segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Forma e função em Linguagem

                            
                   


                        Os conceitos de forma e função
                              nos estudos linguísticos


Este texto integra uma coletânea devotada ao tratamento de diversos temas atinentes à linguagem. Ele fora escrito há, aproximadamente, 8 anos, período em que eu ainda me dedicava aos estudos de mestrado e estava demasiado interessado na articulação da teoria com a prática de ensino da língua portuguesa. Este texto, readaptado, destina-se, pois, aos professores de português, mormente aos que atuam no nível básico de ensino.
Constitui objetivo desta exposição esclarecer os conceitos de forma e de função no quadro dos estudos linguísticos. O pressuposto que sustenta todo o desenvolvimento desta exposição consiste na crença de que é indispensável à formação do professor de português o conhecimento tanto teórico quanto operacional daqueles conceitos.

a) Forma

Em primeiro lugar, vou demonstrar como o conceito de forma é empregado na literatura linguística de um modo geral. Ele apresenta-se com relativa variação semântica nos modelos de análise linguística. Destaco os seguintes sentidos atribuídos, normalmente, ao termo forma:

1) Na esteira do estruturalismo saussuriano, a palavra forma é empregada para designar a teia de relações entre as unidades na cadeia sintagmática.

A título de exemplificação, trago à cena a imagem do esqueleto ósseo. Da relação sistemática entre os ossos resulta o esqueleto (a forma), que é, por isso, o conjunto estruturado dos ossos do corpo humano. Forma, na tradição saussuriana, é sinônimo de estrutura (embora o linguista não tenha utilizado esse termo, preferindo o termo sistema). Ademais, urge ter em conta que forma opõe-se, nessa tradição, a substância. A substância constitui o conjunto desarticulado de elementos do sistema. Os elementos “nós”, “a”, “a”, “praia”, “fomos” são cada um uma substância; da relação resultante desses elementos no eixo sintagmático resulta a forma. Veja-se a frase abaixo:

(1) Nós fomos à praia.


Cada um dos elementos da cadeia sintagmática é uma substância; a disposição sistemática desses elementos constitui a forma. Creio ser possível inferir que uma frase só é dotada de forma se estiver organizada segundo certos padrões previstos pela gramática da língua. Comparem-se os dois exemplos abaixo:

(2) O menino chutou a bola.
(3) A chutou bola o menino.

Enquanto falantes nativos de português, sabemos, intuitivamente, que (2) é aceitável, mas (3) não o é. Reconhecemos que (2) é dotado de uma estrutura, ou seja, de uma forma que confere ao enunciado significado e inteligibilidade, ao passo que (3) é desprovido de qualquer organização prevista pela gramática da língua. A forma de (2) pode ser descrita utilizando as seguintes notações, unidas por hífens: SN – V – SN. Leia-se “SN” como sintagma nominal; V como verbo. A estrutura SN – V – SN constitui um padrão previsto pela gramática do português. Qualquer frase formada com base nesse padrão é dotada de forma.
O caso de (3) ilustra uma sequência de palavras desprovida de uma forma ou estrutura. Por isso, sequer se trata de uma frase em português. Até aqui, portanto, forma designa o conjunto resultante da articulação das unidades linguísticas na cadeia sintagmática. Forma implica organização padronizada na cadeia de fala. Fica excluída do escopo semântico de forma qualquer referência a uma coerência semântica.
No entanto, se (3) fosse reformulada como (3a),

(3a) A bola chutou o menino.


poderíamos dizer que se trata de uma construção dotada de forma? A resposta é sim. Se examinarmos (3a), concluiremos que a construção foi também formada com base no padrão estrutural: SN – V – SN. Todavia, apenas (3) encontra repercussão linguística no espírito do falante.
Castelar de Carvalho, no entanto, entende que o conceito de forma deve compreender a articulação de uma “coerência sintática” (uma espécie de sintaxe mental) com uma “coerência semântica” (um modelo de organização conceptual determinado na/pela língua). Se acompanharmos Carvalho, deveremos, forçosamente, concluir que (3a) não é dotado de forma, porque lhe falta a contraparte da coerência semântica. Não se trata de determinar qual das perspectivas é a correta; ambas as perspectivas são válidas. A primeira delas – situando-se na tradição estruturalista saussuriana – excluí do domínio de forma a referência à estruturação semântica. Forma, nesse caso, reduz-se à estruturação sintática (ou melhor, sintagmática). Para Carvalho, no entanto, forma deve abrigar a estruturação semântica. Essa estruturação pode ser formalizada para (3) como: AGENTE – V-ação – PACIENTE.
Cumpre ainda distinguir entre construção e forma. Se a forma é a estrutura resultante da disposição sistemática das unidades linguísticas, a construção é uma substância dotada de forma. Assim, por exemplo, “A casa de vidro” é uma construção, dotada da seguinte forma:

                                      SN
                           DET           MOD


Leia-se DET como determinante e MOD como modificador.


2) Forma recobre a análise que se vale de tudo quanto prescinda do significado; opõe-se, nesse sentido, ao plano do conteúdo. Equivale, pois, ao plano da expressão. Agora, forma - e seu adjetivo correlato formal - caracteriza um critério de análise.

Nas gramáticas normativas, bem como nos trabalhos de orientação descritiva, de um modo geral, sobretudo nos de cunho morfológico e sintático, usa-se o termo forma para referir-se à análise que não leva em conta as relações significativas entre as unidades linguísticas. Em outras palavras, quando se diz que um determinado fato linguístico vai ser estudado sob o ponto de vista formal, normalmente, o estudioso lançará mão de expedientes de análise gramatical, cuja utilização pressupõe o abandono do critério semântico (são exemplos desses expedientes a “substituição”, “segmentação”, “deslocamento”, etc.). Segue-se o exemplo abaixo:

(4) Maria viu Eduardo com um binóculo.

Primeiramente, essa oração é ambígua. Mas essa ambiguidade é estrutural, ou seja, é formal, já que resulta do modo como os constituintes estão organizados. Assim, são possíveis as duas leituras (estruturais) abaixo, as quais são representadas com colchetes:

(4) Maria viu Eduardo [com um binóculo]
      Maria viu [Eduardo com um binóculo]

No primeiro caso, isola-se o constituinte “com um binóculo”, a fim de exprimir que esse constituinte não faz parte do domínio do sintagma “Eduardo”. Esse procedimento autoriza a leitura: Maria utilizou um binóculo para ver Eduardo. No segundo caso, reunindo “Eduardo” e “com um binóculo” entre colchetes, exprime-se que “Maria viu Eduardo quando ele portava um binóculo”. Nesse recorte, “com binóculo” prende-se a “Eduardo”. A análise estrutural patenteia que o significado da oração varia segundo o constituinte a que se liga o termo “com um binóculo”.  A ambiguidade estrutural pode ser desfeita dando outro torneio à oração. Por exemplo, podemos topicalizar o constituinte “com um binóculo”, ou seja, deslocá-lo para a posição anterior ao sujeito: “Com um binóculo, Maria viu Eduardo”. Podemos ainda dispor “com um binóculo” entre o verbo e o seu complemento: “Maria viu, com um binóculo, Eduardo. Essas duas formas atribuídas à construção delimitam um domínio único de leitura: Maria utilizou o binóculo para ver Eduardo.
Normalmente, a lição tradicional se vale de um critério semântico para distinguir as funções sintáticas desempenhada pelo constituinte “com um binóculo”. Para tanto, ensina-se que, sendo binóculo um instrumento por meio do qual Maria vê Eduardo, a ele deve-se chamar de “adjunto adverbial”; por outro lado, entendendo-se que Eduardo é o possuidor de um objeto no momento em que Maria o viu, ao constituinte “com o binóculo” atribui-se a função de adjunto adnominal. É verdade, no entanto, que a distinção entre as funções de “com um binóculo” se imponha por critério que é antes formal do que semântico. O critério em jogo aqui é o critério distribucional, de modo que, se “com um binóculo” estiver orbitando o sintagma verbal, ele será “adjunto adverbial” (nesse caso, ele relaciona-se com o verbo, mas não sob o modo de dependência, isto é, ele não é previsto pela valência do verbo). Se, por outro lado, “com um binóculo” se articula ao núcleo “Eduardo”, então sua função será a de adjunto adnominal.
Vejamos outro exemplo no qual os termos isolados entre colchetes são contemplados, na tradição, segundo critérios semânticos:

(5) O ladrão foi preso [ pelo policial]
(6) O ladrão foi preso [pelo roubo]


A tradição gramatical confere os rótulos “agente da passiva” e “adjunto adverbial” (de causa) aos constituintes “pelo policial” e “pelo roubo”, respectivamente. Com esses rótulos, identificam-se duas funções sintáticas. Mas essas funções sintáticas são, no entanto, fixadas com base em critérios semânticos. Tais critérios são:

a) o fato de “pelo policial” representar o agente da ação de “prender” (foi preso);
b) o fato de “pelo roubo” representar a circunstância que acompanha a ação de prender. Essa circunstância é a causa da ação.

Note-se, de passagem, que nos estudos dos papéis semânticos (recobertos pela Semântica Estrutural), o papel semântico [AGENTE] apresenta as propriedades sêmicas [+ animado] e [+ intencional]. O substantivo que funciona, semanticamente, como agente da ação tem de apresentar, necessariamente, esses dois traços. Do exposto segue-se que não podemos interpretar “pelo roubo” como agente, já que o substantivo que entra a fazer parte dessa construção é dotado do traço [- animado].
A análise que se paute pelo critério formal identificará os seguintes aspectos:

a) as unidades linguísticas que integram  constituinte cuja função se pretende determinar;
b) as unidades às quais esse constituinte se articula;
c) as propriedades morfossintáticas que comporta esse constituinte.

Destarte, formalmente, ambos os constituintes – pelo policial e pelo roubo – são introduzidos de preposição (que é, nesse caso, a mesma); ambos têm um substantivo núcleo. Ademais, tanto pelo policial quanto pelo roubo articulam-se ao adjetivo preso, do qual são modificadores (Azeredo, 2002); ambos, finalmente, não se flexionam no plural por exigência gramatical: o plural se manifesta de acordo com o conteúdo que temos em mente.
Pode-se concluir que, pelo critério formal, as duas funções, que, tradicionalmente são distintas, devem ser reunidas sob o mesmo rótulo. Isso, decerto, além de contribuir para reduzir a taxionomia gramatical, resulta numa prática teoricamente mais precisa e coerente com os fatos linguísticos em pauta.
Na segunda parte deste estudo, retomarei a discussão sobre a análise formal, quando irei cotejá-la com a análise que se serve da perspectiva semântica. Tenho defendido que, conquanto não seja profícuo abandonar o critério semântico, na análise gramatical, deve-se, por clareza e cuidado, distinguir entre o aspecto semântico e o aspecto formal (morfossintático); e nunca tomar o primeiro como peremptório.
Antes de levar a cabo minhas considerações sobre o conceito de forma, cumpre observar que o termo, nos estudos morfológicos, pode referir-se à estrutura interna do vocábulo ou ao morfema. Assim, costuma-se se referir a “-ção” como uma forma da palavra “declaração”. Outrossim, podemos utilizar forma para nos refirir à constituição interna da palavra “declaração”. Nesse caso, forma conserva seu sentido de estrutura, com a diferença de que, agora, passa a ser entendido no estrato do vocábulo. Assim, nos referimos à forma da palavra “declaração” quando queremos destacar o conjunto que resulta da aderência entre o radical “declar-”, a vogal temática “-a”, o tema “declara-” e o sufixo deverbal “-ção”. Novamente,  forma aqui é empregado na acepção consagrada na tradição saussuriana, mas circunscrita ao domínio da morfologia.

b) Função

Dentre os sentidos com que é empregado o termo função em Linguística, dois interessam-nos aqui:

1o sentido: do ponto de vista do Funcionalismo, função designa o “papel” de um objeto, isto é, sua serventia para a realização de algo (esse conceito é adotado pela Sociedade Internacional de Linguística Funcional (SILF), cujo fundador foi André Martinet.

André Martinet se ocupou das acepções do conceito de função em seu Conceitos fundamentais em Linguística. Não intento esgotar o espectro de significados atribuídos ao termo função. Meu recorte abrigará apenas dois sentidos que ilustram uma problemática da qual o professor não pode desviar seu olhar.

2o sentido: na tradição gramatical, o termo restringe-se ao âmbito sintático e designa o papel desempenhado pelos constituintes sintáticos na oração.


De acordo com 1),  função  refere-se ao papel que a língua desempenha para os seres humanos, ou seja, o de permitir a interação social. Em 2), função diz respeito ao elenco das chamadas “funções sintáticas”. A função é conhecida pela análise das relações morfossintáticas e semânticas entre os termos oracionais. Assim, a função do constituinte “do Pedro”, em “A casa do Pedro fica em Friburgo”, só pode ser determinada mediante a observação da relação que estabelece com o núcleo “casa”. Chama-se aquele termo de adjunto adnominal, porque se observa duas coisas: a) que ele adere a um núcleo nominal (casa); b) que ele modifica (‘acrescenta um ingrediente semântico’) esse núcleo. Por outro lado, dada a relação de “em Friburgo” com o verbo “ficar”, para ele não podemos fixar a função de adjunto adnominal, deveremos lhe atribuir outra função. A tradição lhe atribui a função de adjunto adverbial. Essa função sugere que o termo “em Friburgo” comporta uma informação que se acrescenta, que não é prevista pela semântica do verbo “ficar”, o que constitui um equívoco. Na acepção de ‘localizar-se’, o verbo “ficar” seleciona um argumento ‘Em__SN’ locativo. Portanto, “em Friburgo” é, em termos tradicionais, um complemento do verbo “ficar”, e não um adjunto.
O conceito de função, quando considerado na perspectiva da Gramática Funcional, é muito mais abrangente. Não cabe aqui examiná-lo. É suficiente dizer, no entanto, que uma análise de cunho funcionalista deverá alargar o conceito de função para dar conta de fenômenos que desbordam o limite estrito da sintaxe para encontrar abrigo no âmbito do discurso. Na Linguística Sistêmico-Funcional, o termo função é sinônimo de intenção ou propósito e implica necessariamente a produção interacional de significados. Dizer que “felizmente”, por exemplo, cumpre uma função, em “Felizmente, nada de mal aconteceu”, é dizer que “felizmente” serve para significar algo, serve para realizar alguma intenção, algum propósito. Diz-se que “felizmente” é, nesse caso, um modalizador, porque serve, ou seja, tem a função de expressar certa atitude de satisfação, de felicidade do locutor relativamente ao conteúdo comunicado. A gramática tradicional atribuiria a esse termo a função de adjunto oracional, que é um subtipo de adjunto adverbial. A única diferença é que ele está modificando toda a oração, e não só o seu núcleo. Semanticamente, a Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) não prevê uma subcategoria semântica para essa função, pelo menos não até onde eu sei.
Atentando-se ainda à concepção tradicional de função, citem-se as palavras de André Lalande que, em seu Vocabularie technique et critique de la philosophie (1960, p. 136) define função como:

“papel próprio e característico desempenhado por um órgão em um conjunto cujas partes são interdependentes”.



Trata-se, como se vê, de uma noção aplicável a qualquer organismo em cujo interior ocorrem relações entre suas partes constitutivas. Essa definição de função é, assim, aplicável à língua, que é um sistema complexo e coeso de signos, entre os quais se estabelecem relações opositivas, quando dispostos na cadeia sintagmática.
Finalmente, procurando evitar ambiguidade suscitada pela concepção tradicional de função, o linguista dinamarquês, seguidor fiel de Saussure, Louis Hjelmslev, em seu mais famoso e importante trabalho Prolegômenos a uma teoria da linguagem (1968 [2003]), define função como relações de dependência muito mais gerais que, portanto, não se circunscrevem aos limites estritos do âmbito sitagmático.

“Uma dependência que preenche as condições de uma análise será denominada função. Deste modo, diremos que há função entre uma classe e seus componentes (entre uma cadeia e suas partes, entre um paradigma e seus membros), do mesmo modo que há função mútua entre os componentes (partes e membros) (Hjemslev, 2003, p. 39).


É preciso ressaltar que Hejmslev denomina de functivo “um objeto que tem uma função em relação a outros objetos” (ib.id.). Ou seja, os functivos são elementos que “contraem” uma função entre si.
O autor observa que a definição adotada é semelhante à definição lógico-matemática, ainda que não seja idêntica a essa. Revela-nos que melhor será entendê-la como uma concepção que intermedeia o sentido lógico-matemático e o etimológico. Destarte, o termo função recobre não só as relações de dependência entre grandezas (relações de pressuposição entre elementos: A pressupõe B), caso em que o conceito de função recobre o sentido lógico-matemático, como também noções tradicionais, tais como “complemento gramatical”, “papel”, “posição”.
Em seu livro, Hjemslev apresenta os tipos de functivos e de funções. Da função entre os diversos functivos infere-se o fator pressuposição. Destarte, pode-se observar as seguintes relações de pressuposição, segundo Hjemslev:

a) A e B pressupõem-se mutuamente: o sujeito pressupõe o predicado e vice-verso. Mesmo nas orações ditas, tradicionalmente, “sem sujeito”, pode-se dizer que há na estrutura profunda, seguindo Chomsky, sujeito. A ausência de um termo na posição de sujeito é uma idiossincrasia do português. No inglês, por exemplo, esse princípio de pressuposição mútua entre sujeito e predicado é válido: It’s raining. (está chovendo).

b) A pressupõe B, mas B não pressupõe A: na sequência “confiar em”, o verbo pressupõe a preposição, mas esta não pressupõe o verbo. Da mesma sorte, a oração “que me ajudasse” pressupõe a oração “Eu pedi”; todavia esta não pressupõe aquela.
É discutível que “Eu pedi” não pressuponha “que me ajudasse”. Mesmo no âmbito do discurso, quem produz “Eu pedi” apenas, dá margem à recuperação pelo interlocutor da informação atinente ao que foi pedido em algum momento anterior do discurso. Sintaticamente, parece haver interdependência entre a oração dita principal “Eu pedi” e sua completiva “que me ajudasse”.
c) Não há pressuposição entre A e B: em “Lúcia e eu saímos à noite”, o verbo não pressupõem “à noite”, nem este pressupõe o verbo.

Em suma, o termo função normalmente recobre três noções: as de “serventia de um objeto” (enfoque funcionalista), a de “papel desempenhado por um termo na oração (perspectiva da Gramática Tradicional) e, numa perspectiva estruturalista, a de “interdependência entre elementos ou signos”. Essa última noção é, como vimos, mais geral e clara (embora complexa) que a da Gramática Tradicional.
Finalmente, devo salientar que aqueles três tipos de pressuposição se verificam tanto no eixo sintagmático, a que Hjemslev chama processo ou texto, quanto no eixo paradigmático, denominado pelo autor de sistema.

No que toca à generalidade da concepção de função de Hjemslev, no domínio da palavra, um elemento também contrai uma função com outro elemento. Assim, numa forma como patos, o morfema pluralizador –s contrai uma função com o tema pato.

sábado, 3 de janeiro de 2015

"Não há homem livre do desespero"

                  

            
             A existência como tarefa e criação
       Considerações sobre o desespero em Kierkegaard


Com este texto, inicio, neste ano de 2015, a produção do conjunto de novos suspiros da alma. A frequência com que escrevo para publicar neste blog tem sido cada vez mais embargada pelas flutuações de meu humor, que não cessam de me alertar sobre a inutilidade desta inveterada prática. É evidente que escrever me apetece e, não raro, me parece que esse hábito rivaliza, em termos de importância, com outras atividades necessárias em meu cotidiano. Isso, contudo, não é suficiente para me dissuadir da certeza de que os textos que eu escrevo e que eu divulgo, neste espaço virtual, não carreiam nenhum sentido transformador, não visam a transformar nada no mundo, conquanto eu esteja convencido de que usar a linguagem é sempre, em todos os casos, agir sobre o mundo e sobre os outros, com vistas a produzir algum tipo de modificação em seu estado.
Receio que, se eu me detiver em longas ponderações sobre meu desânimo costumeiro, que acompanha o labor da escrita, acabarei por protelar a confecção deste texto. Engana-se o leitor que pensa não ser custoso para mim construir meus edifícios verbais. Como eu persiga a perfeição ao longo da atividade de tessitura do texto, isto é, como eu esteja sempre preocupado em realizar as escolhas mais significativamente adequadas, despendo uma quantidade considerável de potência orgânica quando me detenho para decidir entre as possibilidades de realização lexical e sintagmática. Agora mesmo me assombra o fantasma da escassez verbal.
É chegado o momento de me apressar. Que comece o trabalho! Ele me tomará uma grande parte do dia!

1. O itinerário

No horizonte de minhas reflexões, que visam a retornar ao pensamento de Kierkegaard, se topa o interesse por esclarecer o tema do desespero em sua antropologia, à luz da qual a existência é pensada em seu devir, em seus paradoxos.
A essa tarefa que consiste em identificar e esclarecer, no interior da antropologia de Kierkegaard, devem preceder algumas considerações com as quais procurarei pôr em evidência a pertinência de uma série de conceitos que, se não apresentados e iluminados de antemão, dificultam uma compreensão satisfatória do lugar relacional que ocupa o desespero no desenvolvimento do pensamento existencialista de Kierkegaard. Por conseguinte, impõe-se-me a urgência de apresentá-los e esclarecê-los.

1.2. O irracionalismo

Sören Kierkegaard (1813-1855) é considerado um dos pensadores que integram o movimento do irracionalismo, marcante no final do século XIX. O irracionalismo tinha como meta a crítica da supremacia da razão, a qual era entendida como o único instrumento capaz de estabelecer a verdade, mormente depois de Hegel.
Os pensadores irracionalistas buscavam reanimar a questão da verdade, tomando como ponto de partida o processo da existência. Destarte, Kierkegaard afirmou a necessidade de viver uma verdade que fosse verdadeira para o eu.
Kierkegaard advogava que a existência humana tem por essência a auto-relação. Essa relação determina o modo de o homem – o indivíduo humano – estar no mundo. Essa relação se dá em três estádios, designados por Kierkegaard de estético, na qual o indivíduo assume uma posição de pura exterioridade; de ético, em que ele busca mediar o exterior e o interior; e de religioso, caracterizada por uma profunda interioridade, na qual o indivíduo se relaciona com Deus.
Kierkegaard criticou a falta de religiosidade do clero da Igreja Luterana e a influência negativa de Hegel no meio intelectual.

1.3. O devir do sujeito e a existência como tarefa

Destaco, inicialmente, que, ao se debruçar sobre o devir real do sujeito, Kierkegaard antecipou e descreveu o caráter dialético do que os psicólogos contemporâneos denominam de processo de subjetivação. Esse processo foi pensado por Kierkegaard enquanto ele o vivia. Com efeito, sua filosofia existencialista, resultando da união da inquietude humana com um empirismo metafísico, opõe-se radicalmente às nossas contemporâneas “ciências do homem”.
Ora, para Kierkegaard, não se trata de pensar a existência como objeto; trata-se, na realidade, de tomá-la como a origem a partir da qual cada indivíduo humano pensa e age. No homem e para o homem, existir não se identifica com o ser ou com o possuir uma existência objetiva, imediata. O homem é o único existente de fato; por isso, ele se diferencia dos outros entes que têm uma existência empírica e ignoram quem são.
Por outro lado, para o homem (entendido sempre como individuo, e não como a espécie), a existência é um trabalho, uma exigência: o homem existe enquanto tem de vir a ser, enquanto tem de edificar-se. O homem – sempre enquanto indivíduo – é um ente particular porquanto está adiante de si mesmo, está perpetuamente ocupado consigo, e interessado por si mesmo. É, ademais, um ente que se projeta para as suas possibilidades, para o poder ser, embora sempre situado em face de suas opções.
O indivíduo se determina por meio de seus atos, arrancando-se da imediatidade das coisas, impondo seu ato livre. Por conseguinte, ele ek-siste, isto é, mantém-se fora de si mesmo, em seu projeto, na relação com o que é. O existente é o único ente capaz de existir na abertura ao ser. Isso suscita a pergunta: o que significa existir para o homem?
Ora, segundo Kierkegaard, a existência, não constituindo objeto de uma consciência imediata, vai-se revelando progressivamente no curso do tempo como um apelo a que o existente se realize a si mesmo na relação com a verdade eterna, que é de ordem ontológica. A existência, para o homem, é ao mesmo tempo não ser Deus nem ser simplesmente como os demais entes e coisas que apenas existem na inconsciência da imediatidade e da coincidência consigo mesmo.
A antropologia de Kierkegaard assenta no seguinte axioma: se o homem se faz a si mesmo com liberdade, não o faz a partir do nada. Ora, ele está numa condição específica, na qual se acha a necessidade de se arrancar de sua animalidade, determinando para si a tarefa de realizar sua pessoa concreta.
O processo de subjetivação, na perspectiva de Kierkegaard, consiste num tipo de trabalho ao longo do qual o homem se faz a si mesmo, tomando consciência do eu que é, de sua liberdade que o convoca incessantemente a apropriar-se desse eu, a escolher-se, a decidir o que quer ser.

1.4. O espírito: a emergência da reflexividade

Lançado no mundo sob a forma biológica do corpo e de sua repercussão psíquica (a alma), o homem, sob a forma da imediatidade, precisa desenvolver o espírito, que é a faculdade de síntese reflexiva. O homem é, assim, uma síntese entre a alma e o corpo, e essa síntese não pode ser concebida, se tanto a alma quanto o corpo não estiverem unidos no espírito.
No esforço por tornar claro o conceito de espírito em Kierkegaard, precisarei me ater à definição de existência como cisão entre opostos. Essa cisão precede à tarefa de estabelecimento da sua síntese. Consoante Kierkegaard, a existência não se dá senão sob uma tensão insuperável.
Platão já intuía ser a existência atravessada por um tensão. Ensinava Platão que o homem se compõe de mortalidade e imortalidade e que ele se esforça por se libertar da finitude, de sua existência, que é representada pelo corpo mortal. E acreditava que o homem podia fazê-lo, porque ele é, em sua alma, essencialmente, imortal. Quando, por meio de Sócrates, Platão assevera que filosofar é “aprender a morrer”, estava a limitar essa morte ao corpo, já que este era considerado o túmulo da alma ou sua prisão.
A doutrina cristã se apressou em acompanhar esse helenismo, quando se afastou de sua origem judaica. Assim é que, para o cristianismo, o homem não se encontra em casa neste mundo; todavia, o cristão crê que a fé permite ao homem escapar, de certo modo, ao mundo, na esperança de que, no cumprimento da história, possa retornar à presença de Deus.
Sublinhemos que o homem é marcado pela clivagem entre a alma e o corpo, entre a interioridade e a exterioridade. É justamente no momento em que se opera essa cisão que irrompe a autoconsciência reflexiva, ou o espírito. O espírito dissolve, num primeiro momento, a unidade pré-consciente do corpo com a alma para, em seguida, unir novamente esta àquele.
Kierkegaard descreve esse estado de imediatidade recorrendo ao relato do Gênesis. Adão e Eva não conheciam aquela cisão quando habitavam o Paraíso. A separação entre aqueles elementos opostos – alma e o corpo – se seguiria à desobediência deles ao mandamento de Deus. O espírito, como sinal de liberdade, não só leva a efeito a cisão entre a alma e o corpo, como também o relacionamento entre eles (“e viram que estavam nus”).
É tarefa do homem, doravante, efetuar a síntese entre o finito (o corpo) e o infinito (a alma), e essa síntese é precisamente a essência do homem. Kierkegaard reconhece o problema, que não é mais o do ato de ascensão do espírito a Deus, pela desertificação do corpo ou do mundo, mas o do como da relação do eu consigo mesmo, a qual constitui a existência em sua divisão e em seu diálogo com Deus.
Kierkegaard não se cansou de lembrar que aquela relação não é possível senão pela mediação de seu fundamento comum, que é Deus. A síntese cristã demanda um esforço que não mais se pauta por um dualismo: é necessário realizar uma síntese, a qual é uma complexidade constituída de três termos – a alma, o corpo e o espírito.
A essência do homem consiste em lograr sucesso nessa relação em cuja base está Deus; por isso, de modo algum, o homem poderia furtar-se a ela. Kierkegaard não preconiza nenhuma fuga ao mundo e identifica como fim do homem a apropriação da existência enquanto existência: aqui e agora, em cada instante.
O espírito só advém com a referida cisão. O espírito instaura a consciência reflexiva de si. O homem só pode tomar consciência de seu corpo como corpo a não ser quando tem acesso ao espírito.
Uma observação se nos impõe, antes de terminar esta seção. Se é certo que a obra de Kierkegaard, conforme deve ter ficado claro, restitui ao indivíduo cartesiano uma proeminência ontológica, em contraste com os pensamentos de Spinoza, Hegel e Marx, para quem o indivíduo é subestimado em proveito do caráter determinístico do todo, não é menos certo também que Kierkegaard não foi cartesiano, quando se considera a totalidade de sua obra, que fundou na paixão a confiabilidade epistemológica. Um de seus epigramas famosos reza que “as conclusões da paixão são as únicas confiáveis”. Kierkegaard denunciou a carência de paixão em sua época.


1.5. A angústia, segundo Kierkegaard


Mesmo em estado de inocência, argumenta Kierkegaard, mesmo experienciando a calma e o repouso a que se liga um estado de ignorância, o homem não é animalidade bruta. O espírito, mesmo nesse estado de imediatidade, experimenta angústia diante do nada.
A alma de Adão e de Eva estava em união imediata com sua natureza. Eles ainda não existiam na modalidade do espírito, mas tão-só como possibilidade de espírito, tal como sucede com cada um de nós ao nascer. È apenas no momento em que tomam consciência de sua nudez que o espírito se faz presente no estado de esboço que cinde a alma e o corpo, circunstância esta que permite o surgimento da vida interior.
Kierkegaard entende que a angústia irrompe na ação do espírito que simultaneamente realiza a clivagem e a síntese entre a alma e o corpo, os quais passam a ser percebidos como separados pela consciência reflexiva. O homem toma consciência de sua imediatidade corporal e a vincula à exterioridade. Nesse momento, se experimenta a si mesmo como interioridade capaz de se determinar. A angústia, segundo Kierkegaard, prende-se a essa reflexividade nascente, à experiência originária que toca ao fato de existir, o qual é experienciado como ato de existir. A existência deixa de ter uma dimensão meramente factual para ser percebida como apelo a que ela se realize em cada ato, em cada escolha operada pelo indivíduo.
A angústia se apodera da consciência em face de todos os possíveis. Essa angústia decorre da intuição humana de que aquela síntese a se realizar, na maioria das vezes, fracassa na própria tarefa destinada à sua realização. A angústia é, pois, o lugar de emergência do si mesmo. Ela é desprovida de objeto, diferentemente do medo que o supõe; tampouco é intencional. Ela é o pathos em cujo bojo o indivíduo começa a tomar consciência de si mesmo. A angústia se põe na origem em que o indivíduo, confrontado com seu nada, com o abismo sem fundo do possível, do virtual, toma consciência de sua situação.
Reforce-se, aqui, a ideia de que a existência é o indivíduo livre, e não no sentido biológico. Esse indivíduo se define pelo cuidado com o ser. Ele é o homem que lança seu destino no tempo, no âmago da finitude e na presença da morte; é o homem que, por decisão sua, pode perder-se ou ganhar-se, vir a ser ou fracassar. Esse poder de ser e de não ser o abala profundamente, pois que esse indivíduo se descobre como “eu”. A angústia é o rugido da liberdade que confere vida à realidade de cada um e que leva cada um à condição de escolher, de se fazer responsável por si mesmo.


1.6. O eu como relação entre a alma e o corpo

Cumpre-me agora responder à questão O que é o eu para Kierkegaard? Começo por notar que é a totalidade da finitude que deve relacionar-se com o infinito. Essa finitude é complexa e estruturalmente fadada ao conflito interior, ao desequilíbrio entre elementos – alma, corpo e espírito - que se tornaram heterogêneos por força da consciência e pela divisão que ela, consciência, estabelece entre a alma e o corpo, a interioridade e a exterioridade.
O eu, segundo Kierkegaard, não é uma identidade abstrata ou um substrato substancial estático. O eu é, essencialmente, relação e, sobretudo, relação viva consigo mesmo. O eu é a reflexividade da relação entre a alma e o corpo, que se desdobra dinamicamente no tempo, tornando possível a realização da síntese entre o infinito e o finito, entre o temporal e o eterno, entre a liberdade e a necessidade, entre o absoluto e o relativo, entre o incondicionado e a condição. Todos esses pares constituem os polos assimétricos da condição humana.
O eu é a relação entre a alma e o corpo que se relaciona reflexivamente por meio do espírito. A reflexividade constitui o eu, que é a singularidade de cada um. Essa reflexividade arranca o indivíduo à impessoalidade da espécie.
Adverte Kierkegaard que o homem não se reduz a essa relação. A relação é estruturalmente mais complexa. O eu, enquanto relação que se relaciona consigo mesma, ou deve ter sido posta por si mesma, ou deve ter sido posta por outra coisa. Kierkegaard argumenta que o eu é incapaz de se estabelecer por si mesmo, de modo que ele foi posto por aquilo que, não sendo causado, é causa de toda a relação. Assim, o espírito se relaciona com o que é responsável por toda a relação, a saber, com Deus. Segundo Kierkegaard, resgatar de maneira consciente a relação com Deus da qual procedemos inconsciente e originalmente é nascer para si mesmo de verdade. Esse resgate é designado por Kierkegaard como uma espécie de segundo nascimento de um indivíduo que, depois de enfrentar as agruras espirituais, se sente renovado e é capaz de se renovar a cada novo dia.
Sucede, contudo, que essa alegria da renovação não pode ser alcançada sem dor. Há, deveras, uma tensão na interioridade, já que o eu não é determinado: ele se determina, ou seja, ele é que se escolhe. Ser determinado é negar o ser eu. Esta liberdade é responsabilidade, e existir é estar pleno de paixão pela liberdade, é estar consciente de que cada um de nós é infinitamente responsável pelo que escolhe vir a ser de modo definitivo. O eu só é eu quando assume sua própria singularidade por uma decisão moral que consiste em escolher a contingência que se é, que consiste em fazer da necessidade liberdade, contribuindo para a livre criação de si mesmo, na relação com a força ontológica verdadeira – Deus.
É oportuno lembrar o drama de Kierkegaard, que se expressou na forma do desequilíbrio entre o espírito e o corpo. A educação austera que recebera foi decisiva para a hipertrofia de espírito. Ainda que ele rejeitasse o asceticismo, acabou por se tornar um penitente, após deixar uma tumultuária noite de bebedeira, na qual foi lançado aos braços de uma prostituta por seus companheiros de embriaguez. Essa experiência representa o ápice da cisão. A lembrança desse trauma lançou-lhe na alma tormentos.
Dessa experiência traumática resultou sua convicção de que a vida humana é um dever de encarnação no tempo daquilo que Deus – a fonte eterna – doa ao espírito. Ele reconheceu que, abandonado a si mesmo, fracassou. Não soube equilibrar em si o eterno e o temporal, o infinito e o finito.
O processo de subjetivação, portanto, passa pelo reconhecimento de que o sujeito existente é, ao mesmo tempo, ser-no-mundo (imanente) e ser-superior-ao-mundo (transcendente). Ele é uma consciência que se desenvolve progressivamente quando descobre a sua verdade e procura encarná-la. Assim, existir é simultaneamente devir e ser. É por isso que a existência demanda a fé que, no fundo, é apreensão progressiva da eternidade através do tempo.
Para Kierkegaard, acompanhando Hegel, a fé é a certeza interior que antecipa a infinitude. Ela não se confunde com uma fuga ao mundo, um enclausuramento numa subjetividade exaltada. A fé é um esforço para descobrir o sentido da existência, ou seja, para viver uma vida dotada de sentido. A fé é tanto mais indispensável quanto mais se reconhece que a questão do sentido constitui um desafio filosófico que dá ao pensamento um outro interesse que não é o simples conhecimento.
Enquanto confiança, a fé é, por conseguinte, um caminho para o crescimento no ser, é abertura do tempo à eternidade. Destarte, é possível ao homem nutrir-se dela para viver da própria eternidade no tempo. A fé, sem jamais desarrancar o homem de sua condição temporal, lembra-lhe a sua vocação para a experiência da eternidade.


2. O desespero e suas formas

O percurso que nos conduziu até aqui foi trilhado com o propósito de assegurar o esclarecimento do conceito de desespero na antropologia kierkegaardiana.
Retome-se, aqui, a visão segundo a qual a existência é o aparecimento abrupto da liberdade em face do estado factual da existência. Existir é encarado, a partir de então, como uma tarefa pela qual o indivíduo assume a sua liberdade para se determinar a si mesmo no tempo, nutrindo-se, no entanto, da eternidade, donde procede sua vida.
Deve-se enfatizar este pressuposto básico: o desespero é uma característica essencial do ser humano. O desespero é um sentimento que o indivíduo experiencia em face da escolha de si mesmo.
A primeira forma de desespero liga-se à experiência de angústia em face do peso da liberdade que tem o sujeito para realizar sua tarefa mais autêntica, qual seja, a de ser humano, a de realizar a síntese entre a alma e o corpo. Mas essa síntese não pode ser bem sucedida a um ponto que se venha a dissipar a angústia. Ora, a angústia é angústia em face do salto de liberdade para a liberdade, e a liberdade é a essência do espírito.
O desespero decorre dessa impossibilidade de o homem esquivar-se de sua liberdade, para fugir à angústia. A existência não se nos apresenta como algo acabado. A passividade é-nos uma condição também desesperadora.
Outra forma de desespero prende-se ao receio de fracassar na tarefa de vir a ser. Nesse caso, o homem que quer ser mais teme não conseguir ser. O desespero é esse não conseguir ser. O desespero é uma determinação do espírito que se relaciona com o eterno em nós. Vale dizer que a impossibilidade de desfazer-se do eu é o desespero para o homem. A essa forma de desespero Kierkegaard chama de pecado. O desespero é pecado porque é o estado em que se encontra o homem que, em face de Deus, não quer ser o eu mesmo que é. Kierkegaard vê também no pecado, por extensão, o afastamento do homem em relação a Deus. O contrário do pecado não é a virtude, mas a fé. A fé não pode ser provada e não se explica. O pecado por si mesmo é a luta do desespero.
Se o desespero se vincula ao grau do desenvolvimento da consciência do eu, ou seja,  se é certo que o homem tende a ser mais desesperado quanto mais consciente de si mesmo estiver, quanto mais o seu eu estiver desenvolvido, o desespero permanece latente ou inconsciente também naquele indivíduo cuja consciência é menos desenvolvida. Seu desespero é um desespero inconsciente. Ele pode passar a vida inteira sem saber que está desesperado, porquanto não tomou consciência de ser um eu que deve construir-se a si mesmo em oposição às forças do “destino”. Tal é o caso do esteta, que vive na inconsciência de seu desespero, entregue inteiramente aos prazeres da sensualidade.


2.1. O desespero como doença mortal

Recapitule-se que o eu só existe quando é auto-relação, quando se volta sobre si mesmo e a própria relação assume a forma de um terceiro termo, de sorte que cada um desses termos passa a se relacionar com o relacionamento do eu consigo.
Tendo em conta o que se expôs, o homem pode, então, assumir duas atitudes: pode querer relacionar-se consigo, independentemente de quem o pôs nessa relação, ou pode não querer relacionar-se. Quando o homem se nega a relacionar-se consigo, posiciona-se no domínio da ficção. Pretende, assim, em vão, escapar a si mesmo; ele só poderia fugir de si mesmo, no entanto, matando-se.
Ora, essa impossibilidade de fugir de si mesmo produz, no homem, o desespero. Kierkegaard chama a esse desespero de desespero que não quer. Trata-se da forma de desespero que decorre da impossibilidade de o homem escapar-se a si mesmo.
Pode ainda suceder que o homem, por outro lado, deseje entrar em relação consigo, aceitando essa relação, mas negando-se a reconhecê-la como uma relação fundada por um Outro, isto é, por Deus. O homem exaspera-se por procurar uma origem para essa relação e o faz identificando-a com um ídolo ou se divinizando na crença ilusória de que está na origem dessa relação. O homem crê-se criador de si mesmo. Kierkegaard chama a esse desespero de desespero de quem quer ser por conta própria.
O desespero é uma doença mortal, porque, na condição de afecção, altera continuamente o equilíbrio em que o eu desejaria instalar-se. Destarte, o eu se manifesta continuamente como um desequilíbrio que se estabelece na auto-relação entre o que é e o que ignora que é.
O desespero se caracteriza pela discordância que se instala nessa síntese interna – síntese do finito e do infinito – de que resulta o eu enquanto auto-relação. Na origem, não existe tal discordância, porque o eu é pura possibilidade de ser e de não-ser. A discordância só existe na síntese, ou seja, a discordância entre o eu e si mesmo só há na síntese estabelecida pelo eu.
O desespero é a consciência da luta entre a vida e a morte, que martiriza qualquer indivíduo, ora brutalmente, ora de modo mórbido, ora ainda de modo tênue, mas sempre acenando com uma presença indicativa do fim. Afinal, o homem sabe que vai morrer, e esse é seu único e último projeto determinante.
O homem bem instalado no mundo das máscaras sociais, na lida cotidiana não percebe a face do desespero. Ele imagina-se um outro, para poder evadir-se de si. A questão central que se impõe a Kierkegaard, nesse ponto, é, portanto, o fato de o homem não poder libertar-se de si. Quem se desespera quer, no seu desespero, ser ele próprio, quer viver. Mas a vida não permite esperança.
A verdadeira face do desespero é, pois, o dilaceramento entre a imagem (autossuficiência) que o homem constrói de si e a sua origem (a de ser síntese). O desespero é a contradição que se depreende do querer ser ele mesmo e, ao mesmo tempo, não querer ser a sua origem. O desespero se assenta no solo da liberdade. O homem teme ser absurdamente o nada.


2.2. A universalidade do desespero

Não há homem livre do desespero. Sucede, contudo, que o homem é solicitado a viver de modo despreocupado em face do mundo. O homem vive imerso na banalidade da vida, na qual encontra satisfação imediata. Nessas condições, ele não se dá conta do desespero. Tampouco se apercebe da flutuação entre saúde e doença que acenam com a fragilidade da vida. Ele vive em segredo, e a vida lhe passa desperdiçada.
Kierkegaard nega que a felicidade se encontre no prazer. A felicidade é uma miragem, enquanto busca de um bem durável, no plano da finitude e do possível. Todo homem, por natureza, é desesperado.


2.3. O desespero e suas relações

O indivíduo humano é uma permanente relação que se dá através da liberdade. A síntese que é o homem – síntese do finito e do infinito – não é dada a priori, mas decorre de uma escolha. O eu, como vimos, é liberdade. Mas a liberdade envolve a contradição entre as categorias do possível e do necessário.
A consciência de si, no homem, é tanto maior quanto mais intensa é a vontade: um homem sem vontade é esvaziado do eu. Kierkegaard situa, pois, o desespero relativamente à dialética entre o finito e infinito e às categorias do possível e da necessidade, tendo em conta a consciência.




2.3.1. O desespero e as categorias de finito e do infinito

A análise do desespero, à luz das categorias do finito e do infinito, implica a compreensão dessa síntese que é o eu, dilacerado entre o desejo de se tornar concreto e o apelo a ser mais, espiritualmente.
O eu é livre na medida em que se orienta por conta própria. Entanto, o homem vive oscilando entre o desejo de viver na concretude da corporeidade e o desejo de ser mais espiritualmente. Essa oscilação está sempre impregnada de desespero. Todo equilíbrio no tempo é fugaz.
Na sua relação com a infinitude, o desespero leva o homem a escolher viver fora do real. Nesse caso, o indivíduo se projeta no imaginário e neste se perde, e se torna, assim, privado do seu próprio eu. Essa projeção no imaginário pode dar-se no domínio do conhecimento, do sentimento e da vontade. Ele se projeta para fora de si infinitamente.
O homem que vive de imaginação ama obstinadamente, de modo impessoal e sem vínculo. Ele vive privado de seu próprio eu. Conhece sem ligar-se ao objeto que estuda. E sua vontade é a de um eu que nunca realiza seus projetos. O isolamento no campo do imaginário também leva ao impedimento da relação com Deus.
Na sua relação com o finito, o desespero atormenta aquele que não ousa ser plenamente si mesmo, em toda a sua singularidade, assumindo sua inteira responsabilidade sobre a escolha entre os contrários. Esse indivíduo se dilui na banalidade do cotidiano, se encarcera no finito.


2.3.2. O desespero e as categorias do possível e da necessidade

Para que o eu se transforme e chegue a ser ele mesmo, tem de viver tanto no domínio do finito quanto no domínio do infinito. Essa necessidade é, fundamentalmente, dramática.
Na sua relação com o possível, o homem, como ser de possibilidades, só se realiza no domínio da necessidade. Mas, sempre que não se dá conta dos limites impostos pela realidade à realização de seus projetos, acaba por enlear-se nas teias da imaginação e do desejo.
Na sua relação com a necessidade, o eu não pode esperar nada além do que o real, visto que, do contrário, falsifica a sua condição como ser inacabado e carente, que tende ao infinito. A existência humana tem, segundo Kierkegaard, uma dimensão ou finalidade espiritual.



2.3.3. O desespero e a categoria da consciência

Consoante observa Kierkegaard, à medida que o indivíduo vai se desencantando das ilusões próprias ao mundo dos sentidos, ele vai adquirindo mais consciência da existência nas suas profundas contradições. Nem sempre, contudo, isso significa libertação. Pode suceder que essa consciência intensifique o desespero.
Cumpre definir dois tipos de desespero identificados por Kierkegaard.

a) desespero-fraqueza (tipo passivo)

Esse tipo de desespero é próprio de quem sabe o que significa ser existente – ser livre e determinado, mas não aceita e não deseja ser essa realidade.

b) desespero-desafio (tipo ativo)

Trata-se do tipo de desespero que afeta o homem consciente de si, que curte a sua solidão e aumenta progressivamente a consciência de seu eu. Para ser ele próprio, abusa desesperadamente da eternidade, inerente ao eu. Mas é precisamente por estar em face da eternidade que esse desespero se aproxima da verdade e, paradoxalmente, dela se vai afastando infinitamente. Isso se explica por que o homem deixar de reconhecer a força ontológica fundadora, em suma, não pode pretender ser como Deus. O indivíduo afetado por esse tipo de desejo quer dispor-se de si, fazer do eu o que quer ser. Como um estóico, um eu ativo, não reconhece nenhum poder acima dele.
Silencio sobre os três estádios em que se desdobra a existência, momento do pensamento kierkegaardiano contemplado em outro texto postado neste blog. Remeto o leitor à leitura desse texto, que trata do tema da angústia em Sartre e em Kierkegaard como um meio de integralizar sua compreensão.

Levando a cabo esta exposição,  cumpre notar que Kierkegaard pretende que alcancemos a compreensão de que o coração do drama humano repousa sobre a relação da existência com uma transcendência que torna possível a abertura da primeira para além de si mesma, ou seja, a existência significa poder de decisão, possibilidade de ser e de nada, significa existência como dúvida e fé, como uma ação interior da liberdade que se convoca a fazer escolhas decisivas.