundo o nível salarial, que, por sua vez, prende-se ao grau de organização sindical dos trabalhadores, à capacidade de pressão dos proprietários dos meios de produção e ao nível de produtividade. Por exemplo, a queda de parte dos salários no Brasil, correspondente a 45% do PIB, em 1990, para 37% em 2000, é resultado daquela relação de forças.

Por sua vez, o capital constante encerra o problema da escolha dos investimentos que devem ser realizados. Deve-se preferir a utilização de um trabalhador para conduzir um trator, do que resultaria o aumento de unidades de capital e diminuição de trabalho, ou se deve utilizar 10 trabalhadores, possuindo cada um uma enxada, caso em que se aumentam os gatos com mão-de-obra e economiza-se em gatos com o capital? Consoante ensina Dowbor (2004, p. 16), “a compreensão dessa relação T/C [trabalho/capital constante] é fundamental para entender o movimento de uma economia: trata-se da “composição orgânica do capital”.

Em 2004, o custo para abrir um posto de trabalho na Suécia, no setor industrial, era em torno de 150.000 dólares. Isso significa que, para cada emprego na indústria, considerando-se o nível de avanço do capital fixo, o gasto com capital constante será em torno de 150.000 dólares. Um modelo de industrialização como esse é possível em um país pobre? Em outras palavras, é viável ofertar vagas de emprego à população de um país subdesenvolvido com esse nível de investimento em capital constante por trabalhador?

Cumpre notar que da relação entre capital constante e trabalho e, em especial, da proporção de cada um no processo de produção, resulta outro caminho de investigação da acumulação do capital. Quando um trabalhador utiliza um trator, todas as etapas escalonadas do processo de produção devem bastar para que se cubra o investimento fixo importante no trator. Se, por outro lado, dez trabalhadores utilizarem enxadas, o empregador pode reduzir a escala de produção, sem que tenha prejuízos, para o que ele limita a contratação de trabalhadores, visto ser limitado o investimento em capital fixo. Disso resulta que, em países pobres ou com territórios pequenos, é muito difícil produzir para o mercado interno com uma composição orgânica do capital elevada, fato este que gera a exclusão de uma série de setores industriais, com composição orgânica, do processo de industrialização desses países.

Antes de examinarmos a questão do capital como valor em movimento, alguns esclarecimentos sobre o funcionamento do processo de produção se fazem necessários. É importante levar em conta o fato de que o capital-mercadoria obtido deverá ser novamente transformado em dinheiro, para que o ciclo de produção possa recomeçar. Isso significa que a mercadoria deve ser vendida a um preço que permita, ao menos, a recuperação do capital inicialmente investido. Essa transformação final do capital-mercadoria em capital-dinheiro, de M’ em D’, descortina o conjunto de problemas ligados à venda do produto: 1) o problema da superprodução ou do subconsumo; 2) o problema da adequação da produção às necessidades do consumidor; 3) o problema da persuasão publicitária a que nos submetem as grandes empresas.

Quando um economista se debruça sobre a relação entre o valor de capital inicial investido (D) e o valor final D’ adquirido com a venda da mercadoria M’, ele pode mensurar as consequências advindas da sucessão de ciclos de reprodução do capital. Veja-se um único exemplo do tipo de problema que se apresenta ao nosso economista. Se um investidor obteve, ao final do ciclo de reprodução do capital, o mesmo valor em dinheiro investido inicialmente, ele conseguirá sobreviver, se for, por exemplo, agricultor, durante o próximo ano agrícola; conseguirá pagar o desgaste dos seus equipamentos de trabalho, mas nada lhe sobrará para comprar mais equipamento ou para adquirir sementes melhores. A reprodução desse ciclo gerará o mesmo produto ano após ano, sem expansão da produção e do aparelho produtivo. Nesse caso, há uma reprodução de subsistência que não aumenta o capital inicial e, portanto, não leva ao desenvolvimento da economia capitalista.

 

4.     O capital como valor em movimento

 

Impõe-se-nos esclarecer, inicialmente, o que Marx entende por “valor”. Para Marx, valor é tempo de trabalho socialmente necessário. O tempo de trabalho que se consome na fabricação de bens para os outros comprarem e usarem é uma relação social. A relação social, por seu turno, é uma força imaterial, porém objetiva. Portanto, o valor de uma camisa, por exemplo, não é uma propriedade material dela; não o encontramos, se a dissecarmos. O valor é uma relação imaterial que, todavia, produz efeitos materiais objetivos. O valor, para Marx, é um conceito que descreve algo imaterial. Logo, o valor é um conceito do mesmo tipo que conceitos como status, solidariedade social, poder, entre outros. Consoante lembra Harvey (2018), o fisicalismo, em sua modalidade empiricista, não reconhece coisas ou processos que não podem ser fisicamente observados e documentados. Não obstante, nós usamos conceitos para descrever coisas imateriais que, no entanto, são bastante objetivas. O materialismo histórico reconhece, por outro lado, a importância dos poderes imateriais, mas objetivos. Eles nos servem para explicar acontecimentos históricos tais como a queda do muro de Berlim, a eleição de Donald Trump ou o desejo de populações tradicionais de viver em conformidade com suas normas e padrões culturais.

O capital, para Marx, é, por um lado, valor e, por outro, relação social. Na condição de valor, o capital é algo imaterial. Em virtude de sua condição de valor, sentimos a necessidade de lhe conferir uma representação material, ou seja, necessitamos de algo tangível, mensurável que possa fazer as vezes do valor. Satisfazemos essa necessidade criando o dinheiro, que é a expressão ou representação do valor. O valor é relação social, e o dinheiro é a expressão e representação dessa relação social.

O capital começa, no processo de produção, como capital-dinheiro; passa por sistemas de produção, até que surge como novas mercadorias destinadas à venda no mercado e à distribuição sob diferentes fações de demandantes (na forma de salário, juros, aluguel, imposto, lucro), para, enfim, retornar como capital-dinheiro.

Marx, em O Capital (Livro I), observa que o capital é um valor, um valor em movimento. Cabe, doravante, avançar reflexões sobre o modo como o capital se constitui em valor em movimento. A transformação de uma quantidade de dinheiro em meios de produção e em força de trabalho constitui o primeiro movimento realizado pela quantidade de valor que funcionará como CAPITAL. A segunda fase desse movimento de valorização, que se identifica com o processo de produção, conclui-se, assim que os meios de produção se convertem em mercadorias cujo valor é superior ao valor de suas partes constitutivas. Nesse momento, portanto, o processo de produção inclui o capital já acrescido de um mais-valor. Posteriormente, as mercadorias produzidas devem ser lançadas novamente na esfera da circulação (novamente, porque, no primeiro movimento de valorização do capital, a quantidade de valor que deve funcionar como capital já se encontra na esfera do mercado, ou seja, da circulação). O objetivo do capitalista é vender mercadorias, é realizar seu valor em dinheiro, de sorte que esse dinheiro seja convertido novamente em capital, num processo contínuo e ininterrupto. Esse ciclo, que se desdobra sempre nas mesmas fases, constitui a circulação do capital. Se você, leitor, não perder de vista o objetivo do capitalista, já referido acima, não se deixará persuadir do engodo que consiste na afirmação corriqueira de que o capitalismo é um sistema econômico que gera abundância e conforto material. Nesse tocante, lúcida é a lição de Belluzzo & Galípolo (2021), quando pensarão o conceito de abstração real como condensador da constituição da estrutura e dinâmica do capitalismo:

 

(...) Vamos considerar as cadeias globais de valor. Esse movimento ocorre na estrita obediência às normas do capitalismo enquanto sistema, cujo objetivo é a acumulação de riqueza abstrata, monetária. Ou seja, não se trata de produzir e gerar abundância e conforto material para os indivíduos e suas vidas, mas de produzir mercadorias concretas, particulares, úteis ou inúteis, com o propósito de acumular dinheiro. (Belluzzo & Galípolo, 2021, p. 13, grifos meus).

 

Ao capitalista não importa onde e o que produzir. Importa-lhe distribuir e organizar a produção onde quer que seja possível a maximização dos resultados monetários, isto é, do lucro, ambicionados por grandes empresas e por bancos que controlam os instrumentos de produção e o dinheiro. As condições de vida dos indivíduos que habitam as regiões abandonadas ou ocupadas pela máquina do capital são meros efeitos, bons ou ruins, dos movimentos da abstração real. En passant, a abstração real é, segundo os autores, um processo que se realiza nos subterrâneos das sociedades capitalistas, deformando suas superfícies. Ela não é o contrário do mundo concreto, não se opõe a ele, tampouco age sobre ele como uma força externa, mas o coloniza a partir de seu interior; assimila-o às suas leis. A abstração real constrói a realidade, produzindo o esvaziamento do real concreto. Ela, simultaneamente, produz e dissimula a realidade.

Segundo Belluzzo & Galípolo, na realidade dominada pela abstração real desde a sua interioridade, o ser humano vê-se desorientado, abandonado, porquanto todas as suas vivências, toda a sua experiência se traduzem em funções econômicas de produção e reprodução do abstrato que, no entanto, ostenta a face do concreto.

Feita essa digressão, retome-se aqui a discussão sobre o ciclo de valorização do capital. Embora, analogamente ao ciclo natural da água, que assume diferentes formas e estados, em diferentes velocidades, até retornar aos oceanos para reiniciar o mesmo ciclo, o movimento do capital o faça retornar ao seu estado inicial de mercadoria-dinheiro, há uma diferença bastante significativa entre o ciclo hidrológico e a circulação do capital. Em apertada síntese, a força motriz do ciclo hidrológico é a luz solar, que é relativamente constante, e o volume total de água em circulação também o é. No caso do capital, no entanto, “as fontes de energia são mais variadas e o volume de capital em movimento se expande continuamente, em ritmo exponencial, em razão de uma exigência de crescimento” (Harvey, 2018, p. 17). Se o ciclo de água é mais semelhante a um ciclo genuíno (embora haja sinais de que se esteja acelerando em decorrência do aquecimento global), a circulação do capital, no entanto, é “uma espiral em constante expansão”. (ibid.).

O capital é valor em movimento, e valor é tempo de trabalho necessário. Consoante ensina Harvey (ibid., p. 18), “[o valor] é trabalho social que realizamos para os outros tal como é organizado por meio de trocas de mercadorias em mercado competitivo, com seus mecanismos de determinação de preços”.

Um indivíduo que fabrica sapatos para vender usa o dinheiro recebido pela venda para comprar de outras pessoas outras mercadorias de que precisa, como camisas. Nesse tipo de troca, ele está realmente trocando o tempo de trabalho consumido na fabricação de sapatos pelo tempo de trabalho que outra pessoa gastou fabricando camisas. Numa economia competitiva, em que muitas pessoas produzem camisas e sapatos, se a produção de sapatos, em comparação com a de camisas, consome mais tempo de trabalho, é razoável que os sapatos custem mais caro do que as camisas. Assim, o preço dos sapatos seria fixado a partir de um média, e o preço de camisas a partir de outra. O valor expressa, pois, a diferença entre as duas médias. Nesse sentido, o valor pode significar que um par de sapatos é equivalente a duas camisas. Mas deve-se sempre ter em vista que o importante é o tempo de trabalho médio consumido na produção dessas mercadorias. Assim, o nosso fabricante de sapatos não obteria lucro, se gastasse um tempo muito elevado na fabricação de sapatos. Em outros termos, ele não receberia o equivalente em troca. Ele recebeu apenas o valor equivalente ao tempo de trabalho médio correspondente àquela mercadoria.

A apropriação por um capitalista de uma quantia de dinheiro para ser convertida em capital pressupõe a existência de um sistema monetário bastante desenvolvido. O dinheiro disponível numa sociedade pode ser usado de várias maneiras. Uma parte dessa imensa quantidade de dinheiro em uso, é alocada para transformá-lo em capital-dinheiro. Contudo, há que enfatizar que nem todo dinheiro é capital. O capital designa uma porção da totalidade do dinheiro a ser inserida na produção. Reitere-se que, para Marx, capital é valor em movimento.

De posse de dinheiro como capital, o capitalista adquire no mercado dois tipos de mercadoria: o trabalho e os meios de produção. Mas a sua aquisição supõe que o trabalho assalariado já exista e que a força de trabalho esteja disponível para ser adquirida. Supõe também que exista uma classe trabalhadora assalariada, espoliada dos meios de produção, circunstância em que não lhe resta senão vender sua força de trabalho. O valor dessa força de trabalho é determinado por seus custos de reprodução, tendo em vista um dado padrão de vida. O valor dessa força de trabalho equivale ao valor do conjunto básico de mercadorias de que necessita o trabalhador para sobreviver e se reproduzir. O leitor, contudo, deve atender na ideia de que o capitalista não compra o trabalhador (o que seria escravidão), mas sim o uso da força de trabalho do trabalhador por um período fixo de tempo (por exemplo, por uma jornada de 8 horas por dia).

Os meios de produção também são mercadorias, que se apresentam sob formas diversas: matérias-primas extraídas da natureza, peças de automóveis, chips de silício, máquinas, energia, fábricas, uso de infraestruturas físicas (ruas, sistemas de esgoto, abastecimento de água, etc.), que pode ser concedido gratuitamente pelo Estado ou adquirido por um grupo de capitalistas. Grande parte dessas mercadorias, no entanto, precisam ser adquiridas no mercado por um preço que representa seu valor. O capital, a fim de se reproduzir continuamente, precisa de que exista não apenas um sistema monetário e um mercado de trabalho, mas também um sistema de troca de mercadorias e uma infraestrutura física adequada. Por esse motivo é que Marx insiste em que o capitalismo só poderia originar-se no interior de um sistema de circulação de dinheiro, mercadorias e trabalho assalariado já estabelecidos.

O capital, então, se transforma. Inicialmente, ele tinha se apresentava sob a forma-dinheiro. No processo de circulação do dinheiro e de mercadorias, aparece o valor na forma de mercadorias: força de trabalho à disposição de uso e meios de produção reunidos e disponíveis para serem usados na produção. O conceito de valor e sua centralidade no pensamento de Marx permitem-lhe investigar a natureza do processo de transformação do valor na forma de dinheiro em valor na forma-mercadoria.

 

4.1.           A valorização do capital

 

Consoante ensina Harvey (ibid., p.24), “a produção é o momento mágico em que ocorre o que Marx chama de valorização do capital”. Mas o que isso significa? O capital constante só pode revitalizar-se, se a força de trabalho for empregada para expandir o valor. E ela é empregada para produzir mais valor absoluto. A técnica é simples: estende-se a jornada de trabalho além do estágio em que o valor da força de trabalho foi recuperado. Assim, “quanto maior a jornada de trabalho, maior a quantidade de mais-valor produzida para o capital”. (ibid.).  O aumento abusivo da jornada de trabalho com vistas à produção de mais-valor é uma característica central na história do capitalismo. Mais de duzentos anos de luta pela redução da jornada de trabalho, pela redução da semana de trabalho e pelo período anual de trabalho ilustram quão central é essa prática. O poder do trabalho organizado praticamente extinguiu-se nos últimos trinta anos, em vários lugares do mundo, de modo que é grande o número de pessoas que cumula 80 horas de trabalho em duas empresas para assegurar a sobrevivência. Como lembra Harvey, “cada vez que o capital passa pelo processo de produção, ele gera um excedente, um incremento de valor”, e por isso a produção capitalista implica sempre um crescimento ilimitado. Ademais, é isso que produz a forma espiralada do movimento do capital.

Ninguém se empenharia tanto para lidar com os problemas advindos da organização da produção, se tivesse de obter, no fim do dia, a mesma quantia de dinheiro que tinha no bolso no início do processo. O incentivo para o empreendimento capitalista é o lucro monetário, e a forma de obtê-lo é a criação de mais-valor (mais-valia) no processo de produção.

Os consumidores não têm vontades, necessidades e desejos espontâneos de dadas mercadorias. Há uma longa e complexa história capitalista de criação de vontades, desejos e necessidades. As mercadorias chegam ao mercado para serem vendidas. Se a venda for bem-sucedida, o valor delas retorna à sua forma monetária. No entanto, para que a venda seja bem-sucedida, é preciso criar a vontade e o desejo do valor de uso delas. A demanda efetiva pelas mercadorias, ou seja, a capacidade de pagamento por elas, está atrelada ao fato da distribuição monetária. No processo de transformação do valor de sua forma-mercadoria em sua forma-dinheiro, há percalços. Caso, por exemplo, ninguém necessite de determinada mercadoria, esta não possuirá valor algum. Portanto, não importa quanto tempo de trabalho tenha sido gasto em sua produção. Atento a esse fato, Marx percebeu que deve haver uma unidade contraditória prevalecente entre a produção e a realização, a fim de que se garanta a manutenção do fluxo de valor.

A fim de que se torne límpida a ideia de manutenção do fluxo de valor, precisamos atentar para as duas formas de consumo, reconhecidas e descritas por Marx. Essas duas formas de consumo se inserem na transformação da mercadoria em sua forma-dinheiro. A primeira forma de consumo é a do consumo produtivo. Ela consiste na produção e na venda dos valores de uso exigidos pelo capital, na qualidade de meios de produção. Ora, todas as mercadorias de que necessitam os capitalistas para a produção precisam ser produzidas por outros capitalistas, essas mercadorias constituem bens que entram diretamente no processo de produção. Portanto, uma parte da demanda efetiva total na sociedade é constituída por capital-dinheiro destinado à compra dos meios de produção. Os desejos e as necessidades dos capitalistas de adquirir essas mercadorias mudam constantemente, a fim de atenderem à inovação tecnológica e organizacional. As mercadorias ou os meios de produção de um arado, por exemplo, são muito diferentes daqueles que entram a fazer parte da fabricação de um trator.

A segunda forma de consumo é a do consumo final. Essa forma de consumo encerra os bens salariais exigidos pelos trabalhadores para a sua reprodução, mas também os bens de luxo, mormente aqueles que não são consumidos exclusivamente por frações de classe no interior da burguesia. O consumo final inclui também os bens indispensáveis à sustentação do aparato estatal. No consumo final, as mercadorias desaparecem da circulação. Para garantir a continuação do fluxo do valor, devem ser alcançadas proporcionalidades entre a produção de bens salariais, produtos de luxo e meios de produção. Na ausência de tais proporcionalidades, algum valor terá de ser sacrificado com vistas a manter o crescimento econômico. Refletindo sobre a realização e a transformação da mercadoria em forma-dinheiro, Marx desenvolverá sua teoria do papel da demanda efetiva na manutenção e impulsão  da circulação do valor como capital.

Antes de levar a cabo esta seção, considere-se a relação entre valor e tecnologia. Para Marx, a questão da tecnologia era sumamente importante em qualquer estudo econômico. Sabe-se que a concepção marxiana de tecnologia recobria muito mais do que máquinas, ferramentas e sistemas de energia em movimento (hardware). O conceito de tecnologia também abriga, para Marx, o software, os sistemas de controle, estudos de tempo e movimento, sistemas de produção just-in-time, inteligência artificial, etc. Numa economia assaz competitiva, a competição entre as empresas na busca de vantagens tecnológicas acarreta um padrão de inovação das formas tecnológicas e organizacionais. Em decorrência disso, o capital se torna uma força revolucionária na história da humanidade. É por ter-se tornado essa força que o capital mantém uma atividade produtiva cuja base tecnológica permanece em contínua transformação.

Marx, contudo, não deixou de denunciar uma contradição na relação entre capital-valor e tecnologia. Quanto mais sofisticada é a tecnologia, ele notou, tanto menos trabalho é objetivado em cada mercadoria individual produzida. Não só o a tecnologia tende a suprimir o trabalho humano objetivado, ela permite criar menos valor total, se a quantidade de saída de mercadorias não aumentar o suficiente para compensar o valor menor de cada peça individual. Se a produtividade aumenta o dobro, é necessário produzir e vender duas vezes mais mercadorias para manter constante o valor total disponível.

Nas seção e subseções seguintes, o capitalismo - sua história e natureza  – estará sob escopo de minhas análises. Ao me debruçar sobre o capitalismo, sua história e natureza, representa-se-me ao espírito a imagem de um leitor que, malgrado reconhecer as desigualdades social e econômica, as injustiças sociais que grassam pelo mundo, não compreende bem como elas são geradas. Escrevo toda esta segunda etapa do presente texto tendo em vista um leitor pouco instrumentalizado teoricamente para responder à questão basilar, que norteia todas minhas ulteriores reflexões: o que é o capitalismo? Peço ao leitor que me acompanhou até a esta altura um pouco mais de paciência, pois que, antes de dar conta dessa questão, preciso trazer à cena algumas informações importantes sobre a história da formação do capitalismo.

 

5.    Capitalismo: sua história e natureza

 

Em seu consagrado estudo sobre a sociedade capitalista que toma forma entre 1848 e 1875 (A Era do Capital), Eric J. Hobsbawm (2023) ensina-nos que a palavra capitalismo entra a fazer parte do vocabulário político e econômico na década de 1860. É nesse período que a obra monumental de Marx – O capital (1867), é publicada. O objetivo de Hobsbawm é traçar o desenvolvimento inicial da sociedade capitalista e seu triunfo num recorte temporal cujo início é o ano de 1848 e cujo amadurecimento é o ano de 1875. Conforme lembra o autor, “o triunfo global do capitalismo é o tema mais importante da História nas décadas que se sucederam a 1848” (ibid., p. 21). O triunfo global do capitalismo significou a vitória de uma sociedade instituída com base na crença de que o crescimento econômico esteia-se na competição da livre iniciativa privada, no sucesso advindo da compra de tudo no mercado (inclusive o trabalho) por um preço barato e da venda de tudo por um preço mais caro. Surge, assim, uma economia fundamentada na ascensão de uma burguesia que incluía indivíduos que - assim se acreditava - eram dotados da energia, do mérito e inteligência que justificavam a posição social que assumiam. Essa economia de base burguesa deveria criar um mundo de distribuição e prosperidade material plenas, de avanço científico, tecnológico e artístico, de progresso moral.

Nesse prometeico “Mundo Novo”, à medida que a economia capitalista fosse se desenvolvendo, os obstáculos remanescentes ao desenvolvimento do “livre mercado” desapareceriam. As sociedades do mundo inteiro, mormente aquelas que não sucumbiram à tirania das tradições e das superstições, ou que resistiram ao “infortúnio” de não possuírem indivíduos de pele branca (preferivelmente originária da Europa Central ou do norte), adotariam, gradualmente, o modelo internacional de um Estado-nação, demarcado territorialmente, estruturado em torno de uma Constituição que garante a propriedade privada e os direitos civis, caracterizado por assembleias representativas e governos eleitos e, quando possível, garantidor da participação do povo na vida política, sem que essa participação viole os limites que garantem a ordem social burguesa e a protegem contra sublevações que pretendam derrubá-la.

A esta altura, convém advertir que o ano de 1848 não é o marco inicial do desenvolvimento da sociedade capitalista. Consoante lembra Hobsbawm, “é suficiente lembrar que essa sociedade já havia completado seu aparecimento histórico tanto na frente econômica como na frente político-ideológica sessenta anos antes de 1848”. (ibid., p. 12). Os anos de 1789 (ano da Revolução Francesa) a 1848 conheceram uma dupla revolução: a Revolução Industrial, confinada à Inglaterra e a Revolução Francesa, confinada à França. Essas duas transformações implicaram o triunfo de uma nova sociedade, muito embora não fossem claro, tanto para os contemporâneos quanto para os historiadores de hoje, se essa sociedade nascente deveria ser a sociedade capitalista liberal que se tornaria triunfante. Lembra Hobsbawm que os ideólogos políticos burgueses tinham atrás de si as massas, ávidas de transformar revoluções moderadamente liberais em revoluções sociais. Os empresários capitalistas tampouco conseguiam silenciar os trabalhadores pobres e os descontentes em seu redor, os quais se agitavam e insurgiam-se contra a nova ordem que buscava legitimação. Nas palavras de Hobsbawm, “as décadas de 1830 e 1840 foram uma era de crises, cujo resultado apenas os otimistas ousavam predizer”. (ibid., p. 14-15). Se o período que se estende de 1789 a 1848 era ainda marcado por incertezas no que toca ao desenvolvimento de uma sociedade capitalista liberal, a Revolução de 1848, ponto inicial do estudo de Hobsbawm, acarretou o recuo da revolução política e, concomitantemente, o avanço da revolução industrial. Portanto, o período que se estende de 1848 a 1875 é marcado pelo maciço avanço do capitalismo industrial em escala mundial, bem como da ordem social que ele representou e das ideias, crenças e valores que o legitimavam e o ratificavam no âmbito da razão, da ciência, do liberalismo, do progresso. A era do capital, circunscrita entre 1848 e 1875, é a era da burguesia triunfante, de uma burguesia europeia que hesitava em assumir lugar de comando numa ordem política. Nas palavras de Hobsbawm,

 

“(...) As classes médias da Europa estavam assustadas e permaneceram assustadas com o povo: a ‘democracia’ ainda era vista como prelúdio rápido e certeiro para o socialismo. Os homens que oficialmente presidiam os interesses da vitoriosa ordem burguesa no seu momento de triunfo eram os profundamente reacionários nobres do campo da Prússia, um falso imperador da Inglaterra (...). (ibid., p. 28-30).

 

 

O período compreendido entre 1848 e 1875 expôs à luz do dia o drama do progresso. As contradições econômicas e tecnológicas emergiram como efeito da extensão do poder europeu e norte-americano sobre o mundo inteiro. Enquanto milhões de toneladas de ferro se convertiam em estradas de ferro que cortavam continentes, cabos submarinos atravessam o Atlântico e eram construídas grandes cidades como Chicago, milhões de pobres, em imensos fluxos migratórios, eram forçados a desembarcar no Novo Mundo, bem diferente, no entanto, daquele que se prefigurava no imaginário da burguesia ascendente. Para esse contingente de pessoas, a transposição para a nova ordem social capitalista representou uma mudança de vida cataclísmica. A esses milhões de pobres e excluídos do mundo capitalista, quase nada restou senão escolher entre uma resistência passiva em nome de suas tradições e modos de vida e um traumático movimento de ofensiva armada contra os conquistadores. O mundo dos últimos 25 anos do século XIX foi um mundo constituído de vitoriosos e vítimas. O drama do progresso se caracterizava por expor a precariedade e o horror da condição existencial das vítimas.

Apenas alguns poucos pensadores previram que o avanço inevitável do progresso engendraria uma sociedade bem diferente daquela prometida pela revolução burguesa. Nenhum deles previu ou imaginou, nem mesmo Marx, uma revolução social em 1848. Confessando sentir uma aversão à era do triunfo do capitalismo, Hobsbawm nota que o triunfo burguês foi breve e se mostrou pleno de fissuras.

Avançando mais minhas considerações históricas sobre o desenvolvimento do capitalismo, faz-se mister notar que esse modo de produção encontrou um solo fecundo para seu desenvolvimento nas sociedades mercantis e monetárias da Europa ocidental. É verdade, porém, que diversas sociedades mercantis e monetárias foram bem-sucedidas, sem que nelas se desenvolvesse o capitalismo, um modo de produção que, desde cedo, mostrou-se dotado de uma extraordinária capacidade criativa e destrutiva.

Foi longa a marcha até que o mundo viesse submeter-se ao poder do capitalismo. Seu desenvolvimento atravessou os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, quando se consolidou, na Inglaterra, sua fase industrial. Se o capitalismo pôde conquistar e perpetuar sua hegemonia até hoje, é porque soube bem guardar seu segredo (ou distorcê-lo na consciência coletiva) – um segredo que Voltaire reconheceu no século XVIII: obrigar todos os ricos a fazer os pobres trabalharem.

Mesmo ao cabo daquela longa marcha que culminaria com o surgimento do capitalismo, o capital, enquanto relação social de dominação destinada à extorsão de mais-valia, ainda não encontrara maturação em lugar algum do planeta. O que se passou a chamar de “capitalismo mercantil” ou “capital comercial” é produto de um desenvolvimento posterior. Nas sociedades europeias em que o capitalismo se desenvolveu, o principal modo de extorsão do sobretrabalho continuava a ser de natureza “tributária”. Em outros termos, o campesinato continuava a ter de pagar tributos à nobreza, à Igreja e ao Estado real. A isso acrescente-se que o capitalismo jamais teria conseguido desenvolver-se sem o afluxo de riquezas oriundas da pilhagem da América e a extorsão do sobretrabalho por meio do tráfico de escravos da África. Em suma, o enriquecimento da burguesia europeia se deveu a duas fontes: a pilhagem da América e a exploração brutal de africanos e dos povos originários da América. Nesse tocante, é oportuna a lição de Piketty (2022):

 

A distribuição de riquezas em vigor hoje, tanto entre diferentes países do mundo como dentro dos próprios países, carrega a marca profunda da herança escravagista e colonial. O conhecimento desse passado é indispensável para melhor compreender as origens e as injustiças do sistema econômico atual, embora não baste para definir soluções e formas de remediar (ibid., p. 105).

 

Sem pretender alongar-me nessa discussão, não me poderia silenciar sobre o fato de que, embora o colonialismo tenha sido determinante do surgimento do capitalismo ocidental, o colonialismo, em si, não dá conta de elucidar as razões por que foi possível ao capitalismo o triunfo de que seus defensores tanto se orgulham. Autores há que assinalam a importância das campanhas inglesas a partir dos séculos XVI e XVII, responsáveis pelo desenvolvimento de relações sociais especificamente capitalistas, não encontradas, àquela altura, em nenhum lugar do mundo. Tais campanhas ocorreram bem antes da expansão colonial tornar-se um fator determinante. Juntamente com elas desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento do capitalismo a centralização do poder estatal. Outro fator não menos importante para o desenvolvimento do capitalismo é a superioridade fiscal e militar das potências europeias. Essa superioridade parece dever-se às formas particulares adotadas pelas concorrências interestatais e às estruturas territoriais europeias observadas entre 1500 e 1800. Consoante nota Piketty, “as concorrências interestatais eram igualmente muito fortes no subcontinente indiano, embora houvesse na área um sistema de fronteiras bem mais instável do que no caso europeu”. (ibid., p. 76).

Antes de encerrar, vale enfatizar este fato (convenientemente ignorado pela querela liberal em torno da redução do Estado em face da autogerência do mercado). O Estado teve um papel fundamental na formação e triunfo do capitalismo. Sem a participação decisiva do Estado, não haveria capitalismo. A burguesia deve todo seu poder à instituição do Estado-nação. Ela está presente no mais alto nível do aparelho do Estado (entre os altos funcionários, os intendentes, oficiais de Estado, no Parlamento e no Judiciário). Ao tornar-se poderosa no âmbito do Estado, a burguesia forja a realidade nacional. Não haveria capitalismo sem burguesia, mas também sem o Estado. No âmbito do Estado, ela cria progressivamente, modela a mão-de-obra necessária ao sucesso da produção. Desde a sua formação, o capitalismo é nacional e mundial, privado e estatal, concorrencial e monopolista.  Assim, o capitalismo holandês, com pendor para as conquistas, se baseou no livre-mercado. O capitalismo inglês, por outro lado, obrigado a se afirmar, foi nacionalista e protecionista. Na Inglaterra, pátria da Revolução Industrial, a monarquia e a burguesia se aliaram e promoveram uma política mercantilista. Não obstante as feições distintas assumidas pelo capitalismo onde ele se desenvolveu, tanto para o capitalismo dominante quanto para a burguesia triunfante, o âmbito de sua atividade é o mundo; é no âmbito internacional que ela se apropria da mão-de-obra e das matérias-primas que se encarregará de vender e transacionar.

 

5.1.           As formas de acumulação de valor e a estratégica aliança da burguesia com o soberano

 

O enriquecimento da burguesia europeia se deu por meio do comércio de mercadorias, expresso formalmente pelo conhecido esquema DMD, e pelo comércio de dinheiro, representado sob a forma DD. O início desse novo modo de produção – conhecido como capitalismo – que organiza toda a produção (P) com vistas à criação de mais valor (transformação de M em M’), graças ao qual o lucro pode realizar-se (D=D’-D), foi a criação das manufaturas, a submissão do trabalho artesanal aos interesses dos negociantes fabricantes que impôs aos artesãos suas leis e ao surgimento das primeiras fábricas. Portanto, reunidos o comércio de mercadorias, o comércio de dinheiro, a pilhagem da América, o desenvolvimento nela de produções agrícolas e o tráfico negreiro, temos as diferentes fontes de valor que viabilizaram as duas formas principais de acumulação do capital: 1) a acumulação estatal (estradas, canais, portos, frota, manufaturas reais, etc.); 2) a acumulação burguesa (moedas, metais preciosos, diamantes, mercadorias, navios, ferramentas de produção e manufaturas).

No tangente à aliança entre burguesia e soberano, cumpre notar que ela se baseou num “compromisso mercantilista”, à luz do qual, ao elogiar a “riqueza do príncipe”, a burguesia bancária e comerciante insistia na coincidência entre a prosperidade do Estado e a dos mercadores. Destarte, ela pôde demandar do soberano uma política de defesa em face da concorrência estrangeira e uma política de promoção da expansão colonial e comercial e de desenvolvimento da produção. Foi somente quando a burguesia se tornou suficientemente poderosa para dominar o mercado mundial que ela renunciou às teses mercantilistas e passou a valorizar as virtudes do livre comércio. Quando ela se tornou poderosa o suficiente para enfrentar o absolutismo, pôde alardear as ideias de liberdade e de livre consentimento. Angariando, assim, o apoio de pequenos burgueses e de populares, pode aliar-se às camadas esclarecidas da nobreza contra a ameaça das revoltas camponesas e o descontentamento popular.

 

5.2.           O que é capitalismo: sua natureza e aspectos sistêmicos

 

Em princípio, o que me interessa, nesta subseção, é responder à questão: o que é o capitalismo? De modo algum, ao procurar esclarecer a natureza do capitalismo e suas características, pressuponho que haja uma única, simples e consensual resposta a essa questão. Bobbio (1995) lembra que o termo capitalismo encerra conteúdos e conotações diversas, muito embora possam ser subsumidos, segundo o autor, em duas grandes acepções. Antes de dar a conhecê-las, convém, desde já, apresentar ao leitor uma definição sucinta de capitalismo, que nos é dada por Maurice Dobb (apud. Cantani, 2011, p. 16). Segundo Dobb, o capitalismoé um sistema em que os utensílios, as ferramentas, edifícios e matérias-primas com que é obtida a produção – o capital, numa palavra – são predominantemente de propriedade privada ou individual”. Ao tomar como núcleo da definição de capitalismo o conceito de propriedade privada, a concepção de Dobb deixa entrever a ideia de que o capitalismo é um sistema econômico em cujo cerne repousa a relação social entre proprietários dos meios de produção e uma gigantesca classe de trabalhadores despossuídos que, para sobreviver, são obrigados a vender a única coisa de que dispõem – sua força de trabalho – em troca de um salário, cujo valor é o suficiente para que mantenham-se vivos e se reproduzam. Malgrado o fato de a definição simples de capitalismo, oferecida por Dobb, não fazer qualquer menção ao conceito de mais-valia, é importante compreendê-lo, na medida em que esse conceito elucida como a exploração dos trabalhadores se dá nesse modo de produção.

O valor da força de trabalho é determinado pelos custos inerentes à produção. Embora possa variar em consonância com o lugar e a época, esse valor se torna conhecido num dado período contratual. Em um determinado momento da produção, o trabalhador consegue gerar o valor equivalente ao valor da força de trabalho. Concomitantemente, ele também consegue transferir o valor dos meios de produção para a nova mercadoria produzida. O trabalhador produz, portanto, o valor equivalente a v (o valor da força de trabalho) e transfere o valor c (o valor dos meios de produção) para a nova mercadoria. Acontece, contudo, que os trabalhadores e trabalhadoras não param de trabalhar depois de concluir esse processo de transferências. O contrato de trabalho a que eles estão submetidos determina que eles têm de trabalhar por 10 horas para o capitalista. Se o valor da força de trabalho foi produzido em 6 horas, o restante de tempo de trabalho constitui trabalho não pago. Em outras palavras, o trabalhador trabalha por quatro horas restantes de graça para o capital. Essas quatro horas de trabalho não remuneradas cria o que Marx chama de mais-valia (m). É a mais-valia que está na raiz do lucro monetário de que se apropria o capitalista. É a mais-valia a fonte de exploração dos trabalhadores. O enigma do lucro, que assombrava a economia clássica, fora resolvido por Marx: o valor total da mercadoria é c + v + m. As despesas do capitalista são c + v. Em outras palavras, o valor total da mercadoria é resultado da soma do valor dos meios de produção (c), do valor da força de trabalho (v) e a mais-valia (m); por outro lado, as despesas com que lida o capitalista são formadas pela soma do valor dos meios de produção e do valor da força de trabalho. A mercadoria produzida se apresenta em sua forma material, e o valor e mais-valor estão objetivados, cristalizados, por assim dizer, na forma-mercadoria. No entanto, consoante observa Harvey,

 

Quando procuramos o valor supostamente em movimento, ele existe simplesmente como uma pilha de produtos no chão da fábrica. E não importa quanto eu catuque e fure esses produtos, não verei nenhum sinal de valor em movimento. O único movimento que contará nesse ponto é a pressa do capitalista para colocar esses produtos no mercado e reconverter seu valor oculto em forma-dinheiro (Harvey, ibid., p. 23).

 

O que não se pode perder de vista, a esta altura, é que, na esfera oculta da produção, não se produziu simplesmente uma nova mercadoria material (um ar-condicionado, por exemplo), mas sobretudo uma relação social de exploração da força de trabalho. Portanto, a definição de capitalismo oferecida por Dobb, uma vez que pressupõe a ideia de propriedade privada como ideia básica em referência à qual podemos compreender o que é o capitalismo, permite-nos inferir que o capitalismo é um sistema (econômico, social) baseado na exploração da força de trabalho mediante, sobretudo, a extração da mais-valia. A produção capitalista implica não somente a produção de mais-valia em proveito do dono dos meios de produção, mas também a produção de mercadorias materiais para uso. Importa ao capitalista, no entanto, somente o mais-valor (mais-valia) realizado na forma de lucro monetário. Ele é indiferente às mercadorias que produz, ou seja, não está preocupado com o tipo de mercadorias que produz e com os fins a que elas servirão, de modo que, “se há mercado para gás venenoso, eles [os capitalistas] produzirão gás venenoso”. (Harvey, ibid., p. 24). O momento da circulação do capital compreende não apenas a produção de mercadorias, mas também a produção e reprodução da relação de classe entre capital e trabalho, expressa na forma da mais-valia. O que aparece, no mercado, onde tudo suspostamente é transparente, é a troca individualista de mercadorias; aqui, a ficção da troca de mercadorias entre indivíduos “livres” leva-nos a crer que o trabalhador recebe o valor justo correspondente à sua força de trabalho; no entanto, o que não vemos, nesse mercado de trocas entre indivíduos supostamente “livres”, é o incremento de mais-valor que é produzido pela classe trabalhadora em benefício do capitalista, num processo de trabalho que não é transparente e cuja essência o capitalista mantém oculta à consciência dos trabalhadores. Para a consciência coletiva, tudo se passa como se o valor fosse dotado da capacidade de aumentar a si mesmo.

Volverei a considerar a condição dos trabalhadores na relação com o capital, mais adiante, quando me ocupar do trabalho alienado. Convém, por ora, desenvolver mais as considerações que vimos fazendo sobre o capitalismo. Recorde-se que Bobbio (1995) ensina-nos que o termo capitalismo, em que pese apresentar-se, na literatura especializada, com diferentes significados e conotações, pode encerrar duas grandes acepções. Urge esclarecê-las, pois.

 

5.2.1.    O capitalismo como modo de produção e como formação social

 

 

Ao definirmos o capitalismo como um modo de produção específico, fazemos eco à definição marxiana. Para Marx, o capitalismo é um modo de produção cujos meios estão nas mãos dos capitalistas, que constituem uma classe distinta na sociedade. Na visão de Marx, a propriedade privada, a divisão do trabalho e a troca são características fundamentais da sociedade capitalista. Na esteira da compreensão marxista do capitalismo, Bobbio define o capitalismo como “uma forma particular, historicamente específica, de agir econômico ou um modo de produção em sentido estrito, ou um subsistema econômico”. (ibid., p. 141). Como subsistema, o capitalismo é entendido como uma parte de um complexo e mais amplo sistema social e político, ou seja, o capitalismo, enquanto subsistema econômico é um elemento da sociedade complexa, industrial ou liberal-democrática. Com a promessa de que retomarei a caracterização do capitalismo como modo de produção, ocasião em que darei a conhecer, em pormenores, o significado desse conceito na obra de Marx, lançarei breves olhares sobre a concepção do capitalismo como tipo de formação social.

Como uma formação social específica, o capitalismo é coextensivo à sociedade. Como formação social, o capitalismo designa um modo de relação social em geral. O que qualifica a formação social capitalista é seu modo de produção. Consoante observa Bobbio (ibid.), as duas concepções abrangentes de capitalismo, sobre cujo desenvolvimento venho lançando luzes, se alternam na história de seu conceito. Na condição de formação social, o capitalismo se define como “conjunto de comportamentos individuais e coletivos, atinentes à produção, distribuição e consumo dos bens”. Seguem-se três características que distinguem o capitalismo de outros modos de produção:

 

1)  a existência da propriedade privada dos meios de produção, para cujo funcionamento é necessária a presença do trabalho assalariado;

 

2)  a existência de um sistema de mercado, calcado na iniciativa e empresa privadas;

 

3)  o estabelecimento de processos de racionalização dos meios e métodos empregados, direta ou indiretamente, na valorização do capital e na exploração das oportunidades de mercado, tendo em vista o lucro.

 

Segundo Bobbio, na esteira da teorização weberiana, o capital produziu uma racionalização técnico-produtiva e científica que, atualmente, molda a conduta da vida individual e coletiva. Essa racionalização ou modernização política culmina na formação do sistema político liberal, o qual, historicamente, coexiste com o capitalismo. Ainda segundo o autor, não é possível priorizar qualquer um desses elementos em detrimento do outro. Tanto a racionalização técnico-científica e produtiva quanto a formação do sistema político liberal formam uma constelação genética e logicamente relacionada à formação do capitalismo. A ênfase num ou noutro desses fatores pode gerar modelos interpretativos divergentes do capitalismo. Donde se segue que se pode confrontar um modelo de interpretação que confere valor fundamental à relação entre trabalho assalariado e capital, caso em que estaria em consonância com a tradição marxista, com outro modelo que prioriza os processos de racionalização da conduta, caso em que estaria em consonância com a tradição weberiana. Nenhum dos elementos acima referidos pode ser circunscrito a um simples subsistema econômico. Nenhum deles pode existir sem fatores contextuais macroeconômicos, quer derivados de puras relações de força ou de poder, quer relacionados a pressupostos culturais mais profundos. Para Bobbio, somente no plano da abstração científica é lícito isolar, no fenômeno do capitalismo, fatos puramente econômicos. Todavia, tal prática metodológica é redutiva, caso consideremos o capitalismo como fenômeno social, político e histórico. É igualmente limitante, por outro lado, entender o capitalismo como uma “relação social”, se não nos preocuparmos em determinar, ulteriormente, a natureza e o significado dessa relação social.

Por fim, é possível distinguir dois grandes modelos teóricos importantes na busca por definir o capitalismo como sistema global ou formação social. O primeiro modelo teórico abarca a análise crítica de Karl Marx (1818-1883) e os trabalhos histórico-sociológicos da escola alemã, desenvolvidos por Werner Sombart, Ferdinand Tonnies e Max Weber. O segundo modelo teórico calca-se sobre a revisão quer da análise marxista, quer das doutrinas liberais clássicas, à luz das mudanças sofridas pelo capitalismo entre o fim do século XIX e o primeiro vintênio do século XX. Desse modelo teórico revisionista, destacam-se as contribuições de Joseph Schumpter e Rudolf Helferding no momento efervescente da reflexão crítica durante a Grande Crise dos anos 30. Em decorrência das limitações do keynesianismo, descortinou-se uma nova fase da análise crítica do capitalismo, agora centrada na forma corporativista desse modo de produção.

Agora, passo a dilucidar o conceito de modo de produção. É no próprio percurso de análise desse conceito que buscarei descrever o modo como Marx compreendeu o capitalismo. Mas convém começar apresentando uma resposta imediata à questão: o que é modo de produção?

 

Por modo de produção entende-se tanto o modo pelo qual os meios necessários à produção são apropriados como as relações que se estabelecem entre os indivíduos a partir de suas vinculações ao processo de produção.

 

A definição de modo de produção acima aduzida demanda esclarecimentos. Em primeiro lugar, é necessário explicar o modo de apropriação dos meios indispensáveis à produção. Em segundo lugar, é igualmente indispensável esclarecer de que natureza são as relações que os indivíduos estabelecem entre si a partir do modo como são posicionados no processo de produção. Em terceiro lugar, não menos importante é definir o que se entende por produção. Cumpre-me lançar luzes sobre esses três pontos da definição de modo de produção, doravante.

Para efeito de compreensão do modo como os meios necessários à produção são apropriados, recorde-se, para Marx, o capitalismo baseia-se na relação entre trabalho assalariado e capital. Ademais, vale lembrar que o capitalismo, para o autor de O Capital, consiste num modo de produção assentado na extorsão de mais-valia através do trabalho do trabalhador, que é explorado, porque obrigado a vender sua força de trabalho a quem possui o dinheiro e os meios de produção, ou seja, ao proprietário, ao capitalista. Lembremos também que Marx reconheceu três características essenciais no capitalismo: a divisão social do trabalho, a propriedade privada e um sistema de troca. Para ele, a divisão social do trabalho, condição prévia para a constituição de uma sociedade capitalista, expressa o fato de o indivíduo não ter todas as profissões necessárias à satisfação de suas necessidades (alimentação, habitação, meios de produção, etc.). Dado que ele só possui uma profissão, só consegue subsistir, se puder simultaneamente adquirir os produtos do trabalho de outrem. Na medida em que, numa sociedade capitalista, todos têm uma profissão específica, todos os indivíduos dependem uns dos outros. Essa interdependência é consequência da divisão do trabalho no seio da produção mercantil.  Por força dessas três características fundamentais do capitalismo, esse sistema econômico estabelece uma relação de poder assimétrica entre, de um lado, o capitalista; e, de outro, o trabalhador, ou seja, entre o dono dos meios de produção e o trabalhador explorado e expropriado, ele mesmo transformado numa mercadoria cujo valor é fixado no mercado. No capitalismo, o agir econômico tem primazia sobre as formas e a institucionalização do agir social. A dimensão política da relação capitalista se entrevê na necessidade que caracteriza a venda da força-de-trabalho. Consoante ensina Bobbio, como o capitalismo está fundamentado numa relação social assimétrica entre aquele que detém a propriedade dos meios de produção e uma gigantesca classe de trabalhadores despossuídos que, para sobreviver, precisam vender a única coisa de que dispõem – a capacidade para trabalhar -, a pressão exercida sobre eles não é uma pressão sobre escravos, “mas sobre homens juridicamente livres, sobre cidadãos”(ibid., p. 143). O capitalismo moderno não existiria sem as liberdades burguesas.

A base de legitimação do capitalismo moderno, de onde ele extrai sua força histórica, de onde se estabelecem as condições para a manutenção de sua hegemonia global, é o Estado liberal. O sistema capitalista se legitima funcionalmente. A dominação social através da economia assume a forma de dependência funcional. O capitalismo é, pois, o sistema econômico e social, predominante na maioria dos países industrializados ou em fase de industrialização, em cujo cerne repousa a separação entre trabalhadores juridicamente livres, que dispõem unicamente de sua força de trabalho e que a vendem em troca de um salário, e os capitalistas, os quais são os proprietários dos meios de produção e os quais contratam os trabalhadores para produzir mercadorias (bens destinados ao mercado), visando à obtenção do lucro.

Vários notáveis cientistas sociais se esforçaram por explicar o surgimento e o funcionamento do capitalismo. Werner Sombart, por exemplo, entende que a essência do capitalismo não se encontra na economia, mas no “espírito” (um conjunto de atitudes psicológicas e práticas culturais) que se desenvolveu no imaginário burguês da Europa no fim da Idade Média. Esse “espírito” (visão de mundo) teria levado os burgueses a perceber que o melhor método para adquirir riqueza não era acumular capital. En passant, convém notar que a expressão “espírito do capitalismo”, consagrada por Max Weber, provém da pena de Sombart. Aquele conjunto de atitudes psicológicas e práticas culturais que definem o “espírito” da burguesia emergente e que estaria na origem da formação do capitalismo se traduzem na orientação ético-intelectual do individualismo que marca o racionalismo econômico. Dados os objetivos deste texto, não convém adentrar na discussão sobre a compreensão weberiana do capitalismo e de suas origens. Por conseguinte, convém retomar o fio discursivo, destacando o que Marx considerava como característica definidora do capitalismo.

O que define o capitalismo, para Marx, é a exploração dos trabalhadores pelo capitalista. Portanto, ao pensarmos no modo como os meios de produção no sistema do capitalismo são apropriados, devemos levar em conta que a apropriação desses meios necessários à produção se dá pela exploração da classe trabalhadora. Essa exploração da força de trabalho da classe trabalhadora se expressa no fato de que o salário pago a cada trabalhador corresponde apenas a uma parcela mínima do valor do trabalho executado. A diferença entre o tempo de trabalho pago e o tempo de trabalho não pago, de que se apropria o capitalista, é, conforme vimos, a mais-valia. Ela é apropriada pelos capitalistas sob a forma de lucro.

O conceito de modo de produção, no marxismo, compreende o conjunto das forças produtivas e das relações de produção. As forças produtivas não constituem apenas a capacidade humana de trabalhar e produzir (a chamada força-de-trabalho), mas também os meios de produção, a saber, os utensílios, o maquinário, as matérias-primas, a tecnologia empregados na produção. As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. No momento em que desenvolvem novas forças produtivas, os homens mudam seu modo de produção, e, mudando seu modo de produção, a maneira de ganhar a vida, eles mudam também todas as relações sociais. O modo de produção, portanto, na visão histórica da dialética marxista, determina a forma das relações sociais. O modo de produção é coextensivo à estrutura econômica da sociedade, abrigando em si a produção, a distribuição, a circulação e o consumo de mercadorias. Embora sob escopo das reflexões marxianas em O Capital, o conceito de modo de produção não chega a encontrar aí clareza. Parece certo, porém, que, se quisermos atingir uma compreensão satisfatória do conceito de modo de produção, em Marx, é bom começarmos por entender o que foi o modo de produção asiático, uma organização econômico-social que, segundo o autor, teria sido uma das formas de transição da comunidade primitiva para a sociedade dividida em classes. O modo de produção asiático caracterizou as sociedades da China, Rússia e Índia. O que há de originalidade no modo de produção asiático é o tipo de Estado e a existência de um sistema de exploração sem a propriedade privada da terra. O modo de produção asiático se caracterizou, segundo Marx pela 1) ausência de propriedade privada da terra; 2) pela conservação de uma força de coesão social, que resistiu às conquistas mais sangrentas; 3) pela persistente coesão interna baseada na íntima relação entre agricultura e artesanato; 4) pela construção de grandes obras hidráulicas, como canais de irrigação, favorecida pelas condições climáticas; 5) pela instituição de um poder central regulador e empreendedor, de um Estado que concentrava a maior parte do excedente social e que possibilitou, por isso, o nascimento de uma camada social privilegiada, sustentada por esse excedente, que se tornou a classe dominante da sociedade. As funções econômicas do Estado deram origem ao chamado “despotismo oriental”, isto é, a uma forma generalizada de sujeição de toda sociedade ao poder estatal. Mas o despotismo do modo de produção asiático não se confunde nem com o sistema de escravidão nem com o de servidão. No modo de produção asiático, o Estado é, ao mesmo tempo, o déspota e principal explorador.  

É verdade que, embora chegue a listar quatro modos de produção, no Prefácio de Crítica da Economia Política (1959), quais sejam, o modo de produção asiático, o antigo, o feudal e o burguês, somente o modo de produção burguês ou capitalista foi submetido a uma análise exaustiva por Marx. Escusa dizer que não me ocuparei da investigação desse problema na obra de Marx. Mais relevante, para os meus propósitos, é dar a conhecer ao leitor os principais componentes de um modo de produção. São eles: a técnica, seja em seu sentido material, enquanto meios de produção, seja em seu sentido imaterial, como repertório de conhecimentos socialmente produzidos; a organização da propriedade, que determina os modos de apropriação e distribuição do excedente (cuja existência pressupõe que cada trabalhador, durante o ciclo de reprodução do capital, tenha produzido mais do que é consumido por toda a sociedade); a estrutura do sistema político, a estrutura de classe, na qual estão baseados os meios de produção e conhecimentos, e, finalmente, a divisão do trabalho. A organização de um sistema social depende das formas específicas assumidas por esses componentes. Todavia, não é possível estudar o sistema econômico de uma sociedade recorrendo a hipótese de um modo de produção ideal, tampouco à ideia de que haveria um estágio inicial, médio e avançado do modo de produção capitalista ou socialista. Em toda sociedade humana conhecida, desenvolveu-se um modo de produção peculiar, cuja organização técnico-econômica não pode ser deduzida de uma tipologia predeterminada. Nas pesquisas econômicas e sociológicas, igualmente renunciou-se à ideia de transição de um modo de produção a outro, segundo um processo linear, que implica o declínio gradual de um modo de produção então dominante para a ascensão de outro que passaria a ocupar a posição de componente básico da estrutura social. Historicamente, o que se observa é a coexistência de modos de produção, por um longo período de tempo e na ordem de muitas gerações, numa mesma sociedade, muito embora um deles possa predominar sobre os demais, sob certo aspecto.

Conquanto Marx caracterize o modo de produção como “unidade dialética” formada pelas forças produtivas e pelas relações sociais, são as primeiras que constituem o fator mais dinâmico do modo de produção. Isso se deve ao fato elas se aperfeiçoarem e se modificarem constantemente no curso do trabalho material. Elas mudam mais rapidamente do que as relações sociais, cuja tendência é a conservação, já que são objeto de pressões externas. O desenvolvimento tendencialmente mais rápido das forças produtivas se dá pelo surgimento de novas técnicas de cultivo da terra e da exploração de metais, pela criação de novas máquinas, de meios de transporte mais eficientes e ágeis, pelo afluxo de capitais das colônias, pelo aumento da produtividade agrícola e industrial, pelo impulso decorrente das novas necessidades da vida urbana. Tudo isso leva ao desenvolvimento de uma base técnica cada vez mais ampla e complexa que, por sua vez, irá demandar, até certo ponto, novas formas de organização econômica, jurídica e política.

No que tange ao modo como as relações entre os indivíduos se estabelecem segundo as posições que eles ocupam no processo de produção, creio tê-lo elucidado no momento em que aludi à condição de exploração a que é submetida a classe trabalhadora no sistema econômico capitalista, mais precisamente, no momento em que assinalei ser o capitalismo um sistema baseado na relação de poder assimétrica entre uma minoria de proprietários e uma maioria de trabalhadores expropriados, cuja sobrevivência depende de que venda sua força de trabalho em troca de um salário. Portanto, a existência do modo de produção capitalista é condicionada à concentração dos meios de produção nas mãos de uma só classe social e à presença de uma classe quantitativamente maior, para quem a venda da força de trabalho é a única maneira de sobrevivência de seus membros. Tais condições foram historicamente produzidas ao longo de um processo no qual foram destruídas antigas relações econômicas dominantes no feudalismo à proporção que se iam consolidando as relações econômicas do capitalismo.

 

5.2.2.    O que é produção?

 

O último componente de cujo esclarecimento depende uma compreensão satisfatória do conceito de modo de produção é a produção. A produção é um ato histórico, e o primeiro ato histórico, segundo Marx, consistiu na criação pelos seres humanos dos meios necessários à satisfação de suas necessidades básicas de subsistência. Essa criação é o que se entende por produção; essa criação é a própria produção da vida material. Os seres humanos, segundo Marx, produzem suas condições materiais de existência. Para ele, os homens se distinguem dos demais animais justamente por serem produtores de suas condições materiais de existência. Mas a produção só pode iniciar-se com o crescimento da população. Sem que se forme uma “massa crítica”, não é possível o surgimento da produção. A produção, portanto, existe com a condição de que os seres humanos já tenham estabelecido um “comércio”, uma comunicação entre eles. Portanto, a produção é inseparável do estabelecimento de relações sociais.

O pressuposto materialista que sustenta o conceito de produção, em Marx, é a concepção do homem como um ser natural. A produção é que realiza a mediação da relação entre o homem e a natureza. Essa relação entre o animal humano e a natureza é, na verdade, uma relação entre os próprios seres humanos entre si, porquanto eles não consomem produtos diretamente extraídos da natureza, mas produtos do trabalho humano. O que define, a cada momento e em todo lugar, uma maneira determinada de produzir – um modo de produção, portanto, - são as condições materiais naturais, as condições técnicas e sociais herdadas, e as relações entre os indivíduos. Não é escusável lembrar que Marx define, num primeiro momento, o conceito de modo de produção para opor-se a uma concepção de história à luz da qual o que a definiria seriam as relações jurídicas e as formas de Estado. Na realidade, o que define a história são as condições materiais de produção.

Através da produção, portanto, os seres humanos produzem socialmente a sua existência; no entanto, para produzir socialmente sua própria existência, eles estabelecem relações sociais determinadas, necessárias e independentes de sua vontade. As relações sociais de produção correspondem a um grau determinado do desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. É o conjunto formado pelas relações sociais e pelas forças produtivas que formará a estrutura econômica de uma sociedade, ou seja, o fundamento real sobre o qual se erige um edifício jurídico, politico e ideológico ao qual correspondem formas determinadas de consciência social.

Para que compreendamos o conceito de produção à luz do materialismo histórico de Engels e Marx, precisamos partir do princípio de que, antes de tudo, é preciso viver. Para Marx, portanto, a condição de toda história, de toda existência humana é que os homens e mulheres possam satisfazer suas necessidades básicas de sobrevivência: comer, beber, morar e vestir-se. Para Marx, a economia ergue-se sobre bases naturais. Aliás, a questão principal, basilar da economia política não tem nada a ver com superávit primário, com depreciação acelerada, com bolsa de valores, mas diz respeito a como possibilitar  a satisfação daquelas necessidades básicas a todos a partir de recursos escassos. Para Marx, contudo, viver não é somente lutar pela conquista dos bens materiais indispensáveis à sobrevivência imediata; viver envolve também amar, educar-se, ter filhos, ter hobbies, divertir-se, estudar para tornar os homens aptos para viver.

Toda historiografia tem como bases naturais a organização corporal e as relações dos homens com as condições naturais. São essas condições que moldam, durante um longo tempo, a vida material e são elas que estão na base do edifício econômico e político de qualquer sociedade. Por isso, segundo Denis (2008, p. 87), “o cultivo do arroz ou do trigo dará duas civilizações diferentes”.

É oportuno agora volver nossa atenção à seguinte questão: o que significa dizer que os homens produzem suas condições de existência? O que se seguirá é o desenvolvimento da resposta que ela demanda. O leitor verá que, à medida que se irá descortinando a resposta, ficará claro também o contraste entre a concepção marxiana de trabalho e as condições concretas de realização do trabalho no seio das sociedades capitalistas. Em outras palavras, a centralidade do valor do trabalho na produção da existência humana, reconhecido e enaltecido por Marx, contrasta com a caracterização que ele mesmo fará do trabalho no sistema capitalista, trabalho que assume a forma de trabalho alienado.

Dizer que os seres humanos produzem suas condições de existência significa, segundo Marx, assumir que os animais não humanos ficam circunscritos ao ciclo da reprodução física dos indivíduos. Os seres humanos, porque produzem suas condições materiais de existência, tornam-se sujeitos históricos; e tornam-se sujeitos históricos na medida em que a produção modifica a relação deles com a natureza. A aptidão dos homens para modificar sua relação com a natureza decorre de suas predisposições naturais, de sua constituição natural; não é uma aptidão sobrenatural. Sucede que os seres humanos, modificando suas relações com a natureza, modifica suas relações uns com os outros e modifica a si mesmos enquanto indivíduos. Para Marx, os seres humanos são seres naturais e o que eles são resulta do modo como exteriorizam a sua vida. O que os indivíduos são “no interior” é o que eles exteriorizam na atividade de produção de si mesmos. No homem, o interior e o exterior coincidem. Marx mantém que os homens não se fazem a si mesmos livremente, mas se fazem em condições determinantes que não escolheram. No entanto, se quisermos conhecê-los verdadeiramente, basta observarmos como eles manifestam sua vida ou a exteriorizam. No homem, a atividade e a subjetividade coincidem.

A produção, portanto, depende das condições concretas e exteriores, ou seja, depende das condições naturais e das condições técnicas, culturais herdadas das gerações precedentes. Os homens são, deveras, os verdadeiros produtores da própria história, mas não o são nas condições livremente escolhidas; ao contrário, eles já se encontram lançados em condições sociais, culturais, políticas herdadas do passado. Os indivíduos não são absolutamente livres, nem sobredeterminados pelas circunstâncias. A vida deles depende da atividade que realizam, da maneira como eles se exteriorizam, e essa atividade é condicionada pelas circunstâncias históricas precedentes que não dependem deles. Para Marx, a produção significa trabalho enquanto atividade dos indivíduos; mas também, em sentido lato, significa metabolismo social, que encerra o trabalho e as demais relações sociais estabelecidas por indivíduos situados no interior do processe de produção e reprodução de suas vidas. A produção é determinada, fundamentalmente, por seu caráter social. A sociabilidade é uma característica inseparável do ato humano de produzir, do trabalho, portanto, de sorte que, para Marx, o ser do homem é um ser social.

 

 

5.2.3.    A questão do trabalho no pensamento de Marx

 

A concepção básica de trabalho, em Marx, recobre a ideia de que o trabalho é um ato que ocorre entre o homem e a natureza. Mediante o trabalho, ou seja, mediante a atualização de sua potência natural, das forças de que seu corpo é dotado, o homem assimila os materiais “naturais”, dando-lhes uma forma útil à sua vida. Ele age, portanto, sobre a natureza, modificando-a e modificando, ao mesmo tempo, a sua própria natureza. Pelo trabalho, o homem age sobre a natureza, modificando nesse mesmo agir suas próprias faculdades. Não obstante, a concepção de trabalho que constituirá o ponto de partida da teorização filosófico-antropológica marxiana é aquela forma de trabalho exclusivamente humana. Embora muitos animais realizem alguma forma de “trabalho”, como a aranha que tece, com esmero, sua teia, somente o ser humano exterioriza, no trabalho, aquilo que, anteriormente, foi concebido como uma ideia, uma representação em seu espírito (cérebro). Por conseguinte, a atividade humana não realiza uma mudança de forma nas matérias naturais simplesmente; ela realiza também sua própria meta. O homem, ao realizar o trabalho, tem consciência de que é sua imaginação, a ideia previamente concebida, que determina seu modo de ação e sua vontade. Consoante ensina Vieira (2018, p. 42), “trabalho é atividade que dá forma, que promove a humanização da natureza pelos indivíduos”.

Para Marx, o trabalho é tanto a subjetivação das objetividades, isto é, a submissão dos materiais naturais aos fins fixados pela subjetividade, quanto a objetivação das potencialidades humanas, a expressão mesma da vida dos homens. Na esteira de Hegel, Marx pensa o trabalho como ato de autocriação do homem. Ele não é uma mercadoria, mas, quando livre, é a expressão da vida. É a expressão própria do homem; é a expressão de suas faculdades mentais e físicas. A questão da autorrealização do homem, em Marx, está intimamente ligada à sua concepção de trabalho.

Como atividade genuinamente humana, o trabalho permite ao homem desenvolver-se a si mesmo, tornar-se ele próprio. Sendo expressão das faculdades mentais e físicas do homem, o trabalho não é um meio para um fim, mas um fim em si mesmo; ele expressa significativamente a energia humana. Nas palavras de Vieira (ibid., p. 40), “o trabalho não é apenas ato pelo qual os sujeitos se reproduzem na medida em que se mantêm vivos pela apropriação, pela incorporação em si da objetividade demandada por sua constituição física”. O trabalho é outrossim atividade formadora, através da qual o homem torna seu mundo objetivo apropriado a si mesmo.

Por meio do trabalho, os indivíduos transformam a natureza, adequando-a a si mesmos. O trabalho se orienta pela transitividade entre sujeito e objeto, e ele só se realiza como uma atividade teleológica em face de uma objetividade com a qual se relaciona e a qual é conhecida. Mas a natureza sobre a qual age o homem, por meio do trabalho, nunca é natureza em estado puro; mas sempre natureza submetida a processos de valorização. Oportunas, nesse tocante, são as palavras de Vieira, abaixo referidas:

 

 

O material ou objeto recebe, no trabalho um valor de uso superior àquele que possuía antes, ou seja, torna-se ainda mais útil ou adequado aos homens que em sua forma anterior. A atividade de trabalho é precisamente aquela da valorização, do aumento do valor das coisas, pela doação de forma nova e criação de objetividades, adaptadas a fins humanos. (Vieira, ibid., p. 40, grifo meu).

 

 

Sem perder de vista a caracterização marxiana do trabalho, tal como exposta no que precede, convido o leitor a atentar para a forma assumida pelo trabalho no modo de produção capitalista. No capitalismo, enquanto modo de produção específico e formação social e econômica, é somente no aparecer social que a troca entre capital e trabalho é, formalmente, igual. Em outras palavras, na experiência ordinária dessa relação, o trabalhador recebe, em valor de troca, aquilo que corresponde ao valor de sua mercadoria (isto é, de sua força de trabalho). O valor do salário recebido, portanto, corresponde ao custo de produção da força do trabalho do trabalhador. Todavia, essa igualdade aparente escamoteia uma desigualdade de base. Para esclarecê-la, convém examinar como se realiza, deveras, a relação entre trabalho e capital.

Note-se que a relação entre o trabalho objetivado, isto é, o trabalho vivo, existente no tempo, e o capital constitui o capital. Nessa relação, o capital se apresenta, enquanto valor, de forma autônoma em relação ao trabalho vivo. Tal relação implica a produção do capital por meio da troca entre ele e o trabalho. Destarte, o trabalho efetivamente existente no tempo só se objetiva, só existe realmente, depois que se põe como atividade concreta em relação com as condições objetivas de sua realização. Numa sociedade capitalista, o trabalho só existe, quando se insere numa relação de troca na qual se converte em capital. Essa relação de troca, cujo resultado é a mais-valia, constitui a base do capitalismo. A mais-valia resulta precisamente dessa troca do trabalho com ele mesmo na condição de capital, ou seja, enquanto valor de troca que se tornou autônomo. Ora, o que, aparentemente, era uma relação de troca simples, em que cada um recebe aquilo que equivale ao que pôs na relação, se revela, então, uma troca desigual, porquanto nela se dá a ampliação do valor do capital mediante o uso da força de trabalho. En passant, frise-se que a mercadoria força de trabalho é a única, dentre as mercadorias produzidas, que se caracteriza por criar valor. Na relação de troca em que o trabalho se relaciona com ele mesmo enquanto capital, é pago ao trabalhador o valor de sua força de trabalho, mas o que o capitalista obtém é seu uso enquanto valor ampliado. Essa é a razão por que a troca entre trabalho e capital não é uma troca simples e igualitária. Se ao leitor não estiver claro ainda em que consiste a desigualdade básica da relação entre trabalho e capital, reconsideremos o exposto a partir de outra perspectiva.

O primeiro momento da relação de troca entre a força de trabalho e o capital parece-nos simples, dado que o trabalho é trocado por outra coisa (o salário), tal como qualquer outra mercadoria é trocada por seu preço; no segundo momento, no entanto, vimos que o capitalista se apropria do valor de uso da força de trabalho. Nesse segundo momento, não há que falar em relação de troca, segundo Marx, porque a mercadoria que é trocada – a força de trabalho – é parte fundamental da relação econômica, de modo que o valor de uso dessa mercadoria constitui o fim a que visa a própria relação econômica. Isso basta para distinguir entre si a troca simples (aparente) e a troca entre trabalho e capital, porque, naquela, a mercadoria trocada é alheia à transação, e nesta, o que é trocado – a força de trabalho – constitui a base da relação econômica.

 

5.3.1. Alienação: trabalho alienado

 

Antes de pôr termo a este texto, faz-se mister desenvolver um pouco mais as reflexões até então costuradas sobre a questão do trabalho no pensamento de Marx. Esta subseção se destina ao tratamento da forma alienada assumida pelo trabalho nas sociedades capitalistas. Começarei, pois, por definir o sentido lato de alienação para, em seguida, descortinar a trama de sua significação na abordagem marxiana do trabalho nas condições socioeconômicas geradas pelo capitalismo.

Em sentido lato, tendo origem no latim alienas, alienam, cujo significado é ‘outro’, ‘outra’, ‘alheio’, a palavra “alienação’ recobre a condição de ser ou sentir-se estranho (alienado) e impotente relativamente a objetos culturais, relacionamentos ou práticas sociais que são, na realidade, produtos da própria atividade humana na história. O termo alienação designa não apenas a estranheza do sujeito diante de seus produtos e a impotência de que sofre nessa condição, mas também o efeito hostil desses produtos sobre ele. O sujeito alienado experiencia as instituições sociais como coisas que existem independentemente da vontade e da atividade humanas. A alienação pode ser pensada como autoalienação da sociedade, conforme nos ensina Castoriadis. O que se segue é a reprodução do que escrevi em minha tese de doutorado em Filosofia.

 Advogando que a sociedade é sempre autoinstituição do social-histórico, Castoriadis não se escusa a reconhecer, contudo, que essa autoinstituição não é percebida enquanto tal. Em outras palavras, a ordem social é instituída sem que os atores sociais se reconheçam como agentes. Por isso, segundo o filósofo, a autoalienação da sociedade é “ocultação do ser da sociedade como autoinstituição”. Existindo na condição de autoalienação, a sociedade mantém encoberta diante de si sua temporalidade essencial. Essa autoalienação da sociedade é mantida  tanto pela tendência própria da instituição quanto pelo domínio incoercível da lógica-ontologia identitária. É possível perceber essa autoalienação da sociedade sempre que esta atribui uma origem outra, diferente do social, à própria instituição, por exemplo, quando a ordem social é compreendida como algo cuja origem é atribuída a seres sobrenaturais, a Deus, à natureza, à razão, à necessidade, às leis da história, ao Ser, etc. Segundo Castoriadis, a tradição filosófica preocupou-se sobremaneira em racionalizar a heteronomia da sociedade, ignorando a dimensão imaginária do social-histórico. Essa mesma tradição não é mais do que uma das manifestações dessa heteronomia.[1] Disso se segue que uma investigação sobre o caráter histórico da instituição da sociedade, com pretender-se adequada, não pode renunciar à consideração do imaginário radical como social-histórico, tampouco pode escusar de considerar a indeterminação, a criação, a temporalidade como autoalteração essencial. O próprio pensamento que se acostumou a ocultar o fazer e o fazer ser do social ignora sua própria natureza de fazer pensante, ele mesmo manifestação e modo de ser do social-histórico. Consoante Castoriadis, a autoalienação da sociedade não é simples representação, nem consiste na impossibilidade de a sociedade representar-se de maneira diversa daquela pela qual foi instituída. A autoalienação da sociedade, enquanto encobrimento de sua temporalidade histórica, é encarnada e fortemente materializada na instituição concreta da sociedade; é incorporada à divisão conflitual mediada por toda a sua organização e interminavelmente reproduzida pelo funcionamento de suas instituições.

Investigando os Manuscritos de 1844 de Marx, Henri Lefebrve observou que o fenômeno da alienação encontra-se lá descrito sob modos diversos:

 

1)    Alienação do trabalhador reduzido à condição de objeto pela força estranha que o constrange em seu trabalho

2)    Alienação da atividade produtora, ou seja, do trabalho que, cindido, subdivide-se.

3)    Alienação do homem em relação à sua espécie, com a redução do humano à satisfação de suas necessidades enquanto animal;

4)    Alienação do homem em relação à natureza.

 

 

Na obra de Marx, a despeito dessas formas variadas de definir a alienação, esta resulta da divisão social do trabalho. Com a divisão do trabalho, a alienação se manifesta, no homem, por meio do divórcio entre a consciência e a prática. Segundo Marx, a divisão do trabalho se manifesta sob a forma da separação entre trabalho físico e trabalho intelectual. A partir desse momento, a consciência passa a conceber-se como algo diverso da consciência da prática existente. É assim que ela se distancia do mundo e imerge na criação teórica pura. Cite-se o que nos ensina Konder nesse tocante:

 

A separação entre o trabalho intelectual e o trabalho manual cava um abismo entre a teoria e a prática, provocando o exílio da teoria para fora da prática e instaurando formas de atividade das quais a teoria necessariamente tinha de estar banida. (Konder, 2009, p. 65, ênfase no original)

 

É importante dizer que Marx retoma a acepção hegeliana de alienação, ressignificando-a à luz dos pressupostos de seu materialismo histórico. Destarte, o desenvolvimento do conceito de alienação, em Marx, se faz em referência ao trabalho material que se aliena na produção de um mundo objetivo, ou em referência à propriedade privada; em uma palavra, em referência ao modo de produção capitalista. Nesse domínio de investigação, a alienação é um efeito da apropriação pelo capitalista do trabalho de toda a classe proletária – apropriação esta que torna o trabalho estranho aos trabalhadores, visto que o exercício do trabalho fica subordinado às forças e exigências do capital. Alienados, os trabalhadores sentem-se impotentes em face do poder e domínio dessas forças. Independentemente de qual seja a forma assumida pela alienação na abordagem marxiana do fenômeno,  todas elas se reduzem à expropriação dos trabalhadores pelos proprietários dos meios de produção.

Doravante, descerei a pormenores na elucidação do que é trabalho alienado. Vimos que, em Marx, o trabalho é uma dimensão fundamental da existência humana. O trabalho deveria servir à autorrealização do homem; mas, nas condições históricas do capitalismo, o trabalho se torna locus de sofrimento, de estranhamento entre o trabalhador e a sua própria atividade. Desde Hegel, no trabalho, na medida em que é a objetivação da subjetividade, o sujeito se reconhece como produtor do objeto. No trabalho alienado, o sujeito não se experiencia como produtor daquilo que, no trabalho, produz. Reduzido à condição de mercadoria que produz mercadorias, o trabalho já não realiza nenhuma capacidade humana do trabalhador. No trabalho alienado, o trabalhador não faz senão cumprir as exigências impostas pelo mercado capitalista.

Vimos que a força de trabalho é um tipo de mercadoria especial, porque ela é a única que cria valor. No entanto, reduzida à mercadoria a força de trabalho, é o trabalhador que a aliena para outro (o capitalista). O trabalho alienado é aquele que oculta a essência dos seres humanos e que impede ao trabalhador que se reconheça como produtor de obras. Para que o trabalho se converta em trabalho alienado, é necessário que a divisão social do trabalho gerada pelo capitalismo não reconheça as aptidões, as capacidades dos indivíduos, suas aspirações e necessidades viscerais e os obrigue a trabalhar para outrem acreditando estarem trabalhando para o bem da sociedade e para o proveito de si mesmos. É por força da existência da divisão social do trabalho e da luta de classes, que o trabalhador individual irá se inserir numa classe social – a classe trabalhadora – e que terá forçosamente, se quiser sobreviver, de trabalhar para uma outra classe social – a dos proprietários dos meios de produção (a burguesia)-, vendendo sua força de trabalho no mercado.

Ao produzir, ou seja, ao empenhar-se na atividade do trabalho, o trabalhador produz mercadorias que são destinadas ao mercado de consumo. Cada trabalhador, ignorando o trabalho de todos os outros trabalhadores que produziram as mercadorias, vê os produtos do trabalho como coisas prontas, que parecem existir por si mesmas, e não como resultado do trabalho. É nesse sentido que devemos entender a ideia de que os produtos do trabalho, no processo de alienação, deixam de ser a objetivação da subjetividade humana, para aparecer como algo independente do trabalho de alguém. Destarte, o produto do trabalho distancia-se do trabalhador, porquanto sua produção se realizou sob imposições alheias, não tendo como móveis as capacidades e necessidades do próprio trabalhador. Ademais, o produto do trabalho, aparecendo como mercadoria num mercado de consumo, se torna algo inacessível ao trabalhador, cujo baixo salário não lhe permite comprá-lo.

Esse processo de alienação do trabalhador e do trabalho, ao longo do qual o trabalho se torna estranho ao seu produtor e o produtor é convertido em mercadoria no processo de produção, leva à reificação do próprio trabalhador, isto é, à redução de sua humanidade à coisa. Ao perder sua humanidade, o trabalhador se torna uma coisa que produz coisas; e ao “coisificar-se”, o trabalhador se torna um outro para si mesmo, assim como os produtos de seu trabalho se tornam coisas estranhas, coisas outras diante do próprio trabalhador. É justamente esse “tornar-se outro” que constitui a alienação do trabalho. Na medida em que o trabalhador se torna uma coisa que produz outras coisas, a relação social do trabalho com o capital (ou entre as classes sociais) aparece-lhe como se fosse uma relação entre coisas a lhe ocultar a verdadeira realidade.

Na condição de alienação, os trabalhadores passam a ser dominados pelo mercado, já que os preços dos produtos são determinados pelas leis do mercado, as quais são impostas pelos capitalistas. Ora, os trabalhadores necessitam de vários desses produtos postos em circulação no mercado de consumo para sobreviver, e a necessidade de sobrevivência os força a aceitar as piores condições de trabalho, os piores salários, a pobreza, a fome, o frio, a doença como condição para que tenham trabalho. Mas, trabalhando, eles terão um salário que só lhes permitirá comprar o mínimo daquilo que eles mesmos produziram. Em suma, os trabalhadores são dominados pelo mercado não só porque se veem obrigados a consentir em qualquer condição para trabalhar, como também porque precisam comprar os produtos postos à venda no mercado, mesmo a preços exorbitantes, ignorando o fato de que esses produtos nada mais são senão seu próprio trabalho objetivado.

Sumariando o que foi exposto acerca da teorização marxiana da alienação e do trabalho alienado, recorde-se que, para Marx, primeiramente, o trabalho se torna alienado na relação do trabalhador com o produto do seu trabalho; depois, na relação do trabalhador com sua própria atividade. Em apertada síntese, a condição do trabalho e do trabalhador nas sociedades capitalistas pode ser assim apresentada. O trabalhador produz mercadorias, e a produção de mercadorias em larga escala depende de capitais, de grandes acumulações de riquezas, que são empregadas para o incremento da produção de mercadorias. As mercadorias são comercializadas por empresários privados com vistas à obtenção de lucro. O trabalhador se vê obrigado a trabalhar para o capitalista, a quem concede, por pressão da necessidade, o uso de sua força de trabalho em troca de um salário. Também o produto do trabalho do operário é propriedade do capitalista. Nesse sentido, o capital é o poder de dispor dos produtos do trabalho. Quanto mais o trabalhador produz, mais poderoso se torna o capital e mais limitados se tornam os meios por que o trabalhador pode apropriar-se dos produtos de seu trabalho. (devemos sempre nos questionar a quem beneficia o crescimento da produção, quando se alardeia na mídia a importância do crescimento econômico). No capitalismo, o trabalho se submete a um poder que ele mesmo criou. O trabalho alienado, conforme ensina Marx, produz um objeto que é percebido pelo trabalhador como uma coisa alheia, como uma força independente de seu produtor (o próprio trabalhador).

Marx nos ensinou que é o trabalho assalariado o responsável pelo crescimento do capital. Mas ele não fala simplesmente em trabalho, mas em força de trabalho, conceito com que busca mostrar que é a única coisa de que dispõe o trabalhador para vender na busca por um trabalho. Marx também não se refere simplesmente à quantidade de trabalho necessário para produzir uma mercadoria; ele se refere, mais propriamente, ao tempo socialmente necessário à produção de mercadorias, que é considerado no momento do cálculo do preço do salário. Esse tempo socialmente necessário vai determinar o modo como se realiza a exploração da força de trabalho assalariado; ademais, vai explicar como e por que o capital parece dotado de uma capacidade misteriosa de crescer. Ora, o conceito de tempo de trabalho socialmente necessário recobre a ideia de que o custo de produção de uma mercadoria corresponde a todos os trabalhos que foram necessários para que se chegasse ao produto final no processo de produção. Esse tempo de trabalho entra a fazer parte do custo social da produção. Nesse custo, se inclui não só o ônus da extração da matéria-prima e de seu transporte, não só o ônus dos instrumentos e máquinas com que as matérias-primas são extraídas, transportadas e fabricadas, mas também o ônus na forma de salário pago aos trabalhadores.

Finalmente, não é escusável observar que o capitalismo, segundo Marx, se distingue de outros modos de produção por permitir a acumulação e reprodução da riqueza social e de assegurar os meios pelos quais se realiza a apropriação privada dessa riqueza. Em outros modos de produção estudados por Marx, observou-se que a riqueza social não aumenta nem diminui, tão somente é transferida de um grupo para outro. Há entesouramento, mas não há produção de mais riqueza. No capitalismo, por outro lado, há crescimento de riqueza social, visto que é da natureza do capital produzir mais capital. O “mistério” do aumento da riqueza social, da reprodução do capital foi desvendado por Marx. Há dois modos pelos quais esse aumento ocorre. O primeiro modo consiste na expropriação por uma classe social dominante de outras classes sociais, que passam a não possuir os meios de produção (terra, instrumentos de trabalho, etc.). A classe dominante se apropria privadamente desses meios que, antes, eram utilizados pelas classes agora dominadas para garantir a subsistência de seus membros. O segundo modo de aumentar o capital consiste em fazer as classes sociais expropriadas e dominadas trabalharem para os proprietários dos meios de produção. Para sobreviver, seus membros aceitam receber um salário cujo valor é o mínimo necessário para a reprodução de sua força de trabalho para se tornarem produtores de bens que serão também propriedade privada do empregador. Assim, o trabalho se torna trabalho assalariado e subjugado às leis da propriedade privada capitalista.

Na visão de Marx, o capitalismo, pois, se define pela transformação da força de trabalho em mercadoria e dos meios de produção em capital.



[1] Cumpre notar que, para Castoriadis (1982; 1987), a tradição filosófica, sobretudo porque centrada na Razão como valor supremo, ocultou o imaginário radical, bem como a dimensão social-histórica do imaginário radical, isto é, o imaginário social ou a sociedade instituinte. A história do pensamento, segundo o filósofo, pensou o ser como ser determinado, e tudo aquilo que não pode ser determinado foi considerado como transcendente ou incognoscível, e impensável. Conquanto não fosse possível ocultar totalmente a imaginação, a tradição se encarregou de lhe ocultar o caráter radical. Assim, à imaginação foi atribuído um papel instrumental, auxiliar ou subalterno na produção do conhecimento.