sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

"Na medida em que a fantasia fornece o enquadramento que nos possibilita vivenciar o real de nossas vidas como um Todo significativo, a desintegração da fantasia pode ter consequências desastrosas". (Slavoj Zizek)




A Dança da Morte

 

 

Uma jovem que faz vídeos de TikTok e que conta com quase 200 mil seguidores foi alvo da indignação, do repúdio e da desaprovação dos internautas, após um vídeo que ela fez no quarto de hospital onde sua mãe, em estado terminal de câncer, viria a falecer no dia seguinte. O acontecimento protagonizado pela jovem foi avaliado negativamente por meio das expressões “falta de respeito”, “absurdo”, “irresponsabilidade” (e imagino que os seguidores da jovem tenham usado outros tantos índices de avaliação negativa análogos). Permitam-me fazer uma interpretação do caso que torne visível aquilo que as manifestações simbólicas do senso comum não trouxeram à luz. Que os lacanianos me perdoem se, por ventura, me valendo dos três registros com que Lacan pensa a existência humana, eu ignore um ou outro aspecto da problemática por que eles respondem na teoria deste psicanalista francês.

Para Lacan, o imaginário, o simbólico e o real são os três registros fundamentais que estruturam a existência humana. Eles são as dimensões fundamentais em que um ser humano habita. Os três termos estão ligados de modo indissociável, e, a fim de ilustrar o fato de que “tudo começa com três”, ou seja, de que são necessários três elementos inextricavelmente articulados para que se tenha uma estrutura, Lacan lança mão do modelo de representação do nó borromeano. O imaginário, para Lacan, recobre a ordem do sentido. O imaginário é o domínio da nossa experiência vivida imediata da realidade, mas também de nossos sonhos e pesadelos. O imaginário é o imaginário do sujeito; é marcado por uma falta originária, uma hiância real que virá a ser preenchida pelo simbólico. Essa falta do imaginário do sujeito é uma hiância congênita que o ser real do homem apresenta em suas relações com o natural. Em suma, o imaginário, grosso modo, é o domínio do modo como as coisas aparecem para nós. O registro do simbólico, por seu turno, é o que Lacan chama “o grande Outro” - o outro invisível que estrutura nossas experiências da realidade. O registro do simbólico é da ordem do duplo sentido, porquanto permite ao falante mediar o encontro com o sem-sentido do real. O simbólico é o registro que vem ocupar, no sujeito, o lugar da falta real primordial do imaginário. O que é da ordem do ôntico, para o homem, é constitucionalmente marcado por uma falta originária. Há uma distinção fundamental entre o sujeito e o eu: o sujeito está numa relação excêntrica com o eu. O sujeito não é o indivíduo, isto é, o sujeito não é indiviso. Ao contrário, o sujeito é marcado por uma divisão constituinte, é determinado pelo simbólico, dividido entre os significantes que o constituem. O lugar do sujeito é o lugar do corte, da ruptura, ao passo que o eu representa a configuração de uma unidade, de uma completude, constituída imaginariamente. O que chamamos de realidade é uma montagem pela qual são responsáveis o simbólico e o imaginário. Toda a realidade, incluindo a realidade psíquica, é configurada a partir da fantasia inconsciente fundamental. O relacionamento do sujeito com outros sujeitos e com o mundo exterior será sempre mediado por essa tela da fantasia, protetora do real traumático. É a fantasia, constituída pelo simbólico, pelos significantes do Outro que medeia o encontro do sujeito com o que é inabordável enquanto tal – a saber, o real. Não é custoso entender em que medida o simbólico está no cerne da problematicidade da existência humana. A linguagem é, enquanto substituição do real inefável, uma possibilidade de atividade para o sujeito. O que era vivência passiva imediata para ele passa a ser vivido ativamente por meio da linguagem. A subjetivação das vivências depende do processo de simbolização que a linguagem permite. Todo uso da linguagem é metafórico, no sentido de que a linguagem, em si mesma, é da ordem da substituição de uma falta originária; ela, a linguagem, é, em si mesma, uma imensa metáfora. A precedência da ordem simbólica faz com que a linguagem seja o que constitui a realidade para cada sujeito, pois que, antes dela, só há a indiferenciação do real. Destarte, Lacan entende que a metáfora se situa no ponto preciso em que o sentido se produz a partir do não sentido, isto é, do real. A entrada do sujeito na ordem da linguagem – ordem simbólica – re-produz uma perda de ser original. A linguagem, inscrevendo-se no lugar da falta-de-ser, será sempre metáfora do sujeito. O Outro, enquanto lugar do significante, é o registro do simbólico, na medida em que o campo dos significantes é faltoso, incompleto; nele há sempre a possibilidade de um ato criativo, de um novo significante. Jamais se sai, portanto, do regime da linguagem. Estamos sempre mergulhados no campo da linguagem, e não existe qualquer outra linguagem, senão a linguagem verbal, que venha dar conta desse campo. Em suma, “o grande Outro”, que é o simbólico, é uma complexa rede de regras e significados que nos faz ver o que vemos da maneira como o vemos ( e o que não vemos da maneira como não vemos). Por fim, temos o real . O real de que fala a psicanálise não se identifica com a realidade biofísico-social. Em outras palavras, o real não é a realidade que conhecemos em nossa experiência de mundo cotidiana. O real é o impossível de ser simbolizado. O real é o que ex-siste, ou seja, o que está fora, o que escapa à trama do sentido. O real é o não-senso radical, o que não tem nenhum sentido. O real é a parte do sujeito que escapa à análise. O real se encontra além do simbólico e do imaginário, para além da palavra e da linguagem. O real, não sendo a realidade percebida, tampouco é a realidade psíquica. A realidade psíquica é a realidade do inconsciente, do desejo e de suas fantasias. Se a realidade exterior é fabricada, ordenada a partir da linguagem e tem como referência o sujeito, o real é o pré-subjetivo e constitui um registro distinto do simbólico. O real não se submete à organização do mundo externo nem obedece à organização da realidade psíquica. O real, situando-se além da ordem e da lei, está fora do campo do princípio de prazer. Ele coloca-se como um obstáculo ao princípio de prazer. O real é o oposto do imaginário. Destarte, o real excede à capacidade de representação psíquica: o real é a morte, a perda, aquilo que não tem inscrição possível no psiquismo. O real é, por excelência, o trauma, isto é, aquilo que não pode de modo algum ser assimilado pelo sujeito em suas representações simbólico-imaginárias. O real é o limite da simbolização. Em suma, o real é um encontro traumático, que não pode ser simbolizado, de extrema violência que desestrutura e fragiliza inteiramente nosso universo de significado. O real não é a coisa-em-si kantiana; não é uma coisa externa que resiste a ser apanhado na trama do simbólico, mas são as fissuras, os vestígios e as consequências, os efeitos que se deixam discernir na rede simbólica. O real é um efeito das lacunas e das incoerências da rede simbólica.

Nós nunca encontramos o real diretamente. Na verdade, nosso encontro com o real traumático é evitado pela fantasia.  Como diz Zizek, "a fantasia fornece o enquadramento que nos possibilita vivenciar o real de nossas vidas como um Todo significativo". ( 2017, p. 31). O real é o acontecimento - a morte da mãe, a perda definitiva no nunca mais, a ruptura de um vínculo no vazio do sem sentido do real. Tudo que o homem pode experienciar é da ordem do simbolizável; a ordem simbólica é fundante; ela sempre já existiu. A dancinha da jovem busca reinscrever o real traumático, o sem sentido no registro do imaginário-simbólico. E todas as avaliações negativas (expressas pelos significantes “absurdo”, “desrespeito”, e outros mais) que foram dispensadas sobre a jovem que fez a dancinha de TikTok, momentos antes da morte da mãe, são tentativas de reestruturar o domínio imaginário-simbólico, para que a morte encontre nele sentido, um registro significativo. A dancinha da jovem se inscreve na ordem simbólico-imaginária do banal, do trivial, do comum, do lúdico, da indiferença. Essa dimensão do banal, do comum, do lúdico absorve o acontecimento, diluindo o real traumático da morte. A morte é da ordem do sem sentido , da quebra, do corte com a ordem simbólico-imaginária. Quando vamos a um enterro, participamos de um evento de ritualização da morte. Nas práticas funerárias,  inserimos a morte na ordem simbólico-imaginária que estrutura a realidade comum vivida. A morte, tão banal e comum a todos os viventes , deixa de ser um evento da ordem natural simplesmente (morre-se e isso é tudo), para fazer parte da ordem simbólica (cultura). Assim, evitamos o confronto violento com o real da morte. Em nossa cultura cristã, a morte não é o fim da vida; a morte é ressignificada, semiotizada, como uma passagem, um acesso a outro modo de existir, a um além-mundo onde os mortos que enterramos viverão. A morte é, assim, um intervalo que interrompe, por certo período de tempo, a convivência daquele que deixa este mundo com aqueles que nele ficam. Tais formas de representar a morte expressam os modos como o evento da morte é inscrito na ordem simbólico-imaginária; em outros termos, as diferentes representações culturais da morte são as formas como o evento da morte passa a integrar os universos simbólicos, culturalmente construídos, no interior dos quais toda a experiência humana – é preciso frisar – é concebida como se realizando, se efetivando, se manifestando. 

O que causou indignação pública, ou mesmo escândalo, na dancinha de TikTok em face da mãe moribunda é menos a irrupção do domínio íntimo e privado na esfera pública do que o real da morte que ficou muito aparente. A insistência do real em se deixar ver, em aparecer nas fissuras do simbólico, provocou a reprovação do grande Outro. O grande Outro precisou intervir, com seus significantes, para restituir o modo simbólico-imaginário como o sujeito tem de experienciar o acontecimento da morte da mãe. Pois a dancinha expunha o que não pode ser tolerado, porque é real demais: a insignificância radical da existência e a banalidade da morte. A dancinha de TikTok continuaria a ser feita depois do sepultamento da mãe, porque, afinal, o banal da vida resiste, insiste e prossegue depois que a ‘seriedade’, a solenidade, o respeito, a deferência profunda à figura do morto e o assombro em face da inexorabilidade da morte são suspensos, são novamente afastados de nossa consciência imediata do mundo. Enterramos os mortos para que o horror do real que representam não nos atormente e não perturbe o curso normal e banal de nossas vidas. A vida precisa continuar significa precisamente isto: a morte e os mortos precisam deixar de perturbar, de desestabilizar a ordem simbólica e imaginária que nos permite levar adiante a vida. A dancinha do TikTok antecipou aquilo que tem de ser, de qualquer modo, feito: o mortos precisam deixar de nos perturbar, a morte deve manter-se afastada, por um longo tempo, da rede simbólico-imaginária que torna possível a vida social, e a banalidade do viver deve prevalecer sobre a insignificância radical da existência humana, que é demasiado real para ser encarada.

  

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

“A ignorância é nosso orgulho epocal”. (Casanova)

 




Sobre ser erudito

“A ignorância é nosso orgulho epocal”.

Casanova

 

 

Entre os meus pares, sou conhecido por ser demasiado analítico, até mesmo prolixo. Meus colegas e professores da PUC-Rio o sabiam e até me permitiam tal exuberância de estilo. Depois que terminei minha longa temporada de estudos na PUC para ingressar no curso de filosofia na UERJ, era chegada a vez de os colegas e professores de lá conhecerem minha obsessão com o estilo de linguagem e, sobretudo, o meu cuidado com o cultivo do pensamento reflexivo. Depois de mais de 20 anos de estudos aturados, desde que ingressei em minha primeira graduação em 2001, ao longo dos quais cumulei conhecimentos, fiz amizades enriquecedoras e construí relações acadêmicas sem as quais minhas produções intelectuais não seriam possíveis, tenho hoje uma única grande ambição - a erudição. Não ouso saber tudo sobre tudo (o que é impossível, seja porque nem tudo me interessa, nem tudo sou capaz de conhecer, seja porque, como disse Foucault, noutro contexto, em que lembrava a inconveniência do ardor apaixonado da militância, “a finitude é devastadora”). A erudição não é mensurável, nem é um estágio estacionário. A erudição está sempre em devir. Nunca se perfaz. Ela é um horizonte. Do grego “horidzo”, que significa ‘limite’, o horizonte é um limite nunca alcançável. Nisto reside seu enigma: quanto mais caminhamos na direção do horizonte, mais ele se afasta, abrindo-nos mais terreno, novas possibilidades. Nossa existência é, portanto, sempre uma caminhada, que nunca se completa. A morte não é a realização da completude da existência, mas a interrupção definitiva da caminhada. É também por isso que a morte é trágica, é um “corte profundo”, uma violação da tendência natural da vida a viver; é um estupro predestinado.

A erudição não é signo de nobreza. Ela não deve ser título de distinção social. A erudição não deve oprimir, nem intimidar ninguém. Penso que o conhecimento e o pensamento devem ser caminhos para a liberdade, devem tornar possível a realização de novos modos de viver e de ser. Só a burrice julga ofensivos o pensamento e o conhecimento. Só a burrice os odeia, vocifera contra eles. Só ela quer amordaçá-los. O conhecimento não deve destinar-se à intimidação; não deve humilhar. Quem muito sabe deve disseminar o encanto e o desejo do saber, deve saber encantar aqueles que têm sede e fome de saber. Na aurora do século XVII , em plena Revolução Científica, o cientista e ex-Lorde-Chanceler Francis Bacon, ao declarar “Knowledge is power”, ou seja, “saber é poder”, dava testemunho da virada utilitarista que marcaria a grande transformação do saber no ocidente, desde então visto como um meio para a resolução de problemas. O saber passava a ser concebido como um estoque, um capital acumulado cujo fim era aumentar a capacidade do homem de dominar a natureza, tornando-a um produto a serviço de seu bem-estar e da melhoria de seu destino. Essa é a maneira como o homem moderno se relaciona com o saber ainda hoje. Desde o século XVI, a concepção utilitarista da Educação tem dominado a organização dos sistemas escolares. Se hoje o senso comum de nossa civilização capitalista toma como valioso o saber tecnológico-científico, o saber “prático” ou aplicável na prática da vida, é porque o capitalismo engendrou duas formas de poder intimamente ligados na sociedade: o poder da riqueza econômica e o poder do saber tecnológico, ou seja, o poder de aplicar os conhecimentos científicos para a obtenção de resultados práticos. Nas sociedades pré-capitalistas, a riqueza não era signo de poder. Foi só na civilização capitalista que a técnica pôde operar transformações sociais, porque ela passou a depender de investimento econômico. O sistema capitalista passou a ditar normas éticas e influenciar mentalidades e costumes, trabalho antes pelo qual eram responsáveis as organizações religiosas. Mas o capitalismo de hoje não é exatamente o mesmo que vigorava no tempo de Bacon. A fase neoliberal do capitalismo, com sua nova razão econômica (iniciada nos anos de 1980), tornou o saber um produto perecível e submeteu as competências, antes valorizadas no período fordista, a uma “destruição criativa”.

Erudição é uma palavra fora de moda, ou melhor, trilhar o caminho da erudição é uma escolha aparentemente fadada ao “fracasso” segundo os valores vigentes de nossas sociedades de mercado. O neoliberalismo ou a nova racionalidade econômica desinstitucionalizou a relação entre diploma, qualificação e profissão. (Parem , portanto, de culpar os estudantes e os estudiosos por seu suposto “fracasso”, parem de julgá-los acomodados ou “vagabundos”! ) Eu disse certa vez: “Estude, em vez de reproduzir os preconceitos correntes no senso comum”. E não pretendia ofender! E também não me arrependo de tê-lo dito! Eu sou um educador, sou professor! O saber deve ser partilhado e deve ser o valor maior a ser cultivado! Não obstante, o neoliberalismo tornou frouxo o vínculo entre o diploma e o valor pessoal reconhecido socialmente. Isso se deve, em parte, ao enfraquecimento das posições dos assalariados, que encontram cada vez menos segurança nas instituições e carecem cada vez mais das referências estáveis que, outrora, davam a eles valor profissional, pessoal e identidade. O título escolar e o diploma universitário perderam sua força simbólica, no atual estágio do capitalismo financeiro, também porque o saber, amplamente propagando-se, deixou de corresponder aos novos imperativos de adaptabilidade permanente e de reatividade imediata fixados pela empresa (o neoliberalismo exige trabalhadores flexíveis, adaptáveis, capazes de se reinventar, de inovar para atender às necessidades econômicas da empresa). O assalariado hoje experimenta uma profunda e persistente insegurança, que afeta não apenas o emprego, mas também o conteúdo da sua profissão. Essa insegurança dos assalariados é consequência do enfraquecimento do valor simbólico dos diplomas, da implementação de práticas destinadas a avaliar as competências que melhor se ajustam aos encargos profissionais e a influência cada vez maior das empresas na determinação dos conteúdos da formação dos futuros assalariados. A escola passa a ser vista como um simples meio para a formação de trabalhadores flexíveis. A tudo isso se soma a precarização do trabalho nas sociedades capitalistas neoliberais. O trabalho passa a ser cada vez mais uma mercadoria como outra qualquer, perdendo suas formas jurídicas e sua dimensão coletiva. (E a galerinha que, em uníssono, grita “mais trabalho e menos direitos trabalhistas!” dá testemunho de que aprendeu bem a lição de casa neoliberal! Está aprovada! Mas saibam que vocês ficarão entregues à vulnerabilidade das condições do mercado de trabalho!) Mas que importa se gritam pelo direito de continuar a serem mais explorados, e ainda em condições precárias ?

Mas, se me foi possível escrever aqui sobre tudo isso, é porque convivo assiduamente com os livros, que, se não me permitem ganhos econômicos, dão-me as possibilidades de compreender o mundo, a realidade histórica em que vivo, libertando-me da tirania do impessoal, do falatório das multidões que são burras, irracionais, que não cessam de reproduzir as opiniões estabelecidas, que se contentam em assumir como verdades inabaláveis as crenças comuns e falsas, que se acostumaram a viver na redoma do senso comum, abocanhando do mundo apenas os pedaços, os fragmentos que nela são processados para o consumo de seu modo de vida que, bem ajustado a uma ordem socioeconômica e mantido num estado de contínua alienação, a reproduz nas práticas comuns do dia a dia. O ideal de todo educador é estender o direito à participação na cultura letrada a todos; é cativar o interesse pela leitura como o único caminho para a formação da liberdade de autonomia  - em crianças, jovens e adultos.






O Mito brasileiro

 

 

O bolsonarismo é a expressão de mudanças profundas na política e na configuração de poder na sociedade brasileira. Um dos aspectos dessa profunda e nefasta mudança é o desenvolvimento e fortalecimento da antipolítica no Brasil como modo de governança. A antipolítica bolsonarista recusa a ideia de que o Estado e as políticas públicas devem ter um papel de destaque no cenário político, que então passou a ser dominado por discussões sobre corrupção e privilégios corporativos. No terreno da campanha anticorrupção, carro-chefe do movimento bolsonarista, o Brasil seguiu a trilha das experiências totalitárias. Tanto o nazismo quanto o stalinismo transformaram ideias como pureza racial ou pureza de classe em utopias que legitimavam a distorção do debate público e a repressão aos seus opositores. Nesse tocante, é preciso dizer que 1) a campanha anticorrupção que alavancou a eleição de Bolsonaro preencheu os requisitos de todo sistema totalitário: a separação entre os “puros” e os “impuros”; 2) essa separação foi associada à figura de um combatente da degradação moral e social (que até bem pouco tempo era o Juiz da 13ª vara da Justiça Federal Sérgio Moro).

O que vemos operar, nesse contexto de luta anticorrupção, é uma característica muito comum em nossa história política: a personalização da política pela crença generalizada de que todos os nossos maiores problemas podem ser resolvidos se soubermos escolher bem a pessoa do governante. Ainda persiste a crença, entre nós, de que só conseguiremos mudar o sistema político pela eleição de um Messias, de um Salvador da Pátria. Este ser imaculado deve se apresentar como um adversário declarado e vigoroso do sistema vigente. Animado por esse imaginário coletivo brasileiro centrado na figura mítica de um Líder que nos conduziria à terra prometida, o bolsonarismo acostumou seus apoiadores (acríticos) a julgar o sistema político apenas por sua dimensão moral, sem qualquer consideração pelos resultados que ele produziu politicamente. A opinião pública, muitos intelectuais e a grande mídia incorreram nesse mesmo erro. E fazendo-o, ignoraram (e ainda ignoram) que aceitam os elementos da antipolítica bolsonarista que, bem entendida, quer dizer, reação à ideia de que instituições e representantes políticos devem negociar e dar respostas a problemas concretos postos em debate no país. Essa antipolítica é também negação de atributos como negociação ou coalizão como partes do processo de governança. Pela via autoritária de um Messias que recusa o presidencialismo de coalizão, o próprio projeto anticorrupção se demonstrou não só inviável, mas uma mentira oportuna para se obter o poder. Uma sociedade sem corrupção continua sendo parte de um horizonte desejável e utópico no Brasil. E os escândalos envolvendo a família Bolsonaro provam isso.






“A LEITURA NOS TIRA DO SEDENTARISMO INTELECTUAL” (Moacyr Scliar)

                            

Ler não é simplesmente decodificar sinais. A leitura como decodificação de sinais escritos é a etapa de que se encarregam os professores da alfabetização. Esta é a primeira e fundamental etapa do desenvolvimento da competência da leitura; mas a competência de leitura fica amputada se não se desenvolver para além dessa etapa. A leitura como letramento, como prática de produção de sentidos para o texto e para o mundo é a atividade que, socialmente, se considera ser a mais importante ao longo da educação escolar. Saber ler, nesse sentido, envolve a mobilização de um vasto conjunto de conhecimentos e estratégias cognitivas, metacognitivas e interacionais (pragmáticas, discursivas) indispensáveis ao desenvolvimento de formas mais profundas de compreensão do texto e do mundo. Ler supõe a capacidade de estabelecer relações intertextuais, de imergir cognitivamente nos níveis implícitos de sentido, de atingir as camadas subjacentes de sentidos previstos para um texto. Ler mais, nesse sentido, amplia e aprofunda nossa compreensão, porque nos dota da capacidade de perceber os sentidos que se produzem nos silenciamentos que atravessam as palavras. A leitura é um processo complexo de ordem linguístico-sóciocognitivo-interacional, emocional, fisiológica que envolve aprendizagem e maturação. Então, quem lê muito e compreende pouco o que leu, na verdade, não chegou a ler, não atingiu ainda uma competência mais ampla e elaborada de leitura. O ponto importante é que não há receitas para aprender a ler, no sentido que dou ao processo de leitura. Mas é possível ensinar a ler, é possível desenvolver no indivíduo as habilidades necessárias para que ele venha a se tornar um leitor competente, um leitor capaz de ler para além do dito, para além do explícito e codificado na superfície textual. É possível educar a sensibilidade do leitor para que compreenda que a linguagem não é transparente, mas opaca, que os sentidos possíveis são muitos e não estão alocados nas palavras ou nas frases, ou no texto, mas os atravessam, tomam direções diversas, nem sempre previstas pelo produtor do texto, direções que levam a outros textos, a outras falas, a outros discursos... Ler é compreender como um objeto simbólico produz sentido, como esse objeto nos permite fazer a experiência do sentido, como esse objeto significa na interação com o sujeito interpretante, levando em conta os contextos sócio-históricos, ideológicos em que eles se encontram. Sim, a leitura estimula a criatividade e a imaginação, desenvolve a sensibilidade, complexifica o pensamento, mantém a saúde do cérebro, protegendo-nos contra doenças neurológicas. A leitura favorece melhor o desenvolvimento da inteligência. A leitura é experiência de formação de sujeitos autônomos, capazes de construir por si mesmos conhecimentos sem a mediação do professor . A leitura promove, enfim, a experiência de vida. Complexificando o pensamento, apurando nosso olhar sobre o mundo, a leitura nos dota da capacidade de reconhecer a complexidade do real e de lidar com essa complexidade. O mundo que se nos descerra na prática da leitura é um mundo muito mais complexo, multidimensional, plurívoco, significativamente mais profundo, do que o mundo que se nos dá a conhecer nas esferas restritas e limitadas da vida ordinária, onde se realizam as conversações face a face ou mediadas pelos aparelhos tecnológicos hoje à disposição de certo número de usuários socialmente privilegiados. Viver sem ler é tocar de leve a superfície das coisas, é acostumar-se a viver uma vida chapada à superfície do mundo, onde se instalam as vivências ordinárias sobre as quais se projetam as sombras do senso comum, que impedem que o mundo seja iluminado em toda a sua complexidade, em todos os seus níveis possíveis de significação. A leitura ilumina o mundo, retira-o da caverna do viver comum , para torná-lo morada do pensamento complexo, em suma.

 






O Brasil de uma nota só

 

Não me parece demandar tanta controvérsia dizer que o Brasil com Bolsonaro e sua trupe emburreceu mais. O Brasil ficou mais burro (e mais perverso) com Bolsonaro na Presidência, tanto na esfera do Estado quanto na esfera da sociedade civil. E aqueles que se cuidam mais “politizados” por incriminar o PT e seu fantasioso comunismo por todos os males seculares do país não fazem mais do que confirmar essa tese. Para os bolsonaristas, a política se resume a uma nota só: a corrupção, ou melhor, o combate à corrupção. Parece que, se conseguirmos resolver este mal que nos assola desde o período colonial, o Brasil se tornará o melhor lugar no mundo para viver. Desnecessário dizer que os bolsonaristas não fazem a mínima ideia de como pôr fim definitivo a este mal hábito dos políticos aqui e em outras partes do mundo. Eles não sabem porque, seguindo o hábito do seu Messias presidente (que confessou não ler um livro sequer há três anos), são inimigos dos livros, são refratários à cultura letrada. Se estivessem habituados a conviver com os livros, se, ao menos, se interessassem em compreender a realidade sociopolítica do país que dizem tanto amar, saberiam que a corrupção entre nós deita raízes num solo cultural que desde muito cedo foi assentado pela prevalência do favoritismo sobre a justiça, pela simbiose entre os grandes proprietários da riqueza privada e os agentes administrativos ou de governo, pela perpetuação de uma oligarquia que une entre si os agentes do Estado (e sua burocracia estatal), os potentados econômicos, as Forças Armadas e um serviço judiciário que, desde muito cedo, existiu para extorquir dinheiro. Mas os bolsonaristas, tão desabituados aos livros, necessários a uma participação política consciente, a tudo tratam de modo simplificado e superficial. A tendência à simplificação do pensamento é, aliás, uma de suas características mais flagrantes. Não por acaso são equiparados a bovinos (embora essa espécie de animais seja inteligente). Quem ousar levantar uma questão política num sofrível diálogo (quando é possível) com um bolsonarista, ouvirá dele duas coisas: PT e corrupção do PT (e de Lula, é claro). A política para Bolsonaro e seus apoiadores é uma forma de guerra e ódio, de combate incessante contra esses três grandes males de nosso país, a saber, PT, Lula e corrupção. Toda política bolsonarista se resume a esta “missão” militante-militar: destruir o PT - e com ele, é claro, o comunismo que nos ronda- , e pôr fim à corrupção. E ponto final. A política econômica do Governo, o capitalismo financeiro a que o Brasil é subserviente, as desigualdades socioeconômicas profundas de nosso país, o investimento em Educação e em Pesquisa, em Ciências e Tecnologia, as políticas públicas, a superação da “velha política” ( o que Bolsonaro não fez senão perpetuar) e tudo o mais que se queira levar em consideração como problemas para uma agenda política não têm qualquer relevância ou importância. Falta aos bolsonaristas o letramento político adequado e amplo para se ocuparem dessas questões mais complexas e importantes. A burrice é sempre simplificadora e cega para a complexidade do real. A burrice do Brasil de hoje é o reflexo de um passado longo e perverso que ainda não superamos e com o qual nada aprendemos.


 


quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

“A miséria de grande parte da população não encontra explicação que a resistência das classes dominantes a toda mudança capaz de pôr em risco seus privilégios”. (Celso Furtado)

 

          



     Política não se discute?

 

A política é uma atividade humana em cujo cerne está o diálogo, a deliberação; portanto, a discussão, no sentido de exposição conflitante, polêmica de pontos de vista, de julgamentos, interpretações, avaliações sobre a melhor forma de organizar uma sociedade em consonância com valores como igualdade e justiça. A política, ensina Hanna Arendt, diz respeito à coexistência e à associação de seres humanos diferentes. Como objeto de reflexão filosófica, a política descerra-se como um campo de questões que norteiam a convivência dos homens e dos grupos humanos entre si, e também as relações deles com o mundo. No entanto, o ditame que sentencia “política não se discute” quer dizer uma coisa que, sendo estranha ao fenômeno político, pretende levar à desmobilização dos atores sociais da participação política: não se deve tomar a política como assunto do falatório do senso comum, porque, nas esferas interacionais mediadas pelo senso comum, os interlocutores mobilizam, na conversação, uma série de crenças simplistas ou falsas, preconceitos, ideologias, lugares-comuns, representações coletivas de mundo que se vão acumulando na intercalação animados com as paixões tristes e ressentidas que levam a maus encontros e perturbam o contrato comunicativo tacitamente estabelecido. A política não é objeto de exame crítico, de reflexão sistemática, articulada e cuidadosa na definição e articulação dos conceitos largamente usados no debate calcado sobre o senso comum. O senso comum não consegue trabalhar os conceitos teóricos , não consegue pensá-los nem articulá-los para compor um discurso coerente e teoricamente bem fundamentado. O senso comum não se ocupa da problematicidade das questões que emergem de cada turno de fala dos interactantes. A conversação do senso comum leva os interlocutores a desconsiderarem os pressupostos de seus enunciados. Portanto, a discussão sobre política, no âmbito do senso comum , se converte, com muita facilidade, em bate-bocas que levam, quase sempre, a arrelias, a mútuas incompreensões, reforçando nos participantes o sentimento de que toda aquela disputa verbal foi em vão, porque nenhum deles modificou sua percepção da realidade construída e reconstruída no discurso de cuja produção eles se encarregavam. No senso comum, os interlocutores são muito mal instrumentalizados teoricamente para pretender refletir sobre “a questão política”, sobre os problemas complexos da realidade sócio-histórica em que vivem. Conceitos como “neoliberalismo”, “capitalismo de mercado”, “mercado”, “ideologia”, “Estado de direito”, “democracia”, “classe social” e outros tantos que definem o domínio discursivo da política como problema científico e filosófico a ser pensado com seriedade teórica são regularmente ignorados pelos interactantes que se movem nas esferas do senso comum. Na insistência no velho preconceito segundo o qual “o Brasil quebrou por causa da roubalheira do PT”, o senso comum assume como verdade incontestável uma visão simplista e equivocada acerca da realidade sociopolítica e econômica do Brasil, ao mesmo tempo que não vê que a realidade é muito mais complexa do que sugerem suas opiniões grosseiras. O senso comum ignora, por exemplo, que o governo Lula jamais rompeu com o sistema de acumulação neoliberal, com que os antipetistas, mesmo sem o saber, parecem simpatizar. O senso comum ignora a incompatibilidade entre o neoliberalismo, cujo significado também desconhece, e a democracia, cujo significado não compreende bem ou, o que dá no mesmo, compreende confusamente. O senso comum também faz vistas grossas ao conservadorismo do Estado brasileiro, que busca sempre assegurar os privilégios das elites econômicas, as relações de dominação, bem como busca reproduzir o modo de exploração que perpetua os padrões existentes de desigualdade de renda, riqueza e privilégio, independentemente do desempenho econômico do país. O senso comum não consegue levar em consideração as mudanças macroeconômicas na economia brasileira que, realizando a transição do Brasil de uma economia de Industrialização por separação de Importações para o neoliberalismo, tornaram a economia brasileira uma economia de baixo crescimento desde que, no fim dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, o Brasil ingressou de vez no neoliberalismo, com uma democracia frágil que convive com profundas desigualdades socioeconômicas. Por fim, a discussão política, no senso comum, não leva em conta as mudanças estruturais da economia brasileira, ocorridas na década de 1990. Com o novo Sistema de Acumulação então vigente, o setor secundário da economia brasileira, ou seja, o setor manufatureiro (industrial) declinou, e a capacidade produtiva caiu significativamente, sobretudo nos ramos tecnologicamente mais sofisticados da indústria. Se, por um lado, a economia perdeu a capacidade de gerar “bons empregos”, o Estado foi-se demonstrando cada vez menos eficiente no enfrentamento dos problemas do crescimento, na reestruturação produtiva e na busca por coordenar políticas econômicas. As reformas neoliberais feitas no Brasil foram incorporadas à Constituição por meio de regras fiscais que se justificavam pela necessidade de estabilização da inflação e da “boa governança”. Consequentemente, entre nós, o neoliberalismo ganhou legitimidade e reforçou sua influência sobre o tecido institucional do país, minando as aspirações democráticas previstas pela Constituição. Mas tudo isso é ignorado pelo senso comum, que limita toda a discussão política ao comportamento ético dos atores políticos, à polarização partidária, ao mesmo tempo que faz desfilar toda sorte de preconceitos como o de classe (o senso comum da classe média prefere culpabilizar os mais pobres pelo desastre econômico do país, já que estes, como os índios aos olhos dos colonizadores , não apreciam a labuta diária, preferindo mamar nas tetas do governo, que por sua vez pouco faz para realizar o suposto desmame). Assim, o senso comum da classe média reflete o modo de ser e de pensar das elites socioeconômicas brasileiras edificadas numa tradição escravocrata e autoritária ainda persistente no modo de ser brasileiro. É que o senso comum compreende o conjunto de esquemas interpretativos úteis para orientar e dar significado e ordem à vida cotidiana. Ele se forma em cada ser humano de modo inconsciente e natural no curso de sua socialização primária e secundária, formando o pressuposto básico das ações individuais. Por isso, a experiência pessoal circunscrita ao âmbito do senso comum é um referencial muito limitado e empobrecido para nos assegurar um profundo e elaborado conhecimento do mundo. Nossas experiências pessoais, formadas pelos encontros com o mundo das coisas, nas diversas situações de interação social, lidam com parcelas muito circunscritas da realidade humanamente experienciável; nossas experiências pessoais, se permanentemente divorciadas da experiência da leitura, não nos permitem uma compreensão sistemática do todo, da totalidade dos problemas com que a existência humana lida; nossa experiência pessoal ordinária parcializa o real, pois só podemos conhecer aquilo que é imediatamente acessível em seu campo, aquilo que se torna para nós familiar. Alargar nossas experiências pessoais com o mundo é o que nos possibilita a leitura, o convívio com os livros. A leitura é também uma experiência pessoal, que se vai enriquecendo, no entanto, à medida que o sujeito leitor participa da construção e reconstrução sociointerativa de um modelo de mundo, de uma versão da realidade que é produto de atividades sociocognitivo-interacionais e dialógicas do produtor do texto. Assim compreendida, a leitura é também uma atividade sociointeracional, na medida em que o leitor é um sujeito social que, no ato de ler, dialoga com um interlocutor-autor (ele mesmo também um sujeito social), mediante um texto que oferece (que propõe) uma imagem do mundo que é social, cognitiva, interacional e linguisticamente construída. A leitura nos patenteia que o real é muito mais complexo do que o conhecimento que podemos ter dele. Há muitos níveis de realidade que nos são inacessíveis em nossa experiência pessoal e imediata com o mundo na cotidianidade. Por isso, a experiência pessoal cotidiana de mundo não é um critério seguro para validar a consistência, a razoabilidade, a veracidade do que pensamos, julgamos ou acreditamos saber acerca das coisas. Nossos encontros imediatos com o mundo da vida são “enxertados” e mediados pelas representações coletivas, as crenças, as ideias, os preconceitos do senso comum.

O senso comum abriga juízos morais e afetivos sobre as causas, as condições dos eventos humanos, naturais e sobrenaturais. O senso comum compreende um conjunto de proposições cognitivas e valorativas, fortemente restritivo e seletivo, porquanto seleciona e articula um dado número de “fatos” dentre a massa ilimitada de eventos, de ocorrências que constituem o mundo da vida. Assim, tudo no senso comum tem caráter de obviedade, de objetividade, de irrevogabilidade e coercitividade irrecusável. Para o senso comum, o mundo é um mar tranquilo de fatos autoevidentes. Nesse sentido, discutir política, no âmbito do senso comum, que ousa entender mais do que entende, é arriscar-se a envolver-se numa disputa na qual ninguém se entende, todos arengam e da qual todos saem como entraram: munidos com o mesmo background de crenças, suposições equivocadas, juízos afetivos e morais cristalizados, preconceitos, valores inquestionáveis e pretensas verdades não devidamente examinadas.



                                              A FARSA DA MERITOCRACIA

 

O projeto político do capitalismo financeiro neoliberal, há mais de 30 anos, é condenar ao silêncio o sofrimento da maioria, ao mesmo tempo que dá visibilidade ao 1% dos negros e mulheres mais talentosos e aptos na esfera pública como se representassem todo o sofrimento social existente.

A mentira da meritocracia consiste em afirmar que, embora o mundo seja um lugar inóspito e cruel, aquele que se esforça e trabalha duro conseguirá ganhar 500 vezes mais que outros. Os que ganham 500 vezes menos é porque são burros ou preguiçosos. Mas a meritocracia mascara o fato de que são as classes sociais os principais meios que permitem reproduzir os privilégios visíveis e invisíveis. A reprodução desses privilégios ocorre, em primeiro lugar e fundamentalmente, pela SOCIALIZAÇÃO FAMILIAR. Como só existe a família de classe, cada qual tem uma história e uma forma de reprodução dos privilégios visíveis e invisíveis. O privilégio mais visível é o econômico. Este é notável na classe da elite de proprietários, os quais detêm todas as riquezas. Entre estes estão os donos de grandes fazendas, dos meios de comunicação, das cadeias de comércio, os grandes especuladores e rentistas. Abaixo desse 0,1% da população, situam-se as classes que lutam pelo capital cultural, que não é visível como o dinheiro e a propriedade. O capital cultural é formado pela incorporação do conhecimento útil e legítimo socialmente. Será a classe média - que se define pela reprodução do privilégio da educação - que criará e disseminará, de modo invisível e eficiente, a farsa da meritocracia mediante a incorporação privilegiada do capital cultural. Numa sociedade como a brasileira, disposições como disciplina, autocontrole, visão de futuro, capacidade de concentração e de elaboração do pensamento abstrato não são dons naturais, mas competências que são verdadeiros privilégios de classe. O hábito da leitura, por exemplo, é criado pelos pais. A criança passa a exercer a prática de leitura seguindo o exemplo dos pais. A disciplina do equilíbrio entre brincar e aprender, que acostumará a criança a renunciar, quando crescer, ao presente em benefício de um futuro, é aprendida na socialização familiar. Tudo isso é, portanto, privilégio de classe, nomeadamente da classe média brasileira, que produz a base social invisível que todo mérito pessoal oculta. Nas classes dos oprimidos e socialmente excluídos no Brasil, os valores reproduzidos são quase todos “negativos”. Toda a socialização familiar se realiza por meio de exemplos práticos (e não por discursos). São estes exemplos práticos que os filhos vão imitar e, mais tarde, reproduzir como um legado de sua classe social. Uma mãe que diz a um filho que ele deve ir à escola precária dos negros e pobres porque só assim ele terá chances de sair da pobreza, dificilmente o convencerá porque, afinal, a própria mãe frequentou uma escola semelhante que não a tornou mais do que uma analfabeta funcional, como sucede com tantos outros membros dessa classe social a que ela e seu filho pertencem. Enquanto os humilhados e desprivilegiados, quase todos negros, se colocam como “fracassados” já no ponto de partida, os membros da classe média entram na escola como bem-sucedidos já desde tenra idade, porque foram nutridos, desde o berço, com os pré-requisitos emocionais, morais e cognitivos para tanto. Essas condições de que se beneficiam desde muito cedo na vida os farão indivíduos predispostos ao sucesso escolar e ao acesso a postos de trabalho com remuneração muito maior anos mais tarde.



Lição básica de história econômica do Brasil

 

O desenvolvimento econômico brasileiro foi historicamente perverso, visto que aumentou as desigualdades econômicas e sociais





Um recorte do Brasil


Nestes pouco mais de 500 anos de história, persistem no Brasil alguns traços que o definiram como sociedade histórica desde o período colonial. Um desses traços é justamente a difícil e tortuosa construção da cidadania. Último país, no Ocidente, a abolir a escravidão, o Brasil convive ainda hoje com inúmeros processos de exclusão social. Somos campeões em desigualdade social. Nosso bovarismo, isto é, nosso inextirpável desencanto com nossas condições sócio-históricas reais, é tão característico do nosso modo de ser brasileiro quanto o familismo, ou o costume arraigado em nossa cultura de transformar questões públicas em questões privadas. A lógica e a linguagem da violência tanto quanto a corrupção estão encravadas profundamente na mais remota história da formação de nossa sociedade. No Brasil, os pobres e os negros ainda são culpabilizados pela Justiça. São os que mais morrem cedo, os que têm menos acesso à educação superior pública ou a cargos mais qualificados no mercado de trabalho. E estas circunstâncias que nos ajudam a nos compreender como nação, como sociedade histórica, são mantidas e reproduzidas por uma estrutura de poder oligárquico caracterizada pela aliança entre os agentes estatais (funcionários administrativos e do governo) e os potentados privados (os detentores da riqueza privada). Estes dois grupos de poder buscam, antes de tudo, realizar seus interesses próprios em detrimento do bem comum do povo.




ALIANÇAS POLÍTICAS

 

Não deveríamos nos surpreender com essa aproximação de Lula à agenda neoliberal, representada na figura de Alckmin. Quando estava na presidência, a despeito de seus 80% de aprovação, Lula foi um neopopulista de mercado. Em 1 de dezembro de 2010, Lula declarou, na Carta Capital, “ foi preciso um torneiro mecânico, metido a socialista, para fazer o país virar capitalista”. O governo lulopetista caracterizou-se pelo desenvolvimento e expansão do mercado de consumo interno e pelo pacto desenvolvimentista com o grande Capital nacional. Só mesmo na narrativa fantástica da extrema direita e dos apoiadores de Bolsonaro, seria possível associar Lula e o PT a algum projeto de revolução comunista no Brasil. O governo petista historicamente foi pró-mercado. Assim, vivenciamos três movimentos psicopolíticos no Brasil de hoje, que configuram juntos uma única produção de força delirante: 1) recusa dos elementos históricos complexos; 2) regressão imaginária radical a um modo antigo de organizar a história; 3) ódio e pressão urgente por ação de violência, sacrifício e restauração da civilização. Esses três movimentos formam o sistema delirante da extrema direita. Esse sistema delirante, paranoico e fetichista alimenta o nosso arraigado e antigo desprezo antipopular e ódio pelos pobres. Esse sistema delirante, alimentando nossa tradição anticrítica e anti-intelectual, enraizado em nossa formação moderna como sociedade escravocrata, explica por que é possível que pessoas comuns insistam em ignorar o fato de que o PT e o governo Lula ousaram dirigir o processo histórico brasileiro para uma expansão de mercado e riqueza COM UM GRAU MÍNIMO DE PARTILHA COM OS MUITOS POBRES.




 

 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

"Se é verdade que sempre há mais de uma forma de interpretar um texto, não é verdade que todas as interpretações são iguais." (Paul Ricoeur)

 





NÃO HÁ FATOS, APENAS INTERPRETAÇÕES : Castoriadis e Ricouer - uma polêmica

 

 

Num diálogo ocorrido em 9 de março de 1985, Paul Ricouer e Cornelius Castoriadis contrapunham as perspectivas que adotavam acerca do imaginário social e da possibilidade de emergência da novidade na História. Ricouer preferia falar em produção histórica, entendendo por “produção” o fazer surgirem novas sínteses, novas configurações, novas significações a partir de um pré-construído, de um horizonte pré-regrado. Para Ricouer, não é possível a criação ex nihil na história. Segundo Ricouer, “só podemos produzir segundo regras; nós não produzimos tudo naquilo que produzimos, mais que não seja porque já temos um discurso antes de falar. Outros já falaram e estabeleceram as regras do jogo”. Castoriadis, por seu turno, preferindo falar em instituição imaginária da sociedade, e não de produção, defende a possibilidade da criação histórica, do fazer vir à luz o novo. Castoriadis consente com Ricouer, contudo, na tese de que o “novo” criado não é o novo absoluto. Para Castoriadis, há um domínio pré-existente organizado por regras previamente estabelecidas, mas nós podemos estabelecer novas regras, podemos sempre transformar as estruturas pré-construídas. Nesse sentido, podemos fazer nascer algo novo nunca experimentado ou previsto.

Desnecessário dizer que os dois pensadores concordam em vários pontos de suas reflexões, mas se distanciam neste aspecto fundamental: para Ricouer, não cabe falar em criação histórica, mas apenas em produção, ao passo que, para Castoriadis, devemos admitir a criação histórica e não a simples produção histórica.

Essa contraposição de interpretações encenada no diálogo entre Paul Ricouer e Cornelius Castoriadis é extremamente relevante para minha abordagem do niilismo. Apesar de acompanhar Castoriadis em muitos pontos de suas análises, não deixo de ver afinidade entre minha proposta de análise e a interpretação de Ricouer. Assim como não há um discurso que rompe o silêncio originário da enunciação, assim como não há um sujeito adâmico que, num momento mítico, teria tomado pela primeira vez a palavra, assim também o novo, na história, não emerge a partir do nada. Aqui me vejo mais próximo de Ricouer do que de Castoriadis. Mas ambos concordam num ponto que, para mim, é fundamental em minha tese sobre o niilismo: a afirmação do caráter fundamentalmente simbólico-imaginário da realidade social e das relações sociais. Para Castoriadis, toda realidade social é mediatizada simbolicamente, no que Ricouer concorda. Ambos afirmam que o agir histórico se realiza numa dimensão simbólica e imaginária que lhe é constitutiva. Fora do domínio simbólico-imaginário, não há sociedade, nem instituições, nem história. O homem, para ambos os pensadores, é HOMO LOQUAX, é homem de linguagem; é homem que não só usa a palavra, mas também inventa e imagina signos, sentido, símbolos, textos e narrativas, com os quais interage com seus semelhantes, construindo “ o mundo” nas práticas sociogntivo-interacionais possibilitadas pela linguagem. É no discurso e nas práticas de interação social pela linguagem que o mundo e os sujeitos se constituem. 

 


quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

"A ideologia funciona muito mais por meio do bloqueio da percepção de outras possibilidades, de outras realidades..." (Silvio Gallo).





       O LOUCO e a MORTE

 

A morte é um escândalo! Acordem! A vida é nua e ostenta sua nudez pavorosa e abissal!

E não me venham com este papinho disfarce: “vivamos intensamente o dia de hoje porque amanhã tudo poderá acabar”!

Mas tudo já está acabado. O decreto foi emitido há 14 bilhões de anos. Vivemos como os desavisados (ou fingidos?) que não conseguem ver que “o rei está nu”. Nossa morte herdamos quando nascemos. Contraímos uma dívida e vivemos como endividados que protelam o tempo de saldá-la. O credor, no entanto, não dá aviso prévio e não admite calote.

Ao romper o ventre materno fomos condenados a ela. Não há meios para apelação!

Tudo é pó, tudo é pó! Cinzas, poeira estelar! O silêncio da imensidão que ignoramos e que nos ignora há de calar nosso burburinho. Deixamos em cada passo que damos o rastro de nossa sepultura, em cada passo alimentamos a avidez dos vermes que nos consumirão. A morte nos engravidou de si quando nascemos. Somos todos defuntos adiados, como bem escreveu o poeta.

A perspectiva de nossa morte como um destino implacável e inevitável dá a tudo que fazemos um aspecto de porosidade, de precariedade, de fragilidade, de uma vacuidade ritualística fúnebre. Em face do Inevitável e Insondável, todos os nossos esforços se tornam radicalmente desimportantes e nossos atos cotidianos se perfazem como pretextos para não encarar o horror de nossa condição existencialmente trágica. Realizamos meros atos cênicos de uma performática teatral cosmologicamente insignificante. Atuamos, quase sempre, ou por costume ou por fraqueza, ou por covardia.

Cumulamos coisas que durarão mais do que nós mesmos. E nos apegamos a coisas das quais necessariamente nos separaremos. Mortos, é como se nunca estivéssemos existido. A morte não concede memória, não faz inventário. Ela simplesmente revoga tudo, dá a tudo o caráter de inanidade. A perspectiva de nossa morte torna a vida semelhante a um sonho. Mas o despertar deste sonho não é outra vida (fantasia dos crédulos). É o nada que não podemos conceber, o nada que sequer podemos imaginar. O nada é o sussurro do túmulo a nos lembrar de que, num nível fundamental, não somos mais do que “fluxo de eventos, processos que por um breve tempo são monótonos”. Somos um vibrar de ‘quanta’ que, por um tempo, conserva uma identidade antes de se dissolver no seio da natureza.

A couraça da loucura normal impede-nos de nos apreender como os atores que encenam uma tragédia, cujo desfecho é reencenado há milhões de anos...

jogamos um jogo do qual somos necessariamente os perdedores... quem ousa dizer que venceu na vida não compreendeu absolutamente nada...

A crença de que os mortos habitam outro lugar, de que vivem em outro mundo é um sintoma de nossa incapacidade de lidar com o nada, com a injunção do nunca mais. Cremos na vida pós-túmulo, porque nos recusamos a aceitar a nossa finitude, porque não queremos aceitar que a morte é o fim definitivo, o maior de nossos tormentos. Todo viver cotidiano é uma fuga persistente à morte que nos persegue como nossa sombra. Pomo-nos em fuga no esquecimento de que somos passageiros com destino para o cemitério. Viver como quem está continuamente a se despedir para nunca mais retornar é esta a única maneira de não nos levarmos muito a sério, de aceitarmos que precisamos de uma dose de loucura para não sucumbir ao desespero total e paralisante.

 

 

“Se quiseres poder suportar a vida, fica pronto para aceitar a morte.”

Sigmund Freud

 

 

“A arte de ser louco é jamais cometer a loucura de ser um sujeito normal.”

Raul Seixa 






Gozem! Gozem! Gozem!

 

A “irracionalidade” do sucesso ou do fracasso do capitalismo de mercado oferece-nos um único benefício: permitir que percebamos nosso fracasso (ou nosso sucesso) como “imerecido”, contingente. A própria injustiça do capitalismo é uma marca essencial que o faz ser tolerável para a maioria das pessoas, dado que nós podemos aceitar nosso fracasso mais facilmente, desde que saibamos que ele não se deve às nossas qualidades inferiores, às nossas incompetências e fraquezas, mas ao acaso. Lacan comunga com Nietzsche e com Freud na tese de que a justiça, tal como a igualdade, está assentada na inveja: na inveja que sentimos do outro que tem o que não possuímos e que se deleita com isso. A demanda da justiça é, em última instância, a demanda de restrição ao gozo excessivo do outro, de sorte que, restringindo-se o gozo do outro, todos tenhamos igualmente acesso ao gozo. Mas essa demanda produz um resultado necessário: o ascetismo. Na impossibilidade de impor um gozo igual, resta impor uma proibição, igualmente partilhada, ao acesso ao gozo. No entanto, contraditoriamente, nossas sociedades do espetáculo atuais pedem a todos uma única coisa: Gozem! Essa é a injunção generalizada que está no cerne da espetacularização de toda vida nas sociedades contemporâneas de mercado. Gozem, Gozem, Gozem! Com a condição de que tudo que se ofereça ao gozo seja desprovido da substância que o torne perigoso.





A ordem simbólica: o sujeito suposto crer

 

 

“A verdade tem a estrutura de uma ficção” (Lacan)

 

As emoções que enceno através da máscara que visto (a falsa persona) contém mais verdade do que posso admitir em meu foro íntimo. A polidez ilustra muito bem isso. Se, ao encontrar um conhecido, lhe estendo uma das mãos, dizendo “É um prazer revê-lo! Como vai?”, fica claro para nós dois que eu não estou genuinamente falando sério (se o meu conhecido desconfiar de que estou genuinamente interessado, pode até se sentir incomodado com meu atrevimento em querer tomar par de sua intimidade). Não é que eu seja necessariamente hipócrita, já que realmente sinto prazer em revê-lo. Apenas celebramos a renovação de um pacto entre nós dois. Sinto prazer em revê-lo e finjo estar interessado em saber sobre sua vida, mas nem ele espera que eu insista em querer saber demais (e verdadeiramente) sobre a vida dele nem eu espero que ele desfie para mim tudo o que lhe aconteceu durante o longo tempo em que estávamos distante. No ciberespaço, é o próprio fato de eu estar ciente de que me movo num espaço de ficção que posso expressar meu “verdadeiro eu”. Nos “reality shows”, os participantes do programa representam a si mesmos tais como se representam na “vida real”. A lógica aparentemente absurda do modo como funciona a ordem simbólica é esta: a máscara social que um indivíduo usa importa mais do que a realidade mesma deste indivíduo. Freud chamou essa estrutura de “renegação fetichista”: “sei muito bem que as coisas são como as vejo, que a pessoa diante de mim é um covarde corrupto, mas mesmo assim eu o trato respeitosamente, porque ele usa a insígnia de um juiz, de modo que, quando ele fala, é a lei que fala através dele”. Acredito, de certo modo, nas palavras dele e não em meus olhos. Quando um juiz fala, há, de certo modo, mais verdade em suas palavras (palavras estas da instituição da lei) que na realidade de sua pessoa. O cínico falha justamente aí quando se detém a considerar os fatos incontestes. A cultura, portanto, nada mais é do que o nome que damos a coisas que praticamos sem, de fato, acreditar nelas, sem levá-las inteiramente a sério.






A BUSCA ILUSÓRIA DO “ser si mesmo”

 

 

Toda cultura produzida segundo a lógica do capital é cultura capitalista. Félix Guattari, aliás, considera descabido opor uma cultura erudita a uma cultura popular. Para ele, só há uma cultura: a cultura capitalista - etnocêntrico e logocêntrica. Toda sociedade territorializa os indivíduos, isto é, insere-os num território dentro do qual eles podem viver, estabelecer relações e produzir tanto como sujeitos da produção material quanto como sujeitos a serviço da canalização, da codificação e da recodificação dos fluxos desejantes. A essência do capitalismo reside na abstração: tudo é desorganizado para ser novamente reordenado segundo a lógica do capital. A única coisa que não se transforma continuamente é o capital. A moeda continua soberana impondo seu regime a todos os fluxos de desejo, transformando-os em mercadorias, em dinheiro abstrato. Os indivíduos experienciam ilusoriamente sua subjetividade como se ela correspondesse ao seu “si mesmo”, ignorando o fato de que a subjetividade é de natureza maquínica, porque produzida pelas máquinas de territorialização. O que Guattari chama de “produção de subjetividade” é o modo como os indivíduos são fabricados socialmente, são normalizados, inseridos em relações uns com os outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão - estes não são visíveis e explícitos, mas sutis e dissimulados. A produção de subjetividade se dá em vários níveis da produção e do consumo, inclusive no nível inconsciente. Segundo Deleuze & Guattari, a máquina capitalista produz até aquilo que acontece quando sonhamos, quando fantasiamos, quando desejamos, quando nos apaixonamos e assim por diante. No capitalismo, a produção da subjetividade é mediatizada pelo capital. O homem se torna mais abstrato do que nunca; sua subjetividade é produzida por representações, por aparências vazias que alimentam o mundo das máquinas da megaprodução. É assim, portanto, que a sociedade “penetra” no indivíduo; é a assim que a ideologia fábrica o indivíduo de que a sociedade necessita para produzir e reproduzir a sua estrutura. Para Guattari, desde a infância, o indivíduo é fabricado por uma máquina de produção de subjetividade capitalista por meio de processos de inserção gradativa dele em seus modelos tanto técnicos quanto imaginários. A sociedade, portanto, fixa as referências, cria as coordenadas por meio das quais os indivíduos se orientam, se reconhecem facilmente e se produzem, reproduzindo, ao mesmo tempo, a maquinaria de produção que os fabricou como sujeitos. Portanto, a percepção que o indivíduo tem de si mesmo é socialmente fabricada. Situando a questão no âmbito da psicanálise, Zizek diria que o “si mesmo” não é nada mais do que a textura simbólica da identidade do sujeito, que é, em todo caso, um constructo. O sujeito puro, em psicanálise, é nada ou uma forma de nada. Em seu ponto zero, o sujeito é como uma casa vazia na qual “não há ninguém”. O sujeito só emerge quando o indivíduo se vê privado de seu conteúdo substancial (que é imaginário). Como uma ameba descomunal, a sociedade estende seus pseudópodes sobre cada indivíduo, fagocitando-o, digerindo-o e transformando-o numa de suas múltiplas partes.