sexta-feira, 18 de julho de 2014

"A religião é comparável a uma neurose da infância" (Sigmund Freud)

                               


                                     Psicanálise e religião
                                      A visão freudiana

    Minha imersão no universo da filosofia se deu sem muito esforço, sem trauma, sem aridez. Não posso evitar o clichê: foi naturalmente que me percebi seduzido pela filosofia, não como saber acadêmico, um saber engessado que é sinônimo de erudição, mas como exercício de existência; como prática de aprender a viver e a morrer. Minha imersão na filosofia foi uma consequência natural do amor ao saber, da dedicação incessante à leitura, ao aprendizado que daí decorre naturalmente. A filosofia conciliou-me com a vida, com a sua aridez e dureza. Mas não se enganem: não espero tanto assim da filosofia; apenas que ela me acompanhe e eu a ela, que, em seu exercício, eu continue aprendendo com ela, sem medo dos erros e dos equívocos a que todo pensador está inevitavelmente exposto. Errar quando pensamos não é razão de vergonha; mas de humildade, é errando em nossos raciocínios que buscamos aperfeiçoá-los. A filosofia, para mim, não é um cânone para pensar "corretamente", mas um caminho para pensar com liberdade, com honestidade, pouco importa por que caminhos retos ou tortuosos trafegarão os pensamentos. A filosofia é um exercício de autotranscendência, que deve ser assumido por cada um que mantém para com ele uma abertura. Abrir-se à filosofia é insuflar todo o espírito, o corpo, o coração de uma potência de existir. E a alegria do filósofo reside onde o homem da rua só vê inquietação e tristeza: na solidão dos pensamentos. É aí que mora a alegria do filósofo.
(BAR)

É com uma débil frustração que me debruço sobre a escrita deste texto, pois que, antes de iniciá-la, detive-me, por algum tempo, a procurar um texto que havia escrito, outrora, que versava, em parte, sobre o tema que desenvolverei aqui. Pretendia recuperar algumas ideias que externei naquele texto. Embora eu o tenha preservado em sua versão impressa, custa-me agora encontrá-lo.
 Afirmo, no entanto, ser uma débil frustração, porque ela se acompanhou de um indiscernível contentamento quando de minha redescoberta da quantidade de textos que estão arquivados em meu computador. Esses textos foram compilados em apostilas e muitos dos quais remontam a experiências intelectuais vividas há quase dez anos. Agradou-me entrever a mudança atravessada por meu espírito nas verbalizações em que ele deu testemunho de si. Ao revisitar esses textos, apreendo uma imagem de meu eu bastante distinta da imagem deste meu eu atual. O meu eu de outrora nutria algumas ilusões a respeito do mundo e de si mesmo, tomando-as como verdades para si. O meu eu atual não é, contudo, menos iludido, apenas tem consciência de que a ilusão é parte do real. Esse meu eu atual sabe que não existe enquanto substância. Ele nada é senão projeções imaginárias de um cérebro que, lhe conferindo uma substancialidade, o faz acreditar ser algo distinto do corpo ou, pelo menos, uma entidade que possui um corpo, embora reconheça que não pode existir independentemente do corpo. Muita tinta já correu para dar conta do valor de verdade de proposições como “eu tenho um corpo” e “eu sou meu corpo”. No primeiro caso, supõe-se a independência do “eu” em relação ao corpo, afirmando ser o “eu” uma substância que possui um corpo (outra substância). No segundo caso, estabelece-se uma relação de identidade entre o “eu” e o “corpo”, muito embora não se explique como esse corpo é capaz de asseverar essa identidade sem que se suponha justamente a inexistência dessa identidade, isto é, sem que se suponha um eu que, no ato de afirmar, coloque o corpo como objeto para si. Em outras palavras, afirmar que “eu sou meu corpo” parece complicar mais do que esclarecer o problema da relação mente-corpo que, em última análise, é o problema, ainda muito pouco compreendido, nas neurociências, da consciência, não só do que ela é, mas da possibilidade mesma de sua existência. Nossa intuição natural ou espontânea leva-nos a pensarmo-nos como “eu” irredutível ao corpo. Nós não escapamos dessa ilusão. Percebemo-nos como um “eu” singular, distinto, sentimo-nos como um “eu” que não se reduz ao corpo que, no entanto, é tomado como uma máquina “habitada” por esse “eu” (isso nos encaminha a questão denominada de “o fantasma na máquina”, que é uma crítica que o filósofo Gilbert Ryle fez do dualismo cartesiano).
Não me sinto suficientemente capaz de discutir, por ora, esta questão, nem tenho a pretensão de fazê-lo. Este texto é produto de algumas horas de pesquisa sobre a teoria psicanalítica de Freud, e sua produção e divulgação atendem ao meu interesse de apresentar, com o esmero que a tarefa demanda, como Freud explicava o fenômeno religioso a partir do aparato de conceitos e teorias psicanalíticas que desenvolvera. Não farei incursão imediata nessa questão, porque me parece indispensável situar o leitor na teoria psicanalítica de Freud. O que se seguirá, portanto, é a exposição dos pressupostos e conceitos de que se constitui essa teoria. Procurarei elucidá-la de modo mais didático possível.

1. O Desejo humano

Este é um hábito que incorporei: entretenho-me com meus próprios pensamentos, abandono-me à corrente impetuosa de palavras e fico a navegar em pensamentos, oscilando entre ideias serenas e crenças arrebatadoras. Consumo muitas horas do dia, buscando, muita vez, com esforço árduo, arranjar alguns pensamentos no papel, travando com a língua um embate que somente os poetas parecem capazes de vencer, uma vez que todo bom poeta força as palavras a testemunharem a ausência de formas de expressão, quando a linguagem teima em impor-nos ao pensamento os limites dela.
Gostaria de principiar este texto, convidando o leitor a pensar no quanto, nós, seres humanos, somos esquisitos, estranhos e absurdos. Quantas pessoas conhecemos que se mostram insatisfeitas com tudo? Quantas pessoas conhecemos que vacilam entre ação e omissão? Quantas pessoas não sabem o que desejam? Quantas pessoas não conseguem explicar os seus próprios sentimentos? Antes, porém, de despender esforços para desenvolver essas questões, refiro um trecho, muito esclarecedor, de um artigo do psiquiatra Fábio Herrmann, que se topa num livrinho da série primeiros passos, da companhia Círculo do livro. O artigo data de 1989. Nele, lemos o seguinte:

“(....) os homens divertem-se demais com os próprios pensamentos. São os únicos bichos, ao que se sabe, tão estúpidos que podem ficar imaginando e esquecer-se de comer; e o que é pior, quando pequenos e famintos, parece que conseguem ficar sonhando que estão a comer e contentar-se algum tempo com isso (...)  (pp. 53-54)


Quando preguei meus olhos nesse excerto, dei-me conta, com estúpida satisfação, de que eu me identifico com os homens que se distraem com seus próprios pensamentos e se esquecem de se alimentar. Sou um deles. Durante horas, detenho-me a escrever e não faço as refeições habituais do dia.  Ao que parece, a razão, se, por um lado, atraindo o fascínio dos filósofos e cientistas durante séculos, nos confere um lugar especial na filogenia das espécies; por outro lado, torna-nos seres estúpidos – certamente, estranhos -, na medida em que oferece aos nossos impulsos primários substitutos de espécie vária, enganando-nos a nós mesmos por alguns instantes.
Agora, convido o leitor a se deter a pensar no mundo que se agiganta, quando, seja através da janela, seja pelas imagens da televisão, seja nas viagens que realizamos, seja na azáfama da vida moderna nas grandes cidades, olhamos para ele. Nesse mundo, encontramos um universo de práticas, incontáveis construções, instituições (Leis, informações em cascatas, tecnologias, comércio, indústrias, centros de finanças, etc.). Olhemos para esse mundo incessantemente transformado, domesticado pela ação humana. Confrontemos os espaços desérticos e inóspitos à sobrevivência, abandonados pelo poder político, terras onde só germinam doenças, só grassam a pobreza e a miséria, com os grandes espaços urbanos, que são concretizações da ideia de progresso e civilização (melhor seria dizer, ideal de progresso e civilização), com seus edifícios suntuosos e designe moderno, com escolas, universidades, museus e hospitais. Agora, surpreendemo-nos: esse mundo, fabricado segundo o desejo e a vontade humanos, domesticado pelas ações humanas, construído e degradado continuamente pelos próprios homens, esse mundo, que representa bem o desejo humano, é negado pelos próprios homens, que se irritam ao reconhecer que sua obra exprime bem o seu desejo. Estranho? Os homens acreditam, assim, que não tendo humanizado e domesticado o mundo completa e satisfatoriamente, a obra que construíram – o mundo – não é produto de suas ações e que ainda falta uma grande parte para ser domesticada. Estranho? Freud nos explica.
A psicanálise nos ensina que os homens não sabem bem o que desejam, que eles não desejam realmente o que querem. Nosso verdadeiro desejo, como veremos, permanece inconsciente, conquanto se manifeste sob outras formas à vida psíquica. Refiro as palavras de Herrmann, que sintetizam bem o que me parece ser a eterna incoerência humana:

“(...) O mundo edificado por nossa cultura humanizou-se tanto, no sentido de ser tão fabricado, que sua sombra, o lado desconhecido do desejo humano, acabou por aparecer mais do que devia. O real começou a ficar um tanto duvidoso, e o homem a ver-se, a malgrado seu, cada vez mais absurdo para si mesmo”(ib.id.).

Conforme veremos, a psicanálise se ocupará com o estudo do inconsciente, visando a contribuir para que o homem, apercebendo-se do absurdo que o constitui essencialmente, reconcilie-se com esse absurdo e consigo mesmo. Uma leitura rápida em qualquer texto que trata de psicanálise é suficiente para nos levar à compreensão de que a consciência humana é determinada pelos impulsos inconscientes, ou seja, a vida consciente é determinada pela vida inconsciente. Agimos motivados por forças que não dominamos e das quais não estamos conscientes.

2. Os fundamentos da Psicanálise

A teoria psicanalítica de Freud baseia-se em dois pressupostos gerais:

a) a sexualidade infantil cumpre um papel fundamental na formação da personalidade;

b) motivos e conflitos inconscientes estão não só na base da formação da personalidade, como também explicam os pensamentos e as ações dos indivíduos.

A palavra personalidade recobre aqui o padrão de pensar, sentir e agir característico de cada indivíduo. Tendo em conta o significado de personalidade que adoto, não exageramos em afirmar que toda a teoria psicanalítica de Freud (provavelmente, toda a psicanálise que tem para com Freud, aí também, uma grande dívida) tem como centro estruturante a hipótese do inconsciente. Em outras palavras, a psicanálise talvez não existisse como tal sem a suposição de que a mente está, na maioria das vezes, escondida.
A psicanálise reza que o que chamamos de mente (que não deve ser confundida com psique) se estrutura em duas “regiões”: uma consciente, que corresponde ao ego; e outra, maior, inconsciente, que compreende pensamentos, desejos, sentimentos e lembranças. É verdade que, entre a consciência e o inconsciente, Freud acreditava existir uma outra “região” chamada de pré-consciente, na qual ficam armazenados, temporariamente, alguns daqueles pensamentos que podem ser acessados na percepção consciente.
Freud esteve principalmente interessado em investigar a grande quantidade de paixões e pensamentos que, segundo ele, nós recalcamos, ou bloqueamos energicamente de modo a impedir o acesso deles à consciência, porque eles seriam fonte de demasiada perturbação para nós. Mais adiante, considerarei, com algum pormenor, o conceito de recalcamento.
Por ora, cumpre reter Freud cuidava que, conquanto não estejamos conscientes destes pensamentos e sentimentos que trazem em si uma carga perturbadora, eles exercem sobre nós uma considerável ou demasiada influência. Nossos impulsos recalcados se manifestariam, no entanto, sob formas disfarçadas. Por exemplo, o trabalho que escolhemos, as crenças que alimentamos, nossos hábitos diários se apresentariam como impulsos disfarçados. Em tempo, darei um exemplo que elucidará como se dá essa operação de disfarce, ou o que Freud viria a chamar de retorno do recalcado, que é justamente o mecanismo psíquico pelo qual os conteúdos recalcados reaparecem na consciência sob formas disfarçadas.
Notemos, desde já, que Freud era um determinista. Nada para ele era acidental.

2.1.. Recalcamento

Com vistas a elucidar o conceito de recalcamento, necessário será explicar o modo como Freud entendia o funcionamento do psiquismo. Inicialmente, é preciso dizer que a psique está em constante tensão. Dizendo com mais rigor, a nossa vida psíquica se estrutura numa tensão da qual jamais se livra. É claro, no entanto, que a psique buscará descarregar tanto quanto possível essa tensão, sem jamais esgotá-la.
Na medida em que o psiquismo está imerso na realidade exterior, é de esperar que ele sofra as influências dessa realidade. Toda excitação é sempre de origem interna, quer se trate do impacto provocado pela visão de um acidente violento de automóvel, quer se trate da fome. Nos dois casos, há sempre uma excitação contínua do psiquismo. Sendo de origem externa ou interna, a excitação provoca sempre uma marca psíquica, “à semelhança de um selo impresso na cera” (Nasio, 1999, p.19).
Essa marca, essa ideia, essa imagem que se imprimiu no psiquismo continua em excitação, de modo que o psiquismo permanece constantemente excitado. A tensão resulta, portanto, dessa estimulação ininterrupta do psiquismo, e o sujeito a experiencia dolorosamente, não sem apelar à sua descarga.
O que Freud chama de desprazer é justamente essa tensão penosa que o psiquismo busca, em vão, descarregar, sem, contudo, lograr êxito verdadeiramente. Por isso, o estado de desprazer é constante, real e irreversível. E o estado de prazer absoluto é sempre ilusório. O desprazer é o aumento ou manutenção da tensão, ao passo que o prazer é a supressão dessa tensão. É Nasio que, em seu O prazer de ler Freud (1999), nos esclarece a respeito dessa condição irremediável de desprazer:

“Todavia, observamos que o estado de tensão desprazeroso e pensoso não é outra coisa senão a chama vital de nossa atividade mental; desprazer e tensão permanecem para sempre como sinônimo de vida” (Nasio, 1999, p. 20).


No psiquismo, nunca há a extinção total da tensão; e o prazer absoluto jamais é alcançado, porquanto a descarga absoluta nunca se realiza.
Essa maneira de esclarecer o funcionamento do psiquismo está calcada sobre o modelo neurológico do arco reflexo com o qual se explica a relação do organismo com o mundo – relação esta que envolve dois extremos: o da extremidade sensível, na qual o organismo percebe a excitação, a saber, a injeção de uma dada quantidade de energia (por exemplo, uma martelada que o paciente recebe no joelho num exame médico); e o da extremidade motora, em que o organismo libera a energia recebida numa resposta imediata do corpo. Nesse circuito, o sujeito recebe a energia, num dado momento, e transforma-a em ação, em outro momento, reduzindo, assim, a tensão. Mas lembremos que o psiquismo não pode funcionar do mesmo modo que o sistema nervoso.
O psiquismo nunca consegue escoar completamente a tensão. Ele reage à excitação por meio de uma metáfora da ação (Nasio, p. 20), uma imagem, um pensamento ou uma fala, em suma, um representante simbólico da ação. Uma vez compreendido como funciona o psiquismo, ficará mais claro entender o que é o recalcamento. Cumpre dizer, pois, que o recalcamento é um dos mecanismos de defesa com que o ego se protege contra a carga pesada da angústia que resulta da guerra interna entre as demandas do id e as imposições do superego. A estrutura do psiquismo demandará nossa atenção em outra seção deste texto.
O recalcamento é o mecanismo pelo qual são afastados da consciência do sujeito pensamentos e sentimentos que lhe causariam angústia.  Segundo Freud, o recalcamento constitui a base de todos os mecanismos de defesa. O recalcamento explica por que não nos lembramos do desejo que nutríamos pelo genitor do sexo oposto. Para Freud, o recalcamento é sempre incompleto. Os impulsos recalcados se manifestam através dos sonhos e dos atos falhos.
Deve-se enfatizar a ideia de que o impedimento da passagem dos conteúdos inconscientes para o pré-consciente realizado pelo recalcamento nunca é completo. Alguns conteúdos inconscientes irrompem na consciência, sob a forma disfarçada, surpreendendo o sujeito, que não é capaz de explicar sua origem inconsciente. Esses conteúdos aparecem na consciência, mas de modo incompreensível para o sujeito, que os experiencia intensamente na forma de angústia.
Vejamos um exemplo, que tomamos a Nasio (p. 26), do modo como o conteúdo recalcado pode aparecer sob a forma de um disfarce. Uma jovem padece de uma fobia de aranhas. No nível da consciência, ela experiencia uma angústia quando se depara com esse inseto que lhe é ameaçador. No entanto, ela é incapaz de compreender que a aranha que lhe incita tamanho temor é o substituto deformado de um aspecto do pai desejado, por exemplo, suas mãos aveludadas. O que está acontecendo aí, segundo a interpretação psicanalítica? A representação inconsciente do amor incestuoso pelo pai rompe a barreira do recalcamento, manifestando-se sob a forma disfarçada na representação consciente de angústia de aranhas.
Relacionemos esse exemplo à lógica do funcionamento do psiquismo, já descrita. Essa forma deformada de manifestação de um conteúdo inconsciente consegue descarregar certa quantidade de energia pulsional. Essa descarga produz um prazer parcial e substitutivo. Substitutivo porque faz as vezes de uma satisfação completa e imediata, que – sabemos – é ideal.
A quantidade de energia pulsional que não transpõe a barreira do recalcamento continua represada no inconsciente, a alimentar incessantemente a tensão penosa. É importante ver que essa descarga é uma forma de prazer, ainda que seja percebida como sofrimento ou angústia, como ilustra o caso da fobia de aranhas.
Na seção seguinte, desço a considerações sobre o que constitui a coluna dorsal da psicanálise, a saber, o conceito de inconsciente.


2.2. Inconsciente

Freud conferiu ao conceito de inconsciente uma extensão sobremaneira significativa, de tal modo que seu significado passou a recobrir não somente a patologia neurótica, mas também todas as esferas da atividade propriamente humana. Nenhuma de nossas ações, escolhas, tendências, desejos escapa à ação do inconsciente, donde se segue que a fronteira, tão rigorosamente marcada pelo saber psiquiátrico de outrora, entre o normal e o patológico, passou a inexistir.
O que nos ensina, essencialmente, a psicanálise pode ser resumido na afirmação “o eu não é o senhor nem mesmo em sua própria casa”. Existe, nos homens, uma força que atua à revelia deles próprios, algo que motiva suas ações, seus comportamentos, sem que eles o saibam. Essa “força” é o inconsciente, que faz os homens agir sem saber o que fazem e por que o fazem.
O que é, então, o inconsciente? É uma hipótese teórica, e não uma coisa localizada no fundo de nossa cabeça. É um sistema lógico que, em teoria, opera em nossa mente. Esse sistema explica os motivos que nos impelem a agir e a reagir de tal e qual modo. O inconsciente constitui-se, assim, de forças que impulsionam a vida mental. Essas forças ou pulsões dizem respeito a necessidades básicas do organismo humano, tais como fome, sexo, curiosidade, etc. O inconsciente apresenta uma lógica diferente: nele cifra-se o que, pela interpretação psicanalítica, busca-se decifrar. A interpretação psicanalítica visa a explicar o processo que deu origem a uma ideia ou ação.
Como é no inconsciente que estão, além de nossos desejos recalcados, nossas pulsões, não se pode tratar do inconsciente sem dizer alguma coisa sobre o conceito de pulsão. As pulsões do inconsciente estão reprimidas, visto que a sua manifestação, em geral, são contrárias às normas da boa educação e civilização. Por exemplo, um desejo forte como o de pintar a sala de minha casa com fezes, comum entre as crianças, se realizado, causaria espanto e punição social. Assim, tal desejo precisa ser censurado, para que não chegue à consciência. Mas esse mesmo desejo censurado pode, por vezes, assumir formas disfarçadas e, assim, tornar-se aceitável para os padrões impostos pela sociedade.

2.3. Pulsão

A palavra pulsão traduz mais adequadamente o significado do termo alemão trieb, que a Edição Standard inglesa traduziu como instinct (instinto). Faz-se mister dizer que Freud não define pulsão como instinto, conceito este que designa, para ele, um comportamento próprio dos animais não-humanos determinado pela hereditariedade e característico da espécie. O instinto é bem adaptado para a relação dos animais com o meio em que vivem.
Freud não nega ao homem a disposição biológica, mas lhe acrescenta a irredutibilidade da pulsão ao se debruçar sobre a sexualidade humana. Importa, portanto, de início, frisar duas coisas: 1) Freud não define pulsão como instinto, de modo que quem pensa o termo pulsão, no interior da teoria freudiana, como sinônimo de instinto incorre em erro primário; 2) Freud jamais usou o termo instinto, que só aparece nas traduções de seus textos.
Feitas essas duas observações importantes, continuemos notando que o conceito de pulsão é radicalmente novo e serviu a Freud para abordar a sexualidade humana. Esse conceito lançou luzes sobre o fenômeno da sexualidade humana, de sorte que, sem ele, esse fenômeno permaneceria completamente enigmático.
Excederia os limites estabelecidos para esta exposição o discorrer sobre o conceito de pulsão, patenteando seu desdobramento na teoria freudiana. Cingir-me-ei a notar que o termo alemão trieb , de uso corrente na variedade coloquial, recobre a ideia de impulsão. Ademais, pulsão compreende também o que Freud chamou de estímulos endógenos na sexualidade. O que se dá na sexualidade humana, notara Freud, é algo completamente diverso do que ocorre no comportamento dos animais, o qual é calcado sobre o mecanismo instintual.
A experiência clínica de escuta de pacientes neuróticos, que estavam submetidos à análise, permitiu a Freud elaborar sua teoria das pulsões, graças à qual concluiu que a sexualidade é regida por uma lógica distinta daquela em que se pautam os instintos dos animais.
Freud constatou um fato irrecusável, qual seja, a universalidade das perversões sexuais em seus pacientes. Com base nos relatos de suas pacientes histéricas, apercebeu-se de que eles revelavam uma sedução e um trauma infantil. Daí em diante, Freud desenvolveu a ideia de “infantilismo da sexualidade”, pela revelação de fantasias sexuais nessas pacientes. A noção de infantilismo da sexualidade significa que a estrutura da sexualidade é essencialmente traumática, para todo e qualquer sujeito. Posteriormente, coube a Lacan chamar àquele trauma de trauma de contingência, já que não supõe a ocorrência, de fato, de um trauma sexual na infância do sujeito, mas sim o fato de ser traumática a própria estrutura da sexualidade.
Freud distinguiu na vida psíquica dos indivíduos duas espécies de pulsão: a pulsão de vida e a pulsão de morte. É delas, pois, que me ocuparei a seguir.

2.3.1. Pulsão de vida (Eros) e Pulsão de morte (Tanatos)

No pensamento mítico, Eros simboliza as atividades humanas que se ligam direta ou indiretamente à sexualidade. Na primeira teoria geral das pulsões, elaborada por Freud, Eros era sinônimo de libido ou princípio do prazer. Esse princípio é exclusivamente formado pela energia sexual. Posteriormente, em sua teoria definitiva, Freud tomou Eros como pulsão total de vida (autoconservação), da qual fazia parte o fator sexual em contraste com a pulsão total de morte – Tanatos ou autodestruição.
Consoante advoga Freud, em sua teoria final, Tanatos ou a pulsão de morte representa o conjunto de pulsões agressivas que operam no ego e que visam à destruição da vida. Trata-se de uma pulsão de negação e de regresso ao estado inorgânico, que se revela na compulsão de repetição. Essa compulsão caracteriza o fato de o paciente em tratamento repetir os acontecimentos recalcados, em sua vida, em vez de recordá-los. Essa compulsão causa nele grande sofrimento. Segundo Freud, o termo desta compulsão de repetição do ciclo normal da vida é a morte.
É importante salientar que a teoria freudiana das pulsões foi-se desenvolvendo lentamente. Em seu bojo, reside a dualidade entre o ego ou a pulsão de morte e o id (pulsões sexuais) ou a pulsão de vida (Eros) como base dos conflitos emocionais produzidos no indivíduo por função das finalidades opostas a que servem essas forças primitivas e antagônicas.
Freud, inicialmente, estabeleceu a dicotomia entre pulsões de autoconservação e pulsões sexuais; posteriormente, distinguiu entre pulsões do ego e pulsões sexuais, chegando, por fim, mesmo sem ver corroboradas essas distinções, a definir duas pulsões básicas de todo comportamento humano – vale reiterar – a pulsão de vida e a pulsão de morte. Isso é o que as sabedorias antigas, expressas em mitos e doutrinas religiosas, em sua linguagem própria, viram muito antes da teorização de Freud: a natureza humana encerra o bem e o mal, forças criadoras e forças destrutivas, a luz e a escuridão, o angélico e o maligno. Nem totalmente bom, nem totalmente mau, o ser humano, a julgarmos pelo que nos ensina Freud e o que nos revelam as sabedorias antigas, é dotado de uma natureza conflitual, atravessada por um antagonismo constitutivo, por uma tensão que se inscreve no tecido mais profundo de sua psique.
Atualmente, o conceito dualista de Eros e Tanatos constitui o alicerce da psicologia, e suas implicações para o estudo da própria sociedade são bem reconhecidas, dado que é o amor a expressão psicológica da pulsão de vida, que leva os homens a comportarem-se cooperativamente, é o amor o impulso essencial da união, indispensável, portanto, ao viver em sociedade. Por outro lado, a pulsão de morte, na medida em que se expressa nas tendências negativas e destrutivas do ego, no ódio e na aversão ao estabelecimento de boas relações, seja intrapisíquicas, seja sociais, explica por que a paz e a harmonia social sempiterna só podem figurar no horizonte humano como projeto para sempre irrealizável. É patente aqui o pessimismo schopenhauriano que tanta influência exerceu sobre Freud.

3. A estrutura do psiquismo

3.1. A constituição do aparelho psíquico

Concentrando nossa atenção no estudo da personalidade, que foi definida no limiar deste texto, veremos, doravante, que, para Freud, ela resulta de um conflito básico entre nossos impulsos biológicos e agressivos, orientados para a busca do prazer, e o conjunto de dispositivos sociais coercitivos destinados a controlá-los. No curso de nossa socialização, nós internalizamos esses dispositivos coercitivos na forma de leis, preceitos morais, regras, e, uma vez internalizados, eles entram em conflito com aqueles impulsos originais.
Freud mantinha que a personalidade é produto de nossos esforços por resolver esse conflito básico. A resolução desse conflito dependia de que a satisfação fosse produzida sem que a culpa e a punição sobreviessem a ela. Segundo Freud, os conflitos baseiam-se em três instâncias que interagem entre si: o id, o ego e o superego.
O id compreende o reservatório de energia psíquica inconsciente, que se esforça constantemente por satisfazer os impulsos sexuais e agressivos básicos. O id é regido pelo princípio do prazer e exige gratificação imediata. O id é um substrato inteiramente inconsciente; dele provêm as pulsões. É a instância original da psique; ao nascer, dizia Freud, o indivíduo todo é um id, que é reorganizado à medida que o indivíduo é submetido aos processos formativos de sua sociedade. A mente humana se estrutura de tal modo, que busca evitar o desprazer; nossa vida psíquica rege-se pelo princípio do prazer; buscamos experimentar o prazer constantemente. O id é a energia que impulsiona a busca pelo prazer. As pulsões são de natureza sexual e elas são designadas pelo termo libido. O id é um reservatório da libido, portanto. A sexualidade humana não se restringe ao ato sexual, mas compreende todos os desejos que exigem satisfação e podem ser satisfeitos em qualquer parte do nosso corpo.
Os recém-nascidos que berram para que suas necessidades sejam urgentemente satisfeitas constituem exemplos de indivíduos dominados pelo id. Igualmente dominados pelo id são as pessoas que preferem a satisfação no presente imediato em detrimento do sucesso e prazer no futuro.
O ego, a seu turno, opera pelo princípio da realidade. Isso significa dizer que ele busca satisfazer os desejos do id tendo em conta as restrições que a realidade impõe a essa satisfação. O ego buscará, assim, o prazer a longo prazo. O princípio da realidade está calcado sobre a percepção sensorial e a motricidade. Ele rege a atividade do ego, permitindo à psique estabelecer a distinção entre o mundo interior e o mundo exterior.
Sendo a região “executiva” e consciente da personalidade, o ego encerra nossos pensamentos, nossas percepções, nossos julgamentos e nossas memórias parcialmente conscientes. O ego é a instância mediadora entre as exigências do id e as imposições do superego e da realidade.  Por isso, sua realidade fundamental é a angústia. O ego, não podendo satisfazer completamente os desejos do id, que o tornariam imoral e destrutivo, e não podendo submeter-se totalmente ao superego, sob pena de enlouquecer, precisa adequar-se à realidade do mundo, para não ser aniquilado. O ego obedece, portanto, ao princípio da realidade, ou seja, busca objetos que satisfaçam o id, sem transgredir as imposições do superego.
O recurso pelo qual são oferecidos ao id e ao superego substitutos para a sua satisfação é chamado de sublimação. Na sublimação, os desejos inconscientes são satisfeitos, pois que transformados em outra coisa valorizada positivamente: obras de arte, ciências, religião, filosofia, ações éticas, política,  etc.
O superego é a parte da personalidade que fornece os padrões para nossos julgamentos morais. É uma espécie de juiz social, é a voz social da censura e da repressão internalizada na psique. O superego baseia-se nas censuras que a sociedade impõe ao indivíduo. Particularmente, o superego representa a repressão sexual. O superego é a consciência moral e se manifesta por meio de interdições e proibições a que se submetem os indivíduos nos processos formativos da sua cultura. O superego forma-se entre os 4 e 5 anos e o início da puberdade. Embora aja como uma consciência moral, o superego é fundamentalmente inconsciente. O superego força o ego a considerar não somente o real, mas também o ideal.
O superego determina ao indivíduo a forma de comportamento socialmente adequado. O superego luta pela perfeição, julga as ações e produz sentimentos positivos de orgulho ou sentimentos negativos de culpa. Uma pessoa que tenha desenvolvido um superego extremamente forte, ainda que seja considerada virtuosa, vive oprimida pela culpa; por outro lado, um superego fraco torna a pessoa indulgente e impiedosa.
A psicanálise reza que a origem de muitas doenças psíquicas e distúrbios do comportamento está em nossa sexualidade na tenra infância. Freud apontou três fases da sexualidade infantil. Essas fases estão relacionadas ao desenvolvimento do id entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos. A primeira fase é a fase oral. Nessa fase, o desejo e o prazer estão na boca e na ingestão de alimentos, e o seio materno é objeto de prazer (ou um de seus substitutos, a saber, a chupeta, a mamadeira ou o dedo). A segunda fase é a fase anal, na qual a criança sente prazer na excreção e retenção das fezes. Nessa fase, os objetos de prazer são massas de modelar, tintas, coisas cremosas. A terceira fase é a fase fálica. Nessa fase, o prazer e o desejo estão ligados ao órgão genital masculino, o falo. O menino ou a menina só reconhecem o falo, nessa fase. A mãe torna-se objeto de prazer do menino; o pai, da menina.
É na terceira fase que surge um fenômeno que irá determinar toda a vida psíquica, a saber, o complexo de Édipo. Supondo que o leitor conheça a tragédia de Édipo Rei, passarei a esclarecer o que é o complexo de Édipo. Esse complexo é o desejo incestuoso da criança pelo pai ou pela mãe. Posteriormente, Carl Jung chamará de complexo de Electra o desejo da menina pelo pai. Em todo caso, o complexo de Édipo – reitere-se – determinará a totalidade de nossa vida psíquica. A saúde de nossa vida mental dependerá do modo como atravessamos essa fase. O complexo de Édipo acarreta o surgimento de outro complexo, chamado de complexo de castração. Esse complexo explica o temor da criança de perder o falo (e cabe lembrar que as meninas imaginam que também o possuem) como punição do desejo incestuoso pelos genitores.
É chegado o momento de dizer que as produções de Freud foram alvo de grande controvérsia, muito embora tenham atraído um grande número de admiradores e seguidores. Os chamados neofreudianos, psicanalistas que seguiram, pioneiramente, de perto, as ideias de Freud, acolheram as noções básicas de estrutura do id, do ego e do superego; a importância do inconsciente; a formação da personalidade na infância; a dinâmica da angústia e os mecanismos de defesa. Mas também se distanciaram de Freud no tangente a duas questões importantes. Em primeiro lugar, esses seguidores acreditavam que a mente consciente tinha um papel mais significativo na interpretação da experiência e na relação com o ambiente. Em segundo lugar, duvidavam da tese de Freud segundo a qual o sexo e a agressão deteriam o monopólio das motivações. Por exemplo, Alfred Adler e Karen Horney, conquanto concordassem com Freud no tocante à importância da infância no desenvolvimento da personalidade e da sexualidade, não concordavam com ele na assunção de que as tensões sociais e sexuais da infância fossem tão determinantes da formação da personalidade. Horney chegou a afirmar que a angústia, decorrente de nosso sentimento de desamparo, é causa de desejo de amor e de segurança. Ela também critica Freud por ele supor que as mulheres têm um superego fraco e que elas sofrem de “inveja do pênis”, ponderando sobre o que cuidava ser uma visão machista da psicologia.
Carl Jung, discípulo de Freud, também dissidente, contudo, concordou com Freud no tocante à influência poderosa do inconsciente. No entanto, para Jung, o inconsciente compreende mais do que nossos pensamentos e sentimentos recalcados. Ele advogava que somos dotados de um inconsciente coletivo, isto é, um reservatório comum de imagens produzidas em experiências universais de nossa espécie. É suficiente dizer que o inconsciente coletivo fornece a chave para o entendimento do porquê, em muitas pessoas, as experiências espirituais são arraigadas. Ademais, o inconsciente coletivo permite explicar por que indivíduos que vivem em culturas diferentes compartilham certos mitos e imagens, tais como a figura da mãe como símbolo da nutrição.
Atualmente, a ideia de que o sexo é a base da personalidade é rejeitada por uma grande maioria de terapeutas. Mas a maioria ainda está de acordo com Freud na suposição de que uma grande extensão de nossa vida mental é inconsciente. Essa maioria também anui à ideia freudiana de que travamos uma luta incessante contra conflitos internos entre nossos desejos, nossos medos e nossos valores; quase todos aceitam a ideia de que a infância molda nossa personalidade e nossas formas de nos relacionar com as outras pessoas.

4. Freud e a questão da religião

Como Freud explicava o fenômeno religioso? Vários escritos de Freud dão testemunho de que ele tinha uma vasta cultura religiosa. Ele frequentou, durante seus anos escolares, a sinagoga, onde estudou o Antigo Testamento. Seus textos demonstram que ele conhecia o Novo Testamento cristão e religiões da Antiguidade Clássica.
É verdade que ele fora um ateu empedernido, mas se dedicou apaixonadamente ao estudo da religião. Consagrou cinco títulos de sua obra ao tema: Toem e Tabu (1912), Psicologia das massas e análise do ego (1921), O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939).
Não vou resumir o que Freud expôs, em cada um desses cinco livros, a respeito da religião; interessar-me-á, contudo, dar a conhecer como Freud via a experiência religiosa de uma maneira geral.
Num primeiro momento, convém reter a ideia de que Freud via a experiência religiosa como parte de uma fantasia de onipotência. Essa fantasia de onipotência seria provocada pelo desejo de imortalidade, de absoluto, de transcendência. Segundo Freud, o homem nutre esse desejo em face da frustração e da angústia desencadeadas pela realidade. Esse desejo, de natureza interna, projeta-se para fora do homem, criando a religião.
Duas questões ocuparam Freud durante o tempo em que esteve assaz interessado pelo tema da religião. Ei-las: para que serve a religião e que futuro ela tem?
A primeira questão recebe um tratamento aproximativo em Psicologia das massas e análise do ego (1921). Nesse trabalho, Freud se ocupou do estudo do comportamento das massas e seu processo de identificação com o líder. Freud relacionou essa identificação ao processo de comunhão e identificação com Cristo na Igreja Católica.
Consoante Freud, o indivíduo busca compensar as limitações impostas pela realidade ou pela vida social ao princípio de prazer com a ilusão de sentir-se amado pelo líder. Essa identificação cumprirá, na religião, uma dupla função compensadora: uma no mundo aqui e agora; outra, na promessa de uma vida além-mundo. Também nesse livro Freud enfocará a agressividade dirigida aos outros, aos que não pertencem ao mesmo grupo ou seita.
Em sua obra O ego e o id (1923), Freud se debruçará sobre o ideal do ego – o superego – e sustentará que esse ideal é um substituto do primeiro desejo de um pai amado. Esse ideal constitui o núcleo a partir do qual estão constituídas todas as religiões. Não se ignore que a questão sobre o que está na origem da religião é extremamente complexa e controversa, e as especulações de Freud, nesse tocante, muito criticáveis. Mesmo em seu tempo, algumas de suas teorias sobre a evolução das religiões estavam definitivamente superadas. É claro, por outro lado, que Freud estava muito pouco preocupado com a verdade histórica de suas teorias sobre a religião.
Tendo em vista essas ressalvas, considerarei, sem pretender à exaustão, duas concepções gerais que Freud desenvolveu sobre a religião: religião como neurose obsessiva e religião como ilusão infantil.

4.1. Religião como neurose obsessiva e ilusão infantil

No cerne da visão freudiana da religião como neurose obsessiva, está a ideia de que as primeiras repressões que cada um de nós experienciou se dão na primeira infância (período que se estende do zero ao cinco anos de vida), quando nós, enquanto criança, devemos renunciar aos nossos desejos e impulsos. A neurose se caracteriza pela fuga do adulto para o mundo infantil. Os conflitos não resolvidos na infância encontram aí oportunidade de reaparecimento.
Freud, então, via a religião como regressão do adulto ao mundo ideal da criança. O complexo de Édipo desempenha um papel fundamental nessa regressão. Lembremos que esse complexo ocorre, para Freud, em meninos e meninas, entre os 4 e 6 anos de idade. A criança, no momento em que nutre um desejo incestuoso pela mãe, vê o pai como um rival. O amor que ela devota à mãe é dividido com o pai. A criança experimenta desejos agressivos em relação ao pai e, não raro, esses desejos podem assumir a forma de desejo de matá-lo. No entanto, ao mesmo tempo, a criança reconhece que necessita do pai. Daí decorre o conflito entre amor e ódio, afeição e hostilidade, admiração e medo, experienciado relativamente ao pai.
Sucede que esses desejos serão transportados para o “porão” do inconsciente. À medida que se desenvolve, a criança aprende o que é proibido e o que é permitido em seu meio cultural. Ela internaliza esses preceitos e proibições por meio das práticas discursivas engendradas em sua cultura. É assim que se forma o superego. O superego – reiteremos – é essa região da psique que compreende as normas, os preceitos culturalmente estabelecidos e transmitidos à criança pelo pai, e que é sentido na fase adulta como censura.
Freud observa que o neurótico não quer aceitar a dura realidade da vida e se nega a se relacionar com o mundo tal como ele é. O neurótico, na realidade, não nega que a realidade é dura, áspera, atroz; ele apenas não quer saber disso. Prefere viver como no sonho onde o que o homem deseja pode manifestar-se de maneira inconsciente.
Agora, relacionemos o exposto até aqui à questão da religião. Direi muito grosseiramente,  e o leitor poderá acompanhar o desdobramento do que aqui se seguirá lendo o livro Totem e Tabu – que a neurose, segundo Freud, é como o mosteiro para o qual costumam se retirar os que se iludiram da vida ou aqueles que se sentem debilitados demais para encará-la. Na religião, o homem também foge da dura realidade da vida, encontrando esconderijo num mundo ideal da infância. É por isso que a religião é ilusão, segundo Freud. Para o pai da psicanálise, o fundamento último da religião é o desamparo infantil do homem.
Na medida em que a religião é considerada em sua dimensão cultural, Freud a verá como um aspecto neurótico da cultura. Compreendamos essa ideia. Na vida cultural, os impulsos não satisfeitos, dadas as exigências da cultura, são sublimados. Nesse processo de sublimação, os impulsos egoístas se tornam úteis para a sociedade e satisfeitos na fantasia. Assim, evita-se o sofrimento, e a sublimação acarreta a gratificação. Dirá Freud que a arte, a religião, a ciência, a metafísica são, em última análise, a manifestação da sublimação de pulsões mais primitivas. A religião não seria outra coisa, na perspectiva freudiana, senão expressão do temor e do medo do castigo e expressão do desejo de consolo. Em uma palavra, ela é a resposta dada pelo homem à árdua realidade da vida.
Freud assinalou uma relação entre as exigências dos tabus na experiência religiosa e a sintomatologia dos neuróticos obsessivos. Nos dois casos, observa-se a ausência de motivação consciente, a capacidade de contagiar e a necessidade de purificação mediante atos rituais. Todavia, uma diferença entre os dois casos não lhe escapou à consciência: se, por um lado, os neuróticos obsessivos são movidos por uma pulsão tipicamente sexual; por outro lado, nos tabus, se percebem impulsos antissociais de agressão e de morte.
A fim de sublinhar a concepção de religião como ilusão infantil, observe-se que, para Freud, a religião é a nostalgia que o homem sente de um pai onipotente que o console e o proteja, em face da angústia vivenciada na dura realidade do viver. Por isso, novamente, cumpre dizer que a religião era vista por Freud como fundamentada no desamparo infantil do homem.
Em face da natureza indiferente e assustadora, esse homem infantil forja deuses segundo o modelo do pai, e a religião se torna fuga à realidade. Nas palavras de Freud: “O homem não pode permanecer criança. O infantilismo deve ser superado”.
Não se deve ignorar o fato de que Freud procurou explicar a religião por sua gênese psíquica. Interpretando os sonhos e os sintomas neuróticos, Freud elaborou um modelo teórico que via a religião como a realização de desejos. Nesse sentido, as representações religiosas não derivariam da experiência nem da razão, mas seriam ilusões, “realização dos desejos mais antigos, mais fortes e mais intensos da humanidade”. Freud, naturalmente, referia-se aos desejos da criança desamparada e ávida de proteção em face das ameaças da vida. De passagem, noto que Freud, como homem de seu tempo, não deixou de esposar a fé positivista na ciência como caminho para a libertação do homem do mundo da ilusão religiosa e da superstição.
Deus e imortalidade são desejos infantis cuja origem remonta, em última instância, ao complexo de Édipo não superado. Essa visão Freud a estendeu a toda humanidade.
Em suma, é a cultura que cria as concepções religiosas e as inculca no indivíduo em formação. A religião surge da necessidade de proteção contra as forças implacáveis da natureza e do destino. Freud precisou lidar com acusações de que fez incursão no tema religioso desconsiderando a pluralidade inerente ao fenômeno da religião.

O próprio Freud viria a confessar, em uma carta destinada ao seu amigo psicanalista e principal colaborador S. Ferenczi, que sua redução do fenômeno religioso a meras experiências infantis e à busca de segurança foi demasiado apressada, para se dizer o mínimo. Apressada, talvez, mas não menos intrigante e digna de reconhecimento. 

domingo, 6 de julho de 2014

"A visão do homem agora cansa - o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do homem..." (Friedrich Nietzsche)

                                

                       O espírito materialista e niilista
                       Uma conciliação contra a ilusão


Em Confissões de um filósofo (2001), Bryan Magee observa que o impulso básico para o filosofar é a curiosidade a respeito do mundo e não o estudo dos textos filosóficos.


“O impulso básico por trás da verdadeira filosofia é a curiosidade a respeito do mundo, não o interesse pelos textos dos filósofos. Cada um de nós emerge da pré-consciência da tenra infância e simplesmente se encontra aqui, nele, no mundo. O que é o mundo: E o que somos nós? Desde os primórdios da humanidade, houve quem fosse dominado pela compulsão de fazer essas perguntas e sentisse um anseio por encontrar as respostas. É isso o que quer realmente dizer qualquer expressão semelhante a “necessidade de metafísica do homem”.
(grifo meu, p. 264)


O indivíduo se entrega à filosofia no instante em que sente a necessidade de refletir sobre a presença plena do ser, do mundo, do qual ele emerge como uma consciência que se sabe finita. É no momento em que esse indivíduo se dá conta desse acontecer, desse haver, dessa Primeira Hora que fez dele um ente lançado no mundo e capaz de se inquietar com a existência do mundo e se perguntar sobre a possibilidade de nada ter existido que ele precisa da filosofia.
Neste texto, esforçar-me-ei por mostrar que a reflexão filosófica não só contribui para construir um modo pessoal de ver (interpretar) e compreender o mundo e a condição humana, compreensão que serve para orientar cada um de nós nas diversas formas pelas quais nós nos relacionamos com o mundo, mas também pode contribuir muito para realçar certos traços de temperamento ou de caráter. Cumpre dizer que emprego a palavra caráter não na acepção ética ou moral, mas na acepção psicológica, para designar, portanto, os aspectos da personalidade que constituem o ego e que, em suas manifestações, distinguem uma pessoa de outra.
Meu intento principal será demonstrar de que modo se pode conciliar o materialismo com o niilismo com vistas a nos esclarecer sobre o estado de ilusões a que estamos presos em nossas vivências cotidianas. Em última instância, espero conseguir mostrar que minhas crenças a respeito do mundo e da condição humana, bem como o modo como eu me relaciono com o mundo estão calcados sobre essas duas doutrinas. Meu temperamento se afina bem com elas. Ao dizer isso, quero dizer que, ao mesmo tempo em que nos entregamos à filosofia, a filosofia parece nos instar a que dela nos apropriemos, a que assumamos uma posição dentre as muitas possibilidades de pensar o mundo e o homem que ela nos oferece. Nosso encontro com a filosofia é um encontro com certo modo de pensar e viver o mundo.




1. A escura lucidez do niilismo

Tome-se o seguinte passo de Niilismo (2007), em que Rossano Pecoraro dá-nos a saber, de modo bastante geral, as condições sócio-históricas em que emerge a atitude niilista:

“A corrosão, a desvalorização, a morte do sentido. A falta de finalidade de resposta ao “porquê”. Os valores tradicionais depreciam-se; princípios e critérios absolutos dissolvem-se. A bússola, que outrora nos orientava, apesar das crises, das rupturas, das ilusões, da substituição frenética de rotas, explodiu em nossas mãos. A superfície, antes congelada, das verdades e dos valores tradicionais está despedaçada e torna-se difícil prosseguir no caminho, avistar um ancoradouro”.
(p. 7)



O niilismo, enquanto atitude e doutrina, surge em circunstâncias em que o homem percebe abalado o seu universo de referências. O niilismo é um conceito fundamental e indispensável à compreensão do desenvolvimento do pensamento filosófico vicejante nos séculos XIX e XX. É um fenômeno complexo, multifacetado. O niilismo se faz presente em toda parte.
Do latim nihil (nada), o niilismo recobre uma forma de pensamento obsedado pelo nada. O niilismo pode ser identificado no curso de toda a história do pensamento ocidental: faz-se notar nas teses do sofista Górgias (490-388 a.C.), na pena do filósofo e poeta italiano Giacomo Leopardi (1798-1837) – o nada é o princípio de Deus e de todas as coisas; na pergunta de Leibniz “por que o ser e não, antes, o nada?”, no pessimismo de Arthur Schopenhauer (1788-1860).
No entanto, é com Nietzsche que o niilismo ganha maior alcance e vigor na reflexão filosófica. Nietzsche foi, sem dúvida, “o maior profeta e teórico do niilismo” (p. 17). Devemos a ele a construção de um pensamento radical que identificou as origens mais remotas do fenômeno, vale dizer, o platonismo e o cristianismo.


“O século XX, século do niilismo abre-se com a morte de Nietzsche e com a crise de uma Razão que sucumbirá aos horrores de duas guerras mundiais, do facismo e do nazismo. O niilismo infiltra-se, encontra projetualidade onipotente na ciência e da técnica, impregna a atmosfera cultural de toda uma época, transforma-se em uma “categoria” fundamental no laboratório contemporâneo”.
(p.10)


O niilismo é uma doutrina filosófica que nega a existência do absoluto, quer como verdade, quer como valor ético. O absoluto aqui conjuga duas acepções: numa acepção, o absoluto é aquilo que é em si e por si, independentemente de qualquer outra coisa, aquilo que encerra em si sua própria razão de ser; noutra acepção, o absoluto recobre a ideia de que é algo independente de qualquer referência convencional (é o contrário do relativo).
Nietzsche utilizou esse termo para designar o que, para ele, era a decadência européia, a ruína dos valores tradicionais consagrados na civilização ocidental do século XIX. O niilismo caracteriza-se, portanto,  não só pela descrença em um futuro glorioso e, nesse sentido, é infenso à ideia de progresso, mas também pela afirmação da “morte de Deus”, na medida em que nega a crença num absoluto, fundamento metafísico de todos os valores, quer éticos, quer estéticos, quer sociais, da tradição.
Entanto, o niilismo nietzschiano conduz a novos valores afirmativos da vida, da vontade humana, pela superação da “moral de rebanho” e pela dissolução dos princípios metafísicos tradicionais. Na mira do niilismo nietzschiano, estavam os Ídolos tão enaltecidos pela civilização ocidental, quais sejam, a Verdade, a Razão e Deus.
O niilismo pode apresentar-se em duas formas: uma positiva e outra negativa. O niilismo positivo se manifesta por meio de um trabalho crítico que visa a desmascarar a abismal ausência de cada fundamento, verdade, critério absoluto e universal, ao mesmo tempo em que nos convoca a assumir nossa própria liberdade e responsabilidade, não mais garantidas, é verdade, nem sufocadas ou governadas por nada. O niilismo negativo é marcado pela acentuação de traços destruidores e iconoclastas, tais como os do declínio, do ressentimento, da incapacidade de avançar, da paralisia, do “tudo-vale” e do nefasto silogismo: “se Deus (a verdade, o princípio) está morto, então tudo é permitido”.


1.2. Niilismo em Nietzsche

Na filosofia nietzschiana, o niilismo assume um sentido negativo, que denuncia a decadência do homem ocidental, cujas origens remontam ao racionalismo socrático, à oposição platônica entre o mundo das Ideias e o mundo sensível, e à consequente desvalorização deste último em favor do primeiro; ao cristianismo, que Nietzsche chamou “platonismo para o povo”, o qual impôs uma moral de renúncia e submissão, de desvalorização da vida em nome de um além-mundo, ao mesmo tempo em que inculcou nas consciências de rebanho esperança de salvação e redenção.
Por outro lado, há, em Nietzsche, um niilismo positivo, de que se serviu o filósofo para demolir os ídolos da tradição, para desmascarar as falsidades e embustes dos valores e verdades tradicionais. Esse niilismo serviu para anunciar a superação do homem e o advento do “além-do-homem”.


1.3. Niilismo em Sartre

Também o pensamento francês do pós-guerra é perpassado por características niilistas. Jean Paul-Sartre (1905-1980) debateu-se com as grandes questões que o nihil suscita: o sentido da existência, a liberdade, engajamento, concepção da história.
Ao sustentar que o homem “é aquele ente em que a existência precede a essência”, Sartre compromete-se com a negação e dissolução de ideias como a de Deus, princípio, valores heteronômicos.
Afirmando que o homem está condenado a ser livre e que, no seu abandono, tem de inventar a si mesmo, Sartre endossa uma posição niilista, que se clarifica na ideia de que o homem é não é uma realidade dada, mas uma possibilidade, um projeto, um ente que tem de decidir ser nas escolhas que faz.
A dimensão trágica do “para-si” consiste no fato de ele estar sempre inserido numa situação determinada, de estar lançado em um mundo entre outros “em-si”. Esse choque do homem com o mundo das coisas condena-o a uma nadificação do mundo. O homem perde toda referência externa em que poderia se apoiar para afirmar-se unicamente a si mesmo e sua absoluta liberdade, que se funda no nada. Segundo Sartre, na tentativa de se realizar, o homem pretende, em última instância, ser Deus. Sucede, contudo, que a ideia de Deus aniquila a liberdade humana. Sem encontrar soluções e critérios para construir o fundamento de sua existência, o homem se vê dominado pela negatividade: escolher não faz sentido, e “o homem é uma paixão inútil” (Sartre).

“Em sua conferência, proferida no pós-guerra, O existencialismo é um humanismo (1945), (...) o filósofo defende-se das acusações de desengajamento e derrotismo, que sobretudo marxistas e católicos lhe imputavam, e mostra que a filosofia existencialista, mesmo com o seu fundo relativista e niilista, é capaz de propor uma regeneração dos valores a partir da “morte de Deus”.
(p. 31)


Cabe salientar que uma tal regeneração não é possível se o homem se perder numa busca insensata pelos princípios, critérios e valores decaídos. Essa regeneração só poderia realizar-se se o homem reinventar os seus valores “unicamente por força de si mesmo, mediante o seu engajamento e sua liberdade” (p. 31).


1.4. Niilismo em Albert Camus

Absurdo e revolta são os dois principais polos do pensamento de Camus (1913-1960). No romance O estrangeiro (1942), o autor explora a escandalosa gratuidade da existência, a sua insensatez constitutiva que silencia os valores e a moral. Em Camus, a liberdade defronta-se com a impotência ou a inevitabilidade da morte.
No ensaio O homem revoltado (1951), o absurdo é tratado como uma questão universal. O absurdo é a injustiça, o caos, a desrazão do mundo. É da visão desse espetáculo trágico que se origina a revolta. O homem revoltado é aquele que se esforça por dar um sentido ao absurdo, ultrapassando, assim, o niilismo.


1.5. Niilismo cosmológico

O que chamo de niilismo cosmológico é a concepção do homem que ressalta sua insignificância na totalidade do cosmo. Esse niilismo está ligado intimamente à cosmologia moderna. Depois de Descartes, com sua concepção de natureza como res extensa, a saber, um espaço vazio e matéria, o homem foi abalado por um estranhamento metafísico. Pascal já havia notado a terrível transformação trazida pela cosmologia materialista, que pulverizou a importância que o homem atribuía a si mesmo na ordem do universo. Escreve Pascal: “imerso na imensidão infinita dos espaços que ignoro e que me ignoram, eu me apavoro”.
O universo físico desvelado pela cosmologia moderna não dá ao homem viver mais em casa, nem sentir-se um ser especial, como no modelo cosmológico antigo e medieval. Desde então, o universo lhe parece estranho, desolador, sombrio e inóspito. Como numa cela que lhe priva a liberdade, sua alma percebe-se aprisionada numa infinitude cósmica atormentadora. O homem se percebe como a única voz no silêncio eterno das estrelas e dos espaços infinitos e indiferentes. O homem está só consigo e esse estado lhe é fonte de angústia e desespero. Destarte, nota Volpi, em O Niilismo (1999):

“Logo mais, o próprio Deus se eclipsará. Primeiro, como hipótese, supondo-se tudo “como se Deus não existisse” (...). Depois, como realidade. Tudo deve ser repensado, a começar pelo sentido de nossa existência, já que “Deus está morto”.
(p. 17)


A transcendência perde sua força, que antes ligava o homem à totalidade cósmica. O homem se vê abandonado a si mesmo e reclama sua liberdade. Não lhe resta senão apoiar-se nela, identificar-se com ela. Assim, o homem passa a ser a sua própria liberdade. Ele é o que projeta ser; tudo lhe é permitido. O existencialismo enfrentou o fato de essa liberdade ser uma liberdade desesperada, a qual acarreta mais angústia do que satisfação e força (Volpi, p. 17).
 Vale dizer que um niilista não acredita no próprio homem. O niilista renuncia à crença em que o homem é um ser especial na natureza, em que ele seja dotado de um valor ou destino metafísico, que justifica sua existência.


1.6. Niilismo e política

Desde o fim do século XVIII, o niilismo se fez sentir na história, tanto como força conceitual e filosófica, quanto como força pregnante do plano social e político. Os niilistas objetivavam a dissolução, a destruição da ordem social, do sistema de valores consagrados e do sistema político vigente – pelo menos era assim que os viam seus adversários.
No contexto da cultura francesa, o pensador católico Franz von Baader debruçou-se sobre o conceito de niilismo em dois ensaios, nos quais afirmava que o protestantismo, dando origem a um fenômeno dissolutivo das verdades sagradas, deveria ser combatido pelo catolicismo, que deveria impor novamente o “conceito de autoridade no sentido eclesiástico, político e científico”. Baader defendia uma luta contra todos os tipos de “dúvidas ou protestos, antigos ou novos”. Em seguida, definiu o niilismo como “um abuso da inteligência destrutivo para a religião”. Condenando o niilismo, ele estava condenando o que julgava ser um efeito do uso sobremaneira livre da razão, ou um sintoma da degeneração do tecido civil, religioso e social.
No contexto da Revolução Francesa, eram considerados niilistas aqueles que não eram nem favoráveis, nem contrários à insurreição. Na França do período pós-revolução, niilista era aquele que não acreditava em nada, que não se interessava por nada.

Sumariando, pode-se entender o niilismo como o diagnóstico da decadência e da crise dos valores. Na seção seguinte, tecerei algumas considerações sobre o materialismo filosófico. Valho-me, para tanto, do livro Uma Educação Filosófica (2001), de André Comte-Sponville. Nele, se topa um excerto em que o autor define o materialismo.

2.1. Materialismo

“(...) chama-se materialismo a doutrina que afirma que tudo é matéria ou produto da matéria (salvo o vazio) e que, por conseguinte, os fenômenos intelectuais, morais e espirituais (ou assim supostos) têm realidade secundária e determinada (...)” (p.119)


O materialismo é mais bem elucidado, quando contraposto ao idealismo, doutrina esta que afirma a existência independente, primeira e exclusiva do pensamento. Ao contrário, o materialismo afirma o primado da matéria. Dentre os aspectos que se podem inferir do trecho referido, destaco, tendo em vista a conciliação do materialismo com o niilismo, seu relativismo ético. Na perspectiva materialista, não há valores absolutos (não há Bem em si, Justiça em si, Belo em si, ou mesmo Deus). Todo valor é relativo a um corpo individual ou social, à história.
O materialismo se define, negativamente, pela recusa do dualismo e do espiritualismo (não existe nem mundo inteligível nem alma imaterial), do ceticismo e do criticismo (pois a realidade em si não é incognoscível). É incompatível com toda religião cujo corpo doutrinário se sustenta pela crença num Deus imaterial, criador e legislador.
O materialismo é uma filosofia de recusa, de embate (p. 120). É também um empreendimento de desmitificação. É importante salientar que o materialismo não nega, de modo algum, a existência do espírito. Na verdade, o materialismo se funda num paradoxo: afirma o primado da matéria e a primazia do espírito.
Essas breves notas sobre o materialismo são – assim me parece – suficientes para familiarizar o leitor com a doutrina materialista. Ela será mais bem elucidada à medida que me ocupar com o desenvolvimento de duas questões que se encontraram interligadas: ilusão e política. Delas me ocuparei, à luz da perspectiva materialista.


2.2. Materialismo e a ilusão do valor

Em Tratado do Desespero e da Beatitude (1997), Sponville afirma que o materialismo, em política, é antiplatônico, a saber, é a negação do ideal (p. 129). Disso não se segue que o materialista não tenha um ideal, que ele renuncie a todo ideal. Como filósofo, o materialista tem suas aspirações elevadas, suas exigências intelectuais, estéticas, portanto, seus ideais; se não os tivessem, não seriam filósofos.
O que o distingue, nesse tocante, do idealista é a forma como pensam o estatuto do ideal. Para um materialista, o ideal carece de existência absoluta; ao contrário, o idealista crê nessa existência absoluta do ideal. Para o materialista, o ideal não existe independentemente dos sujeitos, de certas condições sócio-históricas. Para o materialista, o ideal é o horizonte do desejo. Consoante insiste Sponville,

“(...) ser materialista é pensar que o ser não tem mais valor do que o valor tem ser. Dito de outro modo, o ser não vale nada, falando objetivamente, e o valor não é, isto é, só tem ser ilusório ou subjetivo. Em resumo, trata-se de disjungir o que Platão cônjuge: o valor e o ser, a norma e a verdade. Para um materialista, o valor não é verdadeiro, e a verdade não tem valor. Desespero e lucidez”.
(p. 135)



Quem quer que adote uma posição materialista compromete-se, necessariamente, com o fato de o ser não ter valor tanto quanto o valor não ter ser. Em outras palavras, “o ser não vale nada, falando objetivamente, e o valor não é, isto é, só tem ser ilusório ou subjetivo” (p. 135). O materialismo, assim, separa aquilo que Platão uniu: o valor e o ser, a norma e a verdade. Para um materialista, o valor não é verdadeiro, tampouco a verdade tem valor.
Uma vez adotando uma visão materialista do mundo, um indivíduo se compromete com o pressuposto básico segundo o qual os valores são ilusórios, são produtos da imaginação humana e sempre relativos. Destarte, o bem, o mal, o belo e o feio, o justo e o injusto são “puros fantasmas da alma nascidos das afeições do corpo” (p. 136). Para um materialista, os homens não são livres, muito menos guiados pela razão.
Do que se expôs até aqui, segue-se uma conclusão que o materialismo endossa: a política, a arte e a moral se encontram sempre ao abrigo da ilusão (p. 136). O materialismo é uma filosofia da desmitificação.

“(...) somente um discurso verdadeiro sobre a moral, sobre a arte, sobre a política pode mostrar que a moral, a arte e a política não tem verdade e não poderiam ter (...) Verdade e desespero: se não há valor que não seja ilusório, somente a verdade – a verdade sem valor – é capaz de nos desilusionar”.
(ib.id., ênfase no original)


Com Sponville – e permitindo-me o uso de um neologismo -, pode-se pensar o materialismo como uma doutrina do “desilusionamento”. Com Spinoza, vale dizer que “a verdadeira filosofia” é a que elabora a teoria da ilusão de toda filosofia; é a que reconhece seu sentido só pode ser determinado do ponto de vista dos homens. É verdadeira porque reconhece que a natureza (ou o Deus spinozista) é indiferente a tudo, ou seja, destituída de toda normatividade. Essa filosofia anuncia que não há nada além da natureza: tudo é e nada vale. Impõe-se-me um esclarecimento aqui: dizer que “nada vale” é dizer que nada tem valor em si, independente de um corpo individual, social ou da história.


2.3. Ilusão e política numa perspectiva materialista

Doravante, vou desenvolver e esclarecer o conceito de ilusão, com vistas a fazer entender em que medida a política (o mesmo vale para a arte e a moral) é ilusória. No que se seguirá, estarei interessado em elucidar qual é a ilusão própria à política. Ao apontá-la, dou a saber a situação ilusória de todo militante.
Comecemos por notar que ser antiplatônico em política é assumir que nenhuma política é verdadeira, que nenhuma é boa ou justa absoluta ou objetivamente. A esse respeito, sublinha Sponville: “Só há absoluto na natureza, e esta é indiferente a qualquer política” (p. 138). Todas as políticas se equivalem, porque nenhuma delas tem valor – materialismo e desespero.
Se nos socorrermos do ensinamento do budismo primitivo, a questão de como a ilusão estrutura, é constitutiva de nossa relação com o mundo ficará mais clara. O sábio, segundo a doutrina budista, é aquele que despertou da ilusão do samsara: ele é desapegado de tudo. Sabe que nada tem sentido, nada tem valor, nem mesmo o budismo. O real é indiferente. No mundo ilusório, que é o mundo em que vivemos, que é o mundo do samsara, tudo adquire valor e sentido, isto é, tudo passa a ter valor e sentido – segundo se crê - objetivamente. O sábio está liberto desse mundo, já que atingiu o nirvana, condição em que descobre a vacuidade do sentido, em que desperta do sonho normativo.
Deve-se entender, portanto, que, do ponto de vista budista, o indivíduo que vive para alguma coisa, isto é, em função de algo que ele pensa ser dotado de sentido, significado para si mesmo, é prisioneiro do samsara (samsara designa, na tradição budista e hinduísta, o ciclo de morte e renascimento em mundos materiais), ou seja, da ilusão. Mas essa ilusão não é o oposto do mundo real; ela pertence ao real, melhor ainda, é o mundo real em que vivemos. Tomemos nota do que nos ensina Sponville a seguir:

“Essa ilusão, da qual é uma ingenuidade crer que seja reservada aos ingênuos, e da qual Spinoza soube pensar a necessidade e mostrar, era para cada um de nós a trama – e o drama – de nossa vida” (p. 139).


Que nossa visita ao ensinamento budista não nos engane: não dou à palavra ilusão qualquer sentido místico. Se pretendo frisar a ideia de que a ilusão é a trama e o drama de nossa vida, é para mostrar que a ilusão reside nas formas como percebemos/ interpretamos o mundo. O materialista pensa que tudo o que vale – a arte, a moral e a política, e mesmo a verdade – na medida em que lhe atribuímos valor, é sempre ilusório. O materialismo não suprime a ilusão, mas fixa-lhe o seu devido lugar. Onde reside, pois, a ilusão? No espectador, naquele que vê o sol girar em torno da Terra. A astronomia ensina que o que vemos é uma ilusão – e desta jamais nos libertamos – e que essa ilusão obedece a leis necessárias. Portanto, se esse é o verdadeiro modo de funcionamento do mundo, um funcionamento que inclui a ilusão como dimensão necessária, nossa percepção não poderia ser de outro modo. Portanto, a ilusão é necessária. Ela tem a sua verdade.
As ditas ilusões de ótica são bem conhecidas, mas há outras maneiras pelas quais os indivíduos se iludem; e uma dessas maneiras é acreditar que desejamos as coisas que são boas. Note-se que o “ser boa” é tomado como condição para que desejemos uma coisa. Crer-se que qualidade “boa” está na coisa mesma (é parte dela) e que essa qualidade é responsável por dirigir nosso desejo. Ilusão comum! Mas, na realidade, é justamente o contrário que sucede. Uma coisa é boa porque a desejamos. O desejo comanda, portanto, nossas escolhas e determina o valor que atribuímos às coisas: “o desejo é a verdade do valor” (p. 141). É por isso que o valor não pode ter a pretensão de ser verdadeiro. A verdade não está sob o comando do desejo, apenas os valores. Uma coisa é verdadeira, independentemente de nosso desejo. Não somos imortais, e isso é verdade, independentemente de nosso desejo de imortalidade. Envelheceremos, e isso é verdade, independentemente de nosso desejo de permanecermos sempre jovens (ilusão). O real e a verdade são indiferentes aos nossos desejos.

“O que vale não é o que é (em verdade) justo, belo ou bom, mas simplesmente o que desejamos e que, por essa razão, julgamos ser justo, belo e bom” (p.141).


Que não haja dúvida: os valores são fixados por um ponto de vista humano, governado pelo desejo. Os valores não são nem irreais (o desejo é real) nem falso (já que isso suporia uma verdade em termos de valores), mas é ilusório (p. 141). Mas é ilusório não porque é falso, mas por crer-se verdadeiro. Não é por ser relativo, mas por julgar-se absoluto. É ilusório também porque crer-se divino: “o homem é só e julga como pode (...); a ilusão não está nesse juízo, mas na negação de sua solidão” (ib.id.). Atente-se nas palavras de Sponville:




“A ilusão não está em ser um homem e estar no centro do seu mundo, mas em se tomar por Deus (ou sua imagem) e estar no centro do universo. Porque o universo não tem centro e porque não há Deus que julgue” (p.141).



Não há saída: eis o labirinto em que vive o homem. O homem jamais poderá viver sem ilusões, porque ele próprio é ilusório. É ele que toma por efetivamente desejado, isto é, é ele que hipostasia o objeto de seu desejo e o transforma em valores objetivamente desejáveis.

“Não é apenas a religião, mas também toda ideologia, que é uma “consciência invertida do mundo”, uma câmara escura em que, como nas primeiras máquinas fotográficas, “os homens e suas relações nos aparecem de cabeça para baixo”. Mesmo ateus, os homens não podem prescindir de uma realização fantástica do ser humano, como diz Marx, a propósito de Deus, isto é, de um além da verdade” (p. 142)



A ideologia, para Marx, é esta forma de ilusão, ou o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido), pelo qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Pela abstração, os homens conhecem a realidade como algo dado, feito e acabado, que classificam, ordenam, sem nunca se indagarem sobre como tal realidade foi concretamente produzida. Pela inversão é que se explica que os homens tomem como objetivo (ou seja, como exterior ao sujeito, pertencente à coisa mesma) aquilo que, na realidade, é do domínio do subjetivo, da imaginação, atribuído à coisa pelos sujeitos.

2.3.1. A ilusão do militante

A ilusão própria da política prende-se à situação de qualquer militante. Essa ilusão consiste em que o militante crê ter razão – uma razão que ele pretende seja universal. Não é necessário o fanatismo para que ele acalente essa crença. Sponville pondera, nesse tocante, o seguinte:

“Há, assim, um fenômeno espontâneo de auto-sugestão pela qual cada um imagina defender não somente seus próprios interesses mas os do Bem, não apenas seus desejos mas as exigências da história, não as suas opiniões mas a verdade (p. 143).


Todos são sinceros, ou dizem o ser, quando se arvoram em combatentes em nome da justiça, da felicidade comum e da liberdade.


“Vários inclusive talvez estejam prontos, pela causa que creem justa, a sacrificar sua vida ou arriscá-la... E é sinceramente que o vencedor, qualquer que seja, pensará na noite da eleição que sua vitória é uma boa coisa, não para ele somente, ou para os seus amigos, mas para o [Brasil]”.
(p. 144-145)


Ele não está errado, nem está com a razão, porque “a política não é uma questão de razão, mas de desejo” (p. 145). Não havendo Deus para decidir, a razão não se interessa por fazê-lo. Ninguém tem razão, porque todos têm desejo. Pode acontecer que o candidato esteja errado, conforme nota Sponville:

“No máximo, pode-se dizer (...) que o candidato vencedor estará errado se acreditar que tem razão e que um Deus, em alguma parte, real ou fictícia, se rejubila secretamente com a vitória dele”.
(p. 145)



Sua ilusão consiste em pensar que a verdade triunfa quando, na verdade, é o desejo que se satisfez e que expressou a sua força. Seus adversários, por seu turno, também se iludem, se pensarem que foi o erro ou a mentira que venceu.

“Ninguém está errado, e todo mundo acha que tem razão. A ilusão não é o contrário da verdade, mas sua pretensão indevida” (ib.id.)


A situação do eleitor não é diferente da situação do político profissional. O eleitor se ilude também no momento em que se convence de que fez a melhor escolha, objetivamente falando. Sponville não pretende, de modo algum, sugerir a adoção do apoliticismo – “ilusão por ilusão, prefiro essa tensão da alma às facilidades insípidas e flácidas do apoliticismo – também ele ilusório, e político a seu modo” (p.146). Necessário é entender que não se escapa da ilusão e não se escapa da política, isto é, de atuar politicamente, mesmo que seja para renunciar a qualquer posição política; jamais se escapa da ilusão de viver como um “animal político”.
O que, raramente, ocorre ao militante é a prática da teorização dessa ilusão. Não lhe ocorre teorizar sobre a crença, largamente aceita, de que existe um bem político discernível do ponto de vista que funda a verdade (uma política objetivamente boa). A isso se chama platonismo: “o platonismo é a ideologia espontânea dos militantes” (p. 146).
Até aqui, consideramos a situação ilusória em que se encontra o militante idealista. Sponville não está certo de que haja um militante materialista; não obstante, supõe sua existência a fim de destacar o que torna a sua situação distinta da situação do militante idealista. Acompanhemos Sponville no seguinte excerto:

“[O militante materialista] combate sozinho e faz o que pode (...) Sabe que nem tem razão, nem está errado, que sua força está a serviço unicamente de seu desejo, e que seu desejo não tem outro direito que sua força... É lúcido e desesperado” (p. 147).


A ação política do militante materialista não é dotada de finalidade, e a história – ele o sabe bem – não tem sentido. A única finalidade que persegue é a do desejo. Como não há Deus, não há, para ele, um Verbo que justifique sua militância: “seu único verbo é sua palavra, singular e frágil” (ib.id.). Ele sabe que nenhum combate é bom, nem partido algum é melhor.

“Não é triste. Não é resignado. Tem a coragem de seu desespero, e a alegria de sua força. No silêncio de Deus e no burburinho do mundo, assume até o fim a solidão de seu desejo” (ib.id.).


Toda política é, portanto, desejante: “a política é a coletividade dos desejos” (p. 148). Nem todo desejo é, todavia, político; só o é, quando, por efeito da ilusão, pretende reinvindicar um bem universal, isto é, quando transforma o que é subjetivamente desejado em objetivamente desejado. A política toma sua força na hipóstase ideológica de um desejo coletivo, que é uma vontade geral ou sentido da história. É aqui que o militante materialista e o militante idealista se encontram:

“O militante materialista vive então as mesmas ilusões de seu irmão-inimigo idealista: ilusão de ter razão (“somos o partido da verdade...”), de estar a serviço de valores supremos (“combatemos pela Justiça”) ou de representar o universal (o Povo, a Nação...), em suma, de combater o bom combate, no fundo o único legítimo, o único que um Deus, se houvesse algum, poderia compartilhar; não dá para imaginar um Deus indo contra “o sentido da história” ou querendo a desgraça da humanidade. Enfim, parece que o militante materialista não pode se impedir de pensar sua prática em termos de conceitos fundamentalmente idealistas” (p. 149)


Então, devemos concluir que o materialista, enquanto militante, é tão iludido quanto o idealista, na mesma condição? A resposta é: sim e não. O materialismo se defronta com um paradoxo inevitável: na medida em que o materialismo é efeito do desejo é, apesar disso, uma doutrina que supõe necessariamente haver algo além do desejo. Esse “além” é que justifica o desejo e é necessariamente um ideal (porque não existe objetivamente). O militante idealista compartilha essa crença na existência de um além; mas somente o materialista reconhece que essa crença é ilusória. É necessário crer, pois a ilusão é necessária. Por isso, o materialista está condenado a esta contradição: ele crê em algo que sabe ilusório e o afirma como tal. Ele é obrigado a se desilusionar, sem abrir mão de sua crença que reconhece ilusória. Novamente é Sponville que nos esclarece a condição do militante materialista:

“É para isso que lhe serve a sua filosofia: não para ele se desembaraçar dessa ilusão (já que lhe ensina, ao contrário, a necessidade desta), mas para colocá-la em seu devido lugar, isto é, pensá-la como ilusão necessária” (p. 150).


A lucidez é experienciada no momento em que reconhecemos ser a política nada mais do que “jogo de forças e de desejos, e não a emergência de uma verdade” (p.150). Lucidez materialista e niilista, a um só tempo, portanto.

3. A aurora de nossa mente ou o começo de nossa ilusão

Nosso cérebro tem a capacidade natural de produzir ilusões. É possível explicar a facilidade com que nos enganamos, com que nos iludimos ao longo da vida estudando o modo como se desenvolve a cognição humana. Nos primeiros anos de vida, no período que Piaget chamou de pré-operatório, o cérebro de uma criança se acha ainda imaturo cognitivamente, muito embora ela já experimente emoções que determinarão significativamente suas experiências futuras. Aos dois anos de vida, a criança não consegue perceber outro ponto de vista além do seu próprio. Essa fase caracteriza-se pelo predomínio do pensamento egocêntrico. A criança, nessa fase, não consegue assumir o ponto de vista alheio.
Seu pensamento compreende o mundo sensível como uma extensão de si. É comum que a criança não consiga se distinguir de outras pessoas e objetos. Ela costuma atribuir suas vivências pessoais a essas pessoas e objetos. O animismo começa nesse período. Não obstante a imaturidade do cérebro, a criança está em pleno desenvolvimento da aprendizagem sobre a realidade a sua volta. Como sua racionalidade só irá amadurecer algum tempo depois, ela se relacionará com o mundo de maneira intuitiva, emocional e egocêntrica.
Seu conhecimento do mundo funda-se, basicamente, nos sentidos. Trata-se de um conhecimento jamais submetido à reflexão. Ela aprende, mas não entende seu conhecimento. Este conhecimento é, para ela, incompreensível.
Nos primeiros anos de vida, o que fica registrado na mente da criança é uma vivência do mundo baseada em si e, ao mesmo tempo, esquecida para si. Essas primeiras impressões da infância jamais se apagam. As experiências subsequentes estarão na base de nossas crenças emocionais já formadas nesse estágio de desenvolvimento de nossa cognição.
Se, no decorrer da infância, aprendemos o que é mais básico para atuar no mundo com pouca ou nenhuma consciência, o que sucede alguns anos depois? Não deve surpreender-nos que não construímos uma visão de mundo nova, com base na realidade. Na verdade, nós racionalizamos aquilo em que já acreditávamos por força das nossas emoções. Em vez de ajustar nossas explicações às evidências, fazemos o contrário: ajustamos às evidências às nossas crenças preexistentes. Vale dizer de modo mais claro: explicamos a realidade, ajustando-a de modo que se acomode às nossas crenças prévias, e tomamos estas crenças como a realidade. Notemos que já estávamos comprometidos com essas crenças. Essa operação de ajuste da realidade às nossas crenças primeiras e forjadas em experiências calcadas sobre as nossas emoções infantis explica por que muitos de nós chegam a acreditar que os valores são objetivos, que deuses existem e nos amam.
Estamos programados para fazer julgamentos morais com base numa teoria do realismo moral, consoante nota o filósofo e neurocientista Joshua Greene:

“O julgamento moral, em sua maior parte, não é guiado por raciocínios morais, mas por intuições morais de natureza emocional. Nossa capacidade de julgamento moral é uma complexa adaptação evolutiva a uma vida intensamente social. Na verdade, somos tão bem adaptados a fazer julgamentos morais que, aos nossos olhos, o ato de fazê-los é bastante fácil, parte do “bom senso”. Como muitas habilidades de fazer julgamentos morais nos parece uma habilidade perceptível, uma habilidade, neste caso, de discernir imediata e confiavelmente fatos morais que independem de mentes. O resultado é que somos naturalmente inclinados à errônea noção de realismo moral. As tendências psicológicas que encorajam essa crença equivocada têm uma importante função biológica, e isso explica por que julgamos o realismo moral tão atraente, ainda que seja falso. Digamo-lo ainda outra vez, o realismo moral é um erro que nascemos para cometer”.
(Greene, 2002. apud. Cioran, 2011, p. 89, grifo meu).