
O artigo em sala de aula
Algumas considerações
sobre seu funcionamento discursivo
O tema deste texto toca a um capítulo das aulas de língua
portuguesa que não costuma ser bem explorado pelo professor, qual seja, o artigo. Creio não incorrer em erro ao
afirmar que, nas aulas, de um modo geral, muito pouco se ensina sobre a função
textual ou discursiva desempenhada pelo artigo. Nas séries iniciais, o aluno é
levado a identificar os artigos em frases soltas e a classificá-los em definido
ou indefinido. Por vezes, há uma preocupação em ensinar a distinção semântica
entre a forma “um” (uma) do artigo e a forma “um” (uma) do numeral. No capítulo
da sintaxe, os artigos assumem uma função sintática no interior do sintagma
nominal que o aluno deve saber reconhecer. No entanto, em nenhum dos casos
mencionados, procura-se tratar o artigo como um recurso importante de coesão
textual.
Este
texto, portanto, é dedicado ao tratamento do artigo como uma unidade
linguística implicada nos mecanismos de coesão referencial. Para elaboração
deste trabalho, entendo por coesão
referencial o fenômeno pelo qual um elemento da superfície textual faz
remissão a outro(s) elemento(s) presente(s) no texto ou dele inferível(is). A
coesão textual é parte do fenômeno global da referenciação. A referenciação
é uma atividade discursiva de construção sociocognitiva-interacional de
referentes que vão emergindo na própria prática discursiva e formando redes
referenciais. Os referentes são considerados “objetos-de-discurso”, que são
construídos, mantidos e modificados pelo/no discurso. Subjacente à noção de
referenciação está a visão de que a linguagem não espelha a realidade; esta, ao
contrário, é construída num complexo processo de interação entre
percepção-cognição, cultura e linguagem. A realidade é construída segundo os
modos como interagimos com o entorno físico, social e cultural.
Os
referentes, não sendo objetos do mundo, são unidades culturais construídas
no/pelo discurso. A fabricação dos referentes, ou dos objetos-de-discurso, se
dá na dimensão da percepção-cognição via discurso. A construção dos referentes
é sempre um processo sociocognitivo-interacional. Nas palavras de Marcuschi
& Koch (1998: 5),
“Isto não significa negar a
existência da realidade extra-mente, nem estabelecer a subjetividade como
parâmetro do real. Nosso cérebro não opera como um sistema fotográfico do
mundo, nem como um sistema de
espelhamento, ou seja, nossa maneira de ver e dizer o real não coincide
com o real. Ele reelabora os dados
sensoriais para fins de apreensão e compreensão. E essa reelaboração se dá
essencialmente no discurso. Também não se postula uma reelaboração subjetiva,
individual: a reelaboração deve obedecer a restrições impostas pelas condições
culturais, sociais, históricas e, finalmente, pelas condições de processamento
decorrentes do uso da língua”.
Portanto,
não dizemos o mundo tal como ele é, mas construímos versões públicas do mundo (Marcuschi, 2005, P. 71). O mundo textualizado não se identifica
com um mundo real ou extralingüístico, tomado como “verdadeiro”. Não há uma
relação especular entre linguagem e real: a linguagem não espelha o real. Há
sempre um trabalho da percepção-cognição e da linguagem, culturalmente
determinado, sobre o real. A estrutura do real não é senão resultado do trabalho
da interpretação humana. O real é produto da práxis, que é ação humana na
história e que envolve um aparelho perceptual-cognitivo, práticas discursivas e
culturais. É nas práticas culturais, que geram redes de estereótipos, que a
realidade é fabricada. Esses estereótipos ganham materialidade na linguagem e
são por ela reforçados.
Os
objetos-de-discurso - é preciso frisar - não devem ser entendidos como produtos
de uma transformação de objetos do mundo. Os objetos-de-discurso existem no
discurso e não supõem um correlato no mundo extralingüístico. Eles são
construídos no discurso e delimitados na dimensão perceptivo-cognitiva.
Destarte, segundo Roncarati (2010),
“O referente se torna, portanto, um
objeto construído no/pelo discurso. O mundo real é aquele que sentimos, lemos,
interpretamos e sobre o qual falamos com base em crenças, pressupostos, ideias
e inferências construídos e reconstruídos a partir de condições de produção
transitórias, arbitrárias, históricas e passíveis de negociação. Mas também temos
interditos, implícitos, ironias, intencionalidades, mentiras e más intenções:
quantas vezes falamos de um referente X, em verdade ocultando e velando um
referente Y?”
(p. 44)
Antes
de considerar a função discursiva desempenhada pelo artigo, necessário se faz
definir a noção de contexto. Não
pretendo fazer incursão nessa problemática; por isso, cinjo-me a dizer que, ao
me referir ao contexto, levo em conta o conceito de contexto sociocognitivo. Os estudiosos que se situam na esteira das
abordagens sociocognitivas da linguagem têm insistido em que o contexto físico
não determina diretamente a produção e compreensão dos enunciados, mas só o faz
por meio de conhecimentos representados na memória dos interlocutores. O contexto sociocognitivo compreende,
então, o conjunto de conhecimentos (enciclopédico, sociointeracional,
linguístico, procedural, etc.) armazenados na memória dos interlocutores, que
são mobilizados para a produção/compreensão dos enunciados por ocasião do
intercâmbio verbal. Trata-se, portanto, da bagagem cognitiva que cada parceiro
de comunicação já traz para o evento de interação verbal. Constituem partes do
contexto sociocognitivo as seguintes formas de conhecimento: o conhecimento linguístico, o conhecimento
enciclopédico (ou de mundo), quer declarativo, quer episódico (frames,
scripts), o conhecimento da situação comunicativa e suas “regras”, o
conhecimento superestrutural (tipos textuais), o conhecimento estilístico
(registros e variedades da língua e sua adequação à situação de comunicação),
conhecimento sobre gêneros textuais e conhecimento sobre outros textos
(intertextualidade) (Koch, 2006, p. 24).
Intimamente
ligado à noção de contexto sociocognitivo está o conceito de modelos cognitivos ou experienciais.
Esses modelos se constituem de estruturas complexas de conhecimentos, que
representam as experiências que vivenciamos em sociedade e que servem de base
para a produção de conceitos. Os modelos constituem conjuntos de conhecimentos
social e culturalmente determinados e adquiridos em nossas vivências. (Koch, 2006, p. 44).
Os modelos cognitivos ou experienciais
constituem blocos de conhecimentos que representam as nossas experiências de
mundo. Eles podem ser tipificados de modo vário, mas, para os meus propósitos,
basta me referir a um tipo apenas, chamado frames.
Frames são um tipo de modelo
cognitivo que compreende conhecimentos organizados na memória sob um dado
rótulo (p. ex., conhecimentos relativos a “Natal”, conhecimentos sobre “Carnaval”
restaurante”, etc.). Como há autores que não distinguem entre frames e outros tipos de modelos
cognitivos (esquemas, scripts, planos), frames
serão definidos aqui como todo conjunto de conhecimentos armazenados na memória
dos interlocutores indispensáveis à intercompreensão.
1. O
artigo definido
O artigo definido ocorre em sintagmas
nominais que inclui informações conhecidas dos interlocutores. Em outras
palavras, o referente de expressões nominais em que se acha o artigo definido é
conhecido pelos interlocutores. É a intenção do falante que determinará o uso
do artigo definido, bem como o modo como ele pretende comunicar uma dada
experiência. O uso do artigo está intrinsecamente ligado às circunstâncias,
linguísticas ou não, da enunciação.
O
artigo definido atualiza uma referência
direta quando o falante se refere a algo presente na situação de
comunicação. Assim, em (1),
(1) A
piscina está vazia hoje.
o
enunciador usa o artigo definido para indicar que se trata de uma piscina
identificada na situação de comunicação.
A
referencia é indireta, sempre que o
uso do artigo definido for extremamente dependente do conhecimento de mundo
compartilhado pelos interlocutores. Nesse caso, eles sabem a que entidade se
faz referência, mesmo que ela não esteja disponível na situação de fala. No
exemplo (2), abaixo, ilustra-se a referência indireta:
(2)
A –
Olha, virá uma senhora aqui pegar os alimentos que doarei. Atende ela
pra mim.
(alguns
instantes depois...)
A – E a
moça pegou os alimentos?
B –
pegou.
O uso
do artigo “a” antes do substantivo “moça” no segundo turno da fala de A foi
possível, porque A compartilha com B o conhecimento sobre a mulher que iria
pegar os alimentos para doação. O referente de “moça” é reativado na memória do
falante B, visto que já havia um endereço cognitivo para ele quando da produção
da primeira fala de A, quando ele introduziu no discurso a expressão “uma
senhora”.
O
artigo definido, quando usado para referência textual ou endofórica, figura num
sintagma que faz remissão a um constituinte anterior. Quando a remissão se dá
para trás, chamamo-la anafórica. A
anáfora é, portanto, o mecanismo pelo qual uma expressão nominal faz remissão a
outro elemento que a precede. Em (3), temos um caso de referência anafórica
pelo uso de uma expressão nominal com artigo definido:
(3) Um
homem roubou a bolsa e fugiu. O delinquente está sendo procurado pela
polícia.
Note-se
que “o delinquente” faz remissão a “um homem”.
Particularmente
interessante são os casos em que usamos o artigo definido em anáforas
conhecidas como associativas. Anáfora associativa consiste no emprego
de uma expressão definida, cuja compreensão não se ancora em algum referente
explícito anteriormente anunciado, mas depende de uma inferência com base em
algum elemento anterior que funciona como uma espécie de ‘gatilho’. O referente
da expressão anafórica é introduzido como se fosse já conhecido. Há uma relação
semântica de pertinência ou ingrediência entre a expressão anafórica e o
elemento que permite a sua compreensão. No enunciado abaixo, de Pitágoras, o
uso de “a amizade” (com artigo definido) foi possível em virtude da ocorrência
de “amigos”.
(4) “Os amigos têm tudo em comum, e a
amizade é a igualdade.
O
constituinte “a amizade” não retoma “amigos”, ou seja, “amigos” não é o
referente a que faz remissão “a amizade”, mas essa expressão ‘faz sentido’
porque podemos estabelecer uma relação semântica de pertinência entre ela e o
elemento “amigos”. Vejam-se outros exemplos:
(5) O carro enguiçou e o motorista esperou duas horas
pelo reboque.
(6) O
casamento foi um sucesso. A noiva
estava linda; a decoração,
impecável.
(7)
Quando cheguei à bilheteria, os
ingressos haviam acabado.
Todos
os sintagmas grifados em negrito constituem exemplos de anáforas associativas.
Em (5), a ocorrência de “o motorista” se explica porque é possível estabelecer
uma relação de ingrediência com “o carro”. É claro que “o motorista” introduz
um referente novo, mas ele se torna compreensível via “carro”. A expressão que
torna possível a anáfora associativa ativa um frame no interior do qual esta faz
sentido. Assim, “o carro” ativa um conhecimento sobre como chamamos a pessoa
que o dirige. Em (6), é “casamento” que ativa um frame (um modelo cognitivo) no
interior do qual “a noiva” e “a decoração” são interpretados. O frame é a
representação na memória do falante de uma experiência que assume a forma de
conhecimento que é ativado pela ocorrência de uma expressão linguística (no
caso, “casamento”). Assim, “casamento” ativa um frame que inclui elementos como
“noivo”, “noiva”, “igreja”, “padre”, “juiz”, etc. Novamente, cabe lembrar que
“a noiva” e “a decoração” estabelecem uma relação anafórica por associação com
“casamento”, mas não fazem remissão a um elemento anteriormente anunciado. Não
há, nos casos de anáfora associativa, correferência. Finalmente, em (7), a
expressão “a bilheteria” aciona um frame em que “os ingressos” se reveste de
sentido. É parte de nosso conhecimento de mundo o fato de que bilheterias
vendem ingressos (para shows, filmes, partidas de futebol, etc.).
2. O artigo
indefinido
Via de
regra, as expressões nominais encetadas de artigo indefinido não servem para
fazer remissão a referentes já introduzidos no texto. Não obstante, há alguns
casos em que a remissão é possível: a) quando se seleciona um referente dentro
de um conjunto já mencionado (p.ex. Um grupo de estudantes protestou contra a
decisão do governo. Um colegial acabou agredido pelos policiais.); b)
quando se nomeia uma parte de um referente previamente mencionado (p. ex. O
telhado precisa de conserto. Uma telha está quebrada.); c) quando a
expressão anafórica realça a informação que veicula (p. ex. Quando chegou em
casa, não encontrou o pai vigoroso de sempre, mas um velho estafado).
Diferentemente
do artigo definido, o artigo indefinido não é uma palavra fórica. Usa-se antes
de substantivos quando não se pretende apontar ou indicar a pessoa ou coisa que
se faz referência, nem na situação de comunicação, nem no texto. No sintagma
com artigo indefinido, a referência incide sobre a classe particular a que uma
coisa ou pessoa pertence. O artigo indefinido indica que o sintagma aplica-se a
qualquer membro da classe ou grupo. Dizer que os artigos indefinidos são
não-fóricos significa dizer que eles não permitem recuperar a informação
semântica na situação ou no texto. Também não são descritivos, porque não
fornecem informação sobre a natureza dos objetos; eles operam sobre um conjunto
de objetos previamente delimitados em razão de suas propriedades.
Se, por
um lado, o artigo definido se acha num sintagma nominal em que a referência é
considerada como conhecida tanto pelo falante quanto pelo ouvinte; por outro
lado, o artigo indefinido figura num sintagma indeterminado que pode ser de
dois tipos:
a) indeterminado específico: quando o
falante identifica um referente, mas o ouvinte não.
Ex. Eu
pedi a um amigo que me emprestasse o celular.
“Eu”
sei de que amigo se trata. O referente de “um amigo” é parte de meu
conhecimento de mundo.
b) indeterminado não-específico: quando
nem o falante nem o ouvinte identificam o referente.
Ex.
Tenho de comprar um celular novo urgentemente.
Trata-se
de “qualquer celular”; nesse caso, o referente não é conhecido nem do falante
nem do ouvinte.
Por
fim, vale dizer que o artigo indefinido enceta sintagmas que fazem remissão catafórica (movimento para frente). No
exemplo “Eu só espero uma coisa de você: a sua amizade”, a expressão “uma coisa” faz remissão ao
constituinte “a sua amizade”, posposto.
Segue-se,
abaixo, o texto de Millôr Fernandes, intitulado de “a vaguidão específica”, que
ilustra muito perspicazmente a função discursiva do artigo definido. Destaquei
os sintagmas em que ocorre o artigo definido. O uso do artigo definido foi
possível porque as interlocutoras compartilham parcelas de seus contextos
sociocognitivos.
A
Vaguidão Específica
“As mulheres têm uma maneira de falar que eu
chamo de vago-específica”.
(Richard Gehman)
- Maria, ponha isso lá fora em qualquer
parte.
- Junto com as outras?
- Não ponha junto com as outras, não.
Senão pode vir alguém e querer fazer qualquer coisa com elas. Ponha no lugar
do outro dia.
- Sim, senhora. Olha, o homem está
aí.
- Aquele de quando choveu?
- Não, o que a senhora foi lá e falou
com ele no domingo.
- Que é que você disse a ele?
- Eu disse para ele continuar.
- Ele já começou?
- Acho que já. Eu disse que podia principiar
por onde quisesse.
- É bom?
- Mais ou menos. O outro parece mais
capaz.
- Você trouxe tudo para mim?
- Não senhora, só trouxe as coisas.
- Mas traga, traga. Na ocasião, nós descemos
tudo de novo. É melhor senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra
noite.
- Está bem, vou ver como.
(Millôr Fernandes)
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