quarta-feira, 13 de setembro de 2017

"A ideia do suicídio é uma grande consolação: ajuda a suportar muitas noites más." (Nietzsche)

                     
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                     Diálogos sobre o tema do suicídio
          Ou sobre se a vida vale ou não a pena ser vivida



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1ª hipótese

Sim, não podemos esquecer que nosso tema é o suicídio e que a partir dele decidimos desenvolver, conjunta e confrontantemente, nossas reflexões. E quero, em outros momentos de minhas intervenções, tornar a considerar o suicídio, principalmente sob duas perspectivas: a da condenação pela Igreja cristã e da patologização pela psicanálise. Mas a questão do suicídio – concordamos nesse ponto – nos conduz para a questão que consiste em determinar se a vida vale ou não a pena ser vivida. Acho que é o momento, então, de começarmos a refletir sobre o tema do sentido, sem perder de vista sua articulação com o tema do desespero. Já apresentei uma definição de desespero a partir de Rosset que pode nos servir de “âncora” para nossas reflexões. Cito-a aqui novamente: o desespero é “uma disposição absolutamente refratária a tudo que se assemelhe à esperança ou à expectativa”. Essa definição expressa um dos dois sentidos com que o vocábulo desespero deve se apresentar como objeto de nossas reflexões. O outro sentido, típico do senso comum, é o do desespero como perda dos esteios que davam sustentação à existência, como experiência de desorientação perturbadora, de ruína dos alicerces (ilusórios?) de nossa existência. A definição de desespero proposta por Rosset se inscreve no horizonte de uma filosofia trágica, ao passo que a definição do desespero como ‘experiência de desorientação perturbadora' pode ser vista como representante de uma filosofia pessimista.
Gostaria que esta primeira etapa seja vista como minha primeira hipótese a respeito da natureza do sentido (que, aliás, conforme procurarei mostrar, nos escapa tão logo pretendemos dar a conhecê-la). Como primeira hipótese, o que faço é uma tentativa de esclarecer o que acredito estar em jogo na problemática do sentido. O que direi do sentido é produto de reflexões já feitas e apresentadas em outro lugar, e as reconsiderando agora, estou convencido de que há outros elementos que precisam ser observados no tratamento dessa questão. Por enquanto, espero que o início de minha abordagem da questão do sentido nos inspire para fazer novos sobrevoos de reflexão!
Sem mais delongas, eis como decidi iniciar minhas reflexões sobre a questão do sentido. Aí está você, lançado no mundo, tendo a morte como seu acontecimento futuro principal. Sem nenhuma razão para encontrar-se neste meio sociocultural em vez de outro. Você mesmo, um ser humano trêmulo, habitante de um universo indiferente aos seus anseios, objetivos... Para evitar que você sucumba ao desespero total, sua cultura lhe molda um caráter (uma espécie de proteção), lhe constrói uma armadura que o/a impede de sofrer a invasão de intuições perturbadoras sobre a natureza verdadeira do mundo, sobre a crua condição humana. E tendo sido doutrinado(a), ainda de modo informal, numa tradição religiosa e aprendido que a vida tem sentido, porque existe um Deus que o garante, você receberá, na escola, algumas lições sobre biologia. Uma lição de que, provavelmente, você jamais se esqueceu é a que lhe ensina sobre a cadeia alimentar, que distribui num sistema de produtores, os consumidores e os decompositores. A cadeia alimentar constitui a base do ecossistema. Ao longo da cadeia alimentar, os organismos produtores transferem energia e nutrientes aos consumidores. Essa transferência é cíclica, pois se completa quando do retorno dos nutrientes aos produtores. O retorno é possível pela ação dos decompositores que transformam a matéria orgânica dos cadáveres e os excrementos em compostos mais simples, num ciclo ininterrupto de transferência de nutrientes. A energia é um bem indispensável à sobrevivência de todo organismo, por isso todos os organismos, independentemente do lugar que ocupam na cadeia alimentar, a utilizam para a manutenção de sua vida.  Essa breve e bastante superficial descrição da cadeia alimentar ajuda-nos a compreender que o metabolismo, isto é, o processo geral pelo qual os organismos vivos se apropriam e se utilizam da energia de que precisam para desempenhar suas funções vitais, constitui um aspecto fundamental da definição da vida. São muitas as definições propostas para o termo vida nas ciências da natureza (e eu não tenho a pretensão de adotar alguma delas). Mas uma lição igualmente importante de nossas aulas de biologia é que um ente só pode ser considerado um organismo vivo se exibir todos os seguintes fenômenos: a) desenvolvimento: passagem por etapas sequenciais que vão da concepção à morte; b) crescimento: acumulação e reorganização de matéria proveniente do meio natural; excreção dos produtos indesejáveis; c) movimento, acompanhado ou não de locomoção no ambiente; d) reprodução: capacidade de gerar indivíduos semelhantes; e) resposta a estímulos: capacidade sensitiva e de reação às possíveis mudanças no meio natural; f) evolução: capacidade de transformação de sucessivas gerações e de adaptação delas ao meio ambiente.
O que aprendemos sobre a cadeia alimentar nos foi transmitido com os termos técnicos consagrados na ciência biológica.  E a tecnicidade desses termos nos impede de ter uma experiência de assombro diante do fato de a cadeia alimentar não passar de uma cadeia de carnificina incessante durante a qual a necessidade de matar é condição indispensável à manutenção do processo de viver nas condições naturais. A vida, nessa perspectiva, não é mais que um sistema autorregulador cujo desenvolvimento se realiza por meio dos processos de reprodução e de destruição de organismos que, por sua vez, não são mais do que máquinas de sobrevivência programadas por seus genes para satisfazer o “interesse” do conjunto desses genes, qual seja, a perpetuação nas gerações futuras. ( De modo algum, - preciso lembrar - entendo serem os animais “máquinas de sobrevivência”; em relação ao sofrimento dos animais, estou afetivamente próximo de Schopenhauer).
Conforme nos ensina Dawkins, em seu O Gene Egoísta, toda máquina de sobrevivência tem como objetivo a sua sobrevivência individual e a reprodução. Por isso, ainda segundo Dawkins: “Os animais (...) não medem esforços para encontrar e capturar alimento, para evitar serem eles mesmos capturados e comidos, para evitar doenças e acidentes, para proteger-se das condições climáticas desfavoráveis, para encontrar membros do sexo oposto e persuadi-los a acasalar-se, e para conferir aos seus descendentes vantagem semelhantes àqueles que eles próprios desfrutam”.
Os esforços dos animais descritos por Dawkins no trecho acima são, penso, evidências que dão sustentação à visão da vida como um esforço contínuo de resistência dos  organismos à tendência intrínseca da vida ao aniquilamento, isto é, à morte (Freud soube bem ver isso no seu conceito de pulsão de morte, e antes dele Empédocles). A morte não é uma simples circunstância consequente do processo de viver; ela é um dos momentos constitutivos da dinâmica do processo de viver (no sentido de que, enquanto vivo, carrego em mim a possibilidade sempre aí da minha morte). Essa compreensão do processo da vida pode ser ampliada com a observação de que a extinção é o destino de todas as espécies. Ora, a vida na Terra começou há cerca de 4 bilhões de anos e evoluiu em milhões de milhões de direções diferentes, e está destinada a findar em entropia máxima muito antes do resto do universo. Também o Sol, sem o qual a vida na Terra não seria possível, explodirá ou se consumirá em cerca de 5 bilhões de anos, reduzindo a cinzas tudo que gira à sua volta. As estrelas não terão destino diferente. Olhar o universo a partir dessa perspectiva niilista, a qual nos mostra que a tendência de tudo que existe é desaparecer no Nada absoluto, não é adotar uma visão pessimista sobre a vida; é, na verdade, atingir uma compreensão radical do caráter deveniente de tudo que há.  Por alguns instantes, vamos considerar o que significa ser no tempo. Ou seja, o que significa a experiência do tempo, para nós, humanos? Não te parece que ela significa a experiência do fluxo incessante de todas as coisas, do passar, do fugaz, do aniquilamento, da dissolução, donde resulta a experiência de nulidade de tudo que fazemos? Marcel Coche soube bem ver qual é a pergunta mais radical que está, por assim dizer, prevista na clássica pergunta “Por que existe alguma coisa em vez de nada?”. A pergunta mais radical é outra, diz o filósofo. Trata-se de perguntar “Por que fazer alguma coisa em vez de nada?” Se a destinação de tudo que há é o aniquilamento, se a experiência do tempo, que é a do devir, é a própria experiência de estarmos rodeados pelo nada (já que tudo que é deixa de ser, num fluxo contínuo), por que fazer alguma coisa em vez de nada fazer?
O que Sartre disse a respeito da condição do homem frente a sua indeterminação radical (“O homem está condenado a ser livre”) penso ser possível dizer da condição do homem em relação à necessidade de dar sentido, de produzi-lo: o homem está condenado a produzir sentido. Essa é uma condição inescapável ao homem dada a sua natureza de ser de linguagem, ser de discurso (homo loquens). O acontecimento do sentido é um acontecimento de linguagem, ou seja, não é possível conceber, falar de sentido sem levar em conta a linguagem como capacidade humana que  não só serve para estruturar as nossas experiências de mundo, mas também para dar sentido a elas.
Mas a própria experiência de construção de sentido, por força da consciência que tem o homem de ser no tempo, está, em última instância, destinada ao fracasso. Vou explicar por que a entendo como destinada ao fracasso. Sentido é um termo difícil de definir (quero dizer mais precisamente que, ao tentarmos responder a questão “qual é o significado de significado?”, já estamos produzindo um ato de significar; somos como que enclausurados no domínio daquilo que pretendemos revelar). Não podemos “sair” da linguagem para, de um ponto de vista externo à prática de significação, dizer o que é o significado. Dizer é já significar. Além disso, o sentido é marcado por uma ‘ausência de si’. Quando nos perguntamos sobre o sentido da palavra “casa”, queremos saber qual é o significado da palavra “casa”, ou seja, o seu conteúdo semântico, o seu significado denotativo, ou ainda a ideia associada a ela. Não vou aqui entrar em discussões sobre a distinção entre significado e sentido, como a estabelecida por Frege, nem tecer considerações sobre o que significa falar em “sentido” nas diversas teorias da Linguística. Não farei distinção entre “sentido” e “significado”. Sentido e significado serão tomados como termos sinônimos. Espero que fique claro que os significados que atribuímos às nossas experiências de mundo são sempre humanos, demasiado humanos e, portanto, frágeis, efêmeros tal como é frágil e efêmera a vida humana num Universo que carece de ordem, de sentido em si; num Universo que é indiferente ao nosso trabalho cotidiano de produção de sentido.
 O sentido da palavra “casa” não é nem a estrutura sonora ou, em termos saussureanos, a imagem acústica /kaza/ nem o referente concreto que o signo “casa” designa no mundo. O sentido está de permeio, por assim dizer, entre o significante (a imagem acústica) e a coisa significada. Notemos que o sentido tem um papel de articulação, de relação. Todavia, diferentemente do que pensava Saussure, vou assumir que essa articulação feita pelo sentido (ou significado) não é a da imagem acústica com a coisa designada pelo signo, mas a da imagem acústica, ela própria “a imagem psíquica do som” (Saussure), com o conceito, que é também um componente de ordem mental. Mas o sentido só pode atualizar-se através de outros signos (Peirce). Se eu forneço o sentido da palavra “casa”, o faço através de uma definição que resulta da combinação de outros signos. Assim, o sentido de “casa” é “edifício destinado à habitação”. Evidentemente, este é um dos sentidos de “casa”, já que as palavras são polissêmicas. Mas o aspecto polissêmico das palavras não tem relevância aqui.
Disse que o sentido “está de permeio”, mas como poderia “estar entre duas coisas”, se o sentido é ‘ausência de si’, é um ‘lugar vazio’? Como poderia ‘uma ausência’ ocupar um lugar? É que o sentido é a determinação de uma ausência que significa na combinatória de outros signos. Nunca encontramos, de fato, o sentido em si (veja “eis o sentido!). O sentido de um signo é outro signo ou combinatória de signos (Peirce). Evidentemente, esse outro signo significante ou combinatória de signos só pode atualizar o sentido por convenção, ou seja, são os membros de uma comunidade linguística que se colocam de acordo quanto ao sentido que vão atribuir às palavras. Ou seja, são os membros de uma comunidade linguística, compartilhando experiências de mundo, que acordaram que uma estrutura sonora como /kaza/ significará ‘edifício destinado à habitação’. Mas a relação entre a estrutura sonora (significante) /kaza/ e o significado é arbitrária, ou seja, fixada por convenção, como ensina Saussure (tese aliás que tem seus predecessores na história do pensamento filosófico).
A tradição semiológica nos habitou a pensar no sentido como um componente do signo, ou seja, uma das duas faces do signo. Saussure chama as duas partes do signo de “significante” e “significado” e toma o “significado” como sinônimo de “conceito”. Mas o que merece ser aprofundado, até onde eu consigo ver, é a distinção ontológica entre significante, que tem caráter sensível, material (é uma combinatória de sons articulados), e o significado (ou sentido) que não é um ente do mundo, que não é um componente material. Só tenho acesso ao significado ou sentido por meio de outros signos, que, por sua vez, são entidades dicotomicamente divididas em um significante (estrutura sonora, embora não puramente segundo Saussure) e um significado (conceito, conteúdo mental?). Mas só posso acessar o conteúdo mental (ideia, conceito) que o meu interlocutor associa a um signo por meio de outros signos. Eis a “mágica” do símbolo! Ele nos faz vir à mente uma ideia sobre a coisa. A palavra “pássaro” não nos mostra um pássaro (ente sensível) diante dos olhos, mas supõe que somos capazes de representar no espírito a coisa designada.
Por que a experiência humana de construção de sentido está destinada ao fracasso? Se não sabemos o que é o sentido (na verdade, parece que ele é o próprio vazio, é ausência de si), então devemos evitar abordá-lo como se ele pudesse nos revelar sua natureza própria. O sentido envolve, entre outras noções, a de continuidade. Se produzo um texto como “Joana voltou para casa, mas agora minha mãe está doente”, esse texto, aparentemente, estranho, só fará sentido se meu interlocutor conseguir estabelecer uma continuidade (de sentidos) entre os conhecimentos ativados pelas expressões do texto. No exemplo em questão, o leitor precisa conseguir estabelecer alguma relação entre o evento ‘Joana voltou para a casa’ e ‘minha mãe está doente’ com base em conhecimentos de que já disponha previamente. O enunciado não nos fornece todos os conhecimentos necessários para a sua compreensão. Boa parte desses conhecimentos deve ser partilhada entre os interlocutores. Se meu interlocutor sabe que “Joana” é minha irmã, que ela fugiu de casa, que minha mãe estava aflita e que a família estava preocupada com a possibilidade de minha mãe adoecer em virtude da preocupação com a ausência de minha irmã, então lhe será possível reconstruir o sentido pretendido por mim ao produzir o enunciado. Considerando-se todos os conhecimentos que se espera sejam partilhados e a estrutura sintática do enunciado, formado por duas orações articuladas pelo operador “mas”, que contrapõe um estado-de-coisas a outro, o meu interlocutor pode construir para o enunciado o sentido: ‘Joana não voltou a tempo para evitar que minha mãe adoecesse’.  Ora, nesse caso, o locutor pretende que seu interlocutor aceite a interpretação que ele, locutor, faz do ocorrido: Joana agora nos causou outra preocupação, a saber, a preocupação com o estado de saúde de nossa mãe. Novamente, estamos diante de um fato bastante interessante: mesmo que o sentido possa ser compreendido como construção de relações, apreensão de uma continuidade, como um efeito dependente de princípios de inteligibilidade e de interpretabilidade, o sentido só se materializa por meio de um complexo sígnico, ou seja, de uma frase ou texto. Parece que, ao pretendermos capturar o sentido em sua transparência, como algo que, emergindo das palavras, se pudesse “visualizar”, ele nos lança novamente para outras palavras, para outros signos e assim sucessivamente. Acredito ter encontrado uma saída para a dificuldade em que me envolvi na problematização do sentido, mas não desenvolverei tudo que ela envolve.
Quando pensamos no conceito de “continuidade”, vem à nossa mente a ideia de ‘caráter ou qualidade do que é contínuo’. “Contínuo, por sua vez, diz-se do que não é dividido na extensão ou não é interrompido na duração. Continuidade também se imbrica com a ideia de estabilidade, já que “estabilidade” supõe também a ideia de “permanência”. Transpondo o conceito de continuidade, subjacente à compreensão do sentido, para o domínio ontológico-fenomenológico, pense sobre o que significa dizer que “minhas atividades fazem sentido”. Se eu digo que minhas atividades fazem sentido, quero dizer que consigo estabelecer entre elas uma ligação, uma continuidade (e continuidade implica, nesse caso, estabilidade). Mas preciso acrescentar a essa compreensão do sentido um componente fundamental do homem: o desejo. As atividades que realizo fazem sentido se elas estiverem em harmonia com o meu desejo, se eu puder representá-las como meios para a satisfação de meu desejo. E nós não desejamos senão bens, e o sumo bem que desejamos é, como nos ensinara Aristóteles, a felicidade. Logo, as atividades que eu realizo só fazem sentido, em última instância, se a continuidade que posso estabelecer entre elas, as ligações que elas mantêm entre si me encaminham para a realização de minha felicidade. Ela é – concordando com Aristóteles - o sumo bem a que tende todo homem. Independentemente da forma como cada pessoa entende o que é uma “vida feliz”, o que estou tentando mostrar é que o sentido é o efeito de minha capacidade de estabelecer ligações entre minhas experiências, entre meus atos, minhas atividades, de modo tal que essas ligações assegurem a ou me encaminhem para a realização de meu desejo de felicidade. Uma vida humana da qual se pode dizer que é dotada de sentido é uma vida em cuja destinação (isto é, cujo modo como a dinâmica de seus eventos me afeta) se pode estabelecer ligações entre seus momentos e/ou eventos constitutivos, as quais, por sua vez, devem encaminhar-me para a realização de minha felicidade.
Por que a experiência de construção de sentido está destinada a fracassar? Lembro que essa questão se nos apresenta em função do reconhecimento de que o tempo é o passar incessante de todas as coisas, é a impossibilidade de que as coisas durem. O tempo nos revela esta grande verdade: tudo que é torna-se o seu contrário, ou seja, deixa de ser. Ora, o tempo não nos pode dar a continuidade, a estabilidade, no sentido de ‘permanência’, exigida pela necessidade que temos de construir sentido. Assim, por exemplo, quem extrai sentido para a sua vida da experiência do trabalho, porque esse alguém é um ‘ser no tempo’, está sempre sujeito a perder aquilo que faz sentido. Essa pessoa pode deixar o cargo que ocupa e que lhe dá certo status e poder para ocupar um cargo de menor representatividade. Isso pode significar a redução de seu salário e dos poderes de que antes gozava. Ou, em caso de uma grave crise econômica, pode vir a perder o emprego. Como diz a canção, “tudo muda o tempo todo no mundo”. Como não há vida possível senão no tempo e como o homem é um ser que tem consciência de que vive no tempo, como “o tempo “segue na mesma marcha”  - em nós, mas independente de nós” (Coche, 2000, p. 182, ênfase minha), somos presas da lei do tempo que tudo encaminha para o nada, e a própria vida torna precária nossa tarefa de atribuir sentido às nossas experiências, às nossas atividades. Como a vida não pode garantir a continuidade, a estabilidade exigida pelo sentido por força do fato de ser uma vida temporal, o homem sente a necessidade de produzir, na imaginação, uma ligação que transcenda o tempo, uma ligação que o contente na esperança de existir no mundo do ser, que é o oposto do mundo do devir, onde a lei é a impermanência de tudo que existe. A experiência do tempo revela ao homem que ele é também um ente impermanente, destinado a não durar como tudo o mais. A fugacidade ou a impermanência constitui o modo como a vida se destina para o homem e essa destinação da vida torna frágil a experiência do sentido. Enquanto o homem “habita” o tempo, o sentido continua sendo uma experiência precária, destinada a não resistir à inexorabilidade da lei do tempo. A religião produz no homem a esperança de que o sentido último de sua vida consista numa ligação que transcenda o tempo. Por isso, o sentido da vida só pode ser entendido como sentido transcendente. Esse sentido quer dizer: minha vida extrai sua coerência, sua coesão, de uma outra vida, de uma vida fora do tempo - a vida eterna, ou a eternidade -, garantidora da estabilidade, da continuidade exigidas pela minha necessidade de sentido.
O que a língua nos ensina acerca do sentido é que ele exige ordem, ordenação, organização (as palavras precisam se organizar numa ordem fixada pelos padrões da gramática de uma língua para que a frase tenha sentido). Uma sequência como “O na janela viu pousar o menino o passarinho” é desprovida de uma ordem gramaticalmente aceitável e, portanto, carece de sentido; sequer é uma frase em português. Não há sentido no caos, assim como não há sentido  na sequência que não obedece a nenhum padrão regular  previsto pela gramática de uma língua. Assim também a atribuição de sentido ao viver depende de que nossas experiências, nosso mundo fático seja dotado de ordem, de organização. A expressão “minha vida está uma bagunça” confirma que a vida é uma experiência que supõe ordem, ordenação, organização, e o sentido é produto dessa ordem. O sentido do viver cotidiano é garantido por esquemas cognitivos pelos quais ordenamos cada ação que realizamos. Esses esquemas se chamam rotinas. A forma do destinar-se da vida cotidiana é a da rotina. E rotina implica ordenação e é ela que nos dá a ilusão de sustentabilidade do sentido. Se a rotina sofre uma quebra profunda, por exemplo, com a descoberta de um câncer que nos forçará a frequentar hospitais, a submeter-se a sessões de quimioterapia e a suportar estados intensos de debilidade, que envolvem dor, anemia, diarreia, náusea, vômito, etc., somos lançados numa perturbadora crise de sentido. O sentido da vida, em circunstâncias como esta, é colocado em questão, o sofrimento nos expõe à fragilidade da vida, à fragilidade do sentido e à compreensão do ser, que, em circunstâncias como esta,  nos desvela o caráter dramático da finitude do ser-aí que cada um de nós é. Finitude não significa o caráter mortal do homem, mas seu modo próprio de existir marcado pela antecipação da “totalidade de sua existência que se estende como um arco do nascimento à morte”. (Stein, 1976, p. 71). Essa consciência e antecipação do modo finito de existir são estruturadoras do modo de ser do ente que somos.


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