domingo, 6 de julho de 2014

"A visão do homem agora cansa - o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do homem..." (Friedrich Nietzsche)

                                

                       O espírito materialista e niilista
                       Uma conciliação contra a ilusão


Em Confissões de um filósofo (2001), Bryan Magee observa que o impulso básico para o filosofar é a curiosidade a respeito do mundo e não o estudo dos textos filosóficos.


“O impulso básico por trás da verdadeira filosofia é a curiosidade a respeito do mundo, não o interesse pelos textos dos filósofos. Cada um de nós emerge da pré-consciência da tenra infância e simplesmente se encontra aqui, nele, no mundo. O que é o mundo: E o que somos nós? Desde os primórdios da humanidade, houve quem fosse dominado pela compulsão de fazer essas perguntas e sentisse um anseio por encontrar as respostas. É isso o que quer realmente dizer qualquer expressão semelhante a “necessidade de metafísica do homem”.
(grifo meu, p. 264)


O indivíduo se entrega à filosofia no instante em que sente a necessidade de refletir sobre a presença plena do ser, do mundo, do qual ele emerge como uma consciência que se sabe finita. É no momento em que esse indivíduo se dá conta desse acontecer, desse haver, dessa Primeira Hora que fez dele um ente lançado no mundo e capaz de se inquietar com a existência do mundo e se perguntar sobre a possibilidade de nada ter existido que ele precisa da filosofia.
Neste texto, esforçar-me-ei por mostrar que a reflexão filosófica não só contribui para construir um modo pessoal de ver (interpretar) e compreender o mundo e a condição humana, compreensão que serve para orientar cada um de nós nas diversas formas pelas quais nós nos relacionamos com o mundo, mas também pode contribuir muito para realçar certos traços de temperamento ou de caráter. Cumpre dizer que emprego a palavra caráter não na acepção ética ou moral, mas na acepção psicológica, para designar, portanto, os aspectos da personalidade que constituem o ego e que, em suas manifestações, distinguem uma pessoa de outra.
Meu intento principal será demonstrar de que modo se pode conciliar o materialismo com o niilismo com vistas a nos esclarecer sobre o estado de ilusões a que estamos presos em nossas vivências cotidianas. Em última instância, espero conseguir mostrar que minhas crenças a respeito do mundo e da condição humana, bem como o modo como eu me relaciono com o mundo estão calcados sobre essas duas doutrinas. Meu temperamento se afina bem com elas. Ao dizer isso, quero dizer que, ao mesmo tempo em que nos entregamos à filosofia, a filosofia parece nos instar a que dela nos apropriemos, a que assumamos uma posição dentre as muitas possibilidades de pensar o mundo e o homem que ela nos oferece. Nosso encontro com a filosofia é um encontro com certo modo de pensar e viver o mundo.




1. A escura lucidez do niilismo

Tome-se o seguinte passo de Niilismo (2007), em que Rossano Pecoraro dá-nos a saber, de modo bastante geral, as condições sócio-históricas em que emerge a atitude niilista:

“A corrosão, a desvalorização, a morte do sentido. A falta de finalidade de resposta ao “porquê”. Os valores tradicionais depreciam-se; princípios e critérios absolutos dissolvem-se. A bússola, que outrora nos orientava, apesar das crises, das rupturas, das ilusões, da substituição frenética de rotas, explodiu em nossas mãos. A superfície, antes congelada, das verdades e dos valores tradicionais está despedaçada e torna-se difícil prosseguir no caminho, avistar um ancoradouro”.
(p. 7)



O niilismo, enquanto atitude e doutrina, surge em circunstâncias em que o homem percebe abalado o seu universo de referências. O niilismo é um conceito fundamental e indispensável à compreensão do desenvolvimento do pensamento filosófico vicejante nos séculos XIX e XX. É um fenômeno complexo, multifacetado. O niilismo se faz presente em toda parte.
Do latim nihil (nada), o niilismo recobre uma forma de pensamento obsedado pelo nada. O niilismo pode ser identificado no curso de toda a história do pensamento ocidental: faz-se notar nas teses do sofista Górgias (490-388 a.C.), na pena do filósofo e poeta italiano Giacomo Leopardi (1798-1837) – o nada é o princípio de Deus e de todas as coisas; na pergunta de Leibniz “por que o ser e não, antes, o nada?”, no pessimismo de Arthur Schopenhauer (1788-1860).
No entanto, é com Nietzsche que o niilismo ganha maior alcance e vigor na reflexão filosófica. Nietzsche foi, sem dúvida, “o maior profeta e teórico do niilismo” (p. 17). Devemos a ele a construção de um pensamento radical que identificou as origens mais remotas do fenômeno, vale dizer, o platonismo e o cristianismo.


“O século XX, século do niilismo abre-se com a morte de Nietzsche e com a crise de uma Razão que sucumbirá aos horrores de duas guerras mundiais, do facismo e do nazismo. O niilismo infiltra-se, encontra projetualidade onipotente na ciência e da técnica, impregna a atmosfera cultural de toda uma época, transforma-se em uma “categoria” fundamental no laboratório contemporâneo”.
(p.10)


O niilismo é uma doutrina filosófica que nega a existência do absoluto, quer como verdade, quer como valor ético. O absoluto aqui conjuga duas acepções: numa acepção, o absoluto é aquilo que é em si e por si, independentemente de qualquer outra coisa, aquilo que encerra em si sua própria razão de ser; noutra acepção, o absoluto recobre a ideia de que é algo independente de qualquer referência convencional (é o contrário do relativo).
Nietzsche utilizou esse termo para designar o que, para ele, era a decadência européia, a ruína dos valores tradicionais consagrados na civilização ocidental do século XIX. O niilismo caracteriza-se, portanto,  não só pela descrença em um futuro glorioso e, nesse sentido, é infenso à ideia de progresso, mas também pela afirmação da “morte de Deus”, na medida em que nega a crença num absoluto, fundamento metafísico de todos os valores, quer éticos, quer estéticos, quer sociais, da tradição.
Entanto, o niilismo nietzschiano conduz a novos valores afirmativos da vida, da vontade humana, pela superação da “moral de rebanho” e pela dissolução dos princípios metafísicos tradicionais. Na mira do niilismo nietzschiano, estavam os Ídolos tão enaltecidos pela civilização ocidental, quais sejam, a Verdade, a Razão e Deus.
O niilismo pode apresentar-se em duas formas: uma positiva e outra negativa. O niilismo positivo se manifesta por meio de um trabalho crítico que visa a desmascarar a abismal ausência de cada fundamento, verdade, critério absoluto e universal, ao mesmo tempo em que nos convoca a assumir nossa própria liberdade e responsabilidade, não mais garantidas, é verdade, nem sufocadas ou governadas por nada. O niilismo negativo é marcado pela acentuação de traços destruidores e iconoclastas, tais como os do declínio, do ressentimento, da incapacidade de avançar, da paralisia, do “tudo-vale” e do nefasto silogismo: “se Deus (a verdade, o princípio) está morto, então tudo é permitido”.


1.2. Niilismo em Nietzsche

Na filosofia nietzschiana, o niilismo assume um sentido negativo, que denuncia a decadência do homem ocidental, cujas origens remontam ao racionalismo socrático, à oposição platônica entre o mundo das Ideias e o mundo sensível, e à consequente desvalorização deste último em favor do primeiro; ao cristianismo, que Nietzsche chamou “platonismo para o povo”, o qual impôs uma moral de renúncia e submissão, de desvalorização da vida em nome de um além-mundo, ao mesmo tempo em que inculcou nas consciências de rebanho esperança de salvação e redenção.
Por outro lado, há, em Nietzsche, um niilismo positivo, de que se serviu o filósofo para demolir os ídolos da tradição, para desmascarar as falsidades e embustes dos valores e verdades tradicionais. Esse niilismo serviu para anunciar a superação do homem e o advento do “além-do-homem”.


1.3. Niilismo em Sartre

Também o pensamento francês do pós-guerra é perpassado por características niilistas. Jean Paul-Sartre (1905-1980) debateu-se com as grandes questões que o nihil suscita: o sentido da existência, a liberdade, engajamento, concepção da história.
Ao sustentar que o homem “é aquele ente em que a existência precede a essência”, Sartre compromete-se com a negação e dissolução de ideias como a de Deus, princípio, valores heteronômicos.
Afirmando que o homem está condenado a ser livre e que, no seu abandono, tem de inventar a si mesmo, Sartre endossa uma posição niilista, que se clarifica na ideia de que o homem é não é uma realidade dada, mas uma possibilidade, um projeto, um ente que tem de decidir ser nas escolhas que faz.
A dimensão trágica do “para-si” consiste no fato de ele estar sempre inserido numa situação determinada, de estar lançado em um mundo entre outros “em-si”. Esse choque do homem com o mundo das coisas condena-o a uma nadificação do mundo. O homem perde toda referência externa em que poderia se apoiar para afirmar-se unicamente a si mesmo e sua absoluta liberdade, que se funda no nada. Segundo Sartre, na tentativa de se realizar, o homem pretende, em última instância, ser Deus. Sucede, contudo, que a ideia de Deus aniquila a liberdade humana. Sem encontrar soluções e critérios para construir o fundamento de sua existência, o homem se vê dominado pela negatividade: escolher não faz sentido, e “o homem é uma paixão inútil” (Sartre).

“Em sua conferência, proferida no pós-guerra, O existencialismo é um humanismo (1945), (...) o filósofo defende-se das acusações de desengajamento e derrotismo, que sobretudo marxistas e católicos lhe imputavam, e mostra que a filosofia existencialista, mesmo com o seu fundo relativista e niilista, é capaz de propor uma regeneração dos valores a partir da “morte de Deus”.
(p. 31)


Cabe salientar que uma tal regeneração não é possível se o homem se perder numa busca insensata pelos princípios, critérios e valores decaídos. Essa regeneração só poderia realizar-se se o homem reinventar os seus valores “unicamente por força de si mesmo, mediante o seu engajamento e sua liberdade” (p. 31).


1.4. Niilismo em Albert Camus

Absurdo e revolta são os dois principais polos do pensamento de Camus (1913-1960). No romance O estrangeiro (1942), o autor explora a escandalosa gratuidade da existência, a sua insensatez constitutiva que silencia os valores e a moral. Em Camus, a liberdade defronta-se com a impotência ou a inevitabilidade da morte.
No ensaio O homem revoltado (1951), o absurdo é tratado como uma questão universal. O absurdo é a injustiça, o caos, a desrazão do mundo. É da visão desse espetáculo trágico que se origina a revolta. O homem revoltado é aquele que se esforça por dar um sentido ao absurdo, ultrapassando, assim, o niilismo.


1.5. Niilismo cosmológico

O que chamo de niilismo cosmológico é a concepção do homem que ressalta sua insignificância na totalidade do cosmo. Esse niilismo está ligado intimamente à cosmologia moderna. Depois de Descartes, com sua concepção de natureza como res extensa, a saber, um espaço vazio e matéria, o homem foi abalado por um estranhamento metafísico. Pascal já havia notado a terrível transformação trazida pela cosmologia materialista, que pulverizou a importância que o homem atribuía a si mesmo na ordem do universo. Escreve Pascal: “imerso na imensidão infinita dos espaços que ignoro e que me ignoram, eu me apavoro”.
O universo físico desvelado pela cosmologia moderna não dá ao homem viver mais em casa, nem sentir-se um ser especial, como no modelo cosmológico antigo e medieval. Desde então, o universo lhe parece estranho, desolador, sombrio e inóspito. Como numa cela que lhe priva a liberdade, sua alma percebe-se aprisionada numa infinitude cósmica atormentadora. O homem se percebe como a única voz no silêncio eterno das estrelas e dos espaços infinitos e indiferentes. O homem está só consigo e esse estado lhe é fonte de angústia e desespero. Destarte, nota Volpi, em O Niilismo (1999):

“Logo mais, o próprio Deus se eclipsará. Primeiro, como hipótese, supondo-se tudo “como se Deus não existisse” (...). Depois, como realidade. Tudo deve ser repensado, a começar pelo sentido de nossa existência, já que “Deus está morto”.
(p. 17)


A transcendência perde sua força, que antes ligava o homem à totalidade cósmica. O homem se vê abandonado a si mesmo e reclama sua liberdade. Não lhe resta senão apoiar-se nela, identificar-se com ela. Assim, o homem passa a ser a sua própria liberdade. Ele é o que projeta ser; tudo lhe é permitido. O existencialismo enfrentou o fato de essa liberdade ser uma liberdade desesperada, a qual acarreta mais angústia do que satisfação e força (Volpi, p. 17).
 Vale dizer que um niilista não acredita no próprio homem. O niilista renuncia à crença em que o homem é um ser especial na natureza, em que ele seja dotado de um valor ou destino metafísico, que justifica sua existência.


1.6. Niilismo e política

Desde o fim do século XVIII, o niilismo se fez sentir na história, tanto como força conceitual e filosófica, quanto como força pregnante do plano social e político. Os niilistas objetivavam a dissolução, a destruição da ordem social, do sistema de valores consagrados e do sistema político vigente – pelo menos era assim que os viam seus adversários.
No contexto da cultura francesa, o pensador católico Franz von Baader debruçou-se sobre o conceito de niilismo em dois ensaios, nos quais afirmava que o protestantismo, dando origem a um fenômeno dissolutivo das verdades sagradas, deveria ser combatido pelo catolicismo, que deveria impor novamente o “conceito de autoridade no sentido eclesiástico, político e científico”. Baader defendia uma luta contra todos os tipos de “dúvidas ou protestos, antigos ou novos”. Em seguida, definiu o niilismo como “um abuso da inteligência destrutivo para a religião”. Condenando o niilismo, ele estava condenando o que julgava ser um efeito do uso sobremaneira livre da razão, ou um sintoma da degeneração do tecido civil, religioso e social.
No contexto da Revolução Francesa, eram considerados niilistas aqueles que não eram nem favoráveis, nem contrários à insurreição. Na França do período pós-revolução, niilista era aquele que não acreditava em nada, que não se interessava por nada.

Sumariando, pode-se entender o niilismo como o diagnóstico da decadência e da crise dos valores. Na seção seguinte, tecerei algumas considerações sobre o materialismo filosófico. Valho-me, para tanto, do livro Uma Educação Filosófica (2001), de André Comte-Sponville. Nele, se topa um excerto em que o autor define o materialismo.

2.1. Materialismo

“(...) chama-se materialismo a doutrina que afirma que tudo é matéria ou produto da matéria (salvo o vazio) e que, por conseguinte, os fenômenos intelectuais, morais e espirituais (ou assim supostos) têm realidade secundária e determinada (...)” (p.119)


O materialismo é mais bem elucidado, quando contraposto ao idealismo, doutrina esta que afirma a existência independente, primeira e exclusiva do pensamento. Ao contrário, o materialismo afirma o primado da matéria. Dentre os aspectos que se podem inferir do trecho referido, destaco, tendo em vista a conciliação do materialismo com o niilismo, seu relativismo ético. Na perspectiva materialista, não há valores absolutos (não há Bem em si, Justiça em si, Belo em si, ou mesmo Deus). Todo valor é relativo a um corpo individual ou social, à história.
O materialismo se define, negativamente, pela recusa do dualismo e do espiritualismo (não existe nem mundo inteligível nem alma imaterial), do ceticismo e do criticismo (pois a realidade em si não é incognoscível). É incompatível com toda religião cujo corpo doutrinário se sustenta pela crença num Deus imaterial, criador e legislador.
O materialismo é uma filosofia de recusa, de embate (p. 120). É também um empreendimento de desmitificação. É importante salientar que o materialismo não nega, de modo algum, a existência do espírito. Na verdade, o materialismo se funda num paradoxo: afirma o primado da matéria e a primazia do espírito.
Essas breves notas sobre o materialismo são – assim me parece – suficientes para familiarizar o leitor com a doutrina materialista. Ela será mais bem elucidada à medida que me ocupar com o desenvolvimento de duas questões que se encontraram interligadas: ilusão e política. Delas me ocuparei, à luz da perspectiva materialista.


2.2. Materialismo e a ilusão do valor

Em Tratado do Desespero e da Beatitude (1997), Sponville afirma que o materialismo, em política, é antiplatônico, a saber, é a negação do ideal (p. 129). Disso não se segue que o materialista não tenha um ideal, que ele renuncie a todo ideal. Como filósofo, o materialista tem suas aspirações elevadas, suas exigências intelectuais, estéticas, portanto, seus ideais; se não os tivessem, não seriam filósofos.
O que o distingue, nesse tocante, do idealista é a forma como pensam o estatuto do ideal. Para um materialista, o ideal carece de existência absoluta; ao contrário, o idealista crê nessa existência absoluta do ideal. Para o materialista, o ideal não existe independentemente dos sujeitos, de certas condições sócio-históricas. Para o materialista, o ideal é o horizonte do desejo. Consoante insiste Sponville,

“(...) ser materialista é pensar que o ser não tem mais valor do que o valor tem ser. Dito de outro modo, o ser não vale nada, falando objetivamente, e o valor não é, isto é, só tem ser ilusório ou subjetivo. Em resumo, trata-se de disjungir o que Platão cônjuge: o valor e o ser, a norma e a verdade. Para um materialista, o valor não é verdadeiro, e a verdade não tem valor. Desespero e lucidez”.
(p. 135)



Quem quer que adote uma posição materialista compromete-se, necessariamente, com o fato de o ser não ter valor tanto quanto o valor não ter ser. Em outras palavras, “o ser não vale nada, falando objetivamente, e o valor não é, isto é, só tem ser ilusório ou subjetivo” (p. 135). O materialismo, assim, separa aquilo que Platão uniu: o valor e o ser, a norma e a verdade. Para um materialista, o valor não é verdadeiro, tampouco a verdade tem valor.
Uma vez adotando uma visão materialista do mundo, um indivíduo se compromete com o pressuposto básico segundo o qual os valores são ilusórios, são produtos da imaginação humana e sempre relativos. Destarte, o bem, o mal, o belo e o feio, o justo e o injusto são “puros fantasmas da alma nascidos das afeições do corpo” (p. 136). Para um materialista, os homens não são livres, muito menos guiados pela razão.
Do que se expôs até aqui, segue-se uma conclusão que o materialismo endossa: a política, a arte e a moral se encontram sempre ao abrigo da ilusão (p. 136). O materialismo é uma filosofia da desmitificação.

“(...) somente um discurso verdadeiro sobre a moral, sobre a arte, sobre a política pode mostrar que a moral, a arte e a política não tem verdade e não poderiam ter (...) Verdade e desespero: se não há valor que não seja ilusório, somente a verdade – a verdade sem valor – é capaz de nos desilusionar”.
(ib.id., ênfase no original)


Com Sponville – e permitindo-me o uso de um neologismo -, pode-se pensar o materialismo como uma doutrina do “desilusionamento”. Com Spinoza, vale dizer que “a verdadeira filosofia” é a que elabora a teoria da ilusão de toda filosofia; é a que reconhece seu sentido só pode ser determinado do ponto de vista dos homens. É verdadeira porque reconhece que a natureza (ou o Deus spinozista) é indiferente a tudo, ou seja, destituída de toda normatividade. Essa filosofia anuncia que não há nada além da natureza: tudo é e nada vale. Impõe-se-me um esclarecimento aqui: dizer que “nada vale” é dizer que nada tem valor em si, independente de um corpo individual, social ou da história.


2.3. Ilusão e política numa perspectiva materialista

Doravante, vou desenvolver e esclarecer o conceito de ilusão, com vistas a fazer entender em que medida a política (o mesmo vale para a arte e a moral) é ilusória. No que se seguirá, estarei interessado em elucidar qual é a ilusão própria à política. Ao apontá-la, dou a saber a situação ilusória de todo militante.
Comecemos por notar que ser antiplatônico em política é assumir que nenhuma política é verdadeira, que nenhuma é boa ou justa absoluta ou objetivamente. A esse respeito, sublinha Sponville: “Só há absoluto na natureza, e esta é indiferente a qualquer política” (p. 138). Todas as políticas se equivalem, porque nenhuma delas tem valor – materialismo e desespero.
Se nos socorrermos do ensinamento do budismo primitivo, a questão de como a ilusão estrutura, é constitutiva de nossa relação com o mundo ficará mais clara. O sábio, segundo a doutrina budista, é aquele que despertou da ilusão do samsara: ele é desapegado de tudo. Sabe que nada tem sentido, nada tem valor, nem mesmo o budismo. O real é indiferente. No mundo ilusório, que é o mundo em que vivemos, que é o mundo do samsara, tudo adquire valor e sentido, isto é, tudo passa a ter valor e sentido – segundo se crê - objetivamente. O sábio está liberto desse mundo, já que atingiu o nirvana, condição em que descobre a vacuidade do sentido, em que desperta do sonho normativo.
Deve-se entender, portanto, que, do ponto de vista budista, o indivíduo que vive para alguma coisa, isto é, em função de algo que ele pensa ser dotado de sentido, significado para si mesmo, é prisioneiro do samsara (samsara designa, na tradição budista e hinduísta, o ciclo de morte e renascimento em mundos materiais), ou seja, da ilusão. Mas essa ilusão não é o oposto do mundo real; ela pertence ao real, melhor ainda, é o mundo real em que vivemos. Tomemos nota do que nos ensina Sponville a seguir:

“Essa ilusão, da qual é uma ingenuidade crer que seja reservada aos ingênuos, e da qual Spinoza soube pensar a necessidade e mostrar, era para cada um de nós a trama – e o drama – de nossa vida” (p. 139).


Que nossa visita ao ensinamento budista não nos engane: não dou à palavra ilusão qualquer sentido místico. Se pretendo frisar a ideia de que a ilusão é a trama e o drama de nossa vida, é para mostrar que a ilusão reside nas formas como percebemos/ interpretamos o mundo. O materialista pensa que tudo o que vale – a arte, a moral e a política, e mesmo a verdade – na medida em que lhe atribuímos valor, é sempre ilusório. O materialismo não suprime a ilusão, mas fixa-lhe o seu devido lugar. Onde reside, pois, a ilusão? No espectador, naquele que vê o sol girar em torno da Terra. A astronomia ensina que o que vemos é uma ilusão – e desta jamais nos libertamos – e que essa ilusão obedece a leis necessárias. Portanto, se esse é o verdadeiro modo de funcionamento do mundo, um funcionamento que inclui a ilusão como dimensão necessária, nossa percepção não poderia ser de outro modo. Portanto, a ilusão é necessária. Ela tem a sua verdade.
As ditas ilusões de ótica são bem conhecidas, mas há outras maneiras pelas quais os indivíduos se iludem; e uma dessas maneiras é acreditar que desejamos as coisas que são boas. Note-se que o “ser boa” é tomado como condição para que desejemos uma coisa. Crer-se que qualidade “boa” está na coisa mesma (é parte dela) e que essa qualidade é responsável por dirigir nosso desejo. Ilusão comum! Mas, na realidade, é justamente o contrário que sucede. Uma coisa é boa porque a desejamos. O desejo comanda, portanto, nossas escolhas e determina o valor que atribuímos às coisas: “o desejo é a verdade do valor” (p. 141). É por isso que o valor não pode ter a pretensão de ser verdadeiro. A verdade não está sob o comando do desejo, apenas os valores. Uma coisa é verdadeira, independentemente de nosso desejo. Não somos imortais, e isso é verdade, independentemente de nosso desejo de imortalidade. Envelheceremos, e isso é verdade, independentemente de nosso desejo de permanecermos sempre jovens (ilusão). O real e a verdade são indiferentes aos nossos desejos.

“O que vale não é o que é (em verdade) justo, belo ou bom, mas simplesmente o que desejamos e que, por essa razão, julgamos ser justo, belo e bom” (p.141).


Que não haja dúvida: os valores são fixados por um ponto de vista humano, governado pelo desejo. Os valores não são nem irreais (o desejo é real) nem falso (já que isso suporia uma verdade em termos de valores), mas é ilusório (p. 141). Mas é ilusório não porque é falso, mas por crer-se verdadeiro. Não é por ser relativo, mas por julgar-se absoluto. É ilusório também porque crer-se divino: “o homem é só e julga como pode (...); a ilusão não está nesse juízo, mas na negação de sua solidão” (ib.id.). Atente-se nas palavras de Sponville:




“A ilusão não está em ser um homem e estar no centro do seu mundo, mas em se tomar por Deus (ou sua imagem) e estar no centro do universo. Porque o universo não tem centro e porque não há Deus que julgue” (p.141).



Não há saída: eis o labirinto em que vive o homem. O homem jamais poderá viver sem ilusões, porque ele próprio é ilusório. É ele que toma por efetivamente desejado, isto é, é ele que hipostasia o objeto de seu desejo e o transforma em valores objetivamente desejáveis.

“Não é apenas a religião, mas também toda ideologia, que é uma “consciência invertida do mundo”, uma câmara escura em que, como nas primeiras máquinas fotográficas, “os homens e suas relações nos aparecem de cabeça para baixo”. Mesmo ateus, os homens não podem prescindir de uma realização fantástica do ser humano, como diz Marx, a propósito de Deus, isto é, de um além da verdade” (p. 142)



A ideologia, para Marx, é esta forma de ilusão, ou o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido), pelo qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Pela abstração, os homens conhecem a realidade como algo dado, feito e acabado, que classificam, ordenam, sem nunca se indagarem sobre como tal realidade foi concretamente produzida. Pela inversão é que se explica que os homens tomem como objetivo (ou seja, como exterior ao sujeito, pertencente à coisa mesma) aquilo que, na realidade, é do domínio do subjetivo, da imaginação, atribuído à coisa pelos sujeitos.

2.3.1. A ilusão do militante

A ilusão própria da política prende-se à situação de qualquer militante. Essa ilusão consiste em que o militante crê ter razão – uma razão que ele pretende seja universal. Não é necessário o fanatismo para que ele acalente essa crença. Sponville pondera, nesse tocante, o seguinte:

“Há, assim, um fenômeno espontâneo de auto-sugestão pela qual cada um imagina defender não somente seus próprios interesses mas os do Bem, não apenas seus desejos mas as exigências da história, não as suas opiniões mas a verdade (p. 143).


Todos são sinceros, ou dizem o ser, quando se arvoram em combatentes em nome da justiça, da felicidade comum e da liberdade.


“Vários inclusive talvez estejam prontos, pela causa que creem justa, a sacrificar sua vida ou arriscá-la... E é sinceramente que o vencedor, qualquer que seja, pensará na noite da eleição que sua vitória é uma boa coisa, não para ele somente, ou para os seus amigos, mas para o [Brasil]”.
(p. 144-145)


Ele não está errado, nem está com a razão, porque “a política não é uma questão de razão, mas de desejo” (p. 145). Não havendo Deus para decidir, a razão não se interessa por fazê-lo. Ninguém tem razão, porque todos têm desejo. Pode acontecer que o candidato esteja errado, conforme nota Sponville:

“No máximo, pode-se dizer (...) que o candidato vencedor estará errado se acreditar que tem razão e que um Deus, em alguma parte, real ou fictícia, se rejubila secretamente com a vitória dele”.
(p. 145)



Sua ilusão consiste em pensar que a verdade triunfa quando, na verdade, é o desejo que se satisfez e que expressou a sua força. Seus adversários, por seu turno, também se iludem, se pensarem que foi o erro ou a mentira que venceu.

“Ninguém está errado, e todo mundo acha que tem razão. A ilusão não é o contrário da verdade, mas sua pretensão indevida” (ib.id.)


A situação do eleitor não é diferente da situação do político profissional. O eleitor se ilude também no momento em que se convence de que fez a melhor escolha, objetivamente falando. Sponville não pretende, de modo algum, sugerir a adoção do apoliticismo – “ilusão por ilusão, prefiro essa tensão da alma às facilidades insípidas e flácidas do apoliticismo – também ele ilusório, e político a seu modo” (p.146). Necessário é entender que não se escapa da ilusão e não se escapa da política, isto é, de atuar politicamente, mesmo que seja para renunciar a qualquer posição política; jamais se escapa da ilusão de viver como um “animal político”.
O que, raramente, ocorre ao militante é a prática da teorização dessa ilusão. Não lhe ocorre teorizar sobre a crença, largamente aceita, de que existe um bem político discernível do ponto de vista que funda a verdade (uma política objetivamente boa). A isso se chama platonismo: “o platonismo é a ideologia espontânea dos militantes” (p. 146).
Até aqui, consideramos a situação ilusória em que se encontra o militante idealista. Sponville não está certo de que haja um militante materialista; não obstante, supõe sua existência a fim de destacar o que torna a sua situação distinta da situação do militante idealista. Acompanhemos Sponville no seguinte excerto:

“[O militante materialista] combate sozinho e faz o que pode (...) Sabe que nem tem razão, nem está errado, que sua força está a serviço unicamente de seu desejo, e que seu desejo não tem outro direito que sua força... É lúcido e desesperado” (p. 147).


A ação política do militante materialista não é dotada de finalidade, e a história – ele o sabe bem – não tem sentido. A única finalidade que persegue é a do desejo. Como não há Deus, não há, para ele, um Verbo que justifique sua militância: “seu único verbo é sua palavra, singular e frágil” (ib.id.). Ele sabe que nenhum combate é bom, nem partido algum é melhor.

“Não é triste. Não é resignado. Tem a coragem de seu desespero, e a alegria de sua força. No silêncio de Deus e no burburinho do mundo, assume até o fim a solidão de seu desejo” (ib.id.).


Toda política é, portanto, desejante: “a política é a coletividade dos desejos” (p. 148). Nem todo desejo é, todavia, político; só o é, quando, por efeito da ilusão, pretende reinvindicar um bem universal, isto é, quando transforma o que é subjetivamente desejado em objetivamente desejado. A política toma sua força na hipóstase ideológica de um desejo coletivo, que é uma vontade geral ou sentido da história. É aqui que o militante materialista e o militante idealista se encontram:

“O militante materialista vive então as mesmas ilusões de seu irmão-inimigo idealista: ilusão de ter razão (“somos o partido da verdade...”), de estar a serviço de valores supremos (“combatemos pela Justiça”) ou de representar o universal (o Povo, a Nação...), em suma, de combater o bom combate, no fundo o único legítimo, o único que um Deus, se houvesse algum, poderia compartilhar; não dá para imaginar um Deus indo contra “o sentido da história” ou querendo a desgraça da humanidade. Enfim, parece que o militante materialista não pode se impedir de pensar sua prática em termos de conceitos fundamentalmente idealistas” (p. 149)


Então, devemos concluir que o materialista, enquanto militante, é tão iludido quanto o idealista, na mesma condição? A resposta é: sim e não. O materialismo se defronta com um paradoxo inevitável: na medida em que o materialismo é efeito do desejo é, apesar disso, uma doutrina que supõe necessariamente haver algo além do desejo. Esse “além” é que justifica o desejo e é necessariamente um ideal (porque não existe objetivamente). O militante idealista compartilha essa crença na existência de um além; mas somente o materialista reconhece que essa crença é ilusória. É necessário crer, pois a ilusão é necessária. Por isso, o materialista está condenado a esta contradição: ele crê em algo que sabe ilusório e o afirma como tal. Ele é obrigado a se desilusionar, sem abrir mão de sua crença que reconhece ilusória. Novamente é Sponville que nos esclarece a condição do militante materialista:

“É para isso que lhe serve a sua filosofia: não para ele se desembaraçar dessa ilusão (já que lhe ensina, ao contrário, a necessidade desta), mas para colocá-la em seu devido lugar, isto é, pensá-la como ilusão necessária” (p. 150).


A lucidez é experienciada no momento em que reconhecemos ser a política nada mais do que “jogo de forças e de desejos, e não a emergência de uma verdade” (p.150). Lucidez materialista e niilista, a um só tempo, portanto.

3. A aurora de nossa mente ou o começo de nossa ilusão

Nosso cérebro tem a capacidade natural de produzir ilusões. É possível explicar a facilidade com que nos enganamos, com que nos iludimos ao longo da vida estudando o modo como se desenvolve a cognição humana. Nos primeiros anos de vida, no período que Piaget chamou de pré-operatório, o cérebro de uma criança se acha ainda imaturo cognitivamente, muito embora ela já experimente emoções que determinarão significativamente suas experiências futuras. Aos dois anos de vida, a criança não consegue perceber outro ponto de vista além do seu próprio. Essa fase caracteriza-se pelo predomínio do pensamento egocêntrico. A criança, nessa fase, não consegue assumir o ponto de vista alheio.
Seu pensamento compreende o mundo sensível como uma extensão de si. É comum que a criança não consiga se distinguir de outras pessoas e objetos. Ela costuma atribuir suas vivências pessoais a essas pessoas e objetos. O animismo começa nesse período. Não obstante a imaturidade do cérebro, a criança está em pleno desenvolvimento da aprendizagem sobre a realidade a sua volta. Como sua racionalidade só irá amadurecer algum tempo depois, ela se relacionará com o mundo de maneira intuitiva, emocional e egocêntrica.
Seu conhecimento do mundo funda-se, basicamente, nos sentidos. Trata-se de um conhecimento jamais submetido à reflexão. Ela aprende, mas não entende seu conhecimento. Este conhecimento é, para ela, incompreensível.
Nos primeiros anos de vida, o que fica registrado na mente da criança é uma vivência do mundo baseada em si e, ao mesmo tempo, esquecida para si. Essas primeiras impressões da infância jamais se apagam. As experiências subsequentes estarão na base de nossas crenças emocionais já formadas nesse estágio de desenvolvimento de nossa cognição.
Se, no decorrer da infância, aprendemos o que é mais básico para atuar no mundo com pouca ou nenhuma consciência, o que sucede alguns anos depois? Não deve surpreender-nos que não construímos uma visão de mundo nova, com base na realidade. Na verdade, nós racionalizamos aquilo em que já acreditávamos por força das nossas emoções. Em vez de ajustar nossas explicações às evidências, fazemos o contrário: ajustamos às evidências às nossas crenças preexistentes. Vale dizer de modo mais claro: explicamos a realidade, ajustando-a de modo que se acomode às nossas crenças prévias, e tomamos estas crenças como a realidade. Notemos que já estávamos comprometidos com essas crenças. Essa operação de ajuste da realidade às nossas crenças primeiras e forjadas em experiências calcadas sobre as nossas emoções infantis explica por que muitos de nós chegam a acreditar que os valores são objetivos, que deuses existem e nos amam.
Estamos programados para fazer julgamentos morais com base numa teoria do realismo moral, consoante nota o filósofo e neurocientista Joshua Greene:

“O julgamento moral, em sua maior parte, não é guiado por raciocínios morais, mas por intuições morais de natureza emocional. Nossa capacidade de julgamento moral é uma complexa adaptação evolutiva a uma vida intensamente social. Na verdade, somos tão bem adaptados a fazer julgamentos morais que, aos nossos olhos, o ato de fazê-los é bastante fácil, parte do “bom senso”. Como muitas habilidades de fazer julgamentos morais nos parece uma habilidade perceptível, uma habilidade, neste caso, de discernir imediata e confiavelmente fatos morais que independem de mentes. O resultado é que somos naturalmente inclinados à errônea noção de realismo moral. As tendências psicológicas que encorajam essa crença equivocada têm uma importante função biológica, e isso explica por que julgamos o realismo moral tão atraente, ainda que seja falso. Digamo-lo ainda outra vez, o realismo moral é um erro que nascemos para cometer”.
(Greene, 2002. apud. Cioran, 2011, p. 89, grifo meu).



quarta-feira, 4 de junho de 2014

O Eclesiastes - o problema da autoria bíblica

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                                                  O Eclesiastes
                                Um olhar histórico-crítico

Este edifício textual se assenta sobre o pressuposto segundo o qual a Bíblia é uma obra humana e a produção de seus textos dependeu apenas do trabalho humano sem qualquer alegada inspiração de Deus. Ademais, a leitura deste texto também supõe a admissão do pressuposto segundo o qual uma visão de mundo ateísta não é incompatível com um interesse pelo estudo crítico-histórico da Bíblia.
Dois são os objetivos principais a que viso, na produção deste texto, a saber, dar a conhecer as inconsistências ideológicas e teológicas que permeiam o Livro do Eclesiastes e mostrar por que esse texto não pode ser atribuído a um único autor. Antes de atacar essas duas questões basilares, urdirei algumas considerações sobre o que é a Bíblia e sua utilidade ou não para o desenvolvimento da pesquisa histórica sobre Israel. Outro objetivo a que se destina a produção deste texto é patentear de que modo o Eclesiastes deixa entrever a coexistência de uma visão claramente pessimista sobre a existência, podendo afinar-se, assim, com o espírito de ateus e agnósticos, e de uma visão devocional, que satisfaz o otimismo dos crentes. Não há dúvida, conforme se verá, de que o Eclesiastes sustenta uma visão cética segundo a qual a vida não tem sentido. Como seja um dos livros componentes da literatura sapiencial da Bíblia, o Eclesiastes lega-nos um ensinamento intemporal sobre a condição humana, sobre a vida e a morte – um ensinamento que não pode escapar à consciência quer de leitores devotos, quer de leitores céticos.


1. O que é a Bíblia?

Comecemos por considerar esta passagem de Swenson, em seu Desvendando a Bíblia (2010), na qual a autora nota como, em geral, as pessoas leem a Bíblia com base em um pressuposto equivocado. Elas leem a Bíblia

“Supondo uma origem única (pelo menos para cada livro bíblico), por exemplo, ou que a Bíblia conta coisas do começo ao fim em ordem direta e cronológica”
(p. 21)


Em primeiro lugar, o que chamamos de Bíblia não foi produto de um único autor. Em segundo lugar, seus múltiplos autores não estavam conscientes de que escreviam a Bíblia. A constituição de um cânone foi um longo e complicado processo, durante o qual discussões acirradas opunham entre si os primeiros padres da Igreja cristã. Por exemplo, os manuscritos do Novo Testamento estavam sendo produzidos no século I d.C. Àquela altura, eram milhares os textos que circulavam e eles sofreram muitas alterações, falsificações antes de integrarem um cânone bíblico. Não me estenderei, contudo, sobre esse tema, cuja extensão é suficiente para a produção de um texto outro.
É preciso entender que a Bíblia não se presta a uma leitura “literal”. A própria biografia da Bíblia – ela se desenvolveu durante um longo período de tempo e reflete acréscimos de várias épocas e lugares, abrigando diversas perspectivas – praticamente garante que ela diz muitas coisas (por vezes, contraditórias). As pessoas leem a Bíblia acreditando que seu significado possa ser tomado para compreender a nossa época; mas a distância cultural que nos separa do mundo bíblico é imensa. Esse reconhecimento deveria servir para acautelar os mais apressados que supõem ser a Bíblia um parâmetro para o comportamento moral hoje. Não é difícil mostrar que nós, em matéria de orientação moral, não seguimos tudo que está prescrito na Bíblia. Tome-se este outro passo de Swenson:

“Entendendo que a Bíblia foi composta durante um longo período por muitas pessoas diferentes, e tudo isso há muito tempo, podemos avaliar mais facilmente como, hoje em dia, pessoas diferentes extraem diferentes significados dela. Muito do que está na Bíblia não foi escrito com o objetivo de se tornar bíblico. A maior parte de seu conteúdo foi considerada como autorizada e como escritura sagrada apenas muito tempo depois que os textos foram primeiramente desenvolvidos e usados. Esses fatos tornam a interpretação hoje, tanto a secular quanto a religiosa, uma atividade rica em camadas”.
(pp. 23-24, grifo meu)


A Bíblia mais antiga é a Bíblia hebraica, a que corresponde ao Antigo Testamento da Bíblia cristã. No entanto, a Bíblia hebraica só foi finalizada quando do aparecimento dos primeiros cristãos. Assim, a grande maioria dos textos que viriam a constituir a Bíblia já eram usados e considerados escrituras autorizadas pelas comunidades de judeus havia muito tempo. Judeus e cristãos adotavam certo número de manuscritos pré-bíblicos que eram traduções gregas de antigos manuscritos em hebraico. Essa versão grega é uma espécie de Bíblia cuja estrutura, linguagem e pressupostos explicam as diferenças existentes nas Bíblias de hoje.
A Septuaginta é o nome atribuído à tradução para o grego da Bíblia hebraica. Conta uma lenda que Ptolomeu II, conhecido como Filadelfo, que governou o Egito entre 285-246 a.C., desejou ter em sua biblioteca uma cópia dos cinco primeiros livros da Bíblia. Ele, então, chamou setenta e dois tradutores judeus provenientes da Alexandria para a realização do trabalho, que durou setenta e dois dias. É claro que a tradução, na verdade, durou séculos, mas o termo Septuaginta fez parte da história para fazer referência aos setenta e dois tradutores e aos setenta e dois dias necessários ao empreendimento da tradução.
Jerônimo, que foi responsável por traduzir a Bíblia para o latim (entre 385 – 405), chamou os livros extras da Septuaginta, ou seja, os que não entraram a fazer parte do cânone das Escrituras hebraicas, de apócrifos. Apócrifos  significa “ocultos”. A intenção de Jerônimo era distingui-los dos livros originais em hebraico no final do Antigo Testamento. Mas eles foram incorporados e reconhecidos oficialmente pela Igreja Católica como parte da Bíblia, ainda que lhes tenha sido atribuído o estatuto de “secundários”.
A Bíblia hebraica é produto de acontecimentos sócio-históricos que se desenvolveram ao longo de muito tempo e representa as ideias, crenças e valores do povo protojudaico que falava a língua hebraica e que vivera no Antigo Oriente Próximo nos primeiros séculos antes da nossa era. A Bíblia é produto de um esforço por construir uma identidade pela interpretação de acontecimentos históricos à luz de representações de Deus. A fidelidade do povo a Deus fez com que esse povo responsabilizasse única e exclusivamente a si mesmo pelas adversidades que teve de enfrentar.
A Bíblia hebraica é uma coletânea de livros que expressam muitas histórias sobre o povo escolhido de Deus. Tais histórias dizem respeito às formas como esse povo descumpriu a aliança com o seu deus e como ele foi punido por isso. No tangente ao Novo Testamento, cumpre notar que ele abriga um conjunto de livros reunidos por pessoas de fé, e não por historiadores preocupados em determinar fatos a respeito da vida de Jesus. Jesus, a personagem principal desses escritos, era um profeta apocalíptico judeu. Na época em que Jesus vivera, os judeus não estavam sempre de acordo quanto às suas crenças e visões teológicas. O cristianismo surge como uma seita judaica que rompe com certos aspectos da tradição e com ideias caras e fundamentais para alguns judeus. Eram poucos os judeus que aceitavam a crença, acalentadas pelos seguidores de Jesus, de que ele era o Messias que cumpriu as profecias judaicas, como a de Isaías (53). Não eram raros os judeus que julgavam heréticas as afirmações sobre a divindade de Jesus. Esses judeus as rejeitavam por acreditarem que Deus não podia assumir a forma de um ser mortal. Em outras palavras, para muitos judeus, era um escândalo acreditar que Deus encarnaria num ser humano cujo destino, terrível, seria a crucificação e a morte. Morte de um deus? Como isso seria possível? Escândalo! – revoltavam-se os judeus.
A autoria, durante o período em que os escritos bíblicos era produzidos, raramente era significava a empreitada de um único indivíduo, cujas palavras, uma vez escritas, permaneciam imutáveis. Quase toda a literatura da Bíblia é atribuída a uma pessoa ou outra que não chegou a escrevê-la. Falsificações eram comuns no mundo antigo. A maioria dos textos bíblicos foram escritos anonimamente (mormente, os da Bíblia hebraica) e seus autores eram pessoas que podiam aprender a ler e a escrever – escribas ensinados no templo.
Os escribas produziram textos com base nas tradições existentes e com base em textos, por exemplo, narrativas orais, poesia, anais, oráculos, que foram preservados e transmitidos por discípulos de um profeta. A eles competia copiar e editar esses textos de acordo com as circunstâncias e a teologia que adotavam.
Se a Bíblia não foi entregue pronta por Deus, tampouco constituía um projeto conscientemente desenvolvido por seus autores. O conjunto de livros ou manuscritos que viriam a ser reunidos para compor a Bíblia circulava como partes independentes, muitas das quais assumiram a forma de rolos de pergaminho, em vez de códices encadernados, à semelhança de nossos livros de hoje. Disso se segue que a sua organização e ordem não eram fixas.
Levando-se em conta essas considerações sobre a história da constituição dos textos bíblicos, vamo-nos debruçar sobre o Eclesiastes, a fim de compreender como duas visões divergentes sinalizam duas fontes autorais que, seguramente, estão na origem da produção deste livro. Há, conforme mostraremos, duas vozes cujas perspectivas são claramente conflitantes. Um das vozes assume uma perspectiva pessimista sobre a vida e a condição humana, enquanto a outra sustenta sua crença na providência divina, que, ao cabo, beneficiará os justos e punirá os injustos. Trata-se de um livro que pode satisfazer tanto a céticos (mesmo agnósticos e ateus) quanto a crentes devotos.


2. O Eclesiastes: tema e problema da autoria

Em seu Como ler a Bíblia – História, profecia ou literatura (2010), Mckenzie observa que o Eclesiastes é um exemplo da literatura sapiencial bíblica, conhecido pelo nome hebraico coélet. Essa palavra é um título usado pelo autor do livro e se traduz geralmente como professor ou pregador.
A questão principal de que trata o livro do Eclesiastes é a do sentido da vida. O Eclesiastes é um subgênero do gênero sabedoria; é uma autobiografia ficcional. Segundo Mckenzie,

“A compreensão do Eclesiastes como autobiografia ficcional confere a ele autoria desconhecida. O Eclesiastes, como o Livro dos Provérbios, é atribuído ao rei Salomão, embora ele não seja o autor verdadeiro”.
(p. 115, grifo meu)


A perspectiva predominante no Eclesiastes, deveras pessimista, é a de que a vida não tem sentido. Uma leitura acurada revela inconsistências, já teológicas, já ideológicas (em sentido lato), significativas, que dizem respeito a alguns tópicos principais de trata o livro. Note-se, de passagem, que a palavra vaidade, que ocorre no texto, significa “vazio” ou “sem sentido”. Há uma visão cética no Eclesiastes segundo a qual a vida não tem sentido.
Convém esclarecer que as biografias ficcionais se dividem em três partes. Todas se iniciam com uma breve introdução, em que se informa quem é a pessoa retratada; posteriormente, estende-se uma longa narrativa durante a qual os prodígios da pessoa retratada são pormenorizados. Na terceira parte, que difere de um trabalho para outro, se topa um conjunto de bênçãos e maldições, uma lista de donativos para culto a um deus, uma profecia ou um conselho sapiencial. O Eclesiastes se assemelha ao tipo de narrativas que se estruturam na forma de um conselho sapiencial.
O Eclesiastes, conforme veremos, encerra duas vozes, imediatamente apreensíveis, cujos pontos de vista são conflitantes. Há certo consenso entre os estudiosos da Bíblia em considerar o Livro como resultado de acréscimos realizados por editores posteriores. Destarte, por exemplo, as passagens em que se recomenda o temor a Deus na esperança de que ele recompensará os justos e punirá os ímpios são exemplos de trechos acrescidos, vez que suas ideias estão limitadas aos dois últimos versos do livro.
Há uma voz que sustenta não ter a vida sentido algum e que, por isso, devemos “comer, beber e se divertir”. Consoante essa visão, a morte é o fim de cada um de nós e ninguém sabe o que há além do túmulo. A outra voz, por outro lado, advoga que existirá um julgamento final e que o significado da vida repousa na obediência a Deus. Essas vozes correspondem a dois locutores distintos, os quais representam diferentes tradições. Na subseção a seguir, nos deteremos a discorrer sobre os elementos temáticos da narrativa, com vistas a fazer aparecer as duas perspectivas conflitantes.

2.1. Elementos temáticos e perspectivas conflitantes

1) Carpe diem (aproveite o dia)

O Eclesiastes afirma que todos nós devemos aproveitar a vida enquanto ela dura. Vejam-se os excertos que dão testemunho dessa visão:

12. Já tenho entendido que não há coisa melhor para eles do que alegrar-se e fazer bem na vida.
13. E também que todo homem coma e beba, e goze do bem de todo o seu trabalho, isto é um dom de Deus.
(3: 12-13)


Não há contradição necessária entre as ideias de gozar a vida e a vida não ter sentido. As duas perspectivas podem ser compatíveis entre si.  Nos excertos a seguir, a despeito da visão segundo a qual a vida é vã, gozá-la é conveniente e desejável:

7. Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe com coração contente o teu vinho, pois já Deus te agrada das duas obras.
8. Em todo tempo sejam alvas as tuas roupas, e nunca falte o óleo sobre a tua cabeça.
9. Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida vã, os quais Deus te deu debaixo do sol, todos os dias da tua vaidade; porque esta é a tua porção nesta vida, e no teu trabalho, que tu fizeste debaixo do sol.
10. Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma.


O locutor sustenta a tese de que devemos gozar a vida antes que morramos. Retomando-se a tensão entre as ideias de “gozar a vida” e “a vida não tem sentido”, faz-se mister notar que ela é muito forte em todo o livro. Em 2: 1-11, observa-se que o prazer é uma das possíveis razões para viver. Entre os prazeres mencionados pelo texto, está o prazer de trabalhar.

1. Disse eu no coração: Ora, vem, eu te provarei com alegria; portanto goza o prazer; mas eis que também isso era vaidade.
2. Ao riso disse: Está doido; e da alegria: De que serve esta?
3. Busquei no meu coração como estimular com vinho a minha carne (regendo porém o meu coração com sabedoria), e entregar-me à loucura, até ver o que seria melhor que os filhos dos homens fizessem debaixo do céu durante o número de dias de sua vida.
4. Fiz para mim obras magníficas; edifiquei para mim casas; plantei para mim vinhas.
5. Fiz para mim hortas e jardins, e plantei neles árvores de toda a espécie de fruto.
6. Fiz para mim tanques de águas, para regar com eles o bosque em que reverdeciam as árvores.
7. Adquiri servos e servas, e tive servos nascidos em casa; também tive grandes possessões de gados e ovelhas, mais do que todos os que houve antes de mim em Jerusalém.

Note-se que o locutor era um homem de muitas posses. Em 7, afirma que tinha muitas propriedades, como servos e servas que lhe permitiam dispor do tempo necessário para fruir a vida.

8. Amontoei para mim prata e ouro, e tesouros dos reis e das províncias, provi-me de cantores e cantoras, e das delícias dos filhos dos homens; e de instrumentos de música de toda a espécie.
9. E fui engrandecido, e aumentei mais do que todos os que houve antes de mim em Jerusalém, preservou também comigo a minha sabedoria.
10. E tudo quanto desejaram os meus olhos não lhes neguei, nem privei o meu coração de alegria alguma; mas o meu coração se alegrou por todo o meu trabalho, e esta foi a minha porção de todo o meu trabalho.

Finalmente, o locutor reconhece que, após gozar do prazer proporcionado pelo luxo e riqueza, após deleitar-se com a obra de seu trabalho, tudo é vaidade, isto é, tudo é sem sentido. Trata-se da percepção de quem se cansa da vida e não encontra nela qualquer fonte de significado.

11. E olhei eu para todas as obras que fizeram as minhas mãos, como também para o trabalho que eu, trabalhando, tinha feito, e eis que tudo era vaidade e aflição de espírito, e que proveito nenhum havia debaixo do sol.


Em 11, clara está a visão pessimista do locutor que reconhece a insignificância de suas realizações, dos próprios esforços empregados na construção de suas obras. O trecho dá testemunho de um locutor que padece pelo reconhecimento de que não há proveito nenhum em viver.
Há também um conflito entre a ideia básica de que a vida não tem sentido e a ideia de que devemos temer a Deus: “essa também é uma ideia que se repete ao longo do livro” (p. 117). Em 3:14, se acha a ideia de que devemos temer a Deus. Gozar a vida e temer a Deus também se acham em conflito em outras passagens. É necessário lembrar-se do criador. O jovem deve gozar a vida, mas é prevenido de que Deus o julgará pelos seus atos. Ora, os dois conselhos são incongruentes (p. 117).

9. Alegra-te, jovem, na tua mocidade, e recreie-se o teu coração nos dias da tua mocidade, e anda pelos caminhos do teu coração, e pela vista dos teus olhos; sabe, porém, que por todas estas coisas te trará Deus a juízo.
10. Afasta, pois, a ira do teu coração, e remove da tua carne o mal, porque a adolescência e a juventude são vaidade.
(11: 9-10)
2) Prazer

Embora prazer e diversão sejam apreciados e recomendados como modos de viver, sendo mesmo considerados dádivas divinas, o Eclesiastes diz ser o prazer sem sentido (ver 2:1-11).


3) Trabalho

O trabalho, tal como o prazer e a riqueza, é considerado, em alguns textos, como um presente de Deus. No entanto, em outra parte, o Eclesiastes descreve o trabalho como enfadonho e sem sentido. O trabalho a que se devota o locutor (2: 4-6) é vazio e odiado pelo locutor (2: 18-23). Não há benefício no trabalho. O trabalho é motivado pela inveja interminável (4:4) e não produtiva (4:8).

4) Riqueza

Também a aquisição de bens materiais, busca a que o Eclesiastes leva a cabo, é, eventualmente, considerada sem sentido (2: 1-11).

5) Sabedoria

A sabedoria também é considerada uma dádiva de Deus e uma recompensa para aquele que dela se beneficia (2: 26). A sabedoria é vantajosa para aqueles que a possuem (7: 11). Não obstante, o locutor, que se beneficiou de uma vasta sabedoria, cuida que ela é sem sentido também e uma fonte de frustração (1: 17-18). Mesmo que, comparada à tolice, a sabedoria seja melhor, no final das contas, ambas não livram tanto o homem da morte, que é inevitável, para o sábio ou para o tolo. Portanto, ser sábio ou tolo não faz diferença nenhuma em face da consciência do destino seu comum (2: 13-16).

16. Porque nunca haverá mais lembrança do sábio do que do tolo; porquanto tudo, nos dias futuros, total esquecimento haverá. E como morre o sábio, assim morre o tolo.

6) Significado da vida/ retribuição

Há inconsistências também quando se considera a questão de se a vida tem significado e a questão de se haverá alguma recompensa aos justos. Por um lado, a vida parece evidentemente injusta: há maldade em vez de retidão e justiça (3: 16). Os oprimidos não têm conforto ou crença (4: 11). Os justos morrem jovens, enquanto os ímpios têm vida longa (7: 15). Não parece haver um sistema de punição imediata para os ímpios.Todos são iguais no túmulo (9: 2).

2. Tudo sucede igualmente a todos; o mesmo sucede ao justo e ao ímpio, ao bom e ao puro, como ao impuro; assim ao que sacrifica como ao que não sacrifica; assim ao bom como ao pecador; ao que jura como ao que teme o juramento.

Eclesiastes 9:2

No entanto, o Eclesiastes encerra uma série de textos que sustentam a visão segundo a qual haverá uma retribuição divina. Alguns desses textos se assentam na crença de que Deus recompensará os fiéis e punirá os ímpios. Há textos em que se percebe a crença num julgamento final.

13. De tudo o que se tem ouvido, o fim é: Teme a Deus, e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo o homem.
14. Porque Deus há de trazer a juízo toda a obra, e até tudo o que está encoberto, quer seja bom, quer seja mau.

Eclesiastes 12:13-14


7) Morte

A vida merece ser vivida ou morrer é preferível a viver? Esta é também uma questão de que se ocupa o Eclesiastes.
Os mortos irão para o Sheol, que é a morada dos mortos, onde não há “nem trabalho, nem pensamento, nem sabedoria” (9:10).

10. Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma.


O Eclesiastes odeia sua vida, porque ela é destituída de significado (2: 17).

17. Por isso odiei esta vida, porque a obra que se faz debaixo do sol me era penosa; sim, tudo é vaidade e aflição de espírito.


A morte é considerada melhor que a vida, e o melhor mesmo é nunca ter vivido.

Eclesiastes 4: 1-3

1.       Depois voltei-me, e atentei para todas as opressões que se fazem debaixo do sol; e eis que vi as lágrimas dos que foram oprimidos e dos que não têm consolador, e a força estava do lado dos seus opressores; mas eles não tinham consolador.

2. Por isso eu louvei os que já morreram, mais do que os que vivem ainda.

3. E melhor que uns e outros é aquele que ainda não é; que não viu as más obras que se fazem debaixo do sol.


No entanto, no versículo 9: 4-6, sustenta-se que a vida é melhor que a morte.


4. Ora, para aquele que está entre os vivos há esperança (porque melhor é o cão vivo do que o leão morto).

5. Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, mas a sua memória fica entregue ao esquecimento.

6. Também o seu amor, o seu ódio, e a sua inveja já pereceram, e já não têm parte alguma para sempre, em coisa alguma do que se faz debaixo do sol.


Ademais, em 11: 8, observa-se que uma pessoa que vive muitos anos deve alegrar-se em todos eles. O Eclesiastes afirma a vida e considera válido seu usufruto. Esse tema se desenvolve a par do pessimismo profundo à luz do qual a morte é valorizada quando cotejada com a vida (p. 120).



Adendo

3.      Reconstruindo a história de Israel

Uma das dificuldades para a reconstrução da história de Israel repousa na escassez de fontes não literárias e literárias com base nas quais esse processo possa lograr o sucesso pretendido. O leitor poderia perguntar por que não se servir da Bíblia para estudar a história de Israel. A razão é simples: a Bíblia não pode servir de fonte para estudar e reconstruir a história de Israel, uma vez que a Bíblia não tem como preocupação principal apresentar uma perspectiva histórica dos fatos e das personagens. Sua preocupação central é patentear a ação de Deus na história da comunidade de seu povo; ademais, a Bíblia se preocupa em mostrar como esse povo respondeu aos apelos de Deus, num contexto sócio-histórico marcado por sucessos e insucessos, prosperidade e opressão, liberdade e escravidão, na busca por conquistar e reconquistar a terra prometida por Deus. A Bíblia não tem um compromisso em fornecer informações históricas tais como nós a entendemos hoje, à luz de nossa mentalidade racional e científica.
Os estudiosos se dividem em duas tendências básicas, no tocante à questão da utilidade da Bíblia como fonte para a pesquisa histórica. Há os que afirmam a impossibilidade de se servir da Bíblia para reconstruir a história de Israel; e há outros que aceitam a Bíblia como fonte primeira, salvo em casos em que ela, a Bíblia, se mostra absolutamente falseada, tendo em vista o cotejo das informações que abriga com os dados das ciências auxiliares, entre as quais se acha a arqueologia.
É claro que a Bíblia codifica a visão particular do povo, escolhido por Deus, sobre a sua própria história. Esse povo compreendeu e releu a sua história e a registrou, sem, contudo, preocupar-se com relatos fidedignos dos acontecimentos que viveu. Ademais, os escritos bíblicos expressam não a visão de todo o povo de Israel, mas de uma parcela significativa cujo olhar sobre a história, então registrado, se impôs ou foi preservado e se tornou acessível a nós. Destarte, não há apenas uma história de Israel, mas histórias de Israel.


3.1.  A edificação de um conhecimento e a ruína da fé

Costumeiramente, eu sou importunado por um sentimento que me aviva na consciência a importância de reanimar na consciência de outrem o que eu entendo por Deus, sendo eu ateu declarado. Em primeiro lugar, enfatizo que não há vantagem nenhuma em ser ateu. Já faz algum tempo em que a assunção do meu ateísmo deixou de significar libertação de grilhões emocionais que me conservavam na dependência de uma visão de mundo que descobri ser seriamente danosa. O amadurecimento de meu ateísmo, muito graças aos estudos que empreendi em filosofia, levou-me a perceber que o abandono da fé impulsionou meu interesse por compreender os alicerces sócio-históricos dessa fé. Em outras palavras, tendo superado a fase de libertação emocional, compreendi haver uma conexão entre minhas convicções ateístas e meu amadurecimento enquanto estudioso de filosofia. Percebi que o abandono da fé impulsionou um avivado interesse por estudar teologia e história das religiões, sem perder de vista o legado da filosofia, com base no qual meus caminhos intelectuais eram iluminados.
À proporção que ia se construindo em mim uma consciência histórica e crítica da Bíblia e quanto mais apurado se tornava meu conhecimento – sempre em desenvolvimento – da história do povo hebreu, mais frágil e desnecessária se tornava para mim a fé num Deus que, não contando com o apoio de evidências para sustentar sua existência, se reduziu a um signo dotado, contudo, de uma materialidade histórica (sobre a qual já derramei algumas tintas neste blog).
Tendo a consciência aliviada dos hábitos de uma fé, historicamente pouco suscetível a dobrar-se ao debate crítico, passei a compreender Deus como signo linguístico entretecido de uma materialidade histórica e ideológica, o qual reflete os avanços e retrocessos de um povo que lutava pela conquista da Terra Prometida.
Aprendi que contar a história desse Deus, uma palavra tão pronunciada por milhões de pessoas ao redor do mundo, é contar a história do povo de Deus, os hebreus, a quem Deus havia prometido uma terra.  Aprendi que contar a história do povo de Deus é o mesmo que contar a história da terra de Deus.
Para mim, não resta, hoje, dúvida de que é por força de contingências históricas que a sociedade ocidental, da qual a sociedade brasileira é, evidentemente, um exemplo, professa a fé num único Deus, dotado de uma historicidade cujas tramas são, em geral, desconhecidas da maioria dos homens e mulheres do mundo da rua e do trabalho.
Não se deve chegar à conclusão apressada de que meu declarado ateísmo significa um desinteresse por Deus; de resto, o número de textos que dedico ao tratamento do tema é suficiente para provar ser justamente o contrário disso. A forma por que eu entendo Deus é que sofreu uma mudança radical. Deus não é senão, para mim, um signo ideológico (na acepção de Bakhtin), cujo uso pode servir - e serve, com frequência, - às classes dominantes, com o concurso da Igreja, ela mesma uma instituição representante das forças de dominação, à conservação do status quo. Também como signo, que não designa senão uma ideia na mente, sem que lhe corresponda um referente exterior identificável com um objeto material no mundo conhecido, Deus enfeixa uma série de acontecimentos sócio-históricos que está na raiz do seu desenvolvimento, enquanto signo, e que remontam a mais de 3.000 anos.
Conhecer esses acontecimentos é devolver a Deus sua face humana. O homem retirou de Deus aquilo que o identifica como obra da atividade histórica humana. Conhecer tais acontecimentos é por de pé o que o próprio homem, no devir histórico, pelo próprio trabalho da história, pôs de ponta-cabeça: no princípio, está o homem; depois ocorreu ao homem que Deus estava em sua origem; e Deus se fez criador do homem, e o criador-homem se fez criatura de Deus. O verdadeiro criador se submeteu à verdadeira criatura. Os polos se inverteram: Deus - criador, causa, origem explica o homem - criatura, consequência, procedência. Deus se apresentou à consciência do homem como a origem do homem e passou a dominar a consciência do homem, que já não mais se reconhece como o verdadeiro inventor de Deus.