quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Interdiscursividade e filosofia - "Toda a filosofia se desenvolve e se constitui a partir de uma outra" (BAR)


                          



 princípio metodológico
na compreensão da produção filosófica
Um confronto entre a teoria do conhecimento
de Kant e de Schopenhauer


Num encontro com uma amiga, também doutora em Linguística, ela procurou saber se eu passaria a me dedicar mais aos estudos filosóficos do que aos estudos da linguagem, dado o entusiasmo manifesto ao contar-lhe sobre a lida diária com a filosofia na graduação. Respondi que não via na dedicação à filosofia nenhum empecilho para a tenacidade de meu empenho nos estudos da linguagem. Ajuntei que não via o estudo filosófico como uma atividade incompatível com o estudo linguístico. Ao contrário, entendo que minha vocação para o estudo da linguagem, para o ensino de língua acompanha harmoniosamente meu pendor para as reflexões filosóficas. Muito antes desta ocasião em que fui questionado sobre qual seria minha preferência, apercebi-me de que o background que adquiri como resultado destes mais de dez anos em que estive ocupado com meu processo de formação continuada na área dos Estudos da Linguagem iluminaria a estrada que então se me abria por ocasião de meu ingresso na graduação em Filosofia. O estudo informal da filosofia vinha sendo feito desde 2005, nove anos antes de eu iniciar a graduação. Naquela época, eu estava fazendo mestrado em Estudos da Linguagem; e, mesmo decididamente devotado aos estudos desse curso, não deixava de visitar os filósofos.
Tendo em vista o que expus até aqui, espero fique claro que não encontro razão para preferir um estudo ao outro, para ocupar-me, com mais deleite, de um estudo em prejuízo do outro. Vou-me esforçar por demonstrar que, não havendo qualquer dissonância entre os estudos da linguagem e os estudos filosóficos, o que entendo haver é justamente uma contribuição dos estudos da linguagem para o desenvolvimento da compreensão filosófica. A tese basilar desta exposição se acha no excerto abaixo, colhido de um trabalho desenvolvido por mim, no ano passado, como requisito para a aprovação numa disciplina do curso de filosofia. Nesse texto, pondero o seguinte:

Toda a filosofia se desenvolve e se constitui a partir de uma outra. Isso é verdade também para qualquer domínio discursivo: todo discurso se desenvolve e se constitui na base de outros discursos. Conforme nos dá testemunho Cossuta, “(...) cada filosofia pretende encontrar sua origem num começo radical”; mas acrescenta “todo começo é apenas recomeço” (p. 33). Aqui nos parece estar a especificidade do discurso filosófico, visto que os discursos filosóficos jamais se superam uns aos outros (no sentido de que cada discurso precisa constituir-se pela reelaboração, pelo retorno a e trabalho contínuo sobre as proposições, as teses, os argumentos, a abordagem de outros discursos). Toda a herança discursiva é, a cada nova etapa de discurso, revitalizada, reanimada, reincorporada, ainda que seja para dela se distanciar, para submetê-la ao impacto de um martelo nietzscheano. Esse recomeço da filosofia, que não se dá senão por construção de discurso, é ele o próprio exercício contínuo e ininterrupto do pensamento. É o pensamento que, retomando o já pensado, o prolonga, o faz dizer o que até então havia permanecido silenciado. Por isso, Platão nunca será superado, nem Santo Agostinho, nem os que os precederam. É nesse recomeço que reside a vitalidade do discurso filosófico – um discurso que, embora tenha no seu horizonte a verdade, jamais pretende, por isso mesmo, alcançá-la definitivamente; e também, por isso, se apresenta como um recomeço: é um discurso que, animado pela busca da verdade, está sempre disposto a percorrer os mesmos caminhos, a retomar os mesmos pontos de partida; pois o contentamento está não tanto na chegada, mas nesse percorrer.
Se não há um discurso inaugural, tampouco há um sujeito adâmico, também o discurso filosófico engendrará suas formas na herança de enunciações filosóficas (daí o recomeço).O filósofo mobiliza uma série de atitudes, de estratégias pelas quais essa herança se faz presente em sua obra. Essa é uma questão que, no entanto, não nos ocupará aqui, por limitações de tempo e espaço. (...)
À luz das considerações desenvolvidas nesta subseção, cuidamos que se pode pensar toda a história da filosofia como uma imensa cadeia de discursos que se relacionam entre si de modos vários e complexos. Pensamos também que é tarefa do estudioso e estudante de filosofia também o debruçar-se sobre a história do pensamento filosófico, com vistas a investigar as formas como os discursos que compõem essa memória discursiva se articulam, se constroem por assentimento ou refutação, por retomadas, reelaborações, alusões, tendo sempre em vista o diálogo constante que os atravessa, mesmo quando esse diálogo, paradoxalmente, assume formas de silenciamentos. Aqui, vale lembrar uma lição cara aos analistas do discurso: em matéria de linguagem, as formas de silêncio, o não-dito também significam, também dizem. (grifos meus).


Com base na constatação de que todas as formas de produção filosófica (quer se apresentem como sistemas, quer como tratados, ensaios, diálogos, etc.) “se desenvolvem e se constituem a partir de uma outra [ou de outras]”, proponho como princípio metodológico de estudo e compreensão da produção filosófica, ao longo da história do desenvolvimento do pensamento Ocidental, o conceito de interdiscursividade que, gestado no interior da Análise do Discurso[1], aviva a percepção segundo a qual “toda a história da filosofia [pode ser encarada] como uma imensa cadeia de discursos que se relacionam entre si de modos vários e complexos. De modo algum, proponho que se faça Análise do Discurso a partir de textos filosóficos. Embora seja possível a realização de tal análise segundo o aparato teórico-metodológico e os procedimentos fornecidos pela Análise do Discurso, quem quer que pretendesse dedicar-se a uma empresa como esta estaria movimentando-se num horizonte hermenêutico cujos objetivos divergiriam – talvez, radicalmente - daqueles que, comumente, orientam a prática interpretativa dos comentadores. De modo geral, os comentadores que se debruçam sobre a compreensão de um pensamento filosófico procuram fornecer dele uma exegese que não está comprometida com os pressupostos teóricos que dão corpo à Análise do Discurso. A Análise do Discurso tem por interesse compreender o modo como um discurso produz sentido, para o que ela leva em conta a língua, a História e o sujeito, em funcionamento, com vistas a revelar a determinação histórica dos processos semânticos e, consequentemente, a dispersão dos sentidos. A Análise do Discurso se constitui pela inter-relação entre Linguística, História e Psicanálise, do que resulta ser ela uma área transdisciplinar.
Há que distinguir três campos teóricos com que a Análise do Discurso está em constante diálogo. O primeiro campo é o do materialismo histórico. No quadro da Análise do Discurso, o materialismo histórico é compreendido como uma teoria das formações e transformações sociais. A Análise do Discurso, articulando-se dialogicamente com o materialismo histórico, manterá que as condições de produção do discurso só podem ser observadas na e pela História. As condições de produção do discurso, sendo historicamente determinadas, explicam o aparecimento de um dado enunciado em um tempo e lugar, e não em outros. Da Linguística, a Análise do Discurso aproveita as ferramentas necessárias ao trabalho com os elementos linguísticos que tornam possível a materialização dos discursos. No horizonte de investigação da Análise do Discurso, situa-se a inter-relação constitutiva da linguagem e a sua exterioridade. Por fim, a Análise do Discurso precisa elaborar uma teoria do discurso, à luz da qual se desenvolverá o exame da determinação histórica dos processos de significação. Nesse caso, está sob foco de investigação a produção dos sentidos tomada como decorrente de fenômenos históricos.
A despeito do que se apresenta no parágrafo precedente, não intento propor que o estudo da produção discursiva filosófica se transforme num trabalho de interpretação e compreensão de textos segundo os pressupostos teóricos e metodológicos e os objetivos da Análise do Discurso. O que proponho é que possamos interpretar/compreender os textos filosóficos à luz da noção de interdiscursividade, a qual se acompanhará de outros conceitos que serão definidos e que, uma vez reunidos, contribuirão para fornecer um quadro sinótico elucidativo desse campo de estudo recoberto pela designação Análise do Discurso.
Convém salientar que os conceitos de interdiscursividade e interdiscurso deverão, segundo minha proposta, ser tomados como pressupostos orientadores do trabalho de interpretação e compreensão dos textos filosóficos. Estes dois conceitos resultam da compreensão de que todo discurso está calcado sobre outros discursos que o antecedem ou o precedem. Os conceitos de língua, discurso, sujeito, formação discursiva, historicidade do texto, formação ideológica e ideologia serão definidos como condição para que se elucide as bases teóricas da Análise do Discurso. No que diz respeito à formação discursiva, farei uma tentativa rudimentar para torná-la operacional a partir da elaboração compreensiva da produção discursiva do epicurismo e do estoicismo. Evidentemente, uma análise que se pretendesse acurada teórica e metodologicamente deveria prever um recorte dos discursos que constituiriam um arquivo[2] para a investigação, já que são vários os filósofos epicuristas e estóicos e diversos, portanto, os discursos produzidos.
Este texto divide-se em duas partes: na primeira, versarei sobre os pressupostos e os referidos conceitos com os quais trabalha a Análise do Discurso, enfatizando a relevância dos conceitos de interdiscursividade e de interdiscurso. Na segunda parte, com o intento de ilustrar de que modo esses conceitos contribuem para que nos tornemos leitores mais competentes no trabalho de interpretação e compreensão de textos filosóficos, abordarei, sem pretensão à exaustão, de modo dialógico, as teorias do conhecimento elaboradas por Kant e Schopenhauer.

1. A Análise do Discurso: pressupostos e conceitos


“A filosofia – define Epicuro- é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”. Seja-me permitido, então, destacar este truísmo: a filosofia não é possível senão pela produção de discursos. Ao destacar deste passo de Epicuro tal truísmo, ciente estou de que deixo à margem de minhas considerações o vínculo necessário entre filosofia e vida feliz, de que dá testemunho não só Epicuro mas toda a tradição grega.
Epicuro lembra-nos que a atividade da filosofia se realiza pela produção de discursos. Definir os conceitos de discurso e de língua à luz do quadro teórico da Análise do Discurso se me impõe como uma pré-condição para que se esclareçam os demais conceitos, já referidos, que contribuirão, por sua vez, para a elucidação da complexidade do objeto teórico da Análise do Discurso.

1.2. Discurso e Língua

Discurso não se identifica com a fala, nem com a língua. O discurso, tal como definido pela Análise do Discurso, é um acontecimento sócio-histórico; é, segundo Orlandi (2007), efeito de sentidos entre interlocutores. Tanto o locutor quanto o interlocutor, participantes da atividade discursiva, estão sempre afetados pelo simbólico. Esses efeitos de sentidos são consequência das relações entre sujeitos simbólicos que participam do discurso, em condições sócio-históricas dadas. Os efeitos de sentidos se realizam como consequência do fato de esses sujeitos serem situados sócio-historicamente e de serem afetados pelas suas memórias discursivas, as quais, por sua vez, são memórias sociais. As memórias discursivas fundam um espaço que se apresenta como condição de possibilidade do funcionamento do discurso. Esse espaço constitui um corpo sócio-histórico-cultural. (Fernandes, 2007, p. 59-60). O conceito de memória discursiva será definido quando eu me debruçar sobre o conceito de interdiscurso. Desde já, noto que memória discursiva e interdiscurso são conceitos correlatos, sinônimos.
A língua não é meramente um código entre outros. Não há separação entre emissor e receptor, como postula uma clássica Teoria da Comunicação. Tampouco a língua é mero instrumento de comunicação. Ao usarmos a língua, não só comunicamos, como também não comunicamos. A língua é, fundamentalmente, uma prática social, e os participantes dessa prática social atuam interacionalmente na produção de significados. O que eles fazem, quando envolvidos nas práticas linguísticas, é produzir discurso. Portanto, o funcionamento da linguagem põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela História, num complexo processo de constituição desses sujeitos e de produção de sentidos.
No que tange ao texto, é ele um objeto linguístico-histórico. Não carece fazer uma distinção entre texto e discurso aqui. Texto e discurso são atravessados pela incompletude. O texto não é, assim, uma unidade fechada, embora, na prática de análise, possamos compreendê-lo como uma unidade inteira em relação com outros textos existentes, possíveis ou imaginários (intertextualidade), com suas condições de produção (os sujeitos e a situação), com sua exterioridade constitutiva (o interdiscurso, a memória discursiva).
O texto é caracterizado por sua historicidade. Falar em historicidade do texto é apreender seu acontecimento como discurso, seu funcionamento, o trabalho de sentidos que ocorre nele. Trata-se de pensar a temporalidade interna do texto, ou seja, sua relação com a exterioridade constitutiva, segundo o modo como ela se inscreve no texto. Essa exterioridade não é a exterioridade histórica da qual o texto é um produto; essa exterioridade determina o texto internamente. Não é algo que está lá fora e que se reflete no texto. Não se vai da História (acontecimentos, eventos) para analisar o texto, mas se parte do texto enquanto materialidade histórica, com suas marcas. Destarte, compreender a materialidade do texto é compreender como a matéria textual (historicidade do texto) produz sentidos.
Não se está negando que há uma relação entre a História fora do texto e a historicidade do texto, que é a trama de sentidos nele, mas essa relação não é direta, nem imediata, nem de causa e efeito. Essa relação é complexa e demanda, a fim de que possa ser explorada, a compreensão do funcionamento do texto.

1.3. Sujeito

Desde já, é necessário rechaçar um possível equívoco: o sujeito de que trata a Análise do Discurso não é o sujeito cartesiano, ou seja, como uma consciência unitária e transparente a si mesma, e suposta como existente independentemente do corpo. Esse sujeito cartesiano é um “eu” a-histórico, senhor de si, cuja existência é postulado pelo pensamento. O sujeito de que trata a Análise do Discurso é um sujeito sócio-histórico. Este sujeito não se confunde nem com o autor nem com o indivíduo empírico que produz um texto. Trata-se de uma posição-sujeito ou forma-sujeito constituída na relação com o simbólico na História. O sujeito é discursivo e descentrado (não é a origem do seu dizer), porquanto afetado pelo real da língua e pelo real da história. Ele não exerce controle sobre o modo como língua e História o afetam. Por isso, o sujeito funciona pelo inconsciente e pela ideologia.
O sujeito deve sua instituição à interpelação ideológica (Althusser)[3]. O sujeito não é o centro do seu dizer, de modo que ele se caracteriza por duas formas de esquecimento: 1o esquecimento – o sujeito se constitui pelo esquecimento da formação discursiva que o determina. Só há sujeito pela sua inscrição na formação discursiva. É devido a esse esquecimento que o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz; 2o esquecimento – o sujeito esquece que há outros sentidos possíveis. Nesse caso, ao formular o seu dizer, vão-se construindo cadeias parafrásticas de tudo aquilo que ele poderia dizer, mas não disse. Quanto mais operamos formulações tanto mais silenciamentos se deixam vazar de nossas palavras. Esses silenciamentos compreendem o domínio do formulável (eles também dizem). Esse esquecimento segundo acarreta a ilusão da relação termo a termo entre o dizer, o pensar e a realidade.
Retomando-se a contribuição do materialismo histórico para a constituição do campo de estudos da Análise do Discurso, deve-se reter que há o real da História, de sorte que o homem faz história, mas ela não lhe é transparente. Conjugando a língua com a História na produção de sentidos (os sentidos são produto do trabalho de uma relação determinada do sujeito com a História), os estudos do discurso se ocupam com a dinâmica da forma material, que é a forma encarnada na história para produzir sentidos. Essa forma é de natureza linguístico-histórica. Esclarecendo os elementos que estão em jogo no trabalho do analista do discurso, cumpre sublinhar: a) o sentido não é o conteúdo semântico das palavras; b) a História não é um contexto, um enquadramento de acontecimentos; c) o sujeito não é a origem de si e nem está na origem do que diz. A Análise do Discurso está, portanto, preocupada com a ordem do discurso, na qual o sujeito se define por meio de sua relação com o sistema significante dotado de sentidos, sua corporeidade, sua historicidade (Orlandi, 2007, p. 49). O sujeito é, assim, sujeito significante (que significa), é sujeito histórico (ou seja, material). Esse sujeito, conforme mostrei, é uma posição-sujeito, isto é, ele se define como “posição”, porque é um sujeito atravessado por diferentes “vozes”, por diferentes discursos, numa relação, submetida a regras, com a memória discursiva (o interdiscurso). Esse sujeito só existe por sua relação com uma formação discursiva, a qual, por sua vez, mantém relação com as demais formações discursivas. Portanto, o sujeito de que se ocupa a Análise do Discurso é um lugar de significação que se constitui historicamente, vale dizer, pelo interdiscurso.
Uma vez que não se separam forma e conteúdo, a Análise do Discurso visa a compreender a língua não só como estrutura, mas, sobretudo, como um acontecimento. Da reunião da estrutura e acontecimento, resulta que a forma material (linguístico-histórica) é considerada como o acontecimento do significante (língua) num sujeito afetado pela História. É importante destacar que as palavras que usamos no trato cotidiano com a língua já nos chegam carregadas de sentidos, dos quais ignoramos a origem de constituição. Não obstante, elas significam em nós e para nós.

1.4. Formação discursiva e Ideologia

A língua é a materialidade específica do discurso, e o discurso é a materialidade específica da ideologia, de modo que não há ideologia fora do signo, do discurso. Descerei a considerações sobre o conceito de formação discursiva, definindo, posteriormente, sem me estender sobre o tema, o conceito de ideologia, tal como compreendido pela vertente da Análise do Discurso de cuja apresentação venho-me ocupando.
Todas as formações discursivas são constituídas de formações ideológicas[4] que as governam. O conceito de formação discursiva foi cunhado por Foucault, em Arqueologia do Saber (1969), para designar o domínio que, numa dada formação ideológica, a partir de uma posição social numa conjuntura histórica dada, determina o que se pode e deve-se dizer. É da formação discursiva que as palavras e os enunciados recebem seus sentidos. A formação discursiva refere-se ao que se pode dizer somente em determinada época e espaço social, ao que tem lugar e realização a partir de condições de produção específicas, historicamente definidas. A formação discursiva permite explicitar como cada enunciado tem seu lugar e sua regra de aparição, e como as estratégias que presidem à sua produção derivam de um mesmo jogo de relações; em suma, como um dizer encontra espaço num determinado lugar e época.
Foucault ensina que a formação discursiva torna possível a descrição, tendo em vista certo número de enunciados, de um sistema de dispersão. Além disso, ela permite definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) relativamente a objetos, tipos de enunciação, conceitos e escolhas temáticas. Uma formação discursiva não se limita a uma época apenas. No seu interior, se acham elementos que existiram em diferentes espaços sociais, e em outros momentos históricos, e que reaparecem sob novas condições de produção, tornando-se parte constitutiva de um novo contexto histórico e, consequentemente, possibilitando outros efeitos de sentido.
Tentarei, de modo rudimentar, mostrar como se pode operar com o conceito de formação discursiva por meio da consideração de duas escolas filosóficas que vicejaram no período helenista, justamente numa época em que o homem grego via dissipar-se o horizonte único da vida moral, a saber, a pólis. A partir de então, Estado e política passaram a ser situados entre as coisas moralmente indiferentes ou mesmo moralmente negativas. A fim de assinalar a ruína espiritual experimentada pelo homem grego neste período, vale lembrar que, na era clássica, a pólis era o lugar sem o qual o homem não poderia conceber sua própria existência, nem relativamente aos outros, nem em relação a si mesmo. Na pólis, homem e cidadão se identificavam quase completamente. É, por outro lado, no período helenista, que o homem descobre-se indivíduo. Doravante, não podendo mais orientar-se pela Cidade, pelo éthos do Estado e seus valores, a fim de tornar plena de conteúdos sua própria vida, o homem, coagido pela força dos acontecimentos, não teve alternativa senão encerrar-se em si mesmo. Com a empresa revolucionária de Alexandre, a cultura passou a formar indivíduos. Atentemos para o seguinte passo de Reale (2011, p. 11)[5], que nos esclarece sobre a grande transformação cultural e filosófica ocorrida nesse período:

“Assim como a cultura helênica, tornando-se helenística, perde o seu vigor originário e a sua força primigênia, assim também a filosofia, em particular, perde profundidade o que ganha em extensão. A perda se dá justamente na dimensão da teoreticidade e, portanto, na força e no vigor especulativo. O ganho se dá no número incomparavelmente superior de pessoas para as quais a filosofia, transformada essencialmente em problema da vida, sabe comunicar uma mensagem válida. A filosofia torna-se efetivamente a fonte da qual o homem helenístico extrai os valores que antes extraía da polis e da religião da polis; oferece novos conteúdos de vida espiritual, ilumina as consciências, ajuda o homem a viver e lhe ensina como ser feliz mesmo na época trágica em que vive na qual todos os antigos valores parecem subvertidos”.


Não se pode negar que as novas condições sócio-históricas da era helenística vão ser determinantes do aparecimento de discursos assentados numa orientação ideológica diversa, redefinida em relação aos discursos produzidos no período clássico. No entanto, nos quadros da Análise do Discurso, não se parte da exterioridade histórica para examinar os textos; a atenção se concentra na exterioridade constitutiva (interdiscurso, memória) que atravessa o texto e o determina do interior. Vou-me ater ao conceito de formação discursiva, a fim de lhe externar a operacionalidade. Sabe-se que Epicuro apregoou ser o prazer o soberano bem. O prazer, para ele, é o começo e o princípio da vida feliz. Foi justamente por fundar sua moral no prazer que Epicuro foi acusado por seus contemporâneos e pela posteridade de defensor da volúpia[6]. No entanto, o próprio Epicuro não descurou de advertir que se deve buscar os prazeres moderados, afastando aqueles que não são nem naturais nem necessários. A título de ilustração, vamos considerar como a palavra prazer recebe seu sentido pela inscrição dos sujeitos epicuristas e estóicos em formações discursivas diversas. O epicurismo subordinou a virtude ao prazer: a virtude era um meio para alcançar o prazer. Um estóico como Zenão, o fundador do estoicismo, não poderia concordar com Epicuro. A ética estóica se assenta no seguinte preceito estruturado em consequências: deve-se viver segundo a natureza, que significa viver segundo a razão, que, por sua vez, coincide com viver segundo a virtude. Para o estóico, a virtude é, ela mesma, a felicidade; por conseguinte, viver segundo a virtude deve ser desejado. Vivendo segundo a virtude, o estóico conquista a autarquia; por isso, não tem necessidade de prazeres. Segundo a opinião estóica, os prazeres não concorrem para aperfeiçoar a natureza humana; são tão-só fenômenos que acompanham o aperfeiçoamento, mas não estão totalmente sob o poder do indivíduo.
Há que se ver, pois, o confronto entre duas formações discursivas, que fazem com que os sujeitos e a palavra “prazer” signifiquem de modo diverso. As condições sócio-históricas do helenismo favorecem o aparecimento de discursos filosóficos nos quais há uma preocupação com a orientação moral ou ética dos indivíduos, conforme nota Reale (ib.id.): “os filósofos da era helenística são substancialmente moralistas, grandes moralistas; são pregadores de um credo ético; são, a seu modo, apóstolos e missionários”. Malgrado sejam mobilizados por um interesse ético em comum, os filósofos epicuristas e estóicos se inscrevem como sujeitos em formações discursivas e ideológicas diferentes. Essas formações discursivas deixam transparecer temas que atravessaram outras formações discursivas em outras épocas e lugares. Por exemplo, naturalmente, o tratamento dispensado ao prazer pelo epicurista e pelo estóico se faz num movimento de redefinição/re-produção de efeitos de sentido produzidos em outro lugar e época, como, por exemplo, na época de Platão, em Filebo. Aqui, já se entrevê a importância da memória discursiva ou interdiscurso como condição de possibilidade de existência do próprio discurso, pois o discurso de epicuristas e estóicos só é possível pela intervenção dessa memória coletiva, que é a memória discursiva. Os discursos, portanto, se imbricam e se relacionam com outras formações discursivas anteriores e exteriores, e que atravessam o discurso de um sujeito. Escapa aos propósitos deste texto uma demonstração acurada da operacionalidade do conceito de formação discursiva, para cuja tarefa supõe-se a constituição de um corpus discursivo ou arquivo que se conclui apenas no fim do procedimento analítico.
Tomando-se, agora, o conceito de ideologia, será suficiente dizer que, no quadro teórico a que remetem minhas considerações, a ideologia não é uma forma de ocultamento de conteúdos, mas um mecanismo de produção de uma interpretação necessária que atribui sentidos fixos às palavras. Por isso, o mecanismo ideológico não envolve uma falta, mas um excesso (Orlandi, 2007, p. 66). A ideologia representa a saturação do sentido, o efeito de completude, o qual, por sua vez, é responsável pelo efeito de evidência (do sentido).


1.5. Interdiscursividade e Interdiscurso (memória discursiva)

A interdiscursividade recobre o entrecruzamento de diferentes discursos, produzidos em diferentes momentos na História e a partir de diferentes lugares sociais. Todo discurso é constituído de diferentes enunciados que o antecedem e o sucedem, e que integram outros discursos. Correlato ao fenômeno da interdiscursividade, o interdiscurso ou memória discursiva é a instância da repetição histórica, porque inscreve o dizer no repetível (interpretável) enquanto memória constitutiva (interdiscurso). Esta memória é uma rede de filiações de dizeres que faz a língua significar. Destarte, sentido, memória e História se entrecruzam no interdiscurso.
O interdiscurso é aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente da formulação de um discurso dado. É a memória discursiva, o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído[7], o já-dito que está na base do dizível e que dá suporte a toda tomada da palavra. O interdiscurso põe em movimento dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada.
Tendo ficado claro que o interdiscurso é o próprio espaço de inscrição da memória de dizeres, que a memória discursiva expressa a inscrição da língua na História, passo, na próxima seção, a dissertar sobre a teoria do conhecimento em Kant e em Schopenhauer, procurando assinalar como nossa experiência com a filosofia se beneficia da compreensão do modus operandi dos conceitos de interdiscursividade e interdiscurso. Levando a termo esta seção, refiro as palavras de Orlandi (2010, p.18), que definindo o interdiscurso, sublinha a relação deste com a formação discursiva:

O interdiscurso determina a formação discursiva. E o próprio da formação discursiva é dissimular na transparência do sentido, a objetividade material contraditória do interdiscurso que a determina. Essa objetividade material contraditória reside no fato de que algo fala sempre antes em outro lugar e independentemente. O interdiscurso é irrepresentável. Ele é constituído de todo dizer já-dito. Ele é o saber, a memória discursiva. Aquilo que preside todo dizer. É ele que fornece a cada sujeito sua realidade enquanto sistema de evidências e de significações percebidas, experimentadas. E é pelo funcionamento do interdiscurso que o sujeito não pode reconhecer sua subordinação-assujeitamento ao Outro, pois, pelo efeito de transparência, esse assujeitamento aparece sob a forma de autonomia”. (grifos meus).



2. Kant e Schopenhauer: uma leitura com base no princípio da interdiscursividade


Quando no livro 1 de O mundo, Schopenhauer desenvolve sua concepção do mundo como representação, são repostos vários elementos já presentes no desenvolvimento do criticismo kantiano. Decerto, essa reposição não consiste em mera apropriação, mas é expressão de uma ressignificação desses elementos num movimento que articula assentimento e divergência. Mobilizando os conceitos já trabalhados por Kant e reinscrevendo-os num novo horizonte hermenêutico, Schopenhauer permite-nos acompanhar o percurso pelo qual o interdiscurso irrompe em seu discurso – na forma de intertextualidade - como condição de possibilidade para a sua própria construção. Ao dizer, o sujeito schopenhaueriano deixa ressoar um já-dito produzido em outro lugar e época de modo independente. Todo discurso é constituído de diversas formações discursivas. É, por isso, de esperar que o discurso schopenhaueriano seja atravessado por formações discursivas várias. Não obstante, estou interessado em mostrar, a partir da perspectiva da interdiscursividade, por que tem razão Schopenhauer quando considerou a si próprio um herdeiro do kantismo. Para levar a efeito esta empresa, precisarei, em primeiro lugar, dispensar atenção sobre a teoria do conhecimento de Kant. Posteriormente, debruçar-me-ei sobre o desenvolvimento da concepção do mundo como representação de Schopenhauer na tentativa de mostrar a intervenção do interdiscurso que traz o registro, especialmente, da voz kantiana.

2.1. Kant e sua teoria do conhecimento

A distinção estabelecida por Kant entre sensibilidade e entendimento inspirou-se na clássica distinção dos antigos entre objetos sensíveis (aisthèta) e objetos inteligíveis (noètá). A sensibilidade recobre a faculdade das intuições; e o entendimento encerra a faculdade dos conceitos.
De modo geral, por intuição, entende-se a visão direta e imediata de um objeto apresentado ao espírito e apreendido em sua realidade individual. Portanto, só há intuição quando um objeto nos é dado ao espírito. Na medida em que objetos que nos são dados são aqueles que nos afetam o espírito, as intuições serão recobertas pela faculdade da sensibilidade, a qual se caracteriza por receber as representações. Segundo Kant, para o homem, só há intuições sensíveis.
Sublinhe-se que a sensibilidade é a faculdade que tem nosso espírito de ser afetado por objetos. É a sensibilidade, assim, que nos fornece as intuições, e somente ela.
Por outro lado, o entendimento encarrega-se de pensar os objetos fornecidos pela sensibilidade. Trata-se de uma faculdade não sensível de conhecer. O entendimento se caracteriza pela espontaneidade. Ao entendimento cumpre produzir representações. As representações do entendimento são os conceitos. Destarte, de acordo com Kant, o entendimento humano produz um conhecimento por conceitos. Não sendo, portanto, um conhecimento intuitivo, esse conhecimento é discursivo.
Cuido indispensável esclarecer, a esta altura, o que é representação. A representação é a operação pela qual a mente tem presente a si mesma uma imagem mental, uma ideia ou conceito correspondente a um objeto externo. Toda representação é uma re-apresentação da realidade externa à consciência, de sorte que a realidade  re-apresentada se torna um objeto da consciência. É o signo (a palavra) o elemento responsável por permitir a relação entre a consciência e o real na representação.
Volvendo olhares para a contribuição kantiana, encontramos na Crítica da Razão Pura (2013, p. 45), logo de início na Introdução,  o primeiro registro do interdiscurso, que se depreende da passagem em que Kant dá seu assentimento a um tese empirista, da qual Hume foi um representante que influenciou decisivamente o pensamento kantiano, tanto mais que o próprio Kant viu nele o filósofo responsável por tê-lo despertado de seu sono dogmático: “não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência”. Esse trecho se acompanha, no entanto, da observação do próprio Kant de que o conhecimento não se reduz à experiência. O conhecimento, portanto, começa com a experiência, no que está de acordo com a tese básica do empirismo, mas não se reduz a ela. Minha atenção recairá apenas sobre o fato de a experiência ser  o domínio responsável por dar início ao conhecimento, vale dizer, por torná-lo possível. Se o ponto de partida para o conhecimento é a experiência, pode-se dizer que, para Kant, o conhecimento tem como base a sensação. A sensação é a impressão produzida por um objeto na sensibilidade. Por meio da sensação, dá-se a intuição empírica. O objeto dessa intuição empírica é o fenômeno.
A experiência é um conhecimento real e empírico, que resulta da interação entre a sensibilidade e o entendimento. A experiência se constitui pela ligação de percepções, operada pelo entendimento, na forma de conceitos. A experiência envolve dados empíricos e elementos a priori. Segue-se daí que o conhecimento se realiza cabalmente no momento em que percepções e conceitos são relacionados sob a forma de um juízo. Só no nível do juízo é que se constituirão objetos, pois, antes do juízo, não há qualquer determinação.
Ao se ocupar da análise da sensibilidade e do entendimento, Kant se aproveitará da distinção escolástica entre forma e matéria. Destarte, com vistas a explicar de que modo operam a sensibilidade e o entendimento no conhecimento dos fenômenos, Kant propõe que pensemos tanto o fenômeno quanto o conhecimento como algo constituído de forma e matéria. A matéria do conhecimento depende do próprio objeto; a forma do conhecimento, por sua vez, depende do sujeito. O ato de conhecer é, portanto, o ato de dar forma a uma matéria dada. Todo conhecimento – eis um ponto importante – implica uma correlação entre um sujeito e um objeto. Os dados objetos são configurados pelo modo com que a sensibilidade e o entendimento os apreendem.
A matéria é a posteriori, isto é, depende da experiência. A matéria do conhecimento é variável de um objeto para outro, visto que dele depende. A forma, por outro lado, como seja imposta pelo sujeito ao objeto, será reencontrada invariavelmente por todos os sujeitos em todos os objetos.
Tanto a sensibilidade quanto o entendimento apresentam formas que lhes são próprias. As formas puras da sensibilidade são o espaço e o tempo. As formas se dizem puras porque estão a priori no espírito, isto é, não pertencem à sensação ou à experiência. As formas a priori do entendimento são os conceitos ou categorias do entendimento. Antes de apresentá-las, convém enfatizar que sensibilidade e entendimento são inseparáveis para atingirmos conhecimento: por um lado, o conhecimento requer que os conceitos (pensados pelo entendimento) se tornem sensíveis, caso em que a eles articulamos um objeto dado na intuição; por outro lado, as intuições só se tornam inteligíveis, quando se subordinam a conceitos. Não menos importante é enfatizar que as categorias do entendimento constituem as condições subjetivas do pensamento. Assim, ser-nos-ia impossível pensar, isto é, julgar, se não nos fosse possível submeter os dados da intuição sensível às formas a priori do entendimento. Kant distingue entre doze categorias, segundo quatro pontos de vista ou domínios: 1) no domínio da quantidade,  se acham a unidade, a pluralidade e a totalidade; 2) no domínio da qualidade, se topam a realidade, a negação  e a limitação; 3) no domínio da relação, situam-se a substância (e acidente), a causa (e efeito), a reciprocidade; 4) no domínio da modalidade, se encontram a possibilidade, a existência e a necessidade.
Retomemos as formas puras da sensibilidade, quais sejam, o espaço e o tempo, para observar que Kant as entendia unicamente dependentes da forma de nossa intuição, a saber, da constituição de nosso espírito. O espaço não é um ser real, um conceito empírico derivado de nossas experiências exteriores. Não há isto que chamamos "espaço" como  instância ontológica que nosso espírito apreende. Para Kant, o espaço é a priori, porque a sua representação constitui a condição de possibilidade dos fenômenos. Assim também, o tempo é um dado a priori; é a condição de todo vir-a-ser. O tempo não existe nas coisas, tampouco é uma coisa externa à nossa consciência. O tempo é a forma da intuição de nós mesmos e de nosso estado interior. O tempo é a condição formal a priori de todos os fenômenos. Não estando interessado em descer a pormenores sobre as formas da sensibilidade, cinjo-me a lembrar que a intuição só pode nos fornecer os fenômenos e jamais a coisa-em-si (númeno). Essa limitação do conhecimento aos fenômenos terá um impacto significativo na própria compreensão que o homem moderno terá de si mesmo: só posso conhecer quem sou conhecendo alguma coisa. Só podemos apreender nosso eu apenas como fenômeno e não como coisa em si. É a metafísica tradicional, com sua pretensão a fornecer algum conhecimento, que é rejeitada: não podemos conhecer coisa alguma para além da experiência. O homem só pode conhecer aquilo que lhe é dado na intuição.
A coisa-em-si ou o númeno é incognoscível. Portanto, só conhecemos o ser das coisas na medida em que elas nos são dadas enquanto fenômenos.

2.1.2. A Razão, segundo Kant

Para além da experiência, não há conhecimento possível. Com este postulado, Kant nega ser possível à razão demonstrar a imortalidade da alma, a liberdade do homem ou a existência de Deus. Ademais, para o filósofo de Königsberg, não se pode provar nem que a alma é mortal, nem que o homem não é livre, nem que Deus não existe. Para além da experiência – é preciso acrescentar -, não podemos conhecer a existência e a não-existência.
Kant reconhece que a razão tem uma tendência a ultrapassar os limites do conhecimento, já que tem em mira o incondicionado. Tal pretensão da razão leva-a a uma antinomia, isto é, a um modo de proceder no qual ela, a razão, instaura um conflito interno cuja solução se lhe torna impossível. A antinomia se estrutura pela articulação de uma tese com uma antítese. A tentativa de provar tanto um aspecto quanto outro é vã, porque os argumentos a que recorre para tanto são meramente especulativos e, portanto, incapazes de oferecer uma prova empírica.
Kant confere à razão, então duas novas funções. Ela não pode mais presumir a dedução da existência de objetos como Deus, alma, mundo, por si transcendentes, de simples ideias, de sorte a transformar a lógica formal em órgão de conhecimento. Uma vez consciente de seus próprios limites, a razão se torna crítica. Kant estava ciente de que a razão não cessaria de fracassar, caso continuasse a se aventurar em conhecer objetos que só pode conhecer por conceitos, os quais por si mesmos são insuficientes para determinar um objeto real correspondente. Ora, do que expusemos até aqui, é possível depreender que o conhecimento é produto da interação complexa entre duas faculdades; ele é o resultado de uma síntese operada pela sensibilidade e pelo entendimento. São as seguintes as novas funções que Kant fixou para a Razão: a) tornar as ideias especulativas instrumentos metodológicos que sevem à avaliação do progresso da experiência. Essas ideias foram chamadas de Ideias Regulativas; b) negar o caráter contraditório de ideias cosmológicas como a de liberdade e a de necessidade mediante a ressignificação do conceito de objeto, que passa a ser entendido como fenômeno e como coisa-em-si (númeno). Desse modo, as ideias de liberdade e necessidade tornam-se pressupostos da prática moral.
Não devemos perder de vista o fato de que, para Kant, Razão não é o mesmo que entendimento. A razão ultrapassa o entendimento. A razão é a faculdade responsável por operar uma síntese, dando aos conhecimentos múltiplos uma unidade a priori por meio de conceitos. Vale notar que o entendimento, assentado em conceitos, reduz à unidade a multiplicidade dada na intuição. O entendimento opera segundo certas regras. A razão, por sua vez, referindo-se ao entendimento, parte das regras para atingir uma unidade mais elevada, que é a unidade dos princípios.
A razão se diz pura, porque busca o incondicionado, que é a condição última de todas as condições. É no uso lógico da razão que melhor apreendemos essa busca da unidade mais elevada. Quando raciocinamos, compreendemos uma proposição particular sob uma condição geral que a contém, juntamente com outras condições.
Por fim, acrescente-se que o conceito é produto do entendimento; e a ideia é obra da razão. A Ideia ultrapassa a experiência fenomênica. Mas a ideia é um conceito necessário da razão, muito embora a ideia não encontre um objeto correspondente nos sentidos. A razão exige que se represente o universo como uma totalidade acabada.
Tendo revisitado brevemente a teoria do conhecimento kantiana, espero que se ilumine, doravante, a relevância da interdiscursividade como princípio metodológico à medida que eu for passando revista à compreensão schopenhaueriana do mundo como representação.

2.2. Schopenhauer: o mundo como representação

No limiar do livro 1 de O mundo como Vontade e Representação (2001), Schopenhauer aduz a tese em torno da qual desenvolverá sua teoria do conhecimento, a qual constitui uma etapa (a primeira) da sua compreensão totalizante do homem e do real. Antes de referir o passo em que destacarei em negrito, essa tese, cumpre dizer que Schopenhauer se notabilizou por seu espírito profundamente triste e pessimista, que foi empregado na produção de uma obra de cunho existencialista. A verdade pretendida por sua filosofia consiste em demonstrar ser a existência um mal, do qual só podemos escapar pela renúncia a ou pela negação da Vontade.
De minha parte, entendo que uma obra filosófica deve resultar de um esforço por dar testemunho de uma existência, de um temperamento. Isso, ao menos, parece ser verdade no caso de Schopenhauer. Sua existência amargurada, seu temperamento mórbido, sua solidão trágica constituem as forças produtoras de sua filosofia, que encontrou imensa repercussão na alma do homem contemporâneo. A par de Kierkegaard, Schopenhauer soube bem exprimir a sensação de angústia que encontra morada na alma humana.
Neste texto, no entanto, pretendo apenas pontuar em que medida a filosofia de Schopenhauer, particularmente na etapa em que ele propõe o primeiro ponto de vista sobre o mundo, é tributária do pensamento de Kant. Destarte, aceno para a necessidade de se debruçar sobre  toda produção filosófica tendo sempre em conta o princípio da interdiscursividade. Leia-se, então, o fragmento em que Schopenhauer expõe, logo de início, a primeira tese de seu tratado:

O mundo é minha representação – essa proposição é uma verdade para todo ser vivo e pensante, embora só no homem chegue a transformar-se em conhecimento abstrato e refletido. A partir do momento em que é capaz de o levar a este estado, pode dizer-se que nasceu nele o espírito filosófico (...)”. (2001, p. 9).

Consoante notei anteriormente, “o mundo como representação” é o primeiro ponto de vista sob o qual Schopenhauer considerará o mundo. O outro ponto de vista consiste em afirmar que “o mundo é a minha vontade”. Portanto, “o mundo como representação” e “o mundo como Vontade” são dois aspectos sob os quais Schopenhauer compreenderá o mundo. Estas minhas considerações se estenderão prioritariamente sobre o primeiro aspecto; todavia, não silenciarei sobre o segundo aspecto.
Desde já, observo que o nome de Kant é referido por Schopenhauer algumas vezes ao longo do texto, sinal suficiente para atestar que sua filosofia se constituiu em diálogo com o pensamento do filósofo de Königsberg. Devemos, no  entanto, acompanhar de que modo esse diálogo se desenvolveu, apontando as convergências e as divergências entre os dois pensamentos.
A tese “o mundo é minha representação” assenta sobre um postulado que já se encontra em Kant: o conhecimento supõe uma relação necessária entre o objeto e o sujeito cognoscente. Levando adiante as consequências do idealismo de Kant e recuperando explicitamente a fórmula de Berkeley que inaugura o idealismo propriamente dito – o mundo é minha representação -, Schopenhauer sustentará que o mundo só existe na sua relação com um ser que percebe, ser que é o próprio homem. Assim,

“Nenhuma verdade é, portanto, mais certa, mais absoluta, mais evidente do que esta: tudo o que existe, existe para o pensamento, isto é, o universo inteiro apenas é objeto em relação a um sujeito, percepção apenas, em relação a um espírito que percebe. Em uma palavra, é pura representação”. (ibid.id.).


Para Schopenhauer, tudo que há no mundo ou que pode haver está numa relação necessária com o sujeito “e apenas existe para o sujeito”. Não obstante ter sido um grande admirador de Kant, Schopenhauer não deixou de censurá-lo por não ter reconhecido aquela verdade que “constitui já a essência das considerações céticas de onde procede a filosofia de Descartes”.[8]
Deve-se frisar que, segundo Schopenhauer, o mundo existe absolutamente, segundo o primeiro ponto de vista, como representação; e, segundo o outro ponto de vista, como vontade. O mundo como Vontade (com maiúscula para precisar que não se trata da “vontade subjetiva”) é o mundo da coisa-em-si. A Vontade de Schopenhauer é correspondente à coisa-em-si kantiana, se bem que de modo ressignificado. Schopenhauer submeterá à reflexão justamente aquilo que Kant apenas postulou. Notável, para os meus propósitos, é assinalar a insatisfação schopenhaueriana com a forma como Kant introduziu em seu sistema a sua coisa-em-si. Para Schopenhauer, o mundo não se reduz nem à representação, nem à Vontade. A representação é um aspecto sob o qual o mundo existe; e a Vontade é o outro aspecto sob o qual o mundo existe. A Vontade, escreve Schopenhauer, “é um objeto em si” (p. 11). O em-si schopenhaueriano – a Vontade – é a essência do mundo, de sorte que esse “em-si”, sendo um princípio metafísico de explicação da configuração existencial do mundo, não deixa por isso – apesar de ser uma Vontade cega e sem propósito – de servir para demonstrar a ordem ou a natureza do mundo. O em-si kantiano, ao contrário, compreende, em sua teoria do conhecimento, o domínio do incognoscível, daquilo que é imperscrutável ao entendimento e a razão humanos. A Vontade pode ser conhecida pelo homem – levar o homem a se tornar consciente das maquinações da Vontade é o objetivo fundamental a que se destina a filosofia de Schopenhauer.
A problemática da coisa-em-si em Schopenhauer e em Kant não deve nos ocupar demais, por conseguinte passo a assinalar os momentos em que a teoria do conhecimento de Schopenhauer vai-se desenvolvendo em claro contraste com a de Kant.  No tocante à essência do sujeito, escreve Schopenhauer:

“Aquele que conhece o resto, sem ser ele mesmo conhecido, é o sujeito. Por conseguinte, o sujeito é o substractum do mundo, condição invariável, sempre subentendida de todo fenômeno, de todo objeto, visto que tudo o que existe, existe apenas para o sujeito”. (p. 11).


Ao nos determos no excerto acima, encontramos novamente o postulado básico segundo o qual “tudo o que existe, existe apenas para o sujeito”. Ora, afirmar que o mundo é representação é assumir que ele existe para o sujeito que conhece. Sem o sujeito, não há mundo. Por isso, o sujeito é o substractum (essência) do mundo como representação. É importante reter que, para Schopenhauer, o sujeito não é objeto de conhecimento. O sujeito em si não é uma representação; ele é seu pressuposto. Aqui é preciso reconhecer a divergência que há entre o projeto schopenhaueriano e o kantiano. Kant, ao se ocupar das condições de possibilidade do conhecimento e dos limites da razão, tomou para objeto de conhecimento o próprio sujeito em sua forma ideal. Para Schopenhauer, que está interessado em investigar a natureza do mundo, o sujeito é pensado como “princípio que conhece sem ser conhecido”. (ib.id.). De certo modo, o sujeito é incognoscível para si mesmo – “é ele que conhece em toda parte em que há conhecimento”.
Outra diferença notável em relação à abordagem de Kant consiste no fato de Schopenhauer pensar as formas do espaço e do tempo relativamente ao objeto, e não, como pensou Kant, ao sujeito. Para Schopenhauer, o sujeito é uno e indivisível, conforme lemos a seguir:

“O mundo, considerado como representação, único ponto de vista que aqui nos ocupa compreende duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis. A primeira é o objeto que tem por forma o espaço e o tempo, e, por conseguinte, a pluralidade; a segunda é o sujeito que escapa à dupla lei do tempo e do espaço, sendo sempre uno e indivisível em cada ser que percebe”. (ib.id., grifos meus).


Afirma-se a idealidade radical do sujeito: ele escapa à lei do tempo e do espaço; não sofre as modificações do devir – é uno e indivisível. A condição para existir o mundo como representação é que haja um objeto e um sujeito que percebe. No entanto, se esse único sujeito desaparece, com ele desaparece o mundo concebido como representação. É necessário ponderar que Schopenhauer não rejeita a possibilidade de se deduzir do sujeito as formas essenciais a qualquer objeto – a saber, o tempo, o espaço e a causalidade. Essa possibilidade de dedução explica, segundo Schopenhauer, por que Kant as considerou formas a priori da consciência. Schopenhauer não deixa, contudo, de reconhecer o mérito de Kant: “De todos os serviços prestados por Kant à filosofia, o maior reside talvez nesta descoberta”. (p. 12).
No tangente à compreensão do estatuto da causalidade, Schopenhauer coloca-se em evidente oposição a Hume. Já que minha preocupação básica é demonstrar a verdade do princípio da discursividade como condição de todo discurso e de demonstrar sua pertinência à compreensão da história da filosofia, é oportuno recordar o modo como Hume pensava a causalidade. Para ele, a causalidade não é um princípio ontológico. Ela resulta de associações operadas pela mente humana por força do hábito. É porque na experiência percebemos, repetidas vezes, um objeto ser precedido de outro, que julgamos haver entre eles uma relação natural de causa e efeito.
Para Hume, nossos raciocínios de causa e efeito fundamentam-se na experiência e, todos os raciocínios experimentais se apoiam na suposição de que o curso da natureza permanecerá regular. Por isso, somos levados à conclusão de que as mesmas causas, em situações iguais, sempre produzirão os mesmos efeitos. É o espírito humano, pelo concurso da experiência, que concebe qualquer efeito como resultante de uma causa.
Lembra Hume Adão só poderia concluir que, dadas duas bolas, uma das quais lançada em direção a outra, que uma delas se movimentaria como efeito do choque da outra, se somente tivesse a experiência anterior do efeito que resulta do impulso daquelas duas bolas. Adão deveria ter visto vários casos anteriores em que uma bola chocou-se contra outra, fazendo esta se movimentar. Vendo um número suficiente de casos semelhantes, estaria certo de que a segunda bola se movimentaria todas as vezes que outra bola se chocasse contra ela. Para Hume, é a experiência que engendra a noção a noção de causa e efeito: é porque estamos habituados a ver um fenômeno Y seguir-se a um fenômeno X que temos a expectativa de que, ocorrendo X, seguir-se-á Y. Essa nossa expectativa, fundada no hábito, se traduz na fórmula: X é a causa de Y.
É justamente essa compreensão de causalidade que Schopenhauer rejeita. Schopenhauer considera a causalidade como um princípio da nossa experiência do real. Ora, na condição de princípio, a causalidade (ou lei da causalidade) é pressuposta no modo como o mundo se nos dá intuitivamente. Fique claro que Schopenhauer não está sustentando que a causalidade exista no mundo real independentemente do entendimento, o que o excerto abaixo é suficiente para rejeitar. O que Schopenhauer diz, contra Hume, é que a causalidade não é produto da força do hábito, mas uma lei que regula os fenômenos do mundo e que existe no e para o entendimento. Sem o entendimento, o mundo não seria nada, e lei alguma existiria.

“(...) o mundo percebido pela intuição no espaço e no tempo, o mundo que se nos revela na intuição como causalidade, é perfeitamente real e é absolutamente aquilo que parece ser; ora, aquilo que ele pretende ser inteiramente e sem reserva é representação, e representação regulada pela lei da causalidade. Nisso consiste a sua realidade empírica. Mas, por outro lado, só há causalidade no e para o entendimento; assim, o mundo real, isto é, ativo, é sempre, como tal, condicionado pelo entendimento, sem o qual ele não seria nada” ( grifo meu, p. 21).


Como se pode ver, no trecho acima, a causalidade não é um produto do hábito, como pensava Hume; para Schopenhauer, é um princípio que existe no mundo que é representação.
Com não estar eu preocupado em desenvolver uma análise exaustiva que ilumine as convergências e as divergências entre as teorias do conhecimento de Schopenhauer e de Kant, vou limitar-me a notar que por entendimento Schopenhauer não entende o mesmo que Kant, tanto mais que Schopenhauer diz o possuírem todos os animais, mesmo os mais imperfeitos. A razão por que Schopenhauer estende o entendimento aos animais é que o entendimento tem por essência o conhecimento pelas causas. Para Schopenhauer, o entendimento limita-se a ser uma faculdade responsável por ligar o efeito à causa ou a causa ao efeito. No entanto, no homem, a intensidade de ação e extensão de sua esfera é maior.
No que tange à razão, Schopenhauer atribui a ela apenas a propriedade de classificar, fixar e combinar os conhecimentos imediatos do entendimento, sem nunca produzir qualquer conhecimento. Nesse tocante, Schopenhauer não se afasta muito de Kant. Ele conserva a distinção kantiana entre razão e entendimento e destitui a razão do poder de lograr um conhecimento teórico. No entanto, ao contrário de Kant, Schopenhauer nega que a razão seja a faculdade do incondicionado. Para Schopenhauer, a razão tem seu alcance reduzido à exploração dos dados imediatos do entendimento, sem o qual ela permanece estéril. O entendimento, segundo essa perspectiva, é a faculdade da representação. Ele é estruturado pelo princípio da razão suficiente (espaço, tempo e causalidade). Kant, por sua vez, distingue entre intuição, com suas formas a priori (espaço e tempo) e entendimento, com suas doze categorias. Schopenhauer, por seu turno, as funde numa única faculdade, a qual chama alternadamente de entendimento, intelecto ou intuição. A intuição, para Schopenhauer – no que discorda de Kant – não é puramente sensível, mas intelectual. O que vimos a respeito de Kant patenteia que, para ele, a intuição é sempre sensível. Acerca da intuição, escreve Schopenhauer:

“(...) a intuição não é de ordem puramente sensível, mas intelectual; pode-se dizer, em outras palavras, que ela consiste no conhecimento da causa pelo efeito, por meio do entendimento: pressupõe, pois, a lei da causalidade.” (p. 19).


Finalmente, reitere-se que a lei da causalidade é condição de possibilidade para qualquer intuição. Nisso Schopenhauer discorda de Hume, que pretendia deduzi-la da experiência por força do hábito. Para Schopenhauer, a lei da causalidade é condição de possibilidade para qualquer experiência.

Considerações finais

Como espero tenha ficado claro, nenhum discurso vem ao mundo como criação de um sujeito que está na origem do dizer. Todo discurso está calcado sobre discursos que o precedem, ao mesmo tempo que projeta espaços de possibilidade de outras enunciações. O interdiscurso é o já-dito que se situa em outro lugar; é pré-condição para todo dizer, é a memória discursiva. Numa perspectiva bakhtiniana, devemos reconhecer que o dialogismo está no cerne do funcionamento da linguagem, visto que todos os enunciados se constituem a partir de outros. Quando os comentadores nos ensinam sobre as influências sofridas por um filósofo, como a que sofreu Schopenhauer de Kant, como a que Kant sofreu de Hume, por exemplo, eles põem em evidência justamente o funcionamento do princípio de interdiscursividade, ainda que não haja preocupação explícita de teorizar sobre ele (tarefa esta que compete ao linguista, ao analista do discurso). Mas a importância de tal princípio é irrecusável para um estudo tanto mais profundo quanto satisfatório do pensamento filosófico em toda a sua complexidade e extensão. Assim é que se vai costurando o tecido discursivo: Santo Agostinho remete a Platão, que remete a Parmênides e a Heráclito, os quais dialogam com a tradição anterior, ao mesmo tempo em que abrem espaços enunciativos posteriores. Assim é que podemos ver um Marx retomar Hegel, para reinterpretá-lo, para contestá-lo, etc. É pela interdiscursividade que podemos melhor compreender as divergências que opõem, de um lado, racionalistas; de outro, empiristas;  é ela que nos permite, inclusive, pensar aquilo em razão do qual se opõem as duas formas de idealismo, como o de Kant e o de Descartes. Racionalismo e Empirismo; Idealismo e Realismo, etc. são designações que acenam para diferentes formações discursivas e ideológicas. Fica, então, estabelecido que o estudo da linguagem, mormente no que tem de contribuição para a compreensão do funcionamento textual e discurso, antes de subtrair-se ao estudo da filosofia, vem-lhe em socorro para torná-lo uma atividade ao longo da qual o agente vai-se transformando profundamente pelo aprofundamento de sua compreensão dialógica do pensamento que se põe sob foco de sua atenção por ocasião do estudo.




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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERNANDES, Alves C. Análise do discurso: reflexões introdutórias. São Carlos: Clara Luz, 2007.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso. In: Orlandi, Eni P.; Rodrigues-Lagazzi, Suzy (orgs). Discurso e textualidade. São Paulo: Pontes, 2011, p. 13-31.
________ Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. São Paulo: Pontes, 2007.

PASCAL, Georges. Compreender Kant. Petrópolis, RJ: 2009.


SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.






[1] Neste trabalho, a expressão Análise do Discurso recobrirá a orientação dos estudos discursivos levada a efeito pela escola francesa, da qual, no Brasil, sua mais notável representante é a linguista e analista do discurso Eni P. Orlandi.
[2] Segundo Maingueneau (1991), o arquivo reúne enunciados provenientes de um mesmo posicionamento e inseparáveis de uma memória e de instituições que lhe conferem legitimidade. Para Foucualt, o arquivo permite pensar as práticas discursivas de uma sociedade.
[3] A expressão interpretação ideológica designa o processo pelo qual a ideologia age e funciona de modo a ‘recrutar’ sujeitos entre os indivíduos. Trata-se de um processo que transforma indivíduos em sujeitos. Na condição de sujeitos, os indivíduos se submetem ao Sujeito (sujeito-Ideologia). A distinção entre sujeito e Sujeito (com “S”) serve para destacar o caráter sobredeterminante da ideologia sobre os indivíduos já interpelados. Assim, a ideologia ou o Sujeito tem o poder de interpelar os indivíduos como sujeitos e de submetê-los às suas orientações valorativas. Por exemplo, a ideologia jurídica reza o respeito às leis e interpela os indivíduos como sujeitos (agentes) que devem seguir essa determinação.
[4] A formação ideológica constitui um conjunto complexo de atividades e representações, que não são nem individuais nem universais, mas que estão ligadas às posições de classes em conflito (Pêcheux & Fuchs 1990, p. 166. apud. Fernandes, 2013, p. 65). Os sentidos dependem do modo como as posições de sujeitos se inscrevem nas formações ideológicas.
[5] REALE, Giovanni. Filosofias helenísticas e Epicurismo. São Paulo: Loyola, 2011.
[6] Deve-se frisar que essa acusação já se inscreve noutra formação discursiva, a qual é determinada por uma formação ideológica diversa.
[7] O pré-construído é a marca da presença, num enunciado, de um discurso anterior. Por isso, esse discurso se opõe ao enunciado que é construído no momento da enunciação. Esse discurso consiste no “já-dito” e por nosso esquecimento sobre quem foi seu enunciador.
[8] O caráter polifônico de todo discurso se deixa facilmente apreender quando, ao longo do texto, Schopenhauer evoca também o nome de Berkeley, a quem foi primeiro a formular aquela verdade.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

"O conhecimento é uma chaga para a vida, enquanto a consciência é uma ferida aberta no âmago da vida" (Cioran)

                            

          A filosofia do desespero: o Nada e o Indivíduo [1]


Apresentação e Justificação

Inscrevendo-se no lugar de encontro entre a filosofia trágica e a filosofia pessimista, este projeto vincula-se ao programa de pesquisa em cujo escopo repousa a questão da inscrição do sagrado no pensamento filosófico contemporâneo, reconhecidamente afetado pelo niilismo, que será posicionado, no próprio trâmite investigativo, em cotejo com a metafísica cristã. Nosso intento consiste em investigar o modo como a hierofania (manifestação do sagrado) se inscreve no pensamento dos filósofos Sören Kierkegaard (1813-1855) e Emil Cioran (1911-1995), dois expoentes do que podemos chamar de filosofia do desespero. O instrumental conceitual de que nos serviremos para empreender nossa investigação será fornecido por Nietzsche e Heidegger, filósofos que, como patenteia Cabral (2014), abrem caminho para pensar a inscrição do sagrado na experiência niilista que profundamente marca a vida e o pensamento filosófico contemporâneos. A Nietzsche tomaremos os termos vontade de poder, diosinio, eterno retorno e além-do-homem, os quais, a despeito de suas especificidades semânticas, se enfileiram num campo hermenêutico que sustenta sua filosofia, enquanto filosofia de afirmação da vida. Todos esses termos dão testemunho do esforço empreendido pelo filósofo para superar o niilismo, cujas raízes ontológicas podem ser compreendidas pela consideração da questão da morte de Deus. Já em Heidegger, na medida em que a questão da reinscrição do sagrado se articula à verdade do acontecimento do ser enquanto tal, estaremos interessados em acompanhá-lo no percurso de seu método fenomenológico-hermenêutico, que lhe serviu para investigar a vida fática do ser aí humano. De modo algum, temos a pretensão, de resto infactível, de recobrir toda a extensão da analítica heideggeriana. Estaremos, por isso, interessados em, partindo do seu apelo a que se retome a questão do Ser em geral, acompanhá-lo em sua análise do Dasein (ser-no-mundo), naquilo que ela nos aproveita para a investigação do modo como o sagrado se inscreve e se ressignifica num pensamento que pensa o ser-no-mundo  a partir do lugar do desespero.
Urge dizer que a primeira questão que se nos apresentou de modo premente, antes mesmo de nos pormos a redigir este projeto, e que acena ao primeiro e fundamental desafio, consiste em como pensar a hierofania no interior de um pensamento filosófico que se faz na relação de um eu desesperado com um mundo esvaziado de qualquer sentido orientador. Não menos urgente é assinalar a importância que terá o conceito de modo de ser em nossa pesquisa. Nesse tocante, nossa investigação se norteará pela hipótese segundo a qual o niilismo, sobre o qual discorreremos mais adiante, enquanto acontecimento histórico e estrutural, foi decisivo para a produção do modo de ser próprio do homem contemporâneo: o homem desesperado. Daí a pertinência da questão sobre como é possível pensar a reinscrição do sagrado nessa existência desesperada.


  1. O Niilismo e a Morte de Deus

1. 1. O Niilismo como princípio de determinação

Principiamos com a observação de que, segundo Cabral (2014, p. 12)[2], o niilismo é um princípio de determinação da história ocidental. A morte de Deus, que é uma conjuntura do nosso tempo, por seu turno, revela a positividade do niilismo. Citemos o autor: o niilismo “é o acontecimento fundamental de nossa história atual” (p.16). Não perdemos de vista, com base em Cabral, o fato de que o niilismo não pode ser pensado reducionalmente em termos de deteriorização dos antigos princípios vinculativos (p. 23). Ainda segundo Cabral (p. 25), a caracterização negativa do niilismo que toma como causas os sintomas, quais sejam, “negação da instituição familiar, dissolução dos paradigmas políticos, rejeição da autoridade dos antigos saberes”, remonta ao romance do escritor russo Ivan Turguêniev.

“As interpretações hodiernas se mostraram insuficientes, pensando o niilismo como perda dos princípios vinculativos da tradição, e as interpretações não se preocupam em questionar a condição de possibilidade dessa perda. Sintomatológicas, elas gestaram diversas estratégias nostálgicas e remoralizadoras (...). Trata-se de assumir o niilismo como conjuntura atual do Ocidente e reconduzi-lo à sua condição de possibilidade” (Cabral, 2014, p. 26)


No esforço por repensar o niilismo, é indispensável, portanto, trazer à tona, na investigação, suas raízes ontológicas. O niilismo não se reduz às suas manifestações culturais. O que é preciso investigar é o lugar de determinação de sua essência.
A compreensão do niilismo como um fenômeno com raízes ontológicas torna razoável nossa hipótese de que ele contribui decisivamente para “produzir” um modo de ser característico do homem pós-moderno[3]: o modo de ser desesperado. A estrutura ontológica do mundo é abalada. O mundo não é mais a casa, o lar em que se encontra o homem. O mundo não mais se apresenta como um campo de sentidos sólidos, garantidos por uma heteronomia. A relação entre o homem e o mundo sofre uma irreparável fissura, através da qual irrompe no ser do homem o desespero. Essa relação entre o homem e o mundo passa a ser uma relação desesperada, uma relação em que o homem experiencia um excruciante abandono. Tome-se o que entendemos por “mundo”.
Note-se, de inicio, que sem linguagem, não há psiquismo, mas tão-somente processos fisiológicos, porquanto o que define o conteúdo da consciência são fatores sociais. A consciência se constitui do conjunto dos discursos que o indivíduo interioriza ao longo de sua vida. O homem aprende a compreender o mundo pelos discursos que interioriza e, na maior parte do tempo, os reproduz em sua fala.
O que chamamos de mundo humano não é somente a totalidade das coisas existentes como dadas à experiência sensorial humana. O conceito de mundo não se reduz, evidentemente, à noção de planeta em que habitamos.
O que é, então, o mundo? Num primeiro momento, realçando a importância da dimensão do simbólico na definição de “mundo”, podemos dizer que o mundo é um campo experiencial entretecido de significados em relação ao qual se constitui o homem e onde ele se conhece. O mundo só existe para o homem, porque é apenas para ele que esse mundo pode ser nomeado. O mundo é tudo aquilo que pode ser dito; é a totalidade ordenada passível de ser nomeada, de modo que as coisas só podem existir para uma consciência humana na medida em que são passíveis de receber um nome. Mas o vocábulo “coisas” designa não só os objetos materiais, acessíveis à nossa experiência sensível, mas também as entidades mentais, como ideias, sentimentos, entes imaginários, etc.
Não há existência possível para o homem fora da dimensão simbólica: tudo que existe para o homem tem um nome. Aquilo que não tem nome, em última instância, não existe, tanto no mundo exterior quanto no mundo interior da mente. O que não tem nome não pode ser pensado; e se não pode ser nomeado nem pensado, não existe.
Embora a linguagem verbal seja o sistema fundamental de criação e significação do mundo – a base fundamental da cultura e da sociedade -, não ignoramos a existência de outras formas de linguagem, como a da matemática, a das artes, as gestuais, etc. Aliás, a linguagem corporal é parte constitutiva do processo de produção de nossas interações verbais. Quando falamos, fazemos gestos com as mãos, revelamos expressões faciais, por exemplo, franzindo as sobrancelhas quando não concordamos com o que nos dizem, etc. As expressões de nosso corpo estão em sintonia com o significado de nossas expressões linguísticas. Não franzimos as sobrancelhas ao mesmo tempo em que demonstramos verbalmente contentamento. Franzir as sobrancelhas pode sinalizar reprovação e é de esperar que se acompanhe de expressões linguísticas que demonstrem reprovação ou insatisfação.
O mundo humano é também um gigantesco acervo de conceitos e conhecimentos. Quanto mais palavras conhecemos, quanto mais conceitos conseguimos articular, maior será o nosso mundo, maior é a extensão e alcance de nossa consciência. A extensão de nossa linguagem é proporcional à extensão do conhecimento que temos do mundo.
Num segundo momento, devemos reconhecer que estamos ativamente envolvidos com o mundo; tanto o mundo como as coisas são então percebidos como dotados de significado em função desse envolvimento ativo. A objetividade do mundo deriva de nossa experiência subjetiva com ele. Essa experiência subjetiva é primária. Os nossos processos cognitivos têm por base mesma a percepção e nossas capacidades sensório-motoras. Nossa cognição resulta dessas capacidades e de nossas ações no mundo.
O Dasein é sempre um ser interessado no mundo. O significado das coisas deriva do nosso interesse nelas, e disso resulta o caráter de nosso envolvimento com elas. Naturalmente, nosso envolvimento com o mundo não é tão-somente intelectual ou teórico, mas também emocional, prático, estético, imaginário, etc.
Nossa experiência é sempre um mundo pleno de significados. O mundo que um indivíduo percebe é, em certo sentido, o seu próprio mundo, diferente do mundo percebido por outro indivíduo. Esse mundo próprio é um mundo significativo e os significados que têm são aqueles que o indivíduo percebe.
Uma vez que o mundo é o horizonte a partir do qual é possível a experiência humana, o mundo não se reduz ao meu próprio mundo. O mundo e as coisas que nele encontro têm uma propriedade que independe de meus desejos e de meus interesses, de modo que grande parte dos significados das coisas que nele se topam são significados que encontro no mundo. A ideia de mundo como totalidade de significados implica a assunção de que as coisas só ganham significado na sua relação com outras coisas e seus significados, no horizonte da totalidade do mundo.
Finalmente, o sujeito, que não existe senão no mundo e em sua relação ativa com o mundo, é sempre sujeito que age sobre o mundo e sofre dele uma ação. Esse sujeito não se identifica com uma consciência abstrata, mas é sujeito corporificado. A experiência que temos do mundo tem como base nosso corpo: o mundo não é só objeto de reflexão e de interpretação; é mundo que experimentamos com o corpo, ao qual respondemos subjetivamente com o corpo. Em última instância,  o mundo, antes de ser mundo que compreendemos, é mundo que sentimos.
Com vistas a compreender melhor a dimensão do abalo niilista, ponderemos, brevemente, sobre o significado de existir. Existir é, decerto, mais do que o viver biológico. Se os animais são, se a planta é ( em-si, segundo Sartre), o homem é ser para-si, ao que nós acrescentaríamos, ser-com. Existir é um movimento relacional com o sentido, que é seu fundamento. Para o homem, existir é estar consciente da relação com o em-si. A existência do para si (a consciência humana), dirá Sartre, é liberdade e transcendência, pois que nega sua facticidade tanto quanto os objetos. O homem existe sabendo o que não é. E a relação com o sentido é sempre de abertura para um além de sua facticidade, de sua condição natural. O sentido é lugar de transcendência do homem em relação a essa condição, que não pode negar completamente, é claro (não pode deixar de ser finito), mas que lhe permite continuar a existir na condição de ser-para-a-morte (Heidegger). Ora, se o Dasein é constitutivamente um ser-para-a-morte, se a morte é sua possibilidade mais autêntica, se essa condição é fonte de angústia, não pode o homem abrir mão do sentido, de existir tecendo sentido. Se existir é correr para a morte inevitável; se, como notara Durkheim, a sociedade é um bando de homens que caminha em direção à morte inevitável, o homem está condenado, ao longo dessa corrida, a produzir sentidos, a tecer de significados as malhas de sua existência.
Um exemplo extremamente interessante que ilustra a indispensabilidade do sentido para o existir humano é o fenômeno do suicídio.  É um truísmo dizer que somente os seres humanos são capazes de se suicidar, mas o que daí se segue tem importância filosófica. O homem é o único ser que, deliberadamente, pode dar cabo de sua própria vida e não deixa de ser espantoso, para muitas pessoas, que alguém que goze de perfeita saúde  possa se matar. É possível que as razões para explicar o suicídio variem bastante, mas vistas em conjunto, de uma perspectiva filosófica, elas indicam a percepção pelo indivíduo da absurdidade de sua existência. O suicídio também ajuda-nos a ver a importância da dimensão do sentido para a própria conservação da existência. O suicídio parece testemunhar em favor do fato de que, para o ser humano, a manutenção do viver é dependente de sua coerência simbólica. Pessoas se matam porque a vida deixou de fazer sentido para elas. O niilismo dilui o enraizamento ontológico do homem no mundo, de modo que o homem se sente existindo num vácuo que lhe inspira terror.
Tomemos, agora, a importância do anúncio da morte de Deus. Novamente é Cabral (p. 26) que nos adverte de que a questão da morte de Deus, longe de servir à caracterização definitiva do niilismo, constitui o caminho para a compreensão de suas raízes ontológicas.
É claro que o niilismo exibe um caráter histórico, mas apenas na medida em que marca a presentidade de um processo histórico. O niilismo não só é “um princípio constitutivo de nosso presente histórico”, como também “vigora como determinante do desdobramento de nosso tempo” (p. 27). O niilismo é estrutural, e o é porquanto não se reduz às suas manifestações culturais, mas “acomete o modo de determinação do mundo histórico que é o nosso” (p. 27).



2. O niilismo, segundo Heidegger

Heidegger se lançou à investigação fenomenológica do niilismo, tendo em vista a descrição de suas raízes históricas e mais profundas. Para tanto, situou sua análise no lugar de abertura do ser, na ‘clareira’ (Litchung) do próprio ser.  É este o lugar de abertura de revelação-ocultamento do ser ao homem, que caracteriza a história do pensamento ocidental.
O homem ocidental experiencia o ente que se lhe apresenta de diversas formas, ao longo do tempo: algo gerado pela natureza ou artefato, criação divina, coisa extensa, objeto, matéria submetida à análise, à prova e à pesquisa cientificamente orientada. Vê-se, pois, que o “ser do ente” é algo que se apresenta cada vez de um modo diferente.
Heidegger observa, no entanto, que o homem, cada vez em que se debruça sobre a compreensão do que são os entes em seu ser, ele transcende o plano dos entes. Essa transcendência é metafísica. A metafísica é, portanto, para o homem ocidental, o modo fundamental de compreensão do ser do ente. A metafísica acontece no “apresentar-se” do ente, de uma certa forma, ao homem que se ocupa de compreendê-lo.
Quando o ente é definitivamente compreendido e determinado num dado momento histórico, por exemplo, como vontade de poder ou como trabalho, quando o que mais importa é se apropriar do ente como fonte possível de energia como coisa a serviço do trabalho técnico-científico, a abertura originária do ente, isto é, seu ser suscetível de diferentes compreensões se fecha. Disso resulta não só o esquecimento do ser, como também o esquecimento desse esquecimento. É justamente essas duas formas de esquecimento que caracteriza, para Heidegger, o niilismo. O niilismo, na visão heideggeriana, é esta situação em que “não há mais nada” do ser – donde a necessidade premente de retomar a pergunta sobre a essência do ser.



3. A morte de Deus como imperativo histórico

Em primeiro lugar, é premente considerar a pergunta “o que é Deus, para Nietzsche?”. Para Nietzsche, Deus congrega em si diversos conceitos metafísicos tradicionais: o ser, o incondicional, o Bem, o verdadeiro, o perfeito. Deus, nesse sentido, dota o devir de um estrutura de sentido sob uma pluralidade de elementos aparentemente caóticos (p. 29). Mas Deus também representa o princípio que articula e determina as diversas ações humanas, mormente em razão da influência do pensamento medieval cristão. Segundo Cabral (ib.id.), “o conceito de Deus aparece também como sentido existencial para as ações e, assim, justifica o devir teórico e praticamente”.
O que sucedeu, então? O acontecimento histórico da morte de Deus acarretou no homem o sentimento de abandono, visto que esse acontecimento significou a dissolução da estrutura sólida de caráter metafísico-existencial (p. 29-30). Enfatize-se que Deus encerrava em si o princípio metafísico e o sentido último da existência. Daí se segue que Deus era o signo que permitia pensar o absoluto, ter acesso a ele. Deus também representava a instância de estruturação e normatização das ações e dos pensamentos. Sua morte, portanto, assinala o desmoronamento daquele sentido último estruturante da existência. Sua morte impede o acesso ao absoluto ou ao “em si”, já que estes não mais existem. O devir carece de fundamento ontológico, e as ações não mais encontram apoio em um sentido último e absoluto.

“(...) O acontecimento da morte de Deus, que nada mais é do que um imperativo histórico de nosso tempo, permite a abertura de um novo campo hermenêutico que se diferencia do pensamento metafísico, por não se desdobrar com vistas ao em si. Isso porque a morte de Deus deflagra, dentre outras coisas (...), a instabilidade da perpetuação das metanarrativas ocidentais, o que produz o descerramento de um horizonte interpretativo não mais marcado pelo gesto metafísico de busca por fundamentos últimos ou absolutos dos entes e do mundo” (Cabral, 2014, p. 30, grifos nossos).


É oportuno retomar aqui a concepção do sentido como algo em aberto com vistas a compreender o que se pode concluir dessa abertura de um novo campo hermenêutico que se distingue do pensamento metafísico. Ora, o pensamento metafísico opera sempre com base na crença na unicidade do sentido e no controle sobre o sentido. Esse pensamento, na sua modalidade religiosa, se estrutura num discurso autoritário, onde mais expressamente se manifesta a dominação pelo uso da palavra. Por outro lado, o campo hermenêutico que se abre, com o imperativo da morte de Deus, não é mais coagido por um “em si” que sustenta a unicidade do sentido. Sua abertura é, pois, um alargamento do horizonte de possibilidades de sentido.



4. O suicídio

Num horizonte pessimista, o suicídio aparece como uma questão premente. Afinal, é razoável supor que um pessimismo exacerbado pode culminar com a própria negação da vida num domínio não mais teórico, mas prático. Camus – é oportuno lembrar – foi assertivo ao considerar o suicídio, em seu O Mito de Sísifo (2009).  Logo de início, ele escreve: “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia” (p. 17). De modo algum, estamos a sugerir que todo pessimismo filosófico traz em germe o desejo pela consumação do suicídio, tampouco que os filósofos denominados de pessimistas recomendam como solução última para o drama da existência, para a absurdidade do homem, o suicídio. Notemos que Schopenhauer afirma ser o suicídio um ato insensato. Vale acompanhar a posição de Schopenhauer nesse tocante, a qual será apresentada aqui de modo bastante esquemático. Para Schopenhauer, o suicídio é o aniquilamento do indivíduo, enquanto fenômeno, e não da vontade. O que se nega no suicídio não são os males da vida, mas sim as alegrias. O suicida deseja a vida, quer a vida. Sua insatisfação não decorre senão das contradições de que está impregnada a vida. Prossegue Schopenhauer, argumentando que, ao destruir o corpo, o suicida renuncia à vida, sem jamais negar o querer-viver. O suicida deseja a vida e até aceitaria a existência, se ela não fosse continuamente marcada por circunstâncias infelizes e penosas.
Ocorre que o suicídio – e aqui reside um aspecto importante para a nossa argumentação – se nos revela a contradição do querer-viver consigo mesmo. No grau mais elevado da objetivação da vontade, isto é, no indivíduo humano, essa contradição se manifesta com uma força poderosa: o indivíduo declara guerra contra si mesmo; ele quer ardorosamente a vida ao mesmo tempo em que, com ímpeto, se lança à tarefa de remover as adversidades; mas a vontade individual prefere suprimir o corpo a deixar-se sucumbir à dor. Schopenhauer concluirá dando-nos a conhecer a seguinte condição paradoxal: o suicida cessa de viver porque não pode deixar de querer. Não interessa nos deter nas consequências envolvidas na tentativa de Schopenhauer rejeitar o suicídio como solução para a dor de existir. Parece-nos, em todo caso, que Schopenhauer desloca o problema do suicídio da dramaticidade da existência individual (diríamos, com Merleau-Ponty, da corporeidade do vivido) para o domínio do em-si indestrutível e abstrato, de uma Vontade que não carece nunca de fenômenos. Schopenhauer parece recomendar uma resignação do indivíduo à essência da vontade, que é a dor, como um caminho para a salvação que deseja e que, ao contrário do que crê, não alcançaria com a morte, pois esta, eliminando o fenômeno, permite que a Vontade se afirme. A necessidade acompanha o aparecimento da vontade, e o indivíduo é impotente para suprimi-la, e ilude-se ao supor que o faz pondo termo a sua vida corporal. Há uma série de pressupostos que, forçosamente, silenciamos, como, por exemplo, o de que, para Schopenhauer, a morte não é aniquilação, o de que o suicídio não nos oferece o não-ser, o de que o suicídio constitui ele mesmo um obstáculo à redenção, etc.
É preciso abandonar, no entanto, o curso dessas reflexões para assinalar o que, deveras, concerne à nossa argumentação: no horizonte do pessimismo filosófico, a problematicidade do suicídio parece suscitar a necessidade da consideração da reinscrição do sagrado como uma presença silenciosa que desencoraja a consumação desse ato ao qual a vida debilitada no desespero se inclina. Faz-se mister uma observação aqui: acreditamos poder encontrar em Kierkegaard – como esperamos fique claro mais adiante – um terreno seguro em que nos movimentaremos para pensar a questão do desespero; mas, na medida em que a questão da reinscrição do sagrado deverá ser pensada à luz de uma filosofia do desespero que não se orienta por nenhuma promessa metafísica, ou melhor, de uma filosofia em cujo horizonte desapareceu o lugar de Outro transcendente que responde pelo sentido último, segue-se daí que o desespero deverá ser interpretado como desesperança, isto é, como perda profunda e irremediável de qualquer esperança numa redenção por uma transcendência. O estado de desespero é, portanto, aquele experienciado por quem já não aguarda, não espera nada mais além do real, por quem orienta sua vida unicamente pela imanência. O desespero, quando consumado, pode, no entanto, ser alegre e ativo (ativo porque liberta o homem da passividade suposta na esperança). Estamos, neste momento, pensando com Spinoza, ao definir a alegria, em sua Ética (2011: 141), como “a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior”. Trata-se de encaminhar uma reflexão sobre o desespero em que ele se revele não como mera perda e abandono, mas como estado em que o homem, não sem esforço, não sem enfrentamento de si mesmo, quer realizar a sua perfeição. Esse estado de perfeição, Spinoza chamou de beatitude (p. 232).
Diferentemente do que sucede em Kierkegaard, em cujo pensamento ainda se vê Deus como a instância ontológica responsável pela origem do sentido existencial em relação à qual o homem se esforça por realizar a síntese entre o finito (corpo) e a alma (infinta), em Cioran, essa instância dá lugar ao Nada. Cioran pergunta-se sobre o modo como pode encontrar sentido em seus tormentos, o que sugere que o sentido pudesse de algum modo ser descoberto nas regiões desérticas e aterradoras do seu ser. A intuição do Nada e a evidência do sofrimento elidem a possibilidade do sentido. O sentido se põe então como um problema para a existência desesperada: não se trata mais de buscar sentido, esperar um sentido já posto, mas de produzi-lo, construí-lo. É o homem (o indivíduo humano) que precisa construir sentido em face de um universo indiferente, infinito e escuro. Do que se expôs até aqui, segue-se a urgência da questão: o que há na condição humana desesperada que a move em seu desespero? O que a faz, apesar do desespero, prosseguir em sua marcha, de resto, absurda? A nossa hipótese nos encaminha à busca por uma resposta mediante a especulação sobre a reinscrição do sagrado.





[1] Este texto é parte do miniprojeto Niilismo e Teofania: a reinscrição do sagrado na filosofia do desespero : uma abordagem de Kierkegaard e Cioran, submetido à FAPERJ como requisito para obtenção de uma bolsa de iniciação à pesquisa (UERJ).
[2] CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o deus não-cristão, vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014.
 [3] LYTOARD, J.F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 2008.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

"Toda existência é trágica na medida em que ela é vivida antes de ser pensada" (Rosset)

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             O trágico como anticonceito filosófico
            Prelúdios de uma sabedoria trágica


Explicar, do latim explicare (‘tornar inteligível’, ‘interpretar’, ‘justificar’) – esta é a tarefa a que me devoto com o intento de oferecer-me não só a oportunidade de alguma fruição de prazer mais gratificante, porque prolongado, como também reanimar o diálogo, prematuramente interrompido, com um colega que, tanto quanto eu, aprecia o curso criativo das conversações filosóficas.  É imprescindível dizer que este meu texto não pretende ser expressão de qualquer ensinamento. Cuido-me capaz de ensinar alguma coisa apenas na área do conhecimento em que me especializei e em que, portanto, obtive uma competência satisfatória. Não obstante, nesse domínio, estou continuamente aprendendo, visto que, no exercício do ensino, há sempre aprendizagem. Segue-se daí que ensinar é aprender não só o conteúdo ensinável, mas também aprender a ensinar o que é passível de ser ensinado.
Estando claro que nada posso ensinar, no domínio da filosofia (sobretudo, porque a filosofia não é ensinável), espero, portanto, que meu principal interlocutor, ao dar-se o trabalho de ler este texto, tome-o como um espaço necessariamente dialógico. Com a produção deste texto, ao longo da qual pretendo explicar minha escolha filosófica – meu modo de viver – espero descerrar um horizonte à luz do qual diálogos ulteriores possam ser possíveis e fecundos.
O momento em que se deu o estancamento do fio dialógico que dava consistência ao intercurso de nossas reflexões foi justamente o momento em que meu interlocutor rejeitou o caráter trágico da existência. A conversa foi entabulada com o meu interesse de consultar meu interlocutor sobre o proveito do exercício filosófico. Toda resposta que se elabore na tentativa de demonstrar que há algum valor neste exercício, ou que dele se pode extrair um proveito que não encontra par em qualquer outra forma de reflexão/ atividade pressupõe uma concepção do que é filosofia. A questão “o que é filosofia” é ela mesma problematizada pela própria filosofia; e são inúmeras as respostas oferecidas a ela. E todo aquele que se aproxima da filosofia, que a ela dedica seu tempo e sua atenção, terá, mais cedo ou mais tarde, de prestar esclarecimentos sobre o que entende por filosofia. Quero dizer que o exercício filosófico começa por uma compreensão das respostas oferecidas pela tradição à questão “o que é filosofia” num processo que envolve discussão das respostas e adoção por parte do iniciado na filosofia de uma concepção de filosofia (que não significa, necessariamente, mera apropriação) com base na qual uma forma de elaboração de pensamento filosófico que lhe seja própria possa ser trazida à luz.
Parece-me que é parte da maturidade filosófica de quem exercita a filosofia e se exercita, enquanto existente, na filosofia, a escolha de uma orientação filosófica que melhor testemunhará seu modo de viver. O filósofo não é apenas aquele que pensa e constrói sistemas; mas é, em essência, aquele que sabe viver e morrer em consonância com o seu sistema. Por conseguinte, o exercício da reflexão filosófica, a atividade própria do filósofo, se caracteriza, fundamentalmente, por uma perfeita harmonia entre o seu sistema de ideias e seu sistema de vida. Para os antigos, a filosofia é um modo de ser, uma escolha de vida. Originalmente, portanto, a filosofia é uma prática de vida destinada a cunhar modos de ser. Aos colegas que junto a mim se dedicam ao estudo acadêmico da filosofia, faço, pois, um apelo para que não se esqueçam jamais do vínculo necessário entre filosofia e modo de viver, para que, atendendo à recomendação de Aristóteles, experienciem a atividade filosófica como um exercício que se deve estender por toda a vida. Apelo, finalmente, para que não duvidem, por um instante sequer, de que a prática da filosofia visa à transformação radical do eu de quem a ela se dedica; no exercício filosófico, não só nossa visão de mundo se transforma, mas também é nossa personalidade que se metamorfoseia.
Evidentemente, a escolha a que não se deve esquivar aquele que pretende viver uma vida filosófica não é possível senão depois do contato com certo conjunto de orientações filosóficas. O contato com essas diversas orientações filosóficas é parte do estudo acadêmico da filosofia. Os estudantes de filosofia só poderão (talvez a maioria) escolher a orientação que melhor expressa uma coerência com seu modo de viver após ter entrado em contato com as diversas orientações filosóficas ao longo do curso de filosofia. Não só após o contato com elas; mas, sobretudo, após o convívio aturado com elas fora da sala de aula.
A escolha de uma orientação filosófica por quem se dedica ao exercício da filosofia constitui uma questão cujos desdobramentos interessam à própria filosofia. Sua pertinência deverá ficar aqui, no entanto, apenas sugerida e ensombrecida, porquanto não é sobre ela que estendo minha preocupação neste texto. Malgrado a necessidade de abandonar a questão, neste estágio de minhas reflexões, não posso silenciar sobre o fato de que meu encontro com a filosofia, que se deu há dez anos, quando do ingresso no mestrado em Estudos da Linguagem na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), foi e continua sendo profundamente marcado pelo lugar de tangência entre a filosofia trágica e a filosofia pessimista.
No esforço por reinstituir um espaço dialógico com meu interlocutor, devo preveni-lo de que a exposição que faço do tema do trágico como elemento caracterizador de uma orientação filosófica, denominada de filosofia trágica se desenvolverá não sem fraturas no tratamento das questões implicadas na compreensão da filosofia trágica. Ademais, a cada vez em que dou um investimento verbal à abordagem do tema, instauram-se, por força da natureza da linguagem, espaços de silenciamentos. Tal é a condição fundante da própria possibilidade de haver sentidos. Por maior que seja a extensão de um texto, por mais exaustivo que seja o tratamento dispensado a um objeto de pensamento, jamais é possível esgotar as possibilidades de dizer, de significar, de produzir sentidos. Será forçoso esclarecer a questão da significatividade do silêncio, por ora, apenas entrevista ao me referir à condição fundante da possibilidade de sentidos. O tema as formas do silêncio é desenvolvido no interior dos estudos da Análise do Discurso pela analista do discurso brasileira Eni Pucinelli Orlandi. Não obstante a limitação ao domínio do discurso, o modo como o tema se desenvolve mobiliza um exercício de pensamento claramente filosófico. Não reside nisso, contudo, o meu interesse por considerá-lo; se o faço, é porque pretendo demonstrar quão ilusória a crença em que, ao dizer, esgotamos as possibilidades de outros dizeres, de outros sentidos. Terminada esta etapa de minha exposição, atacarei o problema que consiste em precisar o que se entende por trágico quando se defende, filosoficamente, a posição segundo a qual a condição de todo ente, particularmente e de modo especial, do ente humano é uma condição trágica. A discussão desse problema envolverá a necessidade de definir a extensão semântica da palavra trágico e a de esclarecer o que faz de um pensamento filosófico um pensamento trágico. Creio em que a suspensão do diálogo com meu colega e interlocutor se deveu menos ao fato de ele ter rejeitado ser a existência constitutivamente trágica do que à suposição nossa de que estávamos de acordo no tocante ao significado da palavra trágico no contexto de nosso diálogo. Não só ele parecia assumir, de antemão, o conteúdo semântico de trágico, como também eu não dispunha das condições necessárias para iluminá-lo, para o que seria indispensável fazer alguma digressão que, possivelmente, nos distanciaria do escopo de nossas reflexões. Numa conversa informal, tal digressão não teria como consequência senão estorvar os próprios participantes.

1. As formas do silêncio

Todo dizer é expressão de uma relação necessária com o não-dizer. Há uma dimensão de silêncio que remete ao caráter da incompletude da linguagem. A incompletude da linguagem se prende ao reconhecimento:
a) da errância dos sentidos (a sua migração);
b) da vontade de um (da unidade, do sentido fixo); do lugar do non sense, o equívoco.

A incompletude da linguagem é o lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível. Portanto, a errância dos sentidos, a vontade de unidade, do sentido fixo, o lugar do non sense, o equívoco e a própria incompletude da linguagem (para a qual voltarei olhares mais adiante, a fim defini-la melhor) estão no cerne do funcionamento da linguagem.
Em seu As formas do silêncio (2007), Orlandi escreve: “As palavras transpiram silêncio” (p. 12). Há, pois, silêncio nas palavras. O silêncio é fundante: ele funda a possibilidade de sentido. O silêncio é um lugar de recuo onde se pode significar, a partir do qual o sentido faz sentido. Novamente, ouçamos Orlandi:

“O silêncio como horizonte, como imanência do sentido (...) aponta-nos que o fora da linguagem não é o nada mas ainda sentido” (p. 13).


O silêncio, pensado em sua historicidade constitutiva, não é ausência de som, mas é um acontecimento que atravessa as palavras, que existe entre elas, que indica que o sentido pode ser sempre outro. As palavras produzem silêncio; o silêncio “fala”; as palavras silenciam (p. 14).
O silêncio garante o movimento de sentidos. Dizemos sempre a partir do silêncio. Cada palavra enunciada “apaga” necessariamente outras palavras. Isso se dá porque o silêncio também é constitutivo do dizer. Assim, observa Orlandi

“O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à interpretação: tudo tem de fazer sentido (qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico” (p. 29-30).


Portanto, o silêncio não é falta. A linguagem é excesso. O silêncio não fala simplesmente; ele significa. No silêncio, o sentido é. (p. 32).

“A linguagem é conjunção significante da existência e é produzida pelo homem para domesticar a significação” (ib.id.).


O silêncio é disperso, e a fala o segmenta, o estrutura. O silêncio é o que torna possível a significação, todo dizer. O silêncio é presença, é “o elemento místico” (Wittgenstein). O sentido do silêncio não deriva do sentido das palavras. Nem o sentido, nem a linguagem são transparentes.
Não se pode não significar. O silêncio se relaciona, necessariamente, com a significação, e a linguagem é o movimento incessante das palavras para o silêncio e do silêncio para as palavras. É necessário insistir em que as palavras estão carregadas de silêncio. Por um lado, não podemos suprimir das palavras o silêncio; por outro lado, não podemos recuperar o silêncio só pela verbalização.
Por fim, retomando-se a noção de incompletude da linguagem, reitere-se que a incompletude é uma característica fundamental da linguagem. O fenômeno da incompletude da linguagem recobre a) o fato de serem diversas as formas de manifestação da linguagem; b) o fato de que o sentido está sempre em aberto; c) o fato de que o texto é multifuncional enquanto objeto simbólico. A incompletude repousa no fato de que o dizer é aberto. A crença numa “palavra final” é efeito de uma ilusão. O dizer não tem um início verificável; e o sentido toma múltiplas direções; está sempre em curso. A incompletude da linguagem decorre, portanto, do fato de que a própria linguagem é categorização dos sentidos do silêncio; é um modo de domesticá-los.
A linguagem também é opaca. A opacidade da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem interpretação. A opacidade ou não-transparência da linguagem consiste também na propriedade de o sentido poder ser sempre outro.
Tendo em vista o exposto, ao procurar aqui dizer o trágico jamais posso ter a pretensão de dizer tudo. Ademais, estando eu preocupado  tão-só em fixar-lhe um horizonte semântico mais preciso, a consideração que dele farei será marcada por fraturas, por rupturas, por saltos que se evitariam num tratamento que se pretendesse minucioso e articulado.

2. O filósofo trágico não é um pessimista

Filósofos como Lucrécio, Montaigne, Pascal e Nietzsche são reconhecidos como filósofos trágicos. A primeira questão que se nos apresenta ao sugerir a possibilidade de uma filosofia trágica consiste em definir o que significa tragédia. Sabe-se que tragédia é um gênero de expressão artística, particularmente marcante na história do teatro. No domínio da arte, a tragédia, segundo alguns teóricos, não recobre apenas adversidades, sofrimentos, iniqüidades, mas, principalmente, uma corajosa resistência ao destino. A tragédia deve, pois, expressar a reação a um evento, e não apenas o evento fatídico em si. Para alguns teóricos, a tragédia começa com a arte, que a vida imita. Com o tempo, o significado da tragédia foi estendido do domínio da arte para a vida, restando aqui um eco da arte, o qual foi silenciado quando a tragédia passou a caracterizar o modo de configuração da própria vida. Atualmente, para a maioria das pessoas, tragédia significa uma ocorrência da vida, caracterizada por dor, sofrimento, infelicidade injustificáveis. Isso, no entanto, não impede vários teóricos de argumentar que, na vida real, não existe tragédia, com base no pressuposto, deveras criticável, segundo o qual, na tragédia, enquanto manifestação artística, é sempre possível revelar o valor que a destruição libera. Segunda essa perspectiva, o sofrimento da vida real é passivo, horrível e indigno; ao contrário, na arte trágica, o sofrimento traz o selo do esplendor heróico da resistência, razão por que a arte é dotada de uma gratificação que falta à vida. Essa perspectiva buscará nos convencer, por exemplo, de que o Holocausto não foi uma tragédia, mas a morte da tragédia. No entanto, assentada na crença de que a tragédia se define por uma resistência heróica às condições adversas, essa perspectiva trai a si mesma, no momento em que não reconhece o fato de que houve uma heróica resistência de alguns judeus ao nazismo; além disso, certamente, muitas pessoas lutam bravamente contra enchentes, doenças, invalidez, genocídio, etc.
Não se pode ignorar o fato de que, a despeito da discrepância entre a tragédia como arte e a tragédia como modo de configuração da vida, grande parte das obras de arte trágica se construiu por meio da suposição segundo a qual a tragédia parece ser uma experiência real e não meramente um fenômeno estético.
Também não devemos perder de vista o fato de que a tragédia, de Hegel a Nietzsche, migrou para a especulação teórica. Desde então, a tragédia passou a ser uma Ideia majestosa, uma forma de contrailuminismo, uma teodiceia, mais do que uma questão de suplicio e aflição.
Na visão trágica de Nietzsche, por exemplo, o mundo é, essencialmente, caótico, ilegível, e o conhecimento trágico necessita da arte para tornar tolerável a própria existência. Esse conhecimento trágico supõe a percepção de que o mundo é desprovido de significado. No respeitante a Pascal, sua crítica ao racionalismo não é uma crítica à razão. Pascal não estava preocupado em denunciar os limites da razão. Na verdade, a crítica ao racionalismo levada a efeito por ele se orientou pelo interesse de fazer ver que o racionalismo deve sua impotência àquilo que se oferece à razão. O que se oferece à razão é, nota Pascal, irremediavelmente indiferente. Não se trata, portanto, para Pascal, de denunciar uma suposta fraqueza da razão, mas de demonstrar que o objeto da razão não é cognoscível. A razão, assim, está apta a conhecer, mas não se lhe apresenta nada para conhecer. A razão não pode pensar como uma natureza a existência, porque esta é uma não-natureza. Natureza aqui designa a constituição do ser cuja existência não resulta nem do acaso, nem da vontade humana. Natureza supõe uma totalidade ordenada. Pascal nega que haja tal totalidade ordenada; para ele, a existência não abriga qualquer razão oculta (lógos), nenhuma estrutura secreta, nenhum princípio do diverso inacessível ao conhecimento humano, em virtude de supostos limites da razão. À luz de tal perspectiva, nem as “verdades” nem os “erros” conduzem a alguma grande consequência filosófica. No tangente às primeiras, elas só acrescentam fatos a fatos; os erros, por sua vez, não estorvam nenhuma verdade. No seu livro Lógica do pior (1989), assinala Rosset:

“Se se busca o que resta de trágico nos cem mil mortos de Hiroxima após a intervenção da interpretação histórica, sociológica, política, militar, que resta? Cem mil mortos, ou seja, um morto como todos os mortos, algo de banal, de cotidiano, de silencioso, enfim, de trágico – desse trágico ao qual o espetáculo das maçãs no jardim convida já, de maneira mais imediata e simples. A morte em si mesma não é a priori trágica: não mais, em todo caso, do que a vida nem do que quer que seja, desde que esse algo resista à interpretação” (p. 65-66).


Esse trecho deve nos levar à compreensão de que o trágico está, por um lado, em toda parte, impregna a cotidianidade; e, por outro lado, é o próprio silêncio, ou seja, resiste a qualquer tentativa de interpretação. Ao se passar do silêncio para o pensamento do trágico, faz-se falar o trágico pela impossibilidade de interpretá-lo.
Considere-se a asserção que constitui o título desta seção: o filósofo trágico não é um pessimista.  É necessário reconhecer duas diferenças básicas entre uma filosofia trágica e uma filosofia pessimista. A primeira diferença diz respeito à suposição de que há “algo” (uma natureza ou o ser). O pessimista supõe que existe algo do qual afirma o caráter insatisfatório. O pessimismo filosófico baseia-se na afirmação do pior, a partir da suposição de uma certa ordem (natureza), de um certo sentido, cujo caráter incoerente não cessa de demonstrar. Para o filósofo pessimista, há uma totalidade ordenada que não pode ser legitimada. Há ordem, mas não há um “ordenador”. Donde se segue que a filosofia do “dado” (a filosofia pessimista) culmina com uma filosofia do absurdo.
Sabe-se que Schopenhauer, sendo um expoente da filosofia pessimista, procurou pensar o mundo por meio da postulação de um “dado”, que chamou de Vontade – uma Vontade cega, ilusória, repetindo-se mecanicamente. Embora desprovida de propósito, a Vontade permite superar o caos do mundo, a fim de lhe revelar sua ordem. Isso significa afastar do horizonte hermenêutico da filosofia pessimista o princípio do acaso.
O pensamento trágico, por sua vez, mantém que o que existe carece de “natureza”, de “ordem”, não é nem ser, nem objeto adequado de pensamento. Na filosofia trágica, não há a condição de possibilidade dos acontecimentos. Só há encontros, ocasiões, que não pressupõem jamais o recurso a qualquer princípio que transcende as perspectivas trágicas da inércia e do acaso. Por conseguinte, a filosofia do trágico é uma filosofia do acaso. O pensamento trágico afirma a insignificância radical de tudo que acontece. Aliás, o pensamento de Pascal, se examinado até as últimas consequências nos levará a uma verdade que se impõe irrecusável – “não sou um ser necessário”. Dizer que não sou um ser necessário significa reconhecer que eu, enquanto existente, poderia nunca ter existido. Em outras palavras, a minha existência não tem uma necessidade que me impede de sentir que eu poderia não ter existido. Não sou um ser necessário afirma correlativamente sou um ser contingente.
Cumpre ainda dizer – e, fazendo-o, silencio muita coisa -, que o pensamento trágico é aprobatório, embora não deixe de considerar o seu contrário, que é o suicídio. Aqui está a segunda diferença entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista: o pensamento trágico assente à existência; o pessimista, por outro lado, reconhecendo que a ordenação do mundo é má, não pode aprovar a existência.
A aprovação é o único ato disponível ao sujeito da ação, isto é, ao homem. Ou ele se solidariza com a sua viagem à semelhança de um passageiro de avião de uma grande empresa aérea, que não tem acesso aos comandos da direção (Pascal), ou a recusa pelo suicídio. No pensamento trágico, a aprovação é um privilégio justamente por seu caráter incompreensível e injustificável. O homem não carece de nada; e toda a alegria de viver é irracional. Essa alegria é experienciada no cotidiano sem que seja possível justificá-la. O homem é excesso; por isso o espanto do filósofo trágico: seu maravilhamento na alegria e na dor.
Não se deve estabelecer uma distinção absoluta entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista, se consideramos que tanto o primeiro quanto o segundo são duas lógicas do pior. Mas a lógica do pior de que é expressão o pensamento pessimista não tem relação com o pior da lógica trágica. No pensamento trágico, afirma-se a impossibilidade de um dado enquanto natureza constituída; no pensamento pessimista, há uma ordem já dada, reconhecida.
A título de conclusão, sem pressupor, no entanto, que esteja suficientemente esclarecida a significatividade da visão trágica da existência, insisto em que a verdade a que nos quer conduzir o pensamento trágico consiste em ver o mundo como obra do acaso ou do destino. Sendo obra do acaso, o mundo carece de uma natureza, isto é, de um princípio estruturador, ordenador, e a vida não é mais que um derivado, entre outros, da realidade fundamental da morte. É oportuno tornar clara uma relação que, embora aparentemente inusitada, elucida o horizonte a partir do qual o “drama ontológico” revelado pelo pensamento trágico é constitutivo da ideia de trágico. Trata-se de evidenciar a relação entre a festa e o trágico.
Em certo sentido, a relação entre a festa e o trágico pode ser estabelecida pelo fato de o pensamento trágico ser uma experiência filosófica de aprovação em função de uma busca do pior.  Ademais, essa relação se torna possível quando levamos em conta o acaso como regra de exceção e princípio da festa (Rosset, 1989, p. 129). Já no sentido que toca à constituição da própria lógica do pior, de que é expressão o pensamento trágico, a relação entre o trágico e a festa pode ser estabelecida se compreendemos que, sendo o mundo obra do acaso, se, por isso mesmo, o mundo carece de uma “natureza” (ou ser, essência), resta-nos senão viver num estado de indiferença em relação a tudo o que acontece e existe. Essa indiferença, contudo, não é a indiferença do tédio, estado em que esperamos o acaso com certeza, mas a indiferença que consiste em nada esperar, já que tudo é acaso. Indiferença da festa, portanto – se tudo é acaso, o mundo é uma festa. O mundo da festa é o mundo da exceção (ausência de regras ontologicamente fixadas). Nele, o acaso sobrevém sempre. Nele, o que acontece, o que existe apresenta as características da festa: irrupções inesperadas, excepcionais, irreproduzíveis; ocasiões que se apresentam uma única vez, num lugar e para uma pessoa. Ensinamento trágico: teoria do kairós (o tempo oportuno). Tudo que acontece deve ser apreendido no único momento possível. Cada instante vivido tem as características do jogo, da festa, do júbilo.
O pensamento trágico, como vimos, rejeitando a ideia de natureza, afirma ser o mundo obra do acaso. O acaso que tem em vista o pensamento trágico é o acaso original ou constituinte. O acaso é original porque recusa a ideia de natureza na origem de sua possibilidade, isto é, nesse caso, recusa a existência de uma natureza, a saber, uma totalidade ordenada, da qual irromperia, num tempo e lugar determinados, o acaso; ele é constituinte, porque é origem produtora de tudo que pode acontecer e que se reconhece sob o nome de natureza. O acaso original, portanto, é anterior a todas as formas de existência e impregna todo o modo de configuração vital.