
O lusco-fusco do
retorno
Outrora minhas palavras eram tão densamente impregnadas de lirismo que, pesando sobre o papel, o dispersava, quer por fraqueza, quer por costume. Até que, um dia, intuí uma verdade subjetivamente sustentável: escrever é desnudar-me. E quem se dispusesse a ler-me contemplar-me-ia toda a alma nua. Certamente, essa nudez de que falo não garante o entendimento de qualquer contemplador, porque a nudez desvela profundezas, abismos impenetráveis aos espíritos habituados à superfície. Revisitando escritos antigos, compilados em apostilas, percebo-me, algumas vezes, aqui e ali, inteiramente derramado; outras vezes, em retalhos; outras ainda, repartido em escombros. Há alguns anos, era assim que me sentia, que me experimentava: retalhado. Leia atentamente, leitor ausente, este meu poema de outrora, a fim de que se ilumine o sentimento a que até aqui dei materialidade verbal:
De mim um pouco
Existe um pouco de mim que se perde
nas entranhas das palavras...
... um pouco de mim que se dilui
nas vísceras do tempo
Um pouco de mim que se derrama
sobre o Céu ao encalço das estrelas
Aqueles diamantes que reluzem no
breu ultrajante de minha ignorância
Existem resíduos de mim no coração
de algumas moças...
Imagens translúcidas de um coração
acostumado a fugas
Existe uma dose de mim no olhar
dessas ilusões encarnadas
Uma dose entorpecente que as faz
indiferentes ao meu sacrifício
Existem pedaços de mim espalhados
no santuário feminil lascivo e cândido
Onde alguns homens se concentram...
Existem sombras de mim na
existência intrigante de Deus...
E uma cruz em meu caminho, ao pé da
qual dormem meus sonhos...
Sonhos crucificados, por altivos e
imensos...
Existe uma voz em mim que não cala,
uma voz enlouquecida...
A que indaga de Deus acerca das qualidades
que o tornam soberano
Onipresente, Onisciente e
Onipotente – tudo rima com ausente...
E a ausência de Deus é um pedaço de
mim que se esvai...
... Que se esvai nos abismos de
minha alma endoidecida...
Como disse o eminente filósofo
alemão, “Deus está morto”
E a morte de Deus é a morte da
eterna esperança humana:
A esperança de compreender e
recriar o Amor.
Se Deus está morto – ou sempre
esteve morto,
... Existem lembranças de mim
enterradas em corações
Que pulsam numa cova funda...
Existe de mim um pouco que se
dissipa em cada instante
E minha respiração denuncia minha
morte
E estar vivo é simplesmente
conseqüência do nascimento
E Deus, a existência, o infinito, o
sonho e o Amor...
São fantasmas que nos assombram
durante o sono da morte
Existe um eu de mim no outro de
cada um...
Mas em mim só existe o vácuo de um
cosmo imaginário...
E se lanço olhares sobre a bela
jovem que me oferta atenção,
São todos furtivos, retraídos,
silentes...
Porque existe de mim um pouco que é
indigno, que é sofrível
Existe em mim a morte e a vida, num
enlace anímico
E minha alma exala aromas
indecifráveis, incompreensíveis, imperceptíveis
... Aromas de um túmulo de vida
E no útero da morte jaz a visceral
razão para viver:
O Amor sempre esteve antes do
homem: é uma ausência que o preenche,
Existe de mim poeiras de uma
plenitude indizível do amor,
E este Amor nunca nascera, foi
abortado no ventre dos Céus;
E minha alma é um aborto de um Deus
que é morto.
De mim existem palavras
amordaçadas, vozes acuadas... sobreviventes
Da lança do destino...
Existe de mim um pouco que não me
suporta
Ou que me ama me agredindo...
E me quer vivo.
(BAR)
Não só
de poemas foram feitos os retalhos de minha alma; também a costurei com prosas
– prosas que, quiçá, agradem, mormente, os doutores da alma, sempre muito
interessados por decifrar a linguagem simbólica do inconsciente, cujos
sentidos, inacessíveis ao sujeito, se deixam apreender entre os desvãos das
palavras. A minha prosa escrita fora um exercício de psicanálise. Dei-me (e
dou-me) a conhecer com uma clareza obscura, iluminei-me (e ilumino-me) lançando
sobre minha alma uma extensa faixa de sombra. A nudez é mais excitante no
lusco-fusco. Toda nudez prontamente dada arrefece o desejo. Ela precisa dar-se
escondendo-se, doar-se na medida mesma em que se recolhe. Recolhendo-se, a
nudez conserva sua intimidade profunda, seu mistério.
Os que
são pouco familiarizados com o legado da psicanálise tendem a reduzir as
pessoas à sua fachada social; ignoram o fato de que cada indivíduo é um
mistério em si e para si. O inconsciente é uma terra esquecida de nós. É a
terra que nos é mais própria. É o relicário onde reside nosso assombro. “A
mente – escrevi, certa vez – tem esconderijos, espaços impenetráveis, caminhos
obscuros, salões imensos, onde residem os gritos de um “eu” encarcerado”. Não é
escusável dizer que este fragmento resgato de um período em que eu vivia
naufragado numa lancinante depressão. A depressão é este estado em que nos
afundamos em nós mesmos. Mas pode ser – e o foi para mim – um estado enfermo de
extensa, duradoura e profunda atividade intelectual e lírica. Quero frisar que
a depressão pode servir para o autoconhecimento. Há dor, certamente, nesse
estado patológico; uma dor funda, com ressonâncias somáticas. Mas, alguns
dentre nós fazem dessa dor uma arte própria – não sem alguns estragos.
Segue-se mais um poema daqueles tempos desditosamente exuberantes. Leia-o,
leitor, enquanto me esforço por desentortar alguns pensamentos e pavimentar
mais alguns caminhos verbais; pois que não é tempo ainda de por termo a este
texto.
Pérola
Na clausura do devanear medonho,
Ser n’alma uma borboleta, ter vôo
gracioso
Desperto!Um cemitério de pesar
ruinoso
Onde tomba este nefasto sonho!
Sonho a alma tremular qual lábaro
Por que feneceram tantos honrados
E por uma nota árida voar um
pássaro
No Inferno cadavérico de Tanatos!
Ah! Este mundo vesgo – Quão
homicida!
- Este confessionário do silêncio
inquisidor!
Não vê bradar minha alma, a Jaspe
esquecida!
Que clama! Que ora! Que canta o
Amor!
E num verso encerra todo o vasto
vazio
Numa sílaba sibila dos Azevedos
velada Dor!
Numa métrica aprisiona de
Fagundes o martírio
Lança que n’alma lírica o Destino
lhe varou!
Deixai, Quimera, que este viver
nevoento
Entoe mais altivo o cântico do
abandonado
Menino que a luz de Deus tem
ofuscado
Que bebe mais doce o cálice do
sofrimento!
Debalde, posto que o seio se
tenha embebido
Em suores que lenço algum teria
sorvido
Deito a encarcerar num novo verso
infausto
(Amplidões!)
Que na concha de Afrodite ouço
exausto!
(BAR)
Note-se que a palavra “Deus”
figura neste poema. E ela é recorrente em muitos poemas que dão registro
daquele tempo em que minha alma estava imersa em trevas luminosas. E deixe-me
dizer algumas palavras acerca da fé. E falo da fé, hoje, na condição de ateu,
que não renega um passado cirurgicamente marcado pela fé cristã. Tenho uma
dívida lírica com a fé. É tempo de reconhecer-lhe o valor.
Quando se vive num país em que a
maioria esmagadora da população professa uma fé em Deus, crê numa vida após a
morte, tornar-se ateu, afirmando a inexistência de Deus e acreditando não haver
transcendência alguma, nada semelhante a um além-mundo, é correr o risco de ver
estremecida a socialização. Alguns ateus podem até tornar-se persona non grata. Por conseguinte, quiçá, se pretendemos
angariar estima e aceitação em tal meio social, é conveniente afirmar o que a
maioria afirma, acreditar no que a maioria acredita, e acreditar na existência
do único Deus (dentre outros tantos postulantes ao cargo de deus verdadeiro).
Como, há muito, me acostumei a viver na contramão, cuidei que, a despeito de o
social moldar o individual, há sempre alguma margem de manobra para cada
indivíduo; cuidei mais vantajoso fazer valer o primado do indivíduo sobre o
social.
Retomemos, contudo, o tema da fé.
Dizia eu que falaria da fé a partir do lugar de um ateu; não para
desqualificá-la, mas para reconhecer-lhe o valor nas minhas experiências de
escrita lírica de outrora. Eu experienciei a fé cristã com tudo aquilo que ela
tem de paixão (entenda-se “sofrimento”). Vivi a fé com dor; mas dessa dor verti
a poesia lírica, a poesia que buscava regiões transcendentes. O Amor cantado
pela poesia era o Amor das Alturas, um Amor que transcendendo a matéria,
venceria a morte. Vivi a experiência da fé na solidão mortuária. Devo, em
grande medida, à fé a densidade de meu lirismo, o fervor da minha verve
poética. No entanto, foi preciso superar a depressão, foi preciso
reconciliar-me com a vida; foi preciso viver menos a fé poética e encarar a
vida sem subterfúgios, com autonomia.
Neste momento em que estou a
escrever este texto, para o que reinterpreto experiências passadas, posso delas
dar testemunho sem as angústias que as marcaram tão intimamente. Em retrospecto, apreendo-me como alguém que,
embora cindido, nunca deixou de ser fiel a si mesmo. A experiência da escrita
sempre me pareceu este gesto de fidelidade a mim mesmo. Mais um fragmento de
outrora deste eu mesmo em retalhos:
Sem título...
Comumente,
enceto meus textos com um título, que me ilumina os caminhos verbais que meu
espírito crédulo e cândido dedica-se a construir. No entanto, este texto ficará
sem título, porque se não me afigura a intenção que o motiva; muito menos seu
conteúdo temático, que me é desconhecido. A cada segmento frásico detenho-me a
pensar, tentando acomodar a maleabilidade e a abundância de minha alma à
rigidez e estreiteza das formas de expressão verbal. Desista, leitor ignoto, se
ousa construir a coerência deste texto, dado que ele não foi escrito para fazer sentido. Neste átimo, todo o meu
ser foi invadido por um vendaval de desencanto; a insanidade verbal apossa-se
de minhas emoções, tornando-as carentes, empobrecidas, desatinadas, adoecidas.
São emoções indistintas os habitantes de minha alma, a qual se tem assemelhado
a um cemitério, em cujas covas fundas jazem as ilusões de meu coração. No
entanto, numa noite de céu tormentoso, as palavras veludas da esperança
tornaram a encontrar os meus silêncios verbais. Convenci-me de que somente o
AMOR, que, nestes dias decursos, tomei para objeto do pensamento reflexivo,
porquanto creio ser a única coisa que me restou, após inúmeras páginas
fracassadas, podia salvar-me do afogamento da depressão. As ideias de amor, que
dantes coabitavam com os delírios da paixão romântica em minha alma, já
feneceram em função do imperativo da realidade, implacável para com toda forma
de devaneio lírico romântico. Aflorou, então, naquele terreno que abriga os
restos mortais de meus desvarios de AMOR, uma bela pérola, cuja existência não
é dada a conhecer a qualquer homem.
Senti-me
grato por tamanho privilégio. As trevas de meu coração transverberaram a luz de
dias promitentes... Mas o que era alegria fulgurante tornou-se um vazio opaco e
oco, donde é possível ouvir o estrépito suplicante de meu ser por seu retorno.
Quiçá,
sejam vãs estas palavras! Talvez, não sejam senão sintomas de uma doença que
contaminou meu espírito quando de minha encarnação neste mundo inóspito, cujo
absurdo parece ser a única verdade inabalável. Ler é minha fuga; quando
repousado com um livro em minhas mãos, ignoro o mundo e sua conturbação
desconcertante. É um estratagema eficaz; por muitos anos, bastante, mas agora
insuficiente. Os livros só edificarão uma inteligência insigne, mas não
proverão a carência de meu coração. Todavia, as palavras continuam sendo minhas
fiéis amantes; posso sempre delas me servir para preencher as crateras de
ilusões meteóricas que se abriram em minha alma.
Lembro
ao leitor imaginário que este texto é, essencialmente, despropositado, ou
melhor, é carecido de substância significativa; não comunica; tão só apela ao
Desconhecido, cuja forma é inacessível ao espírito humano. Por isso, levarei a
cabo este texto com algumas ideias de Freud, colhidas do livro O Mal-estar na cultura (2010). À página
60, lemos o seguinte:
“A vida, tal como nos é imposta, é
muito árdua para nós, nos traz muitas dores, desilusões e tarefas insolúveis.
Para suportá-la, não podemos prescindir de lenitivos”.
Este
passo de Freud remete-me à ideia de facticidade da fenomenologia de Sartre,
conceito que recobre aquilo que não é
necessário, que simplesmente é. As coisas estão diante de minha consciência
e minha consciência tem de, inevitavelmente, apreender-se a si mesma como um
fato entre tantos outros. Alhures, defini a importância da leitura em minha
vida como o único meio de que me servia para viver num mundo que veio antes de
mim; um mundo que se nos apresenta, sob o véu da ideologia, pronto, acabado,
como um imenso anfiteatro onde encenamos as tragédias de nossas vidas.
Seja vazada em poemas, seja vazada
em prosa, minha escritura – pelo menos a que se fez tão penetrante e
cirurgicamente eficaz, outrora – é ela mesma testemunho do esforço por fazer
conhecidas regiões ignotas de mim mesmo. Havia sim uma ilusão de transparência
que eu perseguia com a atividade de escrita. Queria eu que me lessem para que
me conhecessem para além da fachada social que, àquela altura, sofria os abalos
de terremotos psíquicos.
O fluxo verbal estancou; a
linguagem é sempre atravessada por uma insuficiência. Sentimos mais do que
podemos dizer. As palavras são deficientes, quando se trata de dar conta da
dimensão do simbolismo que constitui a totalidade do inconsciente. Ao longo da
produção deste texto, alguns pensamentos que me visitaram instantes antes de me
por a escrevê-lo se perderam em meio a outros que me foram assomando à
consciência. Agora, eles jazem esquecidos. Há sempre algo de nós que se perde
no dizer, porque as palavras jamais, sob hipótese alguma, conseguem apreender a
totalidade do potencialmente enunciável. Há, no entanto, regiões de nós que
ficam submersas; que se deixam entrever apenas aos espíritos argutos.
Ponho termo a este texto,
referindo outro fragmento de um texto, cujo título Eu mesmo com o mundo, codifica um momento de minhas experiências de
imersão em mim mesmo. Este texto é mais um retalho, um canto antigo que se faz
ressoar.
As palavras transpiram silêncio; minha
alma, ausência. Abro
um livro de Mitologia Grega... No rosto da folha, estampa-se o título Vênus e Adônis... As palavras cheiram a
experiências róseas... Há aromas doces que exalam daquelas páginas... Nas
entranhas daquele livro, há palavras lascivas, que me exorcizam o medo do
mundo... Minha alma, como uma nau embevecida é levada por espumas de
palavras... Meu coração, como velas alçadas, é avistado no horizonte verbal
onde os significados se vislumbram e onde o silêncio significa, atravessa toda
palavra... Há um silêncio pulsante nas entranhas da linguagem... Fecho o livro,
e me sobra o mundo.
“Como o ser humano um dia fez uma
pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres”.
(Clarice Lispector)
Se toda a humanidade pudesse ser submetida à sede
do espírito por esquadrinhar a realidade, distinguiríamos, ao cabo do trabalho,
três espécies de seres humanos: os que existem; os que resistem; e os que
vivem, em que pese à vida. Os que existem reconhecem a existência com o Outro
ou através do Outro. Os que resistem se afligem; e os que vivem, cultuam a vida
além da morte.
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