sábado, 11 de agosto de 2018

"Quando se diz algo, alguém o diz de algum lugar da sociedade para outro alguém também de algum lugar da sociedade e isso faz parte da significação" (Orlandi).






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Fundamentos teóricos para a  formação do leitor à luz da Análise do Discurso



1. Análise do Discurso e suas rupturas


Em primeiro lugar, o que se pretende, na confecção deste texto, é lançar luzes sobre as condições indispensáveis à abertura de um horizonte problematizador da leitura que permita um contínuo exercício crítico da posição de todos nós, leitores e estudiosos de textos filosóficos, no momento mesmo em que nos debruçamos sobre esses textos com vistas  a alcançar a compreensão. De resto, uma enunciação sobre o acontecimento sócio-histórico de produção da leitura está plenamente justificado, quando levamos em conta que não é possível filosofar sem produção de discursos e que todo o trato com a filosofia é caracterizado pela produção e compreensão de textos. No que diz respeito ao contexto pedagógico em que a lida com textos filosóficos é fundamental para a formação do estudante de filosofia, temos notado que ainda persiste a crença famigerada entre professores (com algumas exceções) de que existe um único sentido para o texto, que é justamente aquele pretendido pelo filósofo que o produziu. De acordo com essa crença, durante a leitura, caberia ao aluno apreender esse sentido a fim de que alcance uma compreensão verdadeira do texto. Essa crença ilusória na existência de um único sentido para um texto tem como correlata a crença num sentido “correto” ou “verdadeiro” para o texto, o que, filosoficamente falando, é totalmente inconsistente com os postulados teóricos da Análise do Discurso. Não só não há um único sentido para um texto como também não cabe falar em “sentido verdadeiro” como aquele sentido pretendido pelo autor do texto,  quer porque todo dizer é atravessado por sentidos outros, que remetem a outros tantos dizeres dos quais o autor do texto em questão sequer está consciente, quer porque não há uma relação termo-a-termo entre linguagem, pensamento e mundo. Não há uma relação especular entre a linguagem e o mundo; o discurso não diz o mundo tal como ele é em si mesmo; mas constrói interativamente uma versão pública (mundo textual) do mundo.
Em segundo lugar, todas as elaborações teóricas que darei a conhecer aqui são indispensáveis à formação do leitor em geral. Espero que este texto seja, especialmente, proveitoso para os professores de português que, ao se ocuparem do ensino da leitura, sentem-se incomodados com a persistência com que o trabalho de leitura em sala de aula fracassa quando o consideramos como o estágio mais importante para a formação de um leitor crítico. Nossa hipótese para explicar esse fracasso calca-se no reconhecimento de que toda uma sorte de noções equivocadas e preconceitos, na medida em que ainda persistem no imaginário dos atores sociais envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, acabam por tornar turvo e nebuloso o caminho que os conduziriam à clareza no tocante ao que significa ser um leitor efetivamente competente.
As considerações que aqui se seguirão se inscrevem e encontram ressonância teórica no contexto do que se convencionou chamar Análise do Discurso – termo, aliás, que, embora correntemente usado no singular, não deve mascarar o fato de que existem diversas Análises de Discurso, as quais, por sua vez, só tenham talvez em comum não só o interesse pelos modos de funcionamento do discurso, mas também uma característica epistemológica importante, a saber, a de ruptura. A ruptura - marca essencial da constituição da Análise do Discurso - se faz, basicamente, como um corte epistemológico relativamente a uma teoria científica, filosófica ou linguística. Pode-se dizer, em suma, que a Análise do Discurso formula uma teoria da leitura que se institui em ruptura com a análise de conteúdo, com a filologia (e a hermenêutica), com os modelos formalistas em linguagem (estruturalismo e gerativismo), com as sociologias da linguagem, com a psicologia, sobretudo em sua versão cognitivista (que implica uma concepção de sujeito uno e consciente e que ignora a intervenção do inconsciente na atividade humana, mormente nas atividades linguísticas) e com a pragmática, cujo principal problema é supor que o sentido é produto da atualização das intenções de um falante. Nesse tocante, ao contrário da Pragmática, a Análise do Discurso não se interessa pelo contexto enquanto cenários institucionalizados. Ela não está preocupada em dar realce às regras que governam as relações entre os participantes de uma atividade numa situação de interação verbal, nem se preocupa com os scripts a serem seguidos por eles a fim de que sejam bem-sucedidos interacionalmente. Sabe-se que a Pragmática mantém que os interlocutores conhecem e seguem regras convencionais que organizam as relações entre eles numa dada situação sócio-interacional. A Análise do Discurso, por outro lado, não se interessa por tais contextos, por tais regras que, supostamente, são conhecidas dos participantes de uma interação verbal. Ela está preocupada com aquilo que justamente escapa ao conhecimento dos sujeitos quando eles falam: o fato de que cada um enuncia a partir de posições que são historicamente constituídas (fala-se como deputado de um partido, de uma frente, de situação ou de oposição, e diz-se o que se deve e se pode dizer, nessa condição). Assim, para a Análise do Discurso, o que confere sentido ao que um enunciador diz não é o contexto imediato ou os implícitos de um enunciado, mas as posições ideológicas a que está submetido e as relações entre o que diz e o que já foi dito da mesma posição, considerando-se, em geral, que ela se opõe a uma que lhe seja contrária. O que é posto em destaque, portanto, é o que se repete, eventualmente durante décadas.
De fato, é a maneira como a Análise do Discurso conceberá e problematizará o sujeito que constitui o ponto fulcral da radicalidade da ruptura que ela estabelecerá com relação às disciplinas mencionadas.
A Análise do Discurso surge na França, pelos idos dos anos de 1960. Seu principal expoente e fundador é Michel Pêcheux. Como seja um campo de estudos transdisciplinar, a Análise do Discurso se constitui teoricamente em constante e produtivo diálogo com outros campos do saber, entre os quais se destacam a Linguística, a Filosofia, a História e a Psicanálise. Quando levamos em conta a constituição da Análise do Discurso como um domínio teórico polêmico, dialogicamente entrelaçado com o campo de estudos da linguagem, três macrocampos de saber se apresentam como partes formadoras do que podemos chamar de a “coluna vertebral” da Análise do Discurso: o materialismo histórico, entendido como teoria das formações e transformações sociais; a Linguística, tomada como a teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação; e a teoria do discurso, que se ocupa da determinação histórica da produção dos sentidos.  O materialismo histórico, que constitui o método de interpretação histórica do marxismo, afirma a não transparência da História. A Psicanálise afirma a não transparência do sujeito. Finalmente, a Linguística afirma a não transparência da língua. Assim, a Análise do Discurso trabalha com dois deslocamentos paralelos: o de sentido e da própria língua em sua relação com a História. A Análise do Discurso trabalha com três modos de opacidade: a do sujeito, a da língua e a da História. O sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo na articulação da língua com a História, na qual intervêm o imaginário e a ideologia.
Não cabe, no presente estudo, evidentemente, empreender um levantamento cuidadoso das consequências teórico-metológicas daquela série de rupturas que entram a fazer parte da dinâmica de formação da Análise do Discurso. O que pretendo é lançar alguma luz sobre o modo como a Análise do Discurso elabora uma teoria do discurso que problematiza tanto o lugar do autor quanto o lugar do leitor, ao mesmo tempo em que abre um novo campo de reflexões sobre a prática de leitura. Ao se instituir como campo de conhecimento em total ruptura com outras áreas epistêmicas que se ocupam da questão do texto e da leitura, a Análise do Discurso buscará definir os conceitos de texto, discurso, sujeito e autor, articulando-os a uma teoria da leitura/interpretação inegavelmente filiada ao trabalho da desconstrução.  Esses e outros conceitos serão discutidos ao longo desta minha exposição. Escusa dizer que o que se seguirá se alinha com a vertente francesa da Análise do Discurso.

2. A leitura na visão da Análise do Discurso

A Análise do Discurso toma o texto como unidade constitutiva da materialidade do discurso. O texto é enfocado em sua discursividade, isto é, enfocado tendo em vista o modo como ele, em seu funcionamento, produz sentido. A análise do discurso preocupa-se em compreender como o texto se constitui em discurso e como o discurso se produz em função das formações discursivas, as quais, por seu turno, se constituem em função da formação ideológica que as determina. Todas as formações discursivas são constituídas de formações ideológicas que as governam. A formação ideológica constitui um conjunto complexo de atividades e representações, que não são nem individuais nem universais, mas que estão ligadas às posições de classes em conflito (Pêcheux & Fuchs 1990, p. 166. apud. Fernandes, 2013, p. 65). Os sentidos dependem do modo como as posições de sujeitos se inscrevem nas formações ideológicas.
O conceito de formação discursiva foi cunhado por Foucault, em Arqueologia do Saber (1969), para designar o domínio que, numa dada formação ideológica, a partir de uma posição social numa conjuntura histórica dada, determina o que se pode e deve-se dizer. É da formação discursiva que as palavras e os enunciados recebem seus sentidos. A formação discursiva refere-se ao que se pode dizer somente em determinada época e espaço social, ao que tem lugar e realização a partir de condições de produção específicas, historicamente definidas. A formação discursiva permite explicitar como cada enunciado tem seu lugar e sua regra de aparição, e como as estratégias que presidem à sua produção derivam de um mesmo jogo de relações; em suma, como um dizer encontra espaço num determinado lugar e época.
Foucault ensina que a formação discursiva torna possível a descrição, tendo em vista certo número de enunciados, de um sistema de dispersão. Além disso, ela permite definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) relativamente a objetos, tipos de enunciação, conceitos e escolhas temáticas. Uma formação discursiva não se limita a uma época apenas. No seu interior, se acham elementos que existiram em diferentes espaços sociais, e em outros momentos históricos, e que reaparecem sob novas condições de produção, tornando-se parte constitutiva de um novo contexto histórico e, consequentemente, possibilitando outros efeitos de sentido.
 O texto interessa à Análise do Discurso somente em função de ser uma parte de um arquivo (corpus). É sumamente importante ter em conta o seguinte: o texto não se confunde com o discurso. Enquanto o discurso é um acontecimento sócio-histórico, é um processo em aberto, o texto constitui uma superfície discursiva, uma manifestação aqui e agora de um processo discursivo específico. O texto é uma peça de linguagem, “uma peça que representa uma unidade significativa”. (Orlandi, 2007, p. 52). O texto é, para a Análise do Discurso, um objeto histórico, ou melhor, um objeto linguístico-histórico, de modo que todo texto é caracterizado por sua historicidade. Embora ele possa ser, para efeito de análise, considerado como um objeto com começo, meio e fim, não se pode perder de vista o fato de que todo texto tem relação com outros textos existentes, possíveis ou imaginários, com suas condições de produção, com sua exterioridade constitutiva (interdiscurso ou memória discursiva). O texto, portanto, não é o objeto final da explicação da Análise do Discurso; é tão só a unidade que lhe permite ter acesso ao discurso. A ordem do discurso se materializa no texto. Segundo Orlandi (ibid., p. 60-61),



O texto é, para o analista do discurso, o lugar da relação com a representação física da linguagem: onde ela é som, letra, espaço, dimensão direcionada, tamanho. É o material bruto. Mas é também espaço significante.


Em suma, como peça de linguagem, como objeto simbólico, o texto é objeto de interpretação. Mas ele é um momento do processo de discursividade. Nem é o ponto de partida, nem é o ponto de chegada da análise. O discurso, por seu turno, não tem origem e não tem unidade definitiva. É sobre o discurso de que o analista se ocupará: ele estará interessado em examinar o processo discursivo, que é o que faz o texto significar. Um texto é uma peça de linguagem e, como tal, é uma peça de um processo discursivo muito mais abrangente; por isso, quando se chega ao processo discursivo, o texto particular analisado deixa de ser uma referência específica para dar lugar à compreensão de todo um processo discursivo do qual o texto em análise e outros tantos desconhecidos são partes.
Mas o que é leitura à luz da Análise do Discurso? Resumidamente, podemos dizer que ela é um trabalho sócio-histórico que tem de levar em conta a incompletude da linguagem. Da noção de incompletude deduz-se duas outras: o implícito e a intertextualidade. Destarte, ler não é apenas levar em conta o que é dito, mas também, principalmente, o que está implícito, o que não está dito, mas está significando.
O leitor, assim, precisa compreender que o que não está dito pode estar sustentando o que está sendo dito; ele precisa ser capaz de apreender o suposto para entender o que está dito; ele precisa reconhecer aquilo a que o dito se opõe. Destarte, há relações de sentidos que se estabelecem entre o que um texto diz e o que ele não diz, mas poderia dizer, e entre o que ele diz e o que outros textos dizem. Essas relações de sentido evidenciam a intertextualidade.
Saber ler envolve a capacidade de perceber que os sentidos em um texto não estão necessariamente nele, mas resultam da relação desse texto com outros textos. Segundo Orlandi (2012, p. 13), “saber ler é saber o que o texto diz e o que ele não diz, mas o constitui significativamente”. A leitura deve evidenciar o modo como um objeto simbólico produz sentidos. Isso implica a compreensão de que o sentido sempre pode ser outro. Portanto, ler não é atribuir sentido, muito embora o sujeito, em face de um objeto simbólico, seja sempre instado a interpretar, a “dar” sentido. Sucede, contudo, que, ao falar ou escrever, o sujeito atribui sentido às suas próprias palavras em condições sócio-históricas específicas. Um dos efeitos da ideologia é assegurar a crença de que o sentido já está dado nas palavras – e não na inscrição das palavras em formações discursivas. É a própria historicidade dos sentidos e as condições de sua produção que se apagam, fazendo desaparecer a exterioridade que os constitui.
O sentido é produzido na relação do histórico (memória discursiva) com o simbólico, e a leitura deve evidenciar a materialidade linguística e histórica do sentido. Os sentidos são partes de um processo; realizam-se num contexto, embora não sejam limitados a ele. Eles têm uma historicidade, têm um passado e se projetam num futuro. Os sentidos são muitos – é verdade -, mas há sempre um sentido enunciável, legível, a partir do qual se produz um gesto de interpretação.
O termo gesto de interpretação constitui um termo técnico cunhado pela linguista e analista do discurso Eni P. Orlandi para designar o fato de que toda interpretação é um ato simbólico caracterizado pela inscrição do sujeito (e de seu dizer) em uma posição ideológica, que delimita uma região particular no interdiscurso, na memória do dizer. Acrescente-se que ideologia, nesse contexto teórico, não é ocultamento do real, mas um mecanismo de produção de uma interpretação necessária que atribui sentidos fixos às palavras. Por isso, o mecanismo ideológico não envolve uma falta, mas um excesso (Orlandi, 2007, p. 66). A ideologia é responsável pelo efeito de evidência do sentido. Por isso “(...) a evidência, em linguagem, é construção da ideologia. É a ideologia que passa por evidente aquilo que é objeto de interpretação: ou seja, só é assim, para aquele sujeito, naquela situação, com aquela memória, tomado pelos efeitos do imaginário que o convoca”. (ibid., p. 150).


2.1. Leitura e interpretação

Para a Análise do Discurso, interpretar não é atribuir sentido, mas expor-se, na lida com o texto, à opacidade da linguagem e do texto, ou melhor, é “explicitar o modo como um objeto simbólico produz sentidos, o que resulta em saber que o sentido sempre pode ser outro” (Orlandi, 2007, p. 64). Ler é, portanto, saber que o sentido sempre pode ser outro. Não há sentido sem interpretação. E o sujeito é sempre sujeito da interpretação e sujeito (estar assujeitado) à interpretação.
Orlandi distingue, entretanto, entre leitura e interpretação. Para a autora, a interpretação é uma noção mais ampla. A leitura, por sua vez, é função da interpretação. Os gestos de interpretação são constitutivos tanto da leitura quanto da produção do sujeito falante, já que, quando fala, o sujeito também interpreta. Para dizer, ele tem de inscrever-se no interdiscurso, tem de filiar-se a um saber discursivo (memória discursiva). Em vista do exposto, o objetivo do analista é determinar que gestos de interpretação estão constituindo os sentidos e os sujeitos em suas posições.




2.2. O sentido, a historicidade do texto e a exterioridade constitutiva

Os sentidos são produzidos na relação do histórico (memória discursiva) com o simbólico, e a leitura deve evidenciar a materialidade linguística e histórica do sentido. Os sentidos são partes de um processo; realizam-se num contexto, embora não sejam limitados a ele. Eles têm uma historicidade, têm um passado e se projetam num futuro. Os sentidos são muitos – é verdade -, mas há sempre um sentido enunciável, legível, a partir do qual se produz um gesto de interpretação.
O sentido de uma palavra ou expressão equivalente é efeito da substituibilidade das expressões cujo conjunto produz ou pode produzir um efeito de referência, isto é, pode produzir a identificação de objetos do mundo a partir de uma perspectiva que, no entanto, jamais é objetiva. O efeito de sentido nunca é o significado de uma palavra; mas o sentido de uma família de palavras que se relacionam entre si metaforicamente. O sentido é, portanto, função de uma dupla de significante/palavra em relação mútua de substituibilidade, mas apenas em cada discurso historicamente dado. Quando considerado no nível do enunciado, o sentido obedece ao mesmo princípio de substituibilidade: o sentido de um enunciado decorre de sua substituibilidade por enunciados equivalentes na mesma formação discursiva. As palavras não tem sentido em si mesmas; seus sentidos derivam das formações discursivas em que elas figuram. A produção de sentido está intimamente ligada à relação parafrástica entre sequências tais, que a família parafrástica dessas sequências constitui uma matriz do sentido. Assim, dado um enunciado como O Brasil precisa voltar a crescer, seu sentido está ligado à relação parafrástica que esse enunciado estabelece com outros equivalentes como O Brasil precisa voltar a gerar renda, O Brasil precisa voltar a gerar empregos, etc.
Creio estar suficientemente claro que, na Análise do Discurso, o discurso não se identifica com a fala, nem com a língua. O discurso, tal como definido pela Análise do Discurso, é um acontecimento sócio-histórico; é, segundo Orlandi (2007), efeito de sentidos entre interlocutores. Tanto o locutor quanto o interlocutor, participantes da atividade discursiva, estão sempre afetados pelo simbólico. Aqueles efeitos de sentidos são consequência das relações entre sujeitos simbólicos que participam do discurso, em condições sócio-históricas dadas. Os efeitos de sentidos se realizam como consequência do fato de esses sujeitos serem situados sócio-historicamente e de serem afetados pelas suas memórias discursivas, as quais, por sua vez, são memórias sociais. As memórias discursivas fundam um espaço que se apresenta como condição de possibilidade do funcionamento do discurso. Esse espaço constitui um corpo sócio-histórico-cultural. (Fernandes, 2007, p. 59-60). O conceito de memória discursiva será definido quando eu me debruçar sobre o conceito de interdiscurso. Desde já, noto que memória discursiva e interdiscurso são conceitos correlatos, sinônimos.
língua não é meramente um código entre outros. Não há separação entre emissor e receptor, como postula uma clássica Teoria da Comunicação. Tampouco a língua é mero instrumento de comunicação. Ao usarmos a língua, não só comunicamos, como também não comunicamos. A língua é, fundamentalmente, uma prática social, e os participantes dessa prática social atuam interacionalmente na produção de significados. O que eles fazem, quando envolvidos nas práticas linguísticas, é produzir discurso. Portanto, o funcionamento da linguagem põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela História, num complexo processo de constituição desses sujeitos e de produção de sentidos.
O texto é caracterizado por sua historicidade. Falar em historicidade do texto é apreender seu acontecimento como discurso, seu funcionamento, o trabalho de sentidos que ocorre nele. Trata-se de pensar a temporalidade interna do texto, ou seja, sua relação com a exterioridade constitutiva, segundo o modo como ela se inscreve no texto. Essa exterioridade não é a exterioridade histórica da qual o texto é um produto; essa exterioridade determina o texto internamente. Não é algo que está lá fora e que se reflete no texto. Não se vai da História (acontecimentos, eventos) para analisar o texto, mas se parte do texto enquanto materialidade histórica, com suas marcas. Destarte, compreender a materialidade do texto é compreender como a matéria textual (historicidade do texto) produz sentidos.
Não se está negando que há uma relação entre a História fora do texto e a historicidade do texto, que é a trama de sentidos nele, mas essa relação não é direta, nem imediata, nem de causa e efeito. Essa relação é complexa e demanda, a fim de que possa ser explorada, a compreensão do funcionamento do texto.


2.3. A história de leituras do leitor e a história de leituras do texto

Segundo Orlandi (2008, p. 42), “em geral, (...) há vários fenômenos de variação que podem estar contidos na afirmação de que a leitura tem uma história”. Ainda segundo a autora, “(...) há leituras previstas para um texto, embora essa previsão não seja absoluta, uma vez que sempre são possíveis novas leituras dele”. (ibid.). Orlandi refere-se a dois entre os elementos que podem determinar a previsibilidade das leituras de um texto:

1) Os sentidos têm a sua história, isto é, há sedimentação de sentidos, segundo as condições de produção da linguagem;

2) um texto tem relação com outros textos.


A consequência mais importante que se pode depreender de 1) é que as leituras já feitas de um texto “dirigem, isto é, podem alargar ou restringir a compreensão de texto de um dado leitor”. (ibid., p. 43). A previsibilidade da história da leitura é recoberta pelas leituras historicamente produzidas para um texto e repertório de leituras de sujeito-leitor sócio-historicamente situado.
Mas é também a história ou o contexto sócio-histórico que, se, por um lado, responde pela previsibilidade de sentidos, por outro lado, constitui o próprio horizonte de pluralidade de leituras possível. O histórico é marcado, portanto, por essa ambiguidade: “porque é histórico, muda, porque é histórico, permanece. (ibid., p. 46). Se há uma relação dinâmica entre as leituras previstas para um texto – domínio de relativa coerção sobre o leitor - e as novas leituras possíveis, como fixar o limite, inegavelmente difícil, entre “aquilo que o leitor não chegou a compreender, o mínimo que se espera que seja compreendido (limite mínimo) e aquilo que ele atribui indevidamente ao texto, ou seja, aquilo que já ultrapassa o que se pode compreender (limite máximo)”? (ibid.).
O que está em questão aqui é a determinação do limite entre uma leitura parafrástica, a saber, aquela que se caracteriza pela reprodução do sentido dado pelo autor e uma leitura polissêmica, a qual se define como produção de múltiplos sentidos para o texto. O critério adotado por Orlandi consiste “na observação da história” (ibid., p. 44), ou seja, na observação da relação da leitura com as suas histórias: a história de leituras do leitor e a história de leituras sedimentadas de um texto. Assim, “uma leitura não é possível e/ou razoável em si mas em relação as suas histórias”.(ibid.). A consequência teórica que se segue daí é, segundo Orlandi (ibid., p.45), a polissemia, “ou seja, [o fato] de ser próprio da natureza da linguagem a possibilidade da multiplicidade de sentidos”. 


2.4. O Sujeito em Análise do Discurso


Desde já, é necessário rechaçar um possível equívoco: o sujeito de que trata a Análise do Discurso não é o sujeito cartesiano, ou seja, como uma consciência unitária e transparente a si mesma, e suposta como existente independentemente do corpo. Esse sujeito cartesiano é um “eu” a-histórico, senhor de si, cuja existência é postulado pelo pensamento. O sujeito de que trata a Análise do Discurso é um sujeito sócio-histórico. Este sujeito não se confunde nem com o autor nem com o indivíduo empírico que produz um texto. Trata-se de uma posição-sujeito ou forma-sujeito  constituída na relação com o simbólico na História. O sujeito é discursivo e descentrado (não é a origem do seu dizer), porquanto afetado pelo real da língua e pelo real da História. Ele não exerce controle sobre o modo como língua e História o afetam. Por isso, o sujeito funciona pelo inconsciente e pela ideologia.
Portanto, não há falante, nem locutor, nem emissor para a Análise do Discurso. Há sujeito, mas o sujeito é clivado, isto é, não é uno; o sujeito é assujeitado, isto é, não é livre e não está na origem do seu discurso. O sujeito são sujeitos na história. Não há sujeitos da história. Não há Sujeito Transcendental, não há Ego Cogito. Segundo Althusser, não há sujeito que seja livre e constituinte da história. Pêcheux dirá que os sujeitos acreditam que utilizam os discursos, quando, na verdade, são seus “servos”, assujeitados, seus “suportes”.
A Análise do Discurso – serei enfático – rompe com a concepção de sujeito uno, livre, caracterizado pela consciência, ou seja, sem inconsciente, sem ideologia. O sujeito não é a origem do que diz.
O assujeitamento do sujeito não é quantificável. Ele diz respeito à natureza da subjetividade, à qualificação do sujeito pela sua relação constitutiva com o simbólico – se é sujeito pelo assujeitamento à língua, na história. Não se pode dizer senão na condição de ser afetado pelo simbólico, pelo sistema significante. Não há nem sentido nem sujeito, se não houver assujeitamento à língua. Para dizer, o sujeito submete-se à língua. Sem esse assujeitamento, ele não pode subjetivar-se. Portanto, com Althusser, devemos dizer que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. Na interpelação do sujeito pela ideologia, critica-se a constituição do sujeito e do sentido. Não há sujeito como origem ou causa de si e o sentido literal é uma ilusão (a ilusão da literalidade).
O sujeito deve sua instituição à interpelação ideológica (Althusser). O sujeito não é o centro do seu dizer, de modo que ele se caracteriza por duas formas de esquecimento: 1oesquecimento – o sujeito se constitui pelo esquecimento da formação discursiva que o determina. Só há sujeito pela sua inscrição na formação discursiva. É devido a esse esquecimento que o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz; 2o esquecimento – o sujeito esquece que há outros sentidos possíveis. Nesse caso, ao formular o seu dizer, vão-se construindo cadeias parafrásticas de tudo aquilo que ele poderia dizer, mas não disse. Quanto mais operamos formulações tanto mais silenciamentos se deixam vazar de nossas palavras. Esses silenciamentos compreendem o domínio do formulável (eles também dizem). Esse esquecimento segundo acarreta a ilusão da relação termo a termo entre o dizer, o pensar e a realidade.
A linguagem é lugar do equívoco, isto é, o equívoco é a falha da linguagem na história. A possibilidade de falha é constitutiva da ordem simbólica. O equívoco é o fato de discurso, pois que o discurso é que articula entre si sujeito, língua e História. A ordem do discurso é resultado da articulação entre a ordem da língua, a ordem da história e seu funcionamento.
O que se chama de “equívoco”, em Análise do Discurso, não é um acontecimento da ordem do formulável, da ordem da relação entre as palavras e as coisas, mas equívoco enquanto constitutivo da relação entre o sujeito e o simbólico, ou seja, sua relação com a ideologia e com o inconsciente. Nesse sentido, o equívoco é que faz com que alguém que fale acredite separar aquilo que é sujeito à interpretação daquilo que não o é. Na verdade, há sempre interpretação. Reitero, pois: há sempre interpretação e faz parte da ilusão imaginária do sujeito crer-se como a origem do sentido, projetando-se sobre a literalidade e imaginando que só alguns sentidos são sujeitos à interpretação, enquanto outros seriam evidentes, literais.  Todo gesto de interpretação é um ato simbólico de intervenção no mundo (Orlandi, ibid., p. 84). É uma prática discursiva, linguística-histórica e ideológica.  Todos os gestos de interpretação são constitutivos tanto da leitura quanto da produção de um sujeito falante. Sempre que fala, o sujeito também interpreta. Sempre que diz, ele tem de inscrever-se no interdiscurso, tem de filiar-se a uma memória discursiva. Em suma, a interpretação é o espaço do possível, da falha, do equívoco, do efeito metafórico, do trabalho da história, do significante, enfim, é trabalho do sujeito.
Retomando-se a contribuição do materialismo histórico para a constituição do campo de estudos da Análise do Discurso, deve-se reter que há o real da História, de sorte que o homem faz história, mas ela não lhe é transparente. Conjugando a língua com a História na produção de sentidos (os sentidos são produto do trabalho de uma relação determinada do sujeito com a História), os estudos do discurso se ocupam com a dinâmica da forma material, que é a forma encarnada na história para produzir sentidos. Essa forma é de natureza linguístico-histórica. Esclarecendo os elementos que estão em jogo no trabalho do analista do discurso, cumpre sublinhar: a) o sentido não é o conteúdo semântico das palavras; b) a História não é um contexto, um enquadramento de acontecimentos; c) o sujeito não é a origem de si e nem está na origem do que diz. A Análise do Discurso está, portanto, preocupada com a ordem do discurso, na qual o sujeito se define por meio de sua relação com o sistema significante dotado de sentidos, sua corporeidade, sua historicidade (Orlandi, 2007, p. 49). O sujeito é, assim, sujeito significante (que significa), é sujeito histórico (ou seja, material). Esse sujeito, conforme mostrei, é uma posição-sujeito, isto é, ele se define como “posição”, porque é um sujeito atravessado por diferentes “vozes”, por diferentes discursos, numa relação, submetida a regras, com a memória discursiva (o interdiscurso). Esse sujeito só existe por sua relação com uma formação discursiva, a qual, por sua vez, mantém relação com as demais formações discursivas. Portanto, o sujeito de que se ocupa a Análise do Discurso é um lugar de significação que se constitui historicamente, vale dizer, pelo interdiscurso: “o discurso não é um conjunto de textos, é uma prática. Para se encontrar sua regularidade não se analisam seus produtos, mas os processos de sua produção” (Orlandi, 2008, p. 55).
Uma vez que não se separam forma e conteúdo, a Análise do Discurso visa a compreender a língua não só como estrutura, mas, sobretudo, como um acontecimento. Da reunião da estrutura e acontecimento, resulta que a forma material (linguístico-histórica) é considerada como o acontecimento do significante (língua) num sujeito afetado pela História. É importante destacar que as palavras que usamos no trato cotidiano com a língua já nos chegam carregadas de sentidos, dos quais ignoramos a origem de constituição. Não obstante, elas significam em nós e para nós.


2.4.1. As representações imaginárias

Quem enuncia A, tem de responder a perguntas implícitas como “quem sou eu para lhe falar assim?”, “quem é ele para eu lhe falar assim?”. Ao enunciar A, o enunciador constrói uma imagem de seu enunciatário, e este, por sua vez, constrói uma imagem do enunciador, e ambos constroem uma imagem daquilo sobre o qual falam. O quadro, no entanto, é mais complexo, porquanto o enunciador faz uma imagem da imagem que o enunciatário faz do próprio enunciador, e o enunciatário faz uma imagem da imagem que o enunciador faz do enunciatário. Essas imagens, para Pêcheux, devem ser tomadas como representações imaginárias, ou seja, os lugares do enunciador e do enunciatário tais como são representados nos processos discursivos em que são colocados em jogo. Se um professor, por exemplo, se dirige a seus alunos, não se deve considerá-los como indivíduos concretos, pessoas, mas como posições historicamente constituídas em sociedades em que essas funções se circunscrevem a certas regras e às quais se chega através de um conjunto de procedimentos. As representações imaginárias resultam de um processo social, ideológico, e não são simplesmente imagens que um locutor faz do outro.


2.5. As formas do silêncio, a incompletude e a opacidade da linguagem

Todo dizer é expressão de uma relação necessária com o não-dizer. Há uma dimensão de silêncio que remete ao caráter da incompletude da linguagem. A incompletude da linguagem se prende ao reconhecimento:

a) da errância dos sentidos (a sua migração);
b) da vontade de um (da unidade, do sentido fixo); do lugar do non sense, o equívoco.
incompletude da linguagem é o lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível. Portanto, a errância dos sentidos, a vontade de unidade, do sentido fixo, o lugar do non sense, o equívoco e a própria incompletude da linguagem (para a qual voltarei olhares mais adiante, a fim defini-la melhor) estão no cerne do funcionamento da linguagem.
Em seu As formas do silêncio (2007), Orlandi escreve: “As palavras transpiram silêncio” (p. 12). Há, pois, silêncio nas palavras. O silêncio é fundante: ele funda a possibilidade de sentido. O silêncio é um lugar de recuo onde se pode significar, a partir do qual o sentido faz sentido. Novamente, ouçamos Orlandi:

“O silêncio como horizonte, como imanência do sentido (...) aponta-nos que o fora da linguagem não é o nada mas ainda sentido” (p. 13).


O silêncio, pensado em sua historicidade constitutiva, não é ausência de som, mas é um acontecimento que atravessa as palavras, que existe entre elas, que indica que o sentido pode ser sempre outro. As palavras produzem silêncio; o silêncio “fala”; as palavras silenciam (p. 14).
O silêncio garante o movimento de sentidos. Dizemos sempre a partir do silêncio. Cada palavra enunciada “apaga” necessariamente outras palavras. Isso se dá porque o silêncio também é constitutivo do dizer. Assim, observa Orlandi



“O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à interpretação: tudo tem de fazer sentido (qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico” (p. 29-30).


Portanto, o silêncio não é falta. A linguagem é excesso. O silêncio não fala simplesmente; ele significa. No silêncio, o sentido é. (p. 32).


“A linguagem é conjunção significante da existência e é produzida pelo homem para domesticar a significação” (ib.id.).


O silêncio é disperso, e a fala o segmenta, o estrutura. O silêncio é o que torna possível a significação, todo dizer. O silêncio é presença. O sentido do silêncio não deriva do sentido das palavras. Nem o sentido, nem a linguagem são transparentes.
Não se pode não significar. O silêncio se relaciona, necessariamente, com a significação, e a linguagem é o movimento incessante das palavras para o silêncio e do silêncio para as palavras. É necessário insistir em que as palavras estão carregadas de silêncio. Por um lado, não podemos suprimir das palavras o silêncio; por outro lado, não podemos recuperar o silêncio só pela verbalização.
Por fim, retomando-se a noção de incompletude da linguagem, reitere-se que a incompletude é uma característica fundamental da linguagem. O fenômeno da incompletude da linguagem recobre a) o fato de serem diversas as formas de manifestação da linguagem; b) o fato de que o sentido está sempre em aberto; c) o fato de que o texto é multifuncional enquanto objeto simbólico. A incompletude repousa no fato de que o dizer é aberto. A crença numa “palavra final” é efeito de uma ilusão. O dizer não tem um início verificável; e o sentido toma múltiplas direções; está sempre em curso. A incompletude da linguagem decorre, portanto, do fato de que a própria linguagem é categorização dos sentidos do silêncio; é um modo de domesticá-los.
A linguagem também é opaca. A opacidade da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem interpretação. A opacidade ou não-transparência da linguagem consiste também na propriedade de o sentido poder ser sempre outro.

2.6. Ideologia

Desde já, deve-se frisar que a ideologia, no contexto teórico da Análise do Discurso, não é uma forma de ocultamento de conteúdos, mas um mecanismo de produção de uma interpretação necessária que atribui sentidos fixos às palavras. Por isso, o mecanismo ideológico não envolve uma falta, mas um excesso (Orlandi, 2007, p. 66). A ideologia representa a saturação do sentido, o efeito de completude, o qual, por sua vez, é responsável pelo efeito de evidência (do sentido).
A ideologia funciona pelo equívoco e se estrutura sob o modo da contradição. Quanto mais centrado o sujeito, mais cegamente ele está preso a sua ilusão de autonomia ideologicamente constituída. É que o sujeito é descentrado, disperso; o sujeito é uma posição-sujeito; muitos dizeres o atravessam, sem que ele tenha consciência disso. Quanto mais certezas acredita ter, menos possibilidade de falhas. A ideologia não afeta o sujeito no conteúdo; ela o afeta na estrutura pela qual o sujeito e o sentido funcionam. Isso significa dizer que a ideologia não é X, mas reside no mecanismo imaginário de produção de X, sendo X um objeto simbólico. Isso decorre do fato de que não há sentido se a língua não se inscrever na História. A ideologia não é, portanto, ocultação; ela é produção de evidências.
Pêcheux propõe uma teoria materialista dos processos discursivos, na qual se articulam três noções:

a) a de discursividade;
b) a de subjetividade;
c) a da descontinuidade ciência/ideologia.

Destarte, ele propõe: a) uma teoria do discurso como teoria da determinação histórica dos processos de significação; b) uma teoria não subjetivista da subjetividade/ c) uma teoria da prática política como prática de produção de conhecimento que reflita sobre as diferentes formas pelas quais a necessidade cega se torna necessidade pensada e modelada como necessidade.
Pela ideologia, afetado pelo simbólico, o indivíduo é interpelado em sujeito. É assim que podemos dizer que o sujeito é ao mesmo tempo despossuído e mestre do que diz. Uma teoria da materialidade do sentido deve mostrar que o sujeito se constitui afetado pelo simbólico na história. Essa constituição do sujeito pelo simbólico na história se dá sob o modo da ilusão que tem o sujeito de ser senhor de si e de seu dizer, de ser fonte de seu dizer. A relação do sujeito com a língua é parte de sua relação com o mundo. Essa relação é social e política. Por conseguinte, é o Estado com suas instituições e relações materializadas na formação social que lhe corresponde, que individualiza a forma-sujeito histórica e produz diferentes efeitos nos processos de individuação do sujeito na produção dos sentidos. É assim que o sujeito não é a unidade de origem, mas o resultado de um processo, um constructo, que tem no Estado sua instância produtora. Consoante ensina Orlandi (2012, p. 107),

Uma vez interpelado em sujeito, pela ideologia, em um processo simbólico, o indivíduo, agora enquanto sujeito, determina-se pelo modo como, na história, terá sua forma individualizada concreta: no caso do capitalismo, que é o caso presente, a forma de um indivíduo livre de coerções e responsável, que deve assim responder, como sujeito jurídico (sujeito de direitos e deveres), frente ao Estado e aos outros homens. Nesse passo, resta pouco visível sua constituição pelo simbólico, pela ideologia. Temos o sujeito individualizado, caracterizado pelo percurso bio-psico-social. O que fica de fora quando se pensa só o sujeito, já individualizado, é justamente o simbólico, o histórico, o ideológico que torna possível a interpelação do indivíduo em sujeito.



A discursividade deve ser, pois, compreendida como efeito material da língua na história – língua, ipso facto, sujeita ao equívoco. A conversão do discurso em texto representa a correlação do sujeito com a função-autor.

2.7 A função-autor

Está claro que o que interessa à Análise do Discurso é compreender como as posições-sujeito se constituem e constituem sentidos na sua relação necessária com o simbólico e a História. O autor é apenas uma função assumida pela sujeito sob o modo da ilusão de ser a origem do que diz. Segundo Foucault (2008, p. 26, grifos meus): “o autor, não entendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”. Para Orlandi (ibid., p. 69), “ o autor já é uma função da noção de sujeito”. O autor é uma função-autor que se realiza toda vez que o sujeito se representa na origem do que diz, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não-contradição e fim. Em suma,



“o que caracteriza a autoria é a produção de um gesto de interpretação, ou seja, na função-autor o sujeito é responsável pelo sentido do que diz, em outras palavras, ele é responsável por uma formulação que faz sentido” (Orlandi, 2007, p. 97).



2.8. Interdiscurso (memória discursiva)

interdiscursividade recobre o entrecruzamento de diferentes discursos, produzidos em diferentes momentos na História e a partir de diferentes lugares sociais. Todo discurso é constituído de diferentes enunciados que o antecedem e o sucedem, e que integram outros discursos. Correlato ao fenômeno da interdiscursividade, o interdiscurso ou memória discursiva é a instância da repetição histórica, porque inscreve o dizer no repetível (interpretável) enquanto memória constitutiva (interdiscurso). Esta memória é uma rede de filiações de dizeres que faz a língua significar. Destarte, sentido, memória e História se entrecruzam no interdiscurso.
O interdiscurso é aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente da formulação de um discurso dado. É a memória discursiva, o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído, o já-dito que está na base do dizível e que dá suporte a toda tomada da palavra. O pré-construído supõe uma oposição entre algo anteriormente estabelecido com o que está sendo construído por ocasião do discurso. O pré-construído é, portanto, a marca num enunciado de um discurso que o antecede. Nesse sentido, o pré-construído se prende inextricavelmente à noção de interdiscurso (o já dito). Há duas coisas importantes que devemos ter em conta nessa noção: a) ela sugere uma imbricação (sobreposição parcial) entre discursos e entre formações discursivas exteriores e anteriores; b) ela também sugere a instabilidade da oposição entre o interior e o exterior de uma formação discursiva.
O interdiscurso põe em movimento dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada. O interdiscurso, em suma, é o conjunto de dizeres já ditos e esquecidos que determina o que dizemos. Para que nossos enunciados tenham sentido, é necessário que já tenham sentido (em outros lugares, em outras formações discursivas).
Tendo ficado claro que o interdiscurso é o próprio espaço de inscrição da memória de dizeres, que a memória discursiva expressa a inscrição da língua na História, levo a termo este texto, referindo as palavras de Orlandi (2010, p.18), que definindo o interdiscurso, sublinha a relação deste com a formação discursiva:



O interdiscurso determina a formação discursiva. E o próprio da formação discursiva é dissimular na transparência do sentido, a objetividade material contraditória do interdiscurso que a determina. Essa objetividade material contraditória reside no fato de que algo fala sempre antes em outro lugar e independentemente. O interdiscurso é irrepresentávelEle é constituído de todo dizer já-dito. Ele é o saber, a memória discursiva. Aquilo que preside todo dizer. É ele que fornece a cada sujeito sua realidade enquanto sistema de evidências e de significações percebidas, experimentadas. E é pelo funcionamento do interdiscurso que o sujeito não pode reconhecer sua subordinação-assujeitamento ao Outro, pois, pelo efeito de transparência, esse assujeitamento aparece sob a forma de autonomia. (grifos meus).






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2008.


ORLANDI, E. P. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas, SP: Pontes, 2007.
________________. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2012.

PÊCHEUX, Michel. Análise do discurso. (org) Eni P. Orlandi. Campinas, SP: Pontes, 2011.











"Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" (Nietzsche)


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          A significação do Eterno Retorno
              a afirmação suprema do real


1. Considerações preliminares

 A despeito de Nietzsche considerar o pensamento do Eterno Retorno o mais importante de toda a sua produção filosófica e a despeito de Heidegger (2007, p. 198) enfatizar que é o Eterno Retorno “a doutrina fundamental da filosofia nietzschiana”, qualquer leitor atento de Nietzsche não terá dificuldade de reconhecer as escassas referências que ele faz a esse pensamento ao longo de sua obra. Heidegger, por exemplo, identifica três momentos em que Nietzsche considera o Eterno Retorno. A primeira comunicação dessa doutrina encontra-se no aforismo 341 de A Gaia Ciência. A segunda comunicação se topa na terceira parte do livro Assim Falou Zaratustra, vindo a lume dois anos depois da publicação de A Gaia Ciência. Por fim, a terceira comunicação identificada por Heidegger se encontra no aforismo 56 de Para Além do Bem e do Mal, publicado em 1886. E isso encerra tudo que Nietzsche enunciou sobre o Eterno Retorno, o que levou Heidegger (ibid., p. 205) a notar: “se considerarmos essa exposição tripla, então isso é muito pouco para um pensamento que deve ser o pensamento fundamental da filosofia como um todo”.
Rosset (2000, p. 83), por sua vez, considera o aforismo 341 de A Gaia Ciência “o texto a um só tempo mais extenso e mais esclarecedor”. E diz mais:

Que eu saiba, existem apenas no conjunto dos livros que Nietzsche publicou ou cuja publicação autorizou, duas páginas e bastante curtas, expressamente consagradas à questão do eterno retorno: o aforismo 341 da Gaia Ciência e o aforismo 56 de Para além do bem e do mal.


Essas informações sobre os poucos momentos em que Nietzsche rompe o silêncio sobre a doutrina do Eterno Retorno não estão aqui gratuitamente. Se as damos a conhecer, é para assinalar que os comentadores de Nietzsche têm de lidar, nesse terreno, com mais uma dificuldade: o da escassez de material textual em que se possa basear uma interpretação. Há outras dificuldades que são específicas do trato com os textos de Nietzsche. No que toca, por exemplo, aos temas principais de seu pensamento, quais sejam, a vontade de poder, o niilismo e o Eterno Retorno, pondera Almeida (2005, p. 18) que


[esses temas] são ambíguos, ambivalentes, paradoxais e, portanto, suscetíveis das mais diversas interpretações (...) porque o próprio Nietzsche não cessa de se des-dizer, de se re-ler e de criar novas perspectivas pela arte da poesia, da ficção, da invenção, da interpretação, da construção. (ênfases no original).


Ainda, segundo Almeida, o pensamento de Nietzsche se move “a partir de relações de forças” (ibid.), e, uma vez sendo “ele próprio uma força, só pode exprimir-se pela escrita do paradoxo, vale dizer, pelo jogo contínuo de inclusões, exclusões, rupturas, retomadas e revalorações”. (ibid.).[1]
Até aqui, o que dissemos toca tanto às condições específicas da textualidade da produção do pensamento nietzschiano quanto à forma extremamente lacunar com que foi anunciado o pensamento do Eterno Retorno e às dificuldades que disso decorrem para o trabalho dos comentadores. Sem embargo da referida escassez de registros textuais do pensamento do Eterno Retorno, é possível produzir um gesto de interpretação com base nos dois textos que temos à disposição e que tratam desse tema: o aforismo 341 de A Gaia Ciência e o texto Da visão e do enigma de Assim falou Zaratustra. Nossas considerações acerca do Eterno Retorno se aterão a esses dois textos. Antes, contudo, de nos debruçar sobre esses textos, gostaríamos de referir uma passagem de Cabral (2015, p. 135), na qual nos chama a atenção para a lição heideggeriana sobre a historicidade de todo pensamento.[2] Atente-se, então, para o que segue:



Nietzsche, assim como outros pensadores, não é compreendido por Heidegger como um sujeito singular que, genialmente, apreendeu representativamente o mundo e, de uma maneira sui generis, explicitou sua apreensão do real por meio de conceitos também singulares. Abordar Nietzsche desse modo seria como cair em uma ingenuidade hermenêutica. Jamais compreendemos um pensador, sem considerar o horizonte histórico que condiciona o seu dizer. O que todo pensador diz nunca aparece como fruto de algo como uma geração espontânea, destituído de raízes históricas que o condicionam. Antes, em todo pensamento, fala o mundo que o sustenta e que descerra o campo no qual todos os comportamentos do ser-aí são possíveis, inclusive o pensamento. (grifos nossos).




Estamos totalmente de acordo com os pressupostos teóricos em que se baseia essa lição trazida por Cabral ao conhecimento de seu leitor. Os trechos que destacamos em negrito remetem a uma série de conceitos postos e desenvolvidos pela vertente francesa da Análise do Discurso, para cujo desenvolvimento Foucault, aliás, legou uma significativa contribuição. Dizer, por exemplo, que “jamais compreendemos um pensador sem considerar o horizonte histórico que condiciona o seu dizer” é assumir o que a Análise do discurso chama de “exterioridade constitutiva” do texto, sua historicidade. Dizer que um pensamento não é fruto de uma “geração espontânea” é dizer que todo discurso é atravessado por outros dizeres, é determinado por vários já-ditos. É dizer, em suma, que o dialogismo é a dinâmica fundante da linguagem, do discurso, porque diz respeito ao reconhecimento de que os enunciados que produzimos se constituem a partir de outros enunciados (não há um sujeito adâmico que, ao enunciar produz um ato original, único, singular). Com o dialogismo, quer-se afirmar que todo discurso está calcado sobre discursos precedentes, que todo discurso remete a outros discursos, ou mesmo que todo discurso cria as condições para a produção de discursos ulteriores. Essa é a lição de outro filósofo da linguagem – Bakhtin-, que cabe aqui referir:


Portanto, toda compreensão plena real é ativamente responsiva e não é senão uma fase inicial preparatória da resposta ( seja qual for a forma em que ela se dê). O próprio falante está determinado precisamente a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que antes duble o seu pensamento em  voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução, etc. (...) Todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só  a existência do sistema da língua que usa mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte. Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados. (Bakhtin, 2010, p. 271, grifos nossos).


Os compromissos teóricos de leitura que assumimos não devem ser supostos apenas na lida com as produções textuais de Nietzsche, evidentemente, já que expressam princípios teóricos que pretendem explicar o funcionamento do discurso como acontecimento sócio-histórico, como prática social, como processo discursivo do qual os textos são peças, são momentos que, embora possam ser entendidos, para efeito de análise, como unidades fechadas, com começo, meio e fim, estão, necessariamente, enquanto espaços significantes, em relações complexas com outros textos (explícitos ou implícitos) – o que chamamos de intertextualidade. Portanto, devemos enfatizar que aqueles princípios teóricos valem para todo e qualquer texto e constituem insumos importantes para a produção da leitura.
Se os compromissos teóricos que assumimos foram aqui enunciados, não o foram simplesmente para demarcar uma posição pedagógica ou metodológica para o tratamento da atividade de leitura. Eles constituirão a base para certas afirmações que faremos quando da análise do pensamento do Eterno Retorno.
Passemos, então, sem mais delongas, a examinar os dois textos nos quais Nietzsche enuncia o pensamento do Eterno Retorno. Não é demais dizer que o Eterno Retorno foi apresentado sob as formas de hipótese e de doutrina. Sob a forma de hipótese, esse pensamento se acha no aforismo 341 de A Gaia Ciência; sob a forma de doutrina, ele se acha no texto Da visão e do enigma de Assim falou Zaratustra. Vamos examinar o pensamento do Eterno Retorno nesses dois textos separadamente, para fins didáticos. Concordamos com Casanova (2013, p. 218), ao dizer que o pensamento do Eterno Retorno não foi formulado como “uma simples doutrina escolar, no interior da qual nos deparamos com a assunção de uma certa hipótese particular e com uma subsequente sustentação lógico-racional”. Na verdade, segundo Casanova,

(...) Ele [Nietzsche] o constrói através de uma determinada descrição da dinâmica de realização da existência assim como da colocação imediata de uma questão a um indivíduo singular acerca de sua postura diante desta descrição. (ibid., grifo nosso).

Parece-nos que o que Casanova diz, no excerto supracitado, é consistente com a textualização de um mundo hipotético no aforismo 341 de A Gaia Ciência. O Eterno Retorno não se deduz aí como uma hipótese no sentido científico e/ou filosófico do termo – está certo -; mas se apresenta como uma hipótese no sentido de uma conjectura, de uma suposição ficcional – suposição esta, aliás, que instaura, na cena discursiva, um mundo terrível, que cria uma atmosfera sombria e pessimista. Mas pedimos aqui o devido esmero na interpretação desta nossa fala: não estamos sugerindo que o pensamento do Eterno Retorno seja um tipo de pensamento pessimista. Não! O que nos parece haver, no aforismo 341, é a instauração de uma relação dialógica com a visão filosófica pessimista e com as forças reativas e a qualidade negativa da vontade de poder que lhe dão sustentação. Mas não vamos aqui nos apressar em aprofundar essa dimensão de nossa interpretação.
Precisamos esclarecer alguns pontos importantes, antes de nos ocuparmos com o exame dos dois textos que tratam do Eterno Retorno. O primeiro desses pontos diz respeito ao emprego semântico-sintático dos vocábulos ‘ativo’ e ‘reativo’. Nesse tocante, acompanhamos Deleuze (2001), para quem ativo e reativo designam as qualidades originais das forças. Segundo Deleuze (ibid., p. 66), “o poder de transformação, o poder dionisíaco, é a primeira definição da atividade”. Ainda segundo Deleuze, reativo designa a qualidade original da força na relação com o ativo, a partir do ativo. Por seu turno, o ‘afirmativo’ e o ‘negativo’ designam a qualidade da vontade de poder. As vontades de poder negativas estão a serviço do niilismo e de suas formas. Elas se expressam como vontade de nada, vontade de aniquilamento, como hostilidade contra a vida. Mas é importante ter em vista o fato de que em Nietzsche, como lembra Deleuze,


“(...) nunca a relação essencial de uma força com outra é concebida como um elemento negativo na essência. Na sua relação com a outra, a força que se faz obedecer não nega a outra ou o que ela não é, afirma a sua própria diferença e compraz-se nela”. (ibid., p. 16).


A afirmação, em Nietzsche, é entendida por Deleuze como afirmação da diferença; nesse sentido, ela se opõe à negação dialética: “o “sim” de Nietzsche opõe-se ao “não” dialético; a afirmação à negação dialética; a diferença, à contradição dialética (...)” (ibid., p. 17). O afirmativo é o dionisíaco: “Dionísio afirma tudo aquilo que aparece, “mesmo o mais amargo sofrimento”, e aparece em tudo aquilo que é afirmado” (ibid., p. 28). Dionísio é, portanto, o deus que afirma a vida, é o deus para quem a vida não carece de ser justificada. O trágico está, portanto, representado na figura de Dionísio, pois que ele é a afirmação incondicional do múltiplo, da diferença, do devir. Por isso, Deleuze diz com precisão: “a afirmação múltipla e pluralista, eis a essência do trágico” (ibid.) – ou ainda, “o que define o trágico é a alegria do múltiplo, a alegria do plural” (ibid.). É também o que dirá Rosset (2000), a seu modo, quando sublinha que o trágico é a aprovação jubilosa da existência em todas as suas formas. Tratemos de esclarecer, doravante, mais um ponto.
Na tentativa de produzir um gesto de interpretação, somos, necessariamente, confrontados com um repertório de vozes, de outros dizeres sobre o Eterno Retorno, dentre essas vozes destacamos duas em relação às quais devemos demarcar nossa posição. A primeira dessas vozes é a de Heidegger. No confronto com a interpretação de Heidegger com o pensamento de Nietzsche e com o do Eterno Retorno, em particular, somos instados a dizer, basicamente, se vamos entender o Eterno Retorno como Eterno Retorno do Mesmo, tal como Heidegger o entende, ou, ao contrário, se vamos divergir dessa interpretação. O que consideramos problemático na interpretação heideggeriana do Eterno Retorno como Eterno Retorno do Mesmo é que ela inscreve o pensamento do Eterno Retorno no contexto da compreensão que o próprio Heidegger tem do pensamento de Nietzsche como o ápice da “agudização” do esquecimento do ser. Em outras palavras, Heidegger entende que a história do Ocidente identifica-se com a história da metafísica, a qual, por sua vez, se caracteriza pelo que Heidegger chama de esquecimento do ser, isto é, pelo abandono da diferença ontológica entre o ser e o ente na totalidade. No lugar dessa diferença, o pensamento metafísico operou uma cisão do ente em dois âmbitos complementares, um dos quais é o fundamento, presença constante e suposta; e o outro, o fundamento, que se identifica com o mundo aparente ou do devir. De acordo com essa interpretação heideggeriana, nas palavras de Cabral (op.cit., p.136),


“(...) a história do Ocidente é a história do esquecimento cada vez maior do ser como diferença em relação à sua clareira e ao ente. Nesse sentido, Nietzsche se inscreve em um mundo histórico onde a agudização do esquecimento do ser tornou-se tão intensa, que esse mundo caracteriza-se por ser sinal do abandono do ser. Como a medida vinculadora desse mundo é dada pela e na técnica, a obra nietzschiana é, a um só tempo, voz da técnica e expressão do abandono do ser.”



O que se infere do exposto acima é que, para Heidegger, o pensamento de Nietzsche expressa o niilismo mais intenso da história ocidental, bem como dá voz mais aguda à reprodução das bases metafísicas que sustentam essa história. Vejamos ainda dois trechos de Heidegger, nos quais não há nenhuma margem de dúvida de que ele toma o pensamento nietzschiano como metafísico. O primeiro excerto é o seguinte:

A doutrina nietzschiana do eterno retorno do mesmo não é uma doutrina qualquer entre outras sobre o ente. Ao contrário, ela surgiu muito mais a partir da mais rigorosa confrontação com o modo de pensar platônico-cristão e com as suas repercussões e degenerações na modernidade. Esse modo de pensar é estabelecido por Nietzsche ao mesmo tempo como traço fundamental do pensar ocidental em geral e de sua história. (Heidegger, op.cit., p. 199).


Em primeiro lugar, quando Heidegger diz ser a doutrina do Eterno Retorno do Mesmo uma doutrina sobre o “ente”, deve-se precisar que se trata do que ele chama “ente na totalidade”, expressão que, nas palavras do próprio Heidegger, designa

(...) tudo o que não é simplesmente o nada: a natureza, inanimada ou animada, a história e suas produções, seus fundadores e seus promotores, seus formadores e seguidores, o Deus, os deuses e os semideuses. Chamamos também ente o que devém, o que nasce e o que se extingue... Tudo isso é compreendido no termo “o ente na totalidade”. (ibid., p. 214).


Heidegger prossegue esclarecendo o que entende por “ente na totalidade” e, entre as demais formulações do conceito, salta-nos à vista “aquilo pelo que se pergunta, o que é digno de questão”. (ibid.). Ao dizer, portanto, que a doutrina do Eterno Retorno trata do ente ou do ente na totalidade, Heidegger já assinala que se trata da sua perspectiva sobre Nietzsche. O próprio Heidegger admite que “Nietzsche não fala do ente na totalidade” (ibid.). De passagem, é preciso lembrar que Heidegger preocupa-se em determinar a diferença entre seus usos lexicais e campos semânticos e os de Nietzsche. Lembra Heidegger que, quando Nietzsche se refere à realidade, à totalidade do real, usa a palavra “mundo” ou “existência”. Ainda segundo Heidegger apenas quando Nietzsche levanta a questão sobre o sentido da existência é que esse vocábulo pode ser semanticamente aproximado (não identificado) ao significado que Heidegger atribui à expressão “ente na totalidade”. Não precisamos nos demorar nessas minúcias semióticas, no texto supracitado, em que Heidegger afirma que a doutrina do Eterno Retorno trata do ente, para dizer que ele já instaura um gesto de interpretação à luz do qual Nietzsche aparece como aquele que leva à consumação o pensar metafísico (não simplesmente no sentido de “término”, mas, sobretudo, no sentido de realização radical). Em outras palavras, o pensamento de Nietzsche “apresenta o derradeiro enredamento no niilismo, porque leva a termo o acabamento de uma história na qual o ser mesmo nunca se acha colocado em questão” (Casanova, 2006, p. 149). Heidegger – deve-se frisar - (ibid., p. 198) sustenta que “a doutrina do eterno retorno do mesmo contém um enunciado sobre o ente na totalidade” e por isso “ela se alinha (...) com doutrinas correspondentes que são há muito correntes no interior do pensamento ocidental” (ibid.). Tais doutrinas – completa Heidegger – “atuaram concomitantemente de maneira essencial na configuração da história ocidental (...)” (ibid.).
Cumpre também atentar para o fato de que Heidegger considera a doutrina do Eterno Retorno como uma doutrina que emerge da “rigorosa confrontação com o modo de pensar platônico-cristão...”. O termo “confrontação”, em Heidegger, não é empregado no sentido comum de simples comparação, embate, duelo. Esse termo reúne dois significados: a) um tipo específico de afastamento, em que os envolvidos aparecem em sua singularidade; b) uma relação de tensão, na qual o distanciamento descerra, na diferenciação, a singularidade. Assim, na confrontação de Nietzsche com o platonismo-cristianismo, segundo parece sugerir a interpretação de Heidegger, o que se abre é o modo próprio de determinação tanto do pensamento Nietzschiano quanto do pensamento platônico-cristão conjuntamente com a instauração da diferença e proximidade entre os dois pensamentos. Segundo Cabral (op.cit, p. 139), “com o termo confrontação, Heidegger entende inicialmente um modo de conquista da transparência do lugar de onde emerge o pensamento de um pensador da tradição”. Acresce ainda Cabral (ibid., p. 141):

A confrontação é uma confrontação histórica. Se a interpretação deve partir do texto em direção à abertura do ente na totalidade que o sustenta, este encaminhamento articula-se com a história das aberturas do ente na totalidade que possibilitam o pensamento de um pensador e que o levam a estar essencialmente determinado pela tradição. O pensamento de Aristóteles e o pensamento de Nietzsche estão, por exemplo, historicamente articulados, pois, de algum modo, a tradição possibilita a gênese de diferenças de pensamento e fornece a medida de onde provém a unidade que relaciona essas diferenças.


O que Heidegger entende, portanto, por confrontação consoa com os pressupostos teóricos assumidos atinentes ao modo de funcionamento do discurso (tais como o dialogismo, o interdiscurso, a historicidade do texto, opacidade da linguagem...)[3]. Um trecho de Ser e Tempo (2012, p. 211) em que Heidegger trata da interpretação textual vem em apoio à referida relação consoante entre os pressupostos teóricos em que se baseiam a teoria do discurso com a qual se afina nosso pensamento e o conceito de confrontação heideggeriano:

A interpretação nunca é a apresentação de um dado preliminar, isenta de pressupostos. Se a concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se compraz em se basear nisso que “está”, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente do intérprete. Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta como aquilo que a interpretação necessariamente já “põe”, ou seja, que é preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção prévia.


A consonância do texto heideggeriano com os pressupostos teóricos com os quais nossa visão de leitura/interpretação está alinhada expressa-se na recusa de se poder atingir a “verdade” de um texto, de se poder fixar um sentido “correto”; em suma, expressa-se na recusa da crença de que os sentidos encontram-se já dados nas palavras, na recusa da crença na evidência do sentido.
No contexto desta discussão, nosso acordo com Heidegger não vai além dos pressupostos teóricos envolvidos na consideração do funcionamento do discurso e na constituição dialógica do pensamento filosófico. Portanto, toda a filosofia se desenvolve e se constitui a partir de uma outra. Isso é verdade também para qualquer domínio discursivo: todo discurso se desenvolve e se constitui na base de outros discursos. Conforme nos dá testemunho Cossuta (2001, p. 33), “(...) cada filosofia pretende encontrar sua origem num começo radical”; mas acrescenta “todo começo é apenas recomeço”. Aqui nos parece estar a especificidade do discurso filosófico, visto que os discursos filosóficos jamais se superam uns aos outros (no sentido de que cada discurso precisa constituir-se pela reelaboração, pelo retorno a e trabalho contínuo sobre as proposições, as teses, os argumentos, a abordagem de outros discursos). Toda a herança discursiva é, a cada nova etapa (texto) de discurso, revitalizada, reanimada, reincorporada, ainda que seja para dela se distanciar, para submetê-la ao impacto de um martelo nietzschiano. Esse recomeço da filosofia, que não se dá senão por construção de discurso, é ele o próprio exercício contínuo e ininterrupto do pensamento. É o pensamento que, retomando o já pensado, o prolonga, o faz dizer o que até então havia permanecido silenciado. Por isso, Platão nunca será superado, nem Santo Agostinho, nem os que os precederam. É nesse recomeço que reside a vitalidade do discurso filosófico – um discurso que, embora tenha no seu horizonte a verdade, jamais pretende, por isso mesmo, alcançá-la definitivamente; e também, por isso, se apresenta como um recomeço: é um discurso que, animado pela busca da verdade, está sempre disposto a percorrer os mesmos caminhos, a retomar os mesmos pontos de partida; pois o contentamento está não tanto na chegada, mas nesse percorrer.
Não obstante nosso acordo com Heidegger na maneira de pensar a inscrição histórica do pensamento de um filósofo pelo conceito de “confrontação”, não acompanhamos Heidegger na inscrição de Nietzsche na história da metafísica. Se essa interpretação que Heidegger faz de Nietzsche foi possível – assim nos parece -, é porque ele, Heidegger, pensa a metafísica de modo bem peculiar, isto é, pensa a história da metafísica como caracterizada pelo esquecimento da questão do sentido do ser; e como “o ser”, no sentido propriamente metafísico, a saber, o horizonte absoluto, a abertura total, a condição de possibilidade para o aparecimento dos entes; o “ser” como fundamento da totalidade do ente; em última instância, o ser como instância suprassensível, imutável, é justamente o que a filosofia nietzschiana recusa, subverte, abole, recusamos a interpretação heideggeriana, por mais coerente que ela seja com os pressupostos nela envolvidos. Heidegger parece ter-se preocupado em demonstrar que Nietzsche é um pensador do ser – entendendo, inclusive, que a crítica nietzschiana à metafísica platônica não seria outra coisa senão um estágio necessário para preparar a restauração de uma ontologia “verdadeira”. Reiteramos que, para nós, Nietzsche é um pensador do devir (o ser, em Nietzsche, é devir). Assim, o pensamento do Eterno Retorno é um pensamento afirmativo; ele afirma o caráter deveniente do mundo, da vida; não visa a “rejuvenescer” o velho ser metafísico. Nem o pensamento de Nietzsche tem caráter metafísico nem a doutrina do Eterno Retorno o tem. Dito isso, acedemos ao que observa Rosset (2000, p. 90): “Heidegger vê assim na ideia do eterno retorno a intuição obscura de uma permanência do ser (...)”. Todavia, “nada há de mais alheio a Nietzsche do que a noção de ser tal como a concebe Heidegger”.
Cumpre ainda demarcar nossa posição relativamente à interpretação deleuziana do Eterno Retorno. Comecemos, então, por enfatizar que Deleuze recusa a ideia de um Eterno Retorno do “Mesmo”. Deleuze começa afirmando que “o segredo de Nietzsche é que o eterno Retorno é seletivo. E duplamente seletivo” (2013, p. 35, ênfase no original). Antes de dilucidar quais são as duas seleções operadas pelo Eterno Retorno, atentemos para o trecho em que Deleuze afirma, claramente, que o “Mesmo” não volta no Eterno Retorno:

Retornar é precisamente o ser do devir, o uno do múltiplo, a necessidade do acaso. Assim é preciso evitar fazer do eterno Retorno um retorno do Mesmo. Isto seria desconhecer a forma da transmutação e da mudança na relação fundamental. Porque o Mesmo não preexiste ao diverso (salvo na categoria do niilismo). Não é o Mesmo que volta, já que o voltar é a forma original do Mesmo, que apenas se diz do diverso, do múltiplo, do devir. O Mesmo não volta, é o voltar apenas que é o Mesmo daquilo que devém. (Deleuze, ibid., p. 34, ênfases no original).


A recusa deleuziana do retorno do “Mesmo” no pensamento do Eterno Retorno é uma implicação da sua compreensão do ser como seleção, como diferença pura. O que Deleuze entende por diferença encontra-se bem sumariado no seguinte excerto de Schöpke:

A diferença está no cerne do próprio ser, como a sua manifestação mais profunda. O ser, na verdade, se diz da diferença. Ele não é “a” diferença em si, no sentido platônico do termo. Mas a diferença em si no sentido em que uma filosofia da diferença a toma: um ser unívoco que se diz da diferença. (Schöpke, 2012, p. 150).


Há, para Deleuze, segundo dissemos, uma dupla seleção no Eterno Retorno. A primeira seleção operada pelo Eterno Retorno é a que “nos dá uma lei para a autonomia da vontade desgarrada de toda a moral” (Deleuze, 2013, p. 35). O que se elimina aqui é “o mundo dos semi-quereres”. Nega-se a tudo que queremos a condição de dizer “uma vez, apenas uma”. A primeira seleção afirma o Eterno Retorno como pensamento ético.

O eterno retorno fornece à vontade  uma regra tão rigorosa  como a regra kantiana. (...) Como pensamento ético, o eterno retorno constitui a nova formulação da síntese prática: o que quiseres, queira-o de tal maneira que também queiras o eterno retorno. (Deleuze, 2001, p. 104).


O “sim” que se afirma no Eterno Retorno é adesão completa e incondicional ao real. Comentando essa primeira seleção do Eterno Retorno em Deleuze, Rosset dá a saber o seguinte:

O sim que se sente no pensamento do eterno retorno vale por ele aceitar, ou melhor, estar disposto a aceitar, de qualquer coisa existente, o puro e simples retorno. Ele se caracteriza assim pelo fato que queixa alguma, pedido algum de revisão não são apresentados contra o real: ele é a adesão ao que é, sem reserva de emenda possível ou desejável. (Rosset, 2000, p. 86).



Ora, porque o Eterno Retorno, como expressão máxima de um “sim” incondicional ao real, não admite nenhum apelo a que, no curso do retorno, se repare alguma coisa, não deixa de soar estranho – para dizer o mínimo – que Deleuze afirme “a lição do eterno retorno é que não há retorno do negativo” (Deleuze, ibid., p. 282). Mas, para Deleuze chegar a negar o retorno do negativo, ele precisou pensar, à semelhança de um dialético, contra a dialética. Diz Deleuze “O “sim” de Nietzsche opõe-se ao “não” dialético”. (ibid., p. 17). O pensar dialético trabalha com a contradição, ou melhor, é, para Deleuze, um pensamento da contradição, do negativo, e não da diferença. Para Deleuze sustentar que só retorna o afirmativo, jamais o negativo, ele precisou pensar a superação da negação pela afirmação através da transmutação – ponto em que o negativo se converte em afirmação, ponto em que o negativo perde seu poder e sua qualidade deixa de ser um poder autônomo, uma qualidade da vontade de poder.


A transmutação refere o negativo à afirmação na vontade de poder, faz dele uma simples maneira de ser dos poderes de afirmar. Não mais o trabalho da oposição nem a dor do negativo, mas o jogo guerreiro da diferença, afirmação e alegria da destruição. O não destituído do seu poder, passado para a qualidade contrária, tornando-se ele próprio afirmativo e criador; é esta a transmutação dos valores. (Deleuze, ibid., p. 284).


A transmutação que culminará com a expulsão do negativo opera segundo uma série de sínteses, da qual não vamos nos ocupar, já que isso nos levaria longe demais do que pensamos seja o essencial em nossa divergência com a posição deleuziana, a saber, ao contrário do que pensa Deleuze, o negativo tem também de ser querido no Eterno Retorno, tem também de retornar, sob pena de o caráter supremo da afirmação do Eterno Retorno perder todo sentido. E nossa divergência encontra apoio em Rosset que, após observar que Leibniz, antes de Nietzsche, teria concebido a sua versão do Eterno Retorno e que a versão do Eterno Retorno nietzschiana, ao contrário da versão leibniziana, não admite a mínima variação que seja do mesmo, diz contrariamente ao que diz Deleuze:

Ora, como vimos acima, tal pedido [o da ligeira variação do mesmo na versão de Leibniz] não figura de modo algum no pensamento nietzschiano do eterno retorno: “Tudo o que há de indizivelmente pequeno e grande em tua vida deverá retornar para ti, e tudo na mesma ordem e na mesma sequência”. Por isso é difícil seguir Deleuze quando declara que o eterno retorno opera em Nietzsche uma “segunda seleção” privilegiando o retorno das forças ativas e eliminando o das forças reativas. (...) Esta ideia de uma progressão possível do bem, de um melhor pronto para surgir no seio do melhor mesmo, teria sem dúvida o assentimento de Leibniz, mas certamente não o de Nietzsche. (Rosset, 2000, p. 87, grifo nosso).


Parece-nos que a posição deleuziana só pode ser sustentada se, forçosamente, ignorarmos passagens em que Nietzsche se refere claramente ao Eterno Retorno como retorno do mesmo. Em Ecce Homo (2013), na seção 3, em que Nietzsche fala sobre seu  O Nascimento da Tragédia, se nos depara o seguinte excerto: “a doutrina do “eterno retorno”, ou seja, do ciclo incondicional, infinitamente repetido, de todas as coisas – essa doutrina de Zaratustra poderia, em definitivo, já ter sido ensinado por Heráclito”. [4]
Rosset acrescenta, contrariamente à interpretação de Deleuze, segundo a qual o negativo não retorna no Eterno Retorno, o seguinte:

Não vemos, aliás, sobre que textos de Nietzsche semelhante interpretação poderia apoiar-se – a não ser sobre textos concernentes à vontade niilista, que não há razão alguma de ligar ao tema do eterno retorno. (Rosset, ibid.).



Também em Ecce Homo, no capítulo intitulado de Por que sou tão sábio, Nietzsche deixa entrever que o negativo tem de retornar com tudo o mais no Eterno Retorno. No trecho, que referimos abaixo, Nietzsche fala do tratamento que recebe de sua mãe e irmã.

O tratamento que minha mãe e minha irmã me dão até este momento me inspira um horror indizível: aqui trabalha uma perfeita máquina infernal que conhece com segurança infalível o instante em que é possível ferir-me – em meus instantes supremos... pois então falta toda força para defender-me contra vermes venenosos... A contiguidade fisiológica torna possível semelhante desarmonia preestabelecida... Confesso que a objeção mais profunda contra o “eterno retorno”, que é meu pensamento autenticamente abissal, são sempre minha mãe e minha irmã. (Nietzsche, 2013, p. 33, grifo nosso).


Rosset, comentando esse trecho de Ecce Homo, diz:

(...) essa página não deixa de ser reveladora, não somente do que Nietzsche pensava e provavelmente pensou mais ou menos de sua mãe e de sua irmã, mas sobretudo do que Nietzsche pensava e sempre pensara do eterno retorno: que ele fazia (ou faria) voltar indistintamente todas as coisas, as piores como as melhores. (Rosset, ibid., p. 88, grifo nosso).


Rosset insiste em que o que volta no Eterno Retorno é “este mundo aqui”, “que não haverá nada de novo” (ibid., p. 84). Insiste em que o Eterno Retorno diz de uma repetição estrita, “que, aliás, não exclui o retorno da diferença tal como Deleuze sugere, se é verdade que a própria vida seja constituída de diferenças”, mas “exclui, em compensação, a ideia de um retorno do mesmo tal como Heidegger a concebe a partir do momento em que esta implica uma permanência do ser transcendendo toda existência no tempo”. (ibid.). Daí se conclui que o “Mesmo” do Eterno Retorno expressa-se como repetição da qual o mesmo e o diferente, o afirmativo e o negativo num movimento incessante que recusa toda tentativa de superação por meio de sínteses (tal como procede o pensar dialético). O “Mesmo” do Eterno Retorno se afirma afirmando as contradições do real, do ser do devir, da necessidade do acaso: “Que tudo retorna sem cessar é a extrema aproximação de um mundo do devir com um mundo do ser. Ápice da meditação”. (Nietzsche, 2011a, § 286). É somente quando recusamos qualquer tentativa de superação dos contraditórios pela síntese, é somente quando deixamos de excluir qualquer coisa da dinâmica iterativa do Eterno Retorno que se pode aceitar o enunciado deleuziano como consistente com a filosofia nietzschiana: “o devir é o ser, o múltiplo é uno, o acaso é a necessidade do acaso” (Deleuze, 2001, p. 281). Em última instância, para nós, o “Mesmo” do Eterno Retorno é o retorno do mundo mesmo tal como o entende Nietzsche. Mas o que é o mundo para Nietzsche. É o próprio Nietzsche quem nos diz:

Este mundo é um mundo monstro de força sem começo e nem fim, uma quantidade de força brônzea que não se torna nem maior nem menor, que não se consome, mas só se transforma, imutável em seu conjunto, uma casa sem despesas nem perdas, mas também sem rendas e sem progresso, rodeado do “nada” como de uma fronteira. Este mundo não é algo de vago e que se gaste, nada que seja d uma extensão infinita, mas, sendo uma força determinada, está incluído num espaço determinado e não num espaço que seria vazio em alguma parte. Força por toda parte é jogo de forças e ondas de forças uno e múltiplo simultaneamente acumulando-se aqui, enquanto se reduz ali, um mar de forças agitadas que provocam sua própria tempestade, transformando-se eternamente num eterno vaivém, com imensos anos de retorno com um fluxo perpétuo de formas, do mais simples ao mais complexo, indo do mais calmo, do mais rígido e do mais frio ao mais ardente, ao mais selvagem, ao mais contraditório para consigo próprio retornar, depois da abundância à simplicidade, do jogo das contradições ao prazer da harmonia, afirmando-se a si mesmo, ainda nessa uniformidade de órbitas e dos anos, bendizendo-se a si próprio como aquilo que deve eternamente retornar, como um devir que jamais conhece a saciedade, jamais o tédio, jamais a fadiga: este mundo dionisíaco da eterna criação de si mesmo, este mundo misterioso das voluptuosidades duplas, meu “além do bem e do mal”, sem fim, senão o fim que reside na felicidade dos círculo, sem vontade, senão um anel que possua a boa vontade de seguir seu velho caminho, sempre em redor de si mesmo. Este mundo, que eu concebo, quem, pois, possui o espírito bastante lúcido para contemplá-lo sem desejar ser cego? Quem é bastante forte para apresentar sua alma ante esse espelho? Seu próprio espelho ao espelho de Dioniso? E aquele que fosse capaz disso não precisaria que fizesse mais ainda? Ofertar-se a si mesmo “ao anel dos anéis”? Como o voto do próprio retorno de si mesmo? Com o anel da eterna bênção de si, da eterna afirmação de si? Com a vontade de querer sempre e ainda uma vez? De querer para trás, de quere todas as coisas que já foram? De querer para o futuro, de querer todas as coisas que serão? Sabeis agora o que é para mim este mundo? E o que eu quero, quando quero este mundo? Quereis um nome para esse universo, uma solução para todos os enigmas? (Nietzsche, 2011, § 385, grifos nossos).


Nietzsche oferece o nome para este mundo, ao sentenciar: “este mundo é o mundo da vontade de potência e nada mais! E vós também sois esta vontade de potência e nada mais...”.  (ibid., ênfases no original).

2. A fundamentação do pensamento do Eterno Retorno

Nesta seção, vamos mostrar como Nietzsche aspirou a fundamentar a doutrina do Eterno Retorno a partir dos postulados da física de sua época. No entanto, conforme nota Jaspers (2015, p. 500), “(...) esse caminho também não era decisivo para o sentido filosófico do pensamento [do Eterno Retorno]”. Ora, se a tentativa de fundamentar cientificamente a doutrina do Eterno Retorno fracassa, de algum modo, cabe perguntar por que nos preocupamos em trazê-la à baila. É que, ao a considerarmos aqui, podemos ver mais claramente em que consiste o seu sentido filosófico. O sentido filosófico da doutrina do Eterno Retorno não se revela na tentativa que Nietzsche faz de fundamentá-la a partir dos postulados da física de sua época; esse sentido só se descerra sob o modo de um transcender dessa doutrina. É esse transcender que lhe confere o caráter de “estranheza” quando consideramos a totalidade da obra nietzschiana. Essa estranheza expressa-se como máxima tensão, ou ainda, constitui o ponto máximo da confrontação (no sentido heideggeriano do termo) de Nietzsche com a tradição,  a saber, com a metafísica e suas forças reativas. Os comentadores que assumiram – a nosso ver de modo precipitado – que o Eterno Retorno é uma doutrina metafísica, paradoxalmente imiscuída num pensamento que afirma a pura imanência do ser, do mundo, não souberam atentar para o caráter subversivo da doutrina, que só se realiza na medida em que Nietzsche se apropria, num primeiro momento, do lugar de fala da voz metafísica e de seu desejo de negar o devir em favor da permanência, a qual se perfaz uma eternidade situada fora do tempo. Referindo, novamente, Jaspers, devemos atender ao seguinte:

É incontornável para que alcancemos a compreensão desse pensamento que reunamos as coisas que Nietzsche enunciou sobre o eterno retorno. Ao fazermos isso, deparamo-nos com uma doutrina  fundamentada fisicamente do cosmos mas que, como tal, não pode ser visada, pois o que está em questão é o transcender dessa doutrina em direção a um ser, que é essencialmente diverso de todo ser meramente físico e mecânico no mundo. O pensamento não é desenvolvido tanto por causa de seu conteúdo material, como se se tratasse de um objeto de pesquisa, mas muito mais porque ele deve ser “o peso mais pesado” para a autoconsciência do homem: quem o compreende corretamente,  e o suporta comprova aí a sua força: o pensamento provoca o surgimento de um processo de seleção e se torna um meio para a elevação do ser humano no futuro. (Jaspers, ibid., p. 497, ênfases no original).



Vale dizer que esse “transcender” da doutrina do Eterno Retorno significa um ir além da concepção mecanicista do mundo. De fato, a força do pensamento do Eterno Retorno não pode ser remetida ao caráter cosmológico da doutrina, mas justamente à primeira seleção a que se refere Deleuze, qual seja, a que faz do pensamento do Eterno Retorno um pensamento que recusa “os semiquereres”. Sendo o pensamento do Eterno Retorno “o peso mais pesado”, ele só pode ser suportado por um novo tipo humano. Nesse tocante, Nietzsche é bastante enfático:

Para que os homens possam suportar a ideia do eterno retorno, é mister que sejam livres da moral; que encontrem meios novos para combater a realidade da dor (deverão considerá-las instrumento, como geradora do prazer; não há uma consciência que somasse o desprazer); o gozo que oferece toda espécie de incerteza, de tentativa como contrapeso contra o fatalismo extremo; supressão de toda ideia de necessidade, supressão da “vontade”; supressão do “conhecimento em si”. (Nietzsche, 2011, § 379).


Sem mais delongas, consideremos como Nietzsche buscou empreender a fundamentação científica de sua doutrina do Eterno Retorno. Nietzsche orienta sua argumentação a partir de três pressupostos. O primeiro pressuposto assenta no reconhecimento de que o devir é incessante, é a transformação incessante das coisas: “(...) se [o mundo] fosse capaz de preservar e cristalizar, capaz de ser, se no decorrer de seu devir possuísse, embora por um instante somente, essa faculdade de ser, já teria há muito acabado todo devir”. (ibid., § 380). Nenhum estado final pode ser alcançado. O segundo pressuposto constitui a afirmação da ausência de finalidade e do ser em si do mundo: “Se o mundo tivesse um fim, já deveria ter sido alcançado”. (ibid.). O terceiro pressuposto mantém que tanto o espaço quanto a força devem ser finitos para que seja possível o movimento do eterno retorno. Desses três pressupostos, Nietzsche deriva três conclusões. A primeira conclusão é que o devir não pode ser infinitamente novo, porque, se assim fosse, a força deveria expandir-se infinitamente. Como, no entanto, a força não cresce, não se expande, resta ou o estado de repouso, ou o Eterno Retorno. Mas, se houvesse um estado de repouso, o mundo teria atingido seu fim, coisa que, segundo Nietzsche, nunca aconteceu. O Eterno Retorno segue-se, pois, como conclusão evidente. A segunda conclusão assenta na afirmação de que, sendo a força finita, o número de variações,  transformações, combinações dessa força, embora seja praticamente imensurável, jamais pode ser infinito. A conclusão também mantém que, dada a infinitude do tempo, todas as combinações possíveis já precisam ter estado presentes. Por fim, a terceira conclusão afirma que, como já estiveram presentes todas as possibilidades, é impossível ao mundo alcançar um estado final de equilíbrio, um persistir do ser. Em virtude da infinitude do tempo, o repouso é impossível, portanto.
É importante enfatizar que o recurso de Nietzsche à ciência na tentativa de fundamentar a doutrina do Eterno Retorno se faz num contexto de crítica ao mecanicismo com sua concepção teleológica de mundo. Mas o sentido filosófico do pensamento do Eterno Retorno só é alcançado quando este pensamento transcende à própria tentativa que Nietzsche faz de lhe dar uma fundamentação “científica”. É o que veremos na seção seguinte, quando nos deteremos na análise do aforismo 341 de A Gaia Ciência e do texto Da visão e do enigma de Assim falou Zaratustra.



3. O Eterno Retorno como a máxima expressão da vontade de poder


Principiemos nossa análise do pensamento do Eterno Retorno, a fim de trazer à luz seu sentido filosófico, tomando, em primeiro lugar, o aforismo 341 de A Gaia Ciência. Transcrevemo-lo abaixo:

E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes, e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante, e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!” – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante extraordinário, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse vontade de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez, a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? (grifos nossos).


O texto, já de início, se nos apresenta como uma narrativa escrita no modo condicional, o que lhe confere o estatuto discursivo de uma hipótese, uma conjectura (“se um demônio lhe aparecesse...e lhe dissesse...”). Gostaríamos de frisar um momento específico da leitura que Rosset faz desse aforismo:

(...) o eterno retorno é apresentado, de saída (pois se trata do primeiro texto publicado por Nietzsche sobre o assunto), não como uma tese tratando da verdade das coisas, mas como hipótese convidando a uma reação afetiva. (Rosset, ibid., p. 83, grifo nosso).


O trecho que destacamos em negrito é de extrema importância tanto para a sustentação da validade da tese cujo desenvolvimento justifica a produção deste texto–a tese de que a filosofia de Nietzsche constitui um verdadeiro exercício espiritual destinado a cunhar um novo modo de ser naquele que nela se exercita – quanto para a sustentação de nossa convicção de que o que está em jogo na doutrina do Eterno Retorno é justamente essa reação afetiva que deve ser perfeita como um “salto” transformador das forças reativas, do negativo das vontades de poder que nos atravessam. Essa reação afetiva é o ponto de conversão da disposição afetiva pessimista, niilista, negadora, em disposição afetiva trágica, afirmadora, dionisíaca. Essa reação afetiva assinala a passagem decisiva de uma vida fraca, decadente, melancólica, esgotada sob o peso das “paixões tristes”, para uma vida alegre, mais potente, jubilosamente afirmativa de tudo que foi, é e será. Devemos aqui ouvir Rosset:

O que avalia a ideia do eterno retorno é a intensidade respectiva de alegria e de tristeza, cuja “última e eterna confirmação”, “última e eterna chancela” ela autoriza em definitivo. E é nesse sentido – e, acredito, neste único sentido – que o pensamento do retorno constitui em Nietzsche um pensamento decisivo. (Rosset, ibid., p. 85).


O sentido filosófico da doutrina do Eterno Retorno remete, portanto, a esse ponto de conversão levada a efeito por aquela reação afetiva a cuja efetivação faz apelo o Eterno Retorno. Segundo Rosset, o pensamento do Eterno Retorno tem um caráter revelador. Sua revelação é da ordem da psicologia humana (entendida no sentido que lhe dava Nietzsche, evidentemente). Preferimos dizer que essa revelação é da ordem da constituição afetiva do corpo ou, o que dá no mesmo, do espírito; nesse sentido, o Eterno Retorno revela “o desejo ótimo naqueles que tomam a ideia do retorno levianamente (...) e a doença do desejo naqueles que ressentem tal ideia como eminentemente pesada e poderosa”. (ibid.). Ainda segundo Rosset, o Eterno Retorno exige do afirmador a fidelidade de todo amante: que ama o amor e quer continuar amando a despeito dos tormentos, dos riscos, dos fracassos que o estado amoroso envolve.
Na medida em que o negativo constitui o homem (aliás, é isto que Deleuze reconhece), o Eterno Retorno se dirige a este homem decadente, esgotado, niilista, ressentido, produzido e conservado pela velha moral; é a este homem cuja vontade de poder tem como qualidade predominante o negativo, é a este tipo pessimista que o Eterno Retorno interpela. Mas como podemos chegar a esta conclusão? Para que o caminho até ela se descerre sem as sombras espessas da incompreensão, devemos atentar no que nos ensina Casanova:

(...) a figura demoníaca do texto nietzschiano traz consigo uma caracterização da existência capaz de niilizar a própria constituição das ações. Ela não auxilia o indivíduo singular na construção de uma vida pautada pela ideia do bem, mas desenrola sem compaixão o fio de uma doutrina seletiva. Como um gênio maligno de posse de um jogo essencial e perigoso, o demônio viabiliza através da ressurgência incessante das mesmas circunstâncias existenciais a determinação da medida de poder de suportação do singular ante o modo de ser “imoral” da totalidade. (Casanova, 2013, p. 218-219).


O demônio personifica já nesse texto o espírito de negação, o poder de negar, a vontade de nada, muito embora ele apareça no aforismo 341 como aquele que convoca para o embate, criando “o pior dos mundos possíveis” (ibid., p. 219). O que o demônio narra “é a existência em um teatro de horrores, no qual sem sabermos funcionamos como pequenos bonecos de cera”. (ibid.). O que o demônio anuncia é “o peso mais pesado”: “ a suposição de que precisamos viver inumeráveis vezes a mesma vida em todos os seus mínimos detalhes retira das ações toda a sua necessidade” (ibid.).

(...) A vida não apenas não possui nenhuma dimensão distinta da aparência deveniente como também se repete inúmeras vezes em sua configuração circunstancial. Todos os erros e todas as mazelas sem qualquer justificação transcendental precisam ser sempre uma vez mais experimentados em sua carência infinita: todos os prazeres e todos os acertos, em sua fugacidade mais insuportável. (ibid.).


O que pretendemos fique claro aqui é que é justamente a criação de um mundo de horrores, mundo junto ao qual retornamos “como personagens inconscientes de uma peça completamente definida em todos os seus ínfimos elementos” (ibid., p. 220); é justamente o assombro em face da possibilidade de que o que somos e o que seremos não passe de uma retomada do que fomos; é justamente porque o pensamento do Eterno Retorno, tal como anunciado pelo demônio, implica “um infindável inversão da ampulheta do tempo e a simples repetição de toda a existência em cada um de suas determinações circunstanciais” (ibid.); é justamente porque se inviabiliza toda liberdade de um singular humano, não lhe restando senão sucumbir ao peso de uma profunda letargia; é justamente por tudo isso que o pensamento do Eterno Retorno se instaura como um espaço discursivo dialogicamente relacionado com o niilismo e suas formas. Se ignorarmos essa relação dialógica, se ignoramos que a figura do demônio representa o espírito negativo, o poder niilista, se ignorarmos o fato de que quem poderia falar pela voz do demônio é o sábio Sileno; se ignorarmos que a pergunta que o Eterno Retorno traz é ela mesma trituradora, transformadora, o peso mais pesado em face do qual a vontade, a princípio, tenderia a recuar; se ignorarmos tudo isso, então não nos apercebemos da elevada conversão que pretende operar o Eterno Retorno naquele que lhe dá seu total assentimento.
Casanova mantém que, tal como enunciado pelo demônio, o Eterno Retorno faz aparecer um paradoxo no cerne do devir. Em que consiste esse paradoxo? Em primeiro lugar, já vimos insistindo que não podemos negar que o Eterno Retorno é, na fala do demônio, incompatível com a afirmação do devir como “caráter originário de todos os acontecimentos da totalidade”. (ibid.). De fato, o Eterno Retorno é a máxima expressão niilista relativamente à existência como um todo. No entanto, o Eterno Retorno, tal como é formulado pela figura do demônio, também nos lança a uma espécie de “jogo” cuja disposição das forças se abre para nós. Se, o que, num primeiro momento, se nos apresentava demoníaco; noutro momento, apresenta-se-nos como o que há de mais divino. Em outras palavras, o que antes representava a impossibilidade da efetivação das ações; em outro momento, se nos apresenta como “o suporte ontológico da máxima afirmação” (ibid.) do valor das ações. Essa transformação só é possível “se uma nova disposição das forças alterar radicalmente o caráter distintivo de todo o jogo”. (ibid., ênfase no original). É justamente o instante extraordinário esse elemento novo que instaurará o horizonte diverso para que uma nova disposição de forças se dê, conforme nos dá testemunho Casanova: “somente através da vivência de um certo instante extraordinário é possível alcançar a superação da tendência primária para uma negação desesperada da infinita inversão da ampulheta do tempo” (ibid., p. 201).
Quando nos perguntamos sobre qual é a relação do instante extraordinário com o Eterno Retorno, quando o que nos preocupa é saber de que modo o instante extraordinário nos liberta do determinismo insuportável do movimento de configuração da realidade, somos conduzidos a buscar uma resposta no exame de Da visão e do enigma de Assim falou Zaratustra.
Doravante, vamo-nos ocupar do exame do Eterno Retorno no texto Da visão e do enigma. O livro Assim Falou Zaratustra constitui uma paródia dos textos bíblicos, em especial, dos Evangelhos canônicos da Bíblia cristã. Enquanto paródia, o Zaratustra nietzschiano rompe abertamente com o modelo retomado. Porque se constitui enquanto paródia, o Zaratustra funciona como um canto que desafina o tom conservador de uma dada prática discursiva hegemônica no Ocidente. A paródia mantém uma relação de negatividade com o texto-base, isto é, se produz com o objetivo claro de fazer-lhe oposição.
A compreensão do Eterno Retorno, em Da visão e do enigma, se fará tomando-se como o horizonte de sua máxima realização o instante extraordinário. Uma vez que Zaratustra é o mestre do Eterno Retorno – ou, como prefere chamar Deleuze, o pai do Eterno Retorno -, ele é o caminho para a concretização da vida a partir da afirmação existencial da pergunta demoníaca. Segue, abaixo, o trecho do texto que nos interessa para efeito de discussão.

Alto lá, anão! Falei: “Eu ou tu!” Mas eu sou o mais forte de nós dois – tu não conheces meu pensamento abismal! Esse – não poderias suportar! –
Então ocorreu algo que me fez mais leve: pois o anão pulou de meus ombros, por curiosidade! E foi se acocorar sobre uma pedra à minha frente. Mas havia um portal justamente ali onde paramos.
“Olha esse portal, anão! Falei também; “ele tem duas faces. Dois caminhos aqui se encontram; ninguém ainda os trilhou até o fim.
Essa longa rua para trás: ela dura uma eternidade. E a longa rua para lá – isso é outra eternidade.
Eles não se contradizem, esses caminhos; eles se encontram frontalmente: - é aqui, neste portal, que eles se encontram. O nome do portal está em cima: “instante”.
Mas, se alguém seguisse por um deles – sempre mais adiante e mais longe: acreditas, anão, que esses caminhos se contradizem eternamente? –
“Tudo que é reto mente”, murmurou desdenhosamente o anão. “Toda verdade é curva, o próprio tempo é um círculo”.
“Ó espírito de gravidade! , falei irritado, “não tornes tudo tão leve para ti! Ou te deixo acocorado onde estás, perneta – e eu te trouxe bem alto!
“Olha, continuei a falar, esse instante! Desde esse portal, uma longa rua eterna conduz para trás: atrás de nós há uma eternidade.
Tudo aquilo que pode andar, de todas as coisas, não tem de haver percorrido esta rua alguma vez? Tudo aquilo que pode ocorrer, de todas as coisas não tem de haver ocorrido, sido feito, alguma vez?
E, se tudo já esteve aí, que achas, anão, desse instante? Também esse portal não deve já – ter estado aí?
E todas as coisas não se acham tão firmemente atadas que esse instante carrega consigo todas as coisas por vir? Portanto – também a si mesmo?
Pois o que pode andar, de todas as coisas, também nessa longa rua para lá – tem de andar ainda alguma vez!
E essa lenta aranha que se arrasta à luz da lua, e essa luz mesma, e tu e eu junto ao portal, sussurrando sobre coisas eternas – não temos de haver existido por todos nós? – e de retornar e andar nessa outra rua, lá, diante de nós, nessa longa e horripilante rua – não temos de retornar eternamente? –.
Assim falei eu, e cada vez mais baixo: pois temia meus próprios pensamentos e intenções ocultas. Então escutei, subitamente, um cão uivar na vizinhança.
Alguma vez escutei um cão uivar assim? Meu pensamento correu para trás. Sim! Quando era criança, na mais longínqua infância:
- então ouvi um cão uivar assim. E também o vi, eriçado, com a cabeça para cima, tremendo, na mais silenciosa meia-noite, quando também os cães acreditam em fantasmas.
- de maneira que tive pena. Pois justamente então a lua cheia estava sobre a casa, mortalmente calada, justamente então se encontrava parada, uma redonda incandescência – parada sobre o telhado plano, como em propriedade alheia: -
com isso assustava-se o cão: pois os cães acreditam em ladrões e fantasmas. E, quando novamente escutei aquele uivo, tive pena mais uma vez.
Para onde tinha ido o anão: e o portal? a aranha? E todos os sussurros? Entre os rochedos selvagens me achava eu de repente, sozinho, ermo, no mais ermo luar.
Mas ali jazia um ser humano! E ali estava o cão, pulando, eriçado, ganindo – viu-me chegar – uivos novamente, então gritou: - algum dia escutei um cão assim por socorro?
E, em verdade, o que vi, jamais vira igual. Vi um jovem pastor contorcendo-se, sufocando, estremecendo com o rosto deformado, e uma negra, pesada serpente que lhe saía da boca.
Alguma vez vi tanto nojo e pálido horror em um rosto? Havia ele dormido? E a serpente rastejou para dentro de uma garganta – e ali mordeu firmemente.
Minha mão puxou e tornou a puxar a serpente: - em vão! não conseguiu puxar a serpente da garganta. Então de dentro de mim se gritou: “Morde! Morde!
Corta a cabeça! Morde!” – assim se gritou de dentro de mim, meu horror, meu ódio, meu nojo, minha pena, tudo de bom e ruim gritou com um grito de dentro de mim –
Ó ousados ao meu redor! Vós, amantes dos enigmas!
Então interpretai-me o enigma que enxerguei, então interpretai-me a visão do mais solitário!
Pois era uma visão e uma premonição: - o que vi eu então em alegoria? E quem é esse que um dia terá de vir?
Quem é o pastor em cuja garganta a serpente entrou? Quem é o homem em cuja garganta entrará tudo de mais pesado, de mais negro?
- Mas o pastor mordeu, tal como lhe disse meu grito; mordeu com boa mordida! Para longe cuspiu a cabeça da serpente -: e levantou-se de um salto. –
Não mais um pastor, não mais um homem – um transformado, iluminado que ria! Jamais, na terra, um homem riu como ele ria!
Ó meus irmãos, escutei um riso que não era riso de homem - - e agora me devora uma sede, um anseio que jamais sossega.
Meu anseio por esse riso me devora: oh, como suporto ainda viver? E como suportaria agora morrer? –

Assim falou Zaratustra.


O ponto de partida do Eterno Retorno é o acontecimento da morte de Deus. É sob a forma de enigma que Zaratustra apresentará o Eterno Retorno. Com a morte de Deus, foi abolida a separação entre mundo-verdade e mundo aparente. O mar está aberto de novo. Retome-se aqui a ideia de que o Eterno Retorno traz em si um potencial niilista.

Onde viver não é senão uma eterna repetição do já vivido, a existência perde o seu caráter de decisão criativa: nenhuma configuração é capaz de alterar as configurações futuras e todas permanecem presas ao presente em sua absoluta vacuidade. Todo lançar-se para além de si mesmo, toda esperança e todo projeto não passam de um incessante retorno ao mesmo lugar. (Casanova, ibid., p. 225).


Eis então o que podemos chamar de atmosfera niilista do Eterno Retorno: tanto o grande homem quanto o pequeno homem sucumbem eternamente à incontornabilidade da dissolução de suas existências singulares. Nada tem valor, nada escapa à circularidade do devir; nada é; e tudo é em vão. Assim, o Eterno Retorno resulta da conjugação de um tempo infinito com um número finito de composições entitárias da totalidade. O novo homem, que tem de renascer pela adesão incondicional ao Eterno Retorno, tem de ser forjado, cunhado com sangue, fogo e suor. Somente quando o “peso mais pesado” é superado que o pensamento do Eterno Retorno alcança sua plenitude específica.
Continuemos a nos deter no potencial de niilização da vida próprio do Eterno Retorno, a fim de que o seu sentido filosófico seja apreendido em todo o seu poder transformador. Atentemos no que nos diz Casanova abaixo:

Em meio à assunção do devir como o traço essencial de todos os acontecimentos do real, vemo-nos diante da impossibilidade de atribuir a cada um desses acontecimentos qualquer peso ontológico . Onde tudo devém, nada chega a se mostrar em suas determinações mais constitutivas porque todo ser é imediatamente negado pela instauração de configurações sempre diversas. (Casanova, ibid., p. 229, ênfase no original).


Todo o problema prefigurado, a esta altura, diz respeito à questão sobre a possibilidade de compatibilizar dois elementos considerados opostos no quadro de referência da metafísica tradicional: ser e devir. Também é preciso deixar claro que o pensamento do Eterno Retorno é dito o pensamento abismal não porque afirme o abismo como a única determinação da totalidade da existência, mas porque permite a travessia em direção à superação da vertigem em face do abismo. Ora, a experiência do abismo é insuportável porque é caracterizada pela impossibilidade de encontrarmos um limite para a sua infinitude. Etimologicamente, “abismo” envolve a ideia de ausência de um derradeiro fundamento de si mesmo. É o sem-fundo. A queda no abismo jamais se interrompe, pois falta ao abismo um ponto fixo. Por isso, “diante do abismo somos tomados por uma incontrolável vertigem porque nosso olhar se perde em meio a uma profundidade inabarcável”. (ibid., p. 228). É da experiência vertiginosa do abismo que “a sensação da essência vã de todas as tentativas de conquistar um sentido para a existência emerge em sua máxima intensidade, e a compaixão pelo gigantesco sofrimento humano ganha mais força”. (ibid., p. 2412).
O portal constitui o marco do começo da superação da negatividade do pensamento do Eterno Retorno, dado que reestrutura as três dimensões constitutivas do tempo (passado, presente e futuro). O renascimento do novo homem pelo Eterno Retorno depende da ruptura da dinâmica da temporalização de nossa experiência ordinária. Temos, habitualmente, uma concepção tripartida do tempo. Essa concepção tripartida do tempo determina o modo como normalmente consideramos a totalidade da existência. Sucede que nossa compreensão mediana do tempo repercute as próprias determinações do pensamento metafísico. Como nota Casanova (ibid., p. 232), “elas derivam-se da capacidade histórica da metafísica para estruturar as nossas posturas existenciais”. A concepção tripartida do tempo é uma consequência imediata da essência moral da metafísica em sua relação estreita com a ideia cristã de criação. Vê-se agora, mais claramente, o aspecto antimetafísico do Eterno Retorno: uma vez que ele instaura um novo horizonte para a experiência humana do tempo, deixa de ter vigência a experiência do tempo enquanto tempo linear e finito, determinada pelos padrões do pensamento metafísico. Com a supressão da avaliação moral da existência, elimina-se também a clássica segmentação da realidade em dois mundos; e essa dupla supressão se faz acompanhar do desaparecimento dos limites que fixavam a linearidade do tempo. Destarte, “a realidade nunca começou, mas sempre necessariamente recomeça” (ibid., p. 233). Suprimida a linearidade do tempo, o tempo sempre retorna no fim ao seu começo. A temporalidade afirma-se circularmente. A morte de Deus e a afirmação da soberania do devir implicam a concepção circular do tempo.
No entanto, a afirmação da circularidade do tempo não é ainda suficiente para a restruturação temporal da experiência humana. Ademais, o espírito de peso considera o círculo como o caráter originário dos acontecimentos em geral, de sorte que essa concepção inviabiliza uma distinção temporal entre esses acontecimentos.  Decorre daí que a tripartição metafísica do tempo é substituída por uma total indistinção entre as três dimensões constitutivas do tempo. Além disso, é a própria temporalidade que é niilizada. Ainda vige a avaliação do espírito de peso.

Como o espírito de peso considera as múltiplas configurações possíveis do real enquanto composições fugazes de um mundo em constante dinamicidade e deduz a partir da articulação da grandeza finita das forças em jogo na totalidade com a infinitude do devir a repetição eterna das mesma configurações em uma sequência inexorável, cada uma das três dimensões temporais acaba por encerrar em si as determinações estruturais das outras duas. O que agora se dá em uma velocidade irrepresentável não possui nenhuma temporalidade específica porque se perfaz a partir de uma ausência radical de parâmetros fixos. Ininterruptamente gira a ampulheta do tempo, sem que qualquer corte propicie a instauração de diferenciações entre passado, presente e futuro. Ininterruptamente sofrem os arranjos singulares da realidade a ação dissolutora do devir, que nunca se depara com nenhum verdadeiro obstáculo à sua atuação. (ibid., p. 233).


A ação dissolutora do devir reduz a “ínfimos grãos de areia sem qualquer significação para o todo” (ibid.) todas as conformações entitárias do real. Sob a vigência da lógica do devir, ficam inviabilizadas as determinações ontológicas e a vivência temporal. Nesse universo de imensa monotonia, reina o tédio, experimenta-se o nojo diante da finitude.
Considere-se, doravante, a significatividade do portal ou instante para a superação desse mundo niilizado sob a vigência da avaliação do espírito de peso. O instante emerge como a instância constitutiva da própria experiência do tempo: “é o ponto de convergência de duas longas ruas contraditórias”. (ibid., p. 134). O instante constitui a condição de possibilidade de separação do passado relativamente ao futuro e da produção da totalidade do tempo. É somente quando se atribui ao instante certa densidade ontológica que faz sentido estabelecer um antes e um depois relativamente a este agora. Não se trata de retomar a concepção tripartida do tempo, mas de reconhecer que o instante representa o solo onde se enraízam todas as dimensões do tempo. O passado e o futuro se originam do instante e se revelam como integrantes da espessura ontológica do instante. O instante do Eterno Retorno é o ponto em que o passado e o futuro se tocam. Consoante diz Vattimo (2010, p. 43-44),

O que dá significado à doutrina [do Eterno Retorno] é a função que nela exerce o instante. Estabelecida a estrutura circular do tempo, cai a perspectiva “retilínea”, em que o passado podia ser um peso irreversível sobre os ombros do presente e do futuro, mas a relação de recíproca determinação entre passado e futuro só se torna possível a partir do presente como momento de decisão.  



Antes de determinarmos semanticamente que decisão é esta, precisamos ter em conta o fato de que Zaratustra não está negando a existência do passado e do futuro para afirmar como única realidade temporal o instante. O que ele faz, na verdade, é assumir o instante como um horizonte necessário para a própria possibilidade de produção de um discurso sobre o passado e o futuro. Consoante nos ensina Cabral (2015, p. 238), “(...) todas as possibilidades passadas, presentes e futuras já precisam ter uma vez percorrido esta eterna rua para trás porque o instante sintetiza em si mesmo em cada momento desta rua a totalidade do tempo”. Importa reter a ideia de que o instante é o cerne do conceito de Eterno Retorno. (ibid., p. 162).
Convém agora entender como é possível a Zaratustra deduzir da eternidade do passado o fato de todas as coisas possíveis já terem percorrido o caminho desde a eternidade. Ora, está claro que da eternidade do passado só podemos inferir a inexistência de um começo para a totalidade da existência, mas não podemos inferir daí que todas as coisas possíveis tenham já percorrido o caminho a partir da eternidade. Para que possamos compreender como foi possível a Zaratustra fazer essa dedução, devemos assumir que o instante a que alude o pensamento do Eterno Retorno é mais do que o horizonte indispensável à distinção entre passado e futuro; é, fundamentalmente, “o solo de enraizamento de todos os acontecimentos do real”. (Casanova, ibid., p. 237). É o instante, pois, que encerra, em si mesmo, o passado e o futuro dos quais depende a própria integralidade do instante.
A diferenciação entre as possibilidades efetivadas e as possibilidades que virão a se efetivar só é possível mediante a abertura do campo do acontecimento presente a partir do instante. O instante, portanto, constitui o campo de referência em relação ao qual o passado e o futuro, ou melhor, as possibilidades efetivadas e as que ainda vão se efetivar se dão simultaneamente às conformações presentes. O devir é o caráter essencial do acontecimento originário da totalidade da existência. Agora o devir não é incompatível com qualquer determinação ontológica, pois que “a vida jamais conquista a si mesma para além do instante contraditório da unidade entre forças de dissolução e forças de concreção das individuações possíveis do todo”. (ibid.).
Segundo Casanova, quando consideramos o instante, nunca o vemos como “uma única possibilidade singular”. (ibid.). Todas as possibilidades presentes, passadas e futuras se põem a descoberto, de certo modo, no instante. Não se trata de pensar a vida como uma estrutura de possibilidades que se mostra para além do instante, mas como possibilidades que se perfazem a si mesmas como estrutura a cada instante. Assim, tudo que pode acontecer precisa já ter acontecido, porque a realidade está totalmente dada, a cada instante, em cada uma de suas configurações. Não se trata aí de pensar que o círculo do real se perfez inúmeras vezes, mas de entender que “ele se instaura no interior do próprio instante”. (ibid., p. 238). O caráter circular do tempo não deve, portanto, ser representado como “uma sucessão sempre retomada de arranjos possíveis do mundo”. (ibid.). Todas as coisas retornam eternamente neste momento; este momento condiciona a possibilidade de todas as coisas. Destarte, o pensamento do instante é a redenção da fugacidade do mundo deveniente por meio da reconciliação do devir com a eternidade.
É sumamente importante, a esta altura, que não percamos de vista o fato de que é somente a coragem que pode superar a experiência do abismo, viabilizando a emergência da afirmação: “Era isto a vida? Pois muito bem! Outra vez!”. É preciso que o pensamento de Zaratustra e o próprio Zaratustra alcancem uma copertença plena. Assim, segundo Casanova (ibid., p. 243), “o mestre do eterno retorno tem de provar com a sua existência a possibilidade de um aquiescimento total ao instante como a síntese da totalidade do tempo”. Não pode haver distância entre a doutrina e o seu mestre.
O passo definitivo em direção à resposta afirmativa plena à vida depende da junção de instante e eternidade. A fim de que possamos compreender como se opera essa junção, consideremos o significado simbólico da serpente e da águia, dois dos animais de Zaratustra.
A serpente é um dos animais de Zaratustra que simbolizam o Eterno Retorno. Vejamos como se constrói simbolicamente as figuras da serpente e da águia a partir da leitura do prólogo 10 de Assim Falou Zaratustra.

Isso falou Zaratustra ao seu coração, quando o sol se achava ao meio-dia: então olhou para o céu, indagador – pois ouvia no alto o grito agudo de um pássaro. Eis que uma águia fazia vastos círculos no ar, e dela pendia uma serpente, não como presa, mas como uma amiga: pois estava enrodilhada em seu pescoço. “Estes são meus animais!”, disse Zaratustra, e alegrou-se com todo o seu coração. (2011b, p. 24).


Devemos notar, em primeiro lugar, que tanto a águia quanto a serpente faziam movimentos circulares em pleno voo. Ao retirar a serpente do chão, a águia suspende o efeito opressor da gravidade sobre aquela e a conduz até a altura. A altura simboliza o salto relativamente à natureza primeva da circularidade em jogo. Mas, como pensamento experimental, o pensamento nietzschiano encena muitas perspectivas. Por isso, quando consideramos a articulação entre o pensamento do Eterno Retorno e o poder avassalador do peso mais pesado, a serpente simboliza todo o poder de nadificação inerente à pergunta sobre a possibilidade de libertar as ações humanas de sua carência de sentido. Lembremos que, da perspectiva demoníaca, a circularidade do devir faz emergir o abismo como uma implicação direta de sua soberania.

Como a serpente que astutamente se arrasta por sobre a aspereza da terra e repentinamente se volta sobre si mesma compondo um círculo perfeito, o mundo atravessa os arranjos mais diversos e sempre retoma por fim uma vez mais as mesmas conformações. Como a serpente presa às forças que a mantêm em contato com o solo e incapaz de se libertar por si mesma da ação implacável da gravidade, a existência também requer um outro elemento para interromper o incontornável de sua queda. Ao lado da serpente é preciso que outro elemento se apresente, se o eterno retorno do mesmo deve possuir mais do que uma significação negadora para a vida. A águia é este outro elemento. (Casanova, ibid., p. 246).


No texto Dos sábios famosos, à página 100 de Assim Falou Zaratustra, topa-se o seguinte fragmento, cuja leitura é importante para que possamos compreender o significado simbólico da “águia”: “E quem não é pássaro não deve permanecer sobre os abismos”. Já deve ter ficado claro que, se consideramos a circularidade do Eterno Retorno a partir da perspectiva da serpente, jamais conseguiremos escapar das consequências niilistas previstas nesse pensamento. É a águia que abre um novo horizonte perspectivístico para a avaliação do Eterno Retorno, visto que esse animal simboliza a possibilidade de dissociação entre o caráter circular do Eterno Retorno e a vigência do abismo. Somente a intervenção da águia torna possível a suspensão da reprodução infinita da negatividade da finitude. A própria condição da serpente, que antes do aparecimento da águia, insistia em seu percurso circular sob o poder do peso mais pesado, é transformada: quando transportada pela águia até a altura, a serpente passa a encontrar-se numa região de leveza absoluta. Não é o Eterno Retorno que se anula aí; é a conquista de um ponto de articulação entre esse pensamento e a afirmação do devir como caráter originário da existência que se representa.
Já não devemos ver o Eterno Retorno como uma inversão incessante da ampulheta do tempo. Embora a águia carreie a infindável repetição de todas as coisas para o cerne do Eterno Retorno, embora tudo, de fato, retorne, não significa que retornem as conformações já feitas da totalidade da existência. Não é que as mesmas tramas de acontecimentos, os mesmos encadeamentos de circunstâncias e de ocorrências do mundo retornem em suas ínfimos estruturas. Como salienta Casanova,

(...) o círculo da totalidade não se constrói, em outras palavras, a partir da reunião de todas as suas configurações em uma ordem já determinada, ele se reinstaura inversamente no cerne de cada instante singular. E é aqui que se explica a leveza constitutiva do voo aquilino. (ibid., p. 247).


Há que chamar a atenção para este ponto: todo caminho percorrido por Zaratustra na elaboração de sua doutrina do Eterno Retorno é marcado pelo embate contra uma das vozes constitutivas dessa doutrina: a voz do espírito mais pesado. O ápice desse embate prende-se à reconstituição do pensamento do Eterno Retorno a partir do instante, o qual, por sua vez, representa o âmbito onde se conquista a reconciliação entre a finitude e a eternidade. A metafísica é, assim, superada pela eliminação de suas dicotomias (finitude x infinitude; tempo x eternidade; ser x devir).
A reconciliação da finitude com a eternidade não se dá apenas como uma consequência lógica da compreensão do significado do pensamento do Eterno Retorno. Na verdade, essa reconciliação impõe uma decisão que toca à existência como um todo. Essa decisão é a expressão de um ato corajoso daquele que se lança no instante e aquiesce a ele como a síntese da totalidade do tempo. Somente quando se morde com força trituradora a cabeça da serpente é que se supera a dicotomia metafísica entre ser e devir. Somente aí se ouve o sim jubiloso do homem trágico.


É preciso partir com um golpe frontal a corrente atemporal do devir e, através de um instante extraordinário, devolver ao vivente a possibilidade de uma alegre serenidade. Somente através de um ato resoluto em nome da leveza de uma tal alegria abre-se o espaço para o aparecimento de um riso inocente em meio ao movimento de expansão e retração do real. À medida que este instante extraordinário vem à tona, ganha corpo uma transformação radical das disposições constitutivas do homem. “Cuspiu bem longe a cabeça da serpente e levantou-se de um pulo. Não mais pastor, não mais homem – um ser transformado, translumbrado que ria! Nunca até aqui, na terra, riu alguém como ele ria!”. (ibid., p. 248).







REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010.


CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Heidegger e a polimorfia de Deus. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, v.2, 2015.

CASANOVA, Marco Antonio. O instante extraordinário: vida, história e valor na obra de Friedrich Nietzsche.  Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Porto: Rés-Editora, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de Potência. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011a.

___________________. Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011b.

___________________. Ecce Homo. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013.

___________________. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

ROSSET, Clément. Alegria: A força maior. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.


SCHÖPKE, REGINA. Matéria em movimento: a ilusão do tempo e do eterno retorno. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

VATTIMO, Gianni. Diálogos com Nietzsche. São Paulo: Martins Fontes, 2010.














[1] Por acreditarmos que Nietzsche, mais do que qualquer outro filósofo, é um autor cuja produção escrita questiona o leitor a partir das prerrogativas que este julga ter como sujeito que, em face de um objeto simbólico, é instado a lhe dar um (entre tantos) sentido, é que este texto se faz acompanhar de outro texto, no qual discutimos alguns saberes que, reunidos, lançam luzes sobre as condições de produção da leitura.
[2] O que chamamos, com Heidegger, de historicidade do pensamento, guardadas as especificidades da interpretação heideggeriana, tem ressonância naquilo que a Análise do Discurso francesa chamará de historicidade do texto e interdiscurso. A historicidade do texto diz respeito ao fato de todo e qualquer texto poder ser apreendido como discurso, como acontecimento linguístico-histórico. Nesse sentido, falar em historicidade do texto é apreender a sua relação com a exterioridade constitutiva, que não é algo que está fora do texto, mas a própria materialidade histórica do texto, com suas marcas. Há uma relação entre a História (acontecimentos, eventos, formações sociais) e a historicidade do texto, que é a trama de sentidos nele, mas essa relação não é direta, nem de causa e efeito. O analista do discurso não parte da História para analisar o texto, mas sim do texto como materialidade histórica para compreender como a historicidade do texto produz sentidos. No que toca ao interdiscurso – também chamado de memória discursiva -, sendo ele mesmo a exterioridade constitutiva, recobre o já-dito, o que fala antes, em outro lugar. O interdiscurso põe em movimento dizeres que afetam o modo como o sujeito (do discurso) significa em uma dada situação discursiva.  A memória discursiva ou interdiscurso é a inscrição da língua na História; é o saber discursivo que torna possível todo dizer e que assume a forma do já-dito que está na base do dizível e que dá suporte a toda tomada de palavra.
[3] A linguagem é opaca. A opacidade da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem interpretação. A opacidade ou não transparência da linguagem consiste também na propriedade de o sentido poder ser sempre outro. (v. Orlandi, 2007, p. 20).
[4] O trecho também é revelador do fato de que Nietzsche, a despeito de reivindicar a originalidade de seu pensamento do Eterno Retorno, reconhecer que ela está em germe, ao menos, em filósofos que o precederam, como em Heráclito e nos estoicos. É razoável supor que Nietzsche deve ter pressentido a doutrina do Eterno Retorno também em Empédocles, Platão, Aristóteles, entre outros. Essa doutrina tem raízes muito antigas e orientais, sendo familiar ao, por exemplo, budismo e ao hinduísmo (v. Almeida, 2005).