quarta-feira, 15 de maio de 2013

"Filosofar é aprender a viver". (Sponville)


                          

                                  Desesperar-se é preciso
                                   A lição de Sponville

Proporei, neste texto, uma leitura de algumas passagens do livro O Amor à solidão (2006), do filósofo contemporâneo francês André Comte-Sponville. Esse livro fora escrito na forma de entrevistas concedidas pelo autor a escritores e amigos. Nele, Sponville aborda temas como a esperança, o desespero, a solidão, o amor... e, é claro, a filosofia. As influências budista e estóica são notáveis no pensamento deste autor, que é ateu, mas advoga a importância de uma espiritualidade no ateísmo. Não menos marcantes são as vozes de Spinoza e Montaigne.
Ao mesmo tempo em que produzirei uma leitura dos trechos que cuidei relevantes, também procurarei por a nu o processo mesmo de interpretação, ou seja, procurarei explicitar como o leitor pode desenvolver um trabalho interpretativo que escave a superfície textual, a fim de alcançar as camadas subjacentes de sentido.
Comecemos, pois, pelos temas, que estão correlacionados, esperança e desespero. O entrevistador, em sua fala, refere personalidades e sistemas filosófico e religioso que exercem influência sobre o pensamento de Sponville, quais sejam, Epicuro, os estóicos, Spinoza, o budismo primitivo, etc. Trata-se de um convite a Sponville para que fale um pouco sobre aqueles conceitos, levando em conta tais influências.
Sponville inicia seu discurso afirmando que “o desespero não tem fronteiras, e a sabedoria não pertence a ninguém” (p. 47), de modo que ele justifica a diversidade das fontes em que seu pensamento se inspira. Evocando Camus, que se ocupou tanto do absurdo, Sponville nos dirá que também o desespero (como o absurdo) é uma “sensibilidade esparsa no tempo”. Para ele, o mundo e a vida só nos parecem absurdos porque sabemos que eles não se acomodam às nossas esperanças. Abandonadas estas, o absurdo deixa de existir. No entanto, não estou certo de que esse seria o caso. Inclino-me a ver o absurdo como a implosão do sentido. Sempre que não conseguimos atribuir sentido a algum acontecimento da vida (vejam-se as mortes de inocentes, os acidentes mortais), o absurdo revela sua face descomunal e agressiva. O que sobra, segundo Sponville, é “a simples positividade do real” (p. 48). E o real deve nos bastar.
Sponville dá-nos a conhecer um passo de Samkhya-Sutra, um texto sânscrito atribuído a um sábio hindu chamado Kapila. O trecho constitui o cerne do pensamento do filósofo sobre os temas esperança e desespero.

“Só é feliz quem perdeu toda esperança; porque a esperança é a maior tortura que há, e o desespero, a maior beatitude”.
(p. 48)


Claro está que, para Sponville, só podemos alcançar a felicidade, ainda que ela seja, para o autor, episódica, se abandonarmos qualquer esperança. O desespero, que é a perda da esperança, é o caminho que conduz à felicidade serena no próprio real. No tangente ao desespero, assim se expressa o autor:

“É o contrário do futuro radioso, das utopias, das religiões, de todas as esperanças que nutrem as guerras e os fanatismos... (...) não há serenidade sem desespero, nem verdadeiro desespero sem uma parcela de serenidade”.
(pp.49-50)


A esperança é incompatível com a serenidade. Quem espera vive angustiado. A esperança nos separa da felicidade. Toda esperança conserva quem a nutre na passividade. O desespero, dirá Sponville, é um trabalho (p. 50) e, como tal, demanda de nós ação. O desespero supõe um trabalho empreendido pela pessoa que precisa se livrar da esperança. Ele envolve sofrimento, desilusão, dificuldades. Só se pode ser feliz pelo caminho da desilusão. É preciso desiludir-se para pretender fruir a felicidade. Quando se lhe apresentou a ideia de que a felicidade faz viver, Sponville pondera:

“A vida continua assim, de esperanças em decepções, de decepções em esperanças... Não condeno essas pessoas: cada um se vira como pode. Mas, se a esperança faz viver, na verdade faz viver mal: de tanto esperar viver, não se vive nunca, ou então só se vive essa alternância de esperanças e decepções, na qual o medo (já que não há esperança sem temor) não cessa de nos afligir...”
(p. 51)


A vida é decepcionante, nisso estaria de acordo Sponville. E tanto mais o será quanto mais esperamos. Fazendo eco a Chico Buarque, “quem espera nunca alcança”. É necessário escapar ao ciclo que compreende a alternância entre esperanças e decepções. Uma ideia precisa ser destacada aqui: toda esperança envolve medo. Libertar-se da esperança é também desescravizar-se do medo. Não que o medo deixaria de existir para nós, mas dele não seríamos mais escravos.
É pelo desespero que se pode libertar-se daquele ciclo. Sponville dirá que não é a esperança que faz viver, mas o desejo. Cotejando a esperança à vontade, traça-lhes uma linha divisória:

“A diferença entre a vontade e a esperança é que só esperamos o que não está em nosso poder, ao passo que só podemos querer no campo de uma ação imediatamente possível. Para falar como os estóicos: só esperamos o que não depende de nós; só queremos o que depende”.
(p. 52)


Faço aqui uma breve digressão. Uma das figuras mais importantes do estoicismo é Epiteto. Ele costumava ensinar a seus discípulos que não está ao nosso alcance mudar nada no modo como as coisas se dão, mas podemos mudar nossas opiniões ou perspectivas sobre a ordem das coisas. Para tanto, ele propunha exercícios espirituais. Um deles, considerado básico, consiste em perguntar a si mesmo se é possível exercer alguma influência sobre dadas condições. Se não temos influência alguma sobre a ordem dos acontecimentos, não devemos nos inquietar. Na verdade, para Epiteto, as nossas inquietações advêm de nossas opiniões sobre os acontecimentos adversos, e não dos acontecimentos em si.  É preciso aceitar o que não depende de nós, é preciso reconhecer se temos ou não alguma influência sobre dado estado-de-coisas. Muitos aborrecimentos desnecessários poderiam ser evitados, segundo Epiteto, se alcançássemos essa compreensão.
Estou ciente de que esse resumo da filosofia estóica é bastante grosseiro, mas suficiente para os meus propósitos. Voltando a Sponville, que recupera essa lição estóica, a vontade se distingue da esperança, porque ela nos dirige ou nos impulsiona às coisas sobre as quais podemos exercer alguma influência ou às coisas que estão ao nosso alcance. A vontade nos leva a agir; ao contrário, a esperança nos imobiliza na espera por algo cuja realização não depende de nós. Os três grandes monoteísmos nos prometem a vida eterna, e os seus adeptos alimentam a esperança na verdade dessa forma de vida. Todavia, tal vida além-túmulo não depende dos que nela creem. Eles tão-só esperam que seja verdade que há uma vida eterna aguardando por eles; mas isso não os livra do medo; isso  não cala a pergunta: “e se isso não for verdade?”. Na esperança, nunca se pode estar realmente seguro de que o que esperamos será realizado ou alcançado. Sponville será mais radical, ao defender que toda esperança está fadada a não se realizar. Leiamos este trecho abaixo:

“(...) há lição mais clara que esta: a de que toda esperança nunca se realiza? Muitas vezes por não ser satisfeita, e todos conhecem o sabor disso, que é de frustração. Mas também acontece, e não é a coisa mais fácil de se viver, que uma esperança não se realiza por ter sido satisfeita, e temos então de constatar que sua satisfação não consegue nos dá a felicidade que esperávamos”.
(p. 40)

Não podemos deixar de notar e de nos surpreender com a ideia de que, mesmo quando satisfeita, a esperança não acarreta nossa felicidade. Donde se segue que, em qualquer caso, a esperança não constitui um caminho para a experiência de felicidade. Mas isso nos coloca outro problema, que diz respeito à impossibilidade mesma do desejo de nos proporcionar felicidade. Para Sponville, a condição humana é atingida por duas catástrofes: ou nossos desejos são satisfeitos, ou nossos desejos não são satisfeitos. No entanto, mesmo quando eles são satisfeitos, permanece o sentimento de que ainda falta uma porção (a mais) de felicidade. O desejo nos aprisiona na insaciabilidade. Mesmo quando satisfeito, não somos por isso mais felizes. Não quer Sponville libertar o homem do desejo – coisa que pensa ser impossível -, mas quer fazer-nos ver que é necessário desejar menos o que nos falta e desejar mais o que é; desejar menos o que não depende de nós e desejar mais o que depende de nós (p. 53).
Sponville não nos condena à infelicidade, tal como Freud, por exemplo. Mas não deixa de notar que a felicidade só é possível quando nada esperamos. Atentemos para o que se segue:

“(...) Vou dizer simplesmente o seguinte: não temos felicidade, ao contrário, a não ser nesses momentos de graça em que não esperamos nada, não temos felicidade, a não ser à proporção do desespero que somos capazes de suportar! Sim: porque a felicidade continua sendo o fim, é claro, e isso quer dizer também que só a alcançaremos se renunciarmos a ela”.
(p. 41)


Disse que me preocuparia em por a nu o processo de interpretação. Faço-o agora, sugerindo que o leitor experiente deve ser capaz de desmembrar o trecho em algumas ideias fundamentais à compreensão do ponto de vista do autor. A primeira ideia é que a condição para usufruir a felicidade é não esperar nada. É somente nos momentos em que nada esperamos que podemos ser surpreendido pela felicidade. Ela é uma graça, porque não esperamos por ela. A segunda ideia é que a condição para a felicidade é abandonar-se ao desespero suportável. Mais uma vez, Sponville dá testemunho da influência que sobre seu pensamento exerce a filosofia estóica: o fim é a felicidade. A felicidade está no horizonte humano, é possível como experiência da vida verdadeira, como experiência no real. Todavia, segundo Sponville, nossos sonhos, nossas esperanças, nossas frustrações, nossas decepções, nossos discursos, também nossas angústias e medos nos separam da vida verdadeira, nos impedem de viver a vida real; nos inibem ou nos paralisam.
Que papel cumpre a filosofia aí? Sponville responde: “filosofar é aprender a viver” (p. 54). A filosofia é o caminho pelo qual exercitamos o desespero. Mas o próprio Sponville nos adverte de que a filosofia de nada vale, se não estiver a serviço da vida. Na verdade, é a vida que vale.
Quando indagado sobre o que é sabedoria, ensina o filósofo o seguinte:

“A sabedoria não é outra vida, que seria preciso alcançar: é a própria vida, a vida simples e difícil, a vida trágica e doce, eterna e fugidia... já estamos nela: só resta vivê-la”.
(p. 55)


Entendamos bem: a sabedoria não é acúmulo de saberes colhidos em vastos acervos de livros; tampouco se confunde com erudição. Evidentemente, a sabedoria envolve saberes; mas saberes vividos, saberes que não são mais que experiências de vida Direi melhor: a sabedoria é a vida vivida. Com Sponville, podemos concluir que a sabedoria é acessível ao homem comum; a todos nós, quer sejamos filósofos, cientistas, quer não. A sabedoria independe de educação formal, de titulação acadêmica. Sabedoria do homem simples; sabedoria da vida simples. É o que nos ensina Sponville. Novamente, convém lançar olhares sobre as palavras do filósofo:

“(...) a vida não para de se ensinar a si mesma, de se inventar a si mesma, até o fim, e a filosofia é apenas uma das formas, no homem, desse aprendizado ou dessa invenção”.
(p. 54)

Só a vida conta. Nem mesmo o conhecimento livresco faz as vezes da experiência vivida. Mais vale o conhecimento vivido. No entanto, para viver a vida verdadeira é preciso se desprender das esperanças, e, se pretendemos alcançar a sabedoria, é preciso lançar-se ao trabalho do desespero. A sabedoria só se alcança quando nada mais esperamos. Compreendemos que a vida verdadeira basta: isso é a sabedoria. O sábio é aquele que já não precisa mais da filosofia. A sabedoria é a vida simples, e simplicidade consiste em se desfazer de tudo quanto nos atravanca e nos separa do real e da vida.
É importante notar, a essa altura, que Sponville não supõe que todos nós possamos deter a sabedoria completa, porque o desprendimento de nossas ilusões, de nossas esperanças nunca se dá inteiramente. Mas só a sabedoria é o caminho que nos leva a viver, simplesmente. A sabedoria é o caminho: um caminho de ação e de amor.
Um dos enunciados mais lúcidos e intrigantes que destaquei deste trabalho de Sponville é este: “Há desespero em todo amor e tanto mais quanto menos ilusões temos” (p. 53). Também no amor não devemos esperar. Sponville sustenta que devemos amar as pessoas como elas são ou viver culpando-as por nos decepcionar. O amor não nos livra de nossa própria solidão. O amor, para Sponville, é solidão compartilhada.

“O próprio amor é que é extraordinário, todo amor, mesmo que se trate, como quase sempre, de amores muito comuns. Eu queria simplesmente dizer que nada tem importância, que nada tem valor, salvo pelo amor que depositamos ou que encontramos. Uma estrela que se extingue, que importância tem? O fim do mundo, que importância? Nenhuma, se não amássemos o mundo ou a vida!”.

(p. 67)


É o amor que valora. É o amor um valor. É ele que dá valor a seu objeto. Todo objeto amado é um valor para o amante. Chamo atenção do leitor para o uso da forma “amássemos”. Ela permite-nos pressupor que todos nós amamos o mundo ou a vida. Mas caberia perguntar se é verdade que todos podemos amar o mundo ou a vida. Interessante notar que o sentido seria outro, caso o autor (ou o tradutor?) escolhesse a forma “amarmos”. Se essa forma tivesse ocorrido, o pressuposto não se inferiria. A rigor, “amarmos” nos levaria a entender que há sempre a possibilidade de não amarmos a vida. Quem quer que não ame a vida não terá ela valor algum, importância alguma. Porque o amor valora.
Costumo insistir na ideia de que o descobrir-me ateu significou uma profunda transformação na maneira como compreendo e sinto a vida. E a influência da filosofia de Sponville para a reconciliação entre mim e o mundo ou a vida – sem que se tenha dissipado nela o conflito que lhe é inerente – é, certamente, um bem que reconheço e que compartilho com o leitor, sem nada esperar, é claro.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

"Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?" (Fernando Pessoa)


                            

                            
                              A liquidez do romântico


Duas questões porão em movimento minhas reflexões neste texto: O que é o romantismo? e Quem é o romântico?. Para tentar respondê-las, proporei um passeio, que se pretende breve, pela história do movimento romântico. O movimento romântico, na verdade, recobriu um conjunto diversificado e díspar de tendências, de tal modo que parece mais adequado falar em romantismos.
Como um movimento estético, o romantismo surge num período que se estende do final do século XVIII aos meados do século XIX. A cena história em que se deve situar o romantismo é marcada pelo declínio da aristocracia do século XVIII e a eclosão do cientificismo urbano-industrial da segunda metade do século XIX (período longo em que se deu a chamada Revolução Industrial). O romantismo teve diversos desdobramentos nos três países em que vicejou: a Inglaterra, a Alemanha e a França.
Sendo mais do que um programa de ação que congregou poetas, filósofos, artistas, romancistas e músicos, o romantismo foi um movimento que abrigou atitudes conservadoras e libertárias, a inovação estética e a repetição de padrões consagrados, a íntima relação com o poder e a revolta radical. Não se pode negar que liberdade, paixão e emoção constituem os pilares do movimento romântico. Mas não foi só disso que viveu o romantismo.
Uma maneira de compreender mais facilmente o drama romântico é pensar na natureza do herói romântico. Ele é marcado pela inadaptação ao mundo, pelo desacordo com a sociedade, pelo descontentamento com ela. O herói romântico é um sujeito deslocado ou marginalizado. Seu destino é solitário e suas disposições psíquicas levam-no às diversas formas de fuga (o sonho, a morte, a idealização do amor, da mulher, da pátria, etc.).
O romantismo nasce – é preciso frisar - permeado por contradições, assentado sobre afirmação e negação que instauram o conflito entre o eu e o mundo, entre o indivíduo e o Estado, produzindo as condições necessárias à eclosão de um individualismo de profundidade jamais antes sentida no Ocidente. O sujeito romântico é um sujeito problemático, porque em desarmonia com o seu tempo e com a História. Devemos entender que a exacerbação lírica ou o sentimentalismo exagerado, a melancolia, o pessimismo e a valorização da morte são algumas das formas pelas quais o romântico expressa sua insatisfação ou espanto em face dos valores de sua época que, em sua visão, se tornaram inaceitáveis. O romântico é, assim, um sujeito social inconformado, que vive em constante conflito com o mundo.  A insatisfação com a realidade sócio-histórica levava os românticos a acentuar as sensações, os sentimentos e as imagens oníricas.
Nada mais distante de um romântico que o homem comum deslumbrado com a vida, bem satisfeito com as condições sociais de existência. Nada mais longe de um romântico que o indivíduo bem adaptado ao social, ao seu mundinho egóico. Não se é romântico se não se vê à volta com um profundo sentimento de mal-estar. Ser romântico não se reduz a ser afetuoso, extremamente carinhoso e cortês. Quem está bem arranjado em sua própria pele não é um romântico; quem olha para o mundo e se sente em casa não é um romântico.  Tampouco é romântico quem não se confronta com o mundo e se abandona ao desejo de sua própria morte como fuga derradeira em face das desilusões. Todo romântico se caracteriza, fundamentalmente, pelo desencanto, pela tendência à melancolia e pela valorização da morte, ao mesmo tempo em que alimenta um espírito revolucionário ou de revolta.
Um olhar sobre o romantismo hoje revela, segundo Citelli (2007), o seguinte:

“O que existe hoje são presentificações de gestos e valores que vicejaram pelo século XIX: um olhar sonhador, um comportamento evasivo, um certo saudosismo e crença de que o mundo já não é tão bom como antes, a viagem proporcionada pelas drogas, o intenso e muitas vezes platônico sentimento amoroso, são alguns dos múltiplos aspectos a que se chama comumente de postura romântica. É preciso ponderar, portanto, que ao se falar hoje em romantismo considera-se um conjunto de experiências humanas decorrentes de uma situação histórica precisa e que já não se confunde mais com aquele quadro de referências do século XIX”.
(p. 9)



Não tenho a intenção aqui de contar a história do amor romântico, mas de examinar qual é o espaço destinado ao amor romântico em nossa modernidade líquida. Outra questão também me ocupará: o que é ser romântico numa época em que os valores do mercado permeiam as relações interpessoais, de modo a torná-las cada vez mais frágeis e descartáveis? Tenho, forçosamente, de começar por entender a relação entre o amor-paixão e o amor romântico. Giddens, em seu A transformação da sexualidade (1993), propõe uma distinção entre amor-paixão e amor romântico. Segundo Giddens, o amor paixão exige dos amantes a abstração das suas atividades rotineiras. O envolvimento emocional entre eles é invasivo e avassalador. Destarte, imersos no amor paixão, os apaixonados ignoram as obrigações do dia-a-dia.  Por ser um sentimento subversivo, e, portanto, capaz de sacrificar as exigências da vida social, é encarado como perigoso (Giddens, 1993, p. 48).
Claro é que o amor romântico incorporará um pouco do amor-paixão, mas, ao contrário deste, procurará responder melhor aos anseios sociais. O amor romântico acena com as necessidades de liberdade e auto-realização ainda muito presentes em nosso século. Seus valores estão associados ao casamento e ao papel da mulher como dona de casa e mãe. Se, por um lado, o amor romântico estava associado à subordinação da mulher ao lar e à sua limitada participação nas esferas públicas, por outro lado, serviu também a elas para a expressão de seu poder e autonomia. Para os homens, a tensão entre o amor-paixão e o amor romântico ligava-se à separação entre o amor “respeitável” experienciado com a esposa e o amor sensual experienciado, fora da esfera do lar, com a prostituta. Segundo Giddens,

“(...) a fusão do amor romântico e da maternidade permitiu às mulheres o desenvolvimento de novos domínios de intimidade. (...) Como especialistas do coração, as mulheres estabelecem contato uma com a outra em uma condição de igualdade pessoal e social, dentro dos aspectos amplos das divisões de classe. As amizades entre mulheres ajudaram a mitigar os desapontamentos do casamento, mas também mostraram-se por si sós compensadores. As mulheres falavam das amizades, assim como os homens frequentemente o faziam, em termos de amor, e ali encontraram um verdadeiro confessionário”.
(p. 55)



O amor romântico supõe certo grau de autoquestionamento (como eu me sinto em relação ao outro?). Importa ver que o amor romântico é incompatível com a luxúria. Na realidade, a consumação do ato sexual, no amor romântico, tende a enfraquecê-lo. O amor romântico é amor de almas. No amor romântico, o outro preenche um vazio no eu. O eu só se torna inteiro pelo outro. O amor romântico, não deixando de incorporar resíduos do amor-paixão, é amor voltado para a transcendência. Seu fim pode ser trágico, mas também pode produzir triunfos. O amor romântico se baseia na idealização do outro. Há, como no amor-paixão, a absorção do outro. As heroínas românticas são agentes produtoras do amor. O amor delas faz com que sejam amadas pelo outro.
Não se pode negar o caráter subversivo do amor romântico, mas, como nota Giddens,


“O caráter intrinsecamente subversivo da ideia do amor romântico foi durante muito tempo mantido sob controle pela associação do amor com o casamento e com a maternidade, e pela ideia de que o amor verdadeiro, uma vez encontrado, é para sempre”. (p. 58)



No tangente ao amor-paixão, Furtado, em seu livro Amor (2008), nota que:

“O amor-paixão implica a ideia da eleição do outro e da busca da fusão erótica com ele – fusão que não depende necessariamente da realização de um ato sexual sem o que a própria vida perderia o sentido. O outro é elevado ao estatuto de ser absoluto, paradoxalmente, para mim”.

(pp. 39-40)


Qual é a forma de amor predominante na modernidade atual? Há quem entenda que o amor de nossa época é um amor epidérmico, ou seja, um amor que se manifesta ao nível superficial da pele. Bauman (2004), enfatizando a fragilidade dos vínculos humanos, chama ao amor da modernidade atual “amor líquido”. O amor líquido é a forma de amor característica da modernidade líquida (Bauman, 2009).

“A vida líquida” e a “modernidade líquida” estão intimamente ligadas. A “vida líquida” é uma forma de vida que tende a ser levada adiante numa sociedade líquido-moderna. “Líquido-moderna” é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e a da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer por muito tempo”.

(p. 7)


Segundo Bauman, as relações amorosas estão hoje entre os dilemas mais árduos com que precisam lidar homens e mulheres. A maioria deles tem necessidade da ajuda de um companheiro fiel “até que a morte os separe”. No entanto, o “até que a morte os separe” os assusta e os desencoraja: outras pessoas não podem nos aprisionar; não podemos permitir que elas nos impeçam de viver as múltiplas possibilidades de usufruir cada vez mais prazer. Temos de seguir o ritmo frenético desta “vida líquida” cujas condições mudam num curto espaço de tempo. Temos de buscar prazeres cada vez mais urgentes e sempre renováveis. O “até que a morte nos separe” condena-nos ao tédio, causa aborrecimento e nos acarreta uma vida sexual-afetiva de privações. Os compromissos que aspiram a conservar-se por tempo indeterminado devem ser evitados, porque podem nos impedir de viver algo melhor no futuro. Prefiram-se as “conexões”, facilmente desfeitas caso as circunstâncias não nos beneficiem mais.
Nas condições da vida líquida – ou “no império do efêmero”, termo com que o filósofo francês Gilles Lipovetsky denominou a modernidade, - o amor tornou-se uma mercadoria cuja aquisição, por um preço módico, todos desejam rapidamente. As leis da sociedade de consumo – obsolescência, sedução e diversificação – passaram, por meio de processos ideológicos e socioeducativos, a invadir as esferas privadas de relacionamentos, produzindo, assim, as condições favoráveis à experiência dos amores líquidos. Os amores líquidos se definem por duas características essenciais: a incessante busca por novos relacionamentos e a recusa de vínculos duradouros. Os amores líquidos, sempre fluidos e frágeis, se regem pelo imperativo da libido, o qual leva os envolvidos a buscar incessantemente novas possibilidades de prazer. Consoante nota Bauman (2009) a respeito das condições de existência na modernidade líquida,

“A vida numa sociedade líquido-moderna não pode ficar parada. Deve modernizar-se (leia-se ir em frente despindo-se a cada dia dos atributos que ultrapassaram a data de vencimento, repelindo as identidades e assumidas) ou perecer. (...) A necessidade aqui é correr com todas as forças para permanecer no mesmo lugar, longe da lata de lixo que constitui o destino dos retardatários”.

(pp. 9-10)


Eis o drama amoroso dos homens e mulheres modernos: eles querem o amor verdadeiro, mas não estão dispostos a vivenciá-lo como um longo trabalho intersubjetivo de construção de companheirismo, cumplicidade e fidelidade ao próprio amor. Novamente, devemos ponderar sobre estes excertos de Bauman (2009)

“Não se deixe apanhar. Evite abraços muito apertados. Lembre-se de que, quanto mais profundas e densas suas ligações, compromissos e engajamentos, maiores os seus riscos. Não confunda a rede – um turbilhão de caminhos sobre os quais se pode deslizar – com uma malha, essa coisa traiçoeira que, vista de dentro, parece uma gaiola. E lembre-se, claro, de que apostar todas as suas fichas em um só número é a máxima insensatez”.

(p. 78)


“Quando a qualidade o decepciona, você procura a salvação na quantidade. Quando a duração não está disponível, é a rapidez da mudança que pode redimi-lo”.

(p. 77)


O imperativo da libido, que impulsiona os homens e as mulheres a buscar cada vez mais prazer, em novas formas de relacionamentos, se pauta pela quantidade de conquistas sexuais. Entre os jovens é comum ouvir o conselho “a fila anda”, sempre que percebem que os relacionamentos de outrem fracassaram. É o que nos diz Bauman: nessas circunstâncias, só a rapidez da mudança, do seguir em frente na busca ininterrupta de prazer é que pode nos poupar o aborrecimento ou o tédio.
Instabilidade, fragilidade, urgência de prazer, recusa a manter vínculos duradouros caracterizam as condições dos relacionamentos humanos da modernidade líquida. Tais condições são reforçadas pela influência do que Bauman (2009) chama “síndrome consumista”.

“A síndrome consumista” à qual a cultura contemporânea se rende cada vez mais tem como centro uma enfática negação da virtude da procrastinação e do preceito de “retardar a satisfação” – princípios fundadores da “sociedade dos produtores” ou “sociedade produtivista”. Na hierarquia herdada dos valores reconhecidos, a “síndrome consumista” destronou a duração, promoveu a transitoriedade e colocou o valor da novidade acima do valor da permanência”.


(p. 83)


Na cultura líquido-moderna, a norma é seguir o fluxo das mudanças, libertar-se das condições sufocantes e desagradáveis. É necessário esquecer rapidamente o que passou ou o que já foi superado. Os valores de outrora já não contam mais; os padrões em que se pautavam comportamentos dantes apreciáveis fazem parte do antiquário do esquecimento.

“Evidentemente, seria injusto e imprudente depositar na indústria de consumo, e apenas nela, a culpa da situação em que a criação cultural hoje se encontra. Essa indústria está bem equipada para a forma de vida a que chamo de “modernidade líquida”. Essa indústria e essa forma de vida estão afinadas entre si e reforçam mutuamente o controle sobre as opções que os homens e as mulheres de nossa época podem, de forma realista, fazer. A cultura líquido-moderna não se percebe mais como uma cultura do aprendizado e do acúmulo, como as outras registradas nos relatos de historiadores e etnógrafos. Parece, em vez disso, uma cultura do desengajamento, da descontinuidade e do esquecimento.

(p. 83)



Ocorre, porém, que, pelo menos desde Platão, o amor sempre foi pensado como um sentimento vinculado à ideia de eternidade. Ao contrário, o desejo é instantâneo. Segundo Furtado (2008, p. 28), o gozo não é a realização do amor. Para ele, o amor é um trabalho, é uma dificuldade, muito mais do que uma faculdade. A isso, acrescenta que o amor supõe a crença de que de dois se possa fazer um. Certamente, essa concepção é adequada à imagem do amor romântico. Furtado nota, contudo,

“[que] o sexo desfaz essa crença através da certeza, sempre refeita em cada ato sexual, por melhor que ele seja, de que onde há dois, há sempre e reiteradamente, dois”.

(p. 32)


Lembre-se de que já disse que o amor romântico é incompatível com a luxúria. O amor romântico não supõe consumação do ato sexual. É um amor de almas. Disso se segue que, nas condições atuais, tais como descritas acima, nas quais os relacionamentos se estabelecem sobre o imperativo da urgência de gozo, é pouco provável que haja terreno para o enraizamento do amor romântico ou de seus ideias. No amor romântico e nisso ele acompanha o amor-paixão, o outro é elevado à posição de ser absoluto, muito embora, paradoxalmente, essa elevação seja relativa ao amante (Furtado, 2008 p. 40).
Em O paradoxo amoroso (2011), Pascal Bruckner oferece-nos à apreciação estas palavras bastante felizes:

“Amar é antes de mais nada subtrair um ser da comunidade humana, desertificar o mundo e não saber de nada que não seja ele. Esse sacrifício exige, porém, reembolso e se possível com juros. O eleito deve me provar diariamente que eu estava certo ao colocá-lo sobre um pedestal e desdenhar outros galantes eventuais”.

(p. 86)


Claro me parece que a representação que Bruckner faz do amor nesse trecho é incompatível com a forma de amor-líquido, já que esse supõe, dada a fragilidade, a necessidade de buscar novos galantes.  Todavia, Bruckner nos ensina algo importante sobre o amor: todo amor é condicional. Além disso, todo amor é fonte de demandas. No amor, os amantes se elegem em meio a uma multidão de possíveis pretendentes. Isso, evidentemente, implica privações. Ao se elegerem, eles aceitam abrir mão de outros possíveis pretendentes ao posto de objeto do seu amor. Tal sacrifício demanda a garantia da permanência do sentimento eletivo. O Eu te amo passa, assim, a significar eu te elegi para ser senhor de meu coração. O Eu te amo reiterado todos os dias reforça ao amado a sua importância na vida do amante. No amor, todo ser amado é um ser especial. Mas não nos enganemos. Como nos lembra Precht (2012), não raro, amamos os que não nos amam e não amamos os que nos amam. Curiosamente, “não escolhemos sempre a pessoa mais amorosa para amar” (Precht, 2012, p. 172).
E esta lúcida fórmula de Sponville, em O amor à solidão (2006), não nos deixará iludir com o amor:

“Há desespero em todo amor e tanto mais quanto menos ilusões temos”.
(p. 53)

sexta-feira, 3 de maio de 2013

"A angústia é a disposição fundamental que nos coloca perante o nada." (Martin Heidegger)


                    


                        
                                    Há salvação para o homem?




Há, em nossa sociedade, onde o índice de analfabetismo está entre os maiores do mundo e onde o desenvolvimento em educação está entre os piores, um preconceito, infelizmente, bastante disseminado em relação à filosofia, segundo o qual filosofia não serve para nada, muito porque, segundo se crê, versa sobre questões que não tocam ao viver cotidiano do homem comum. É provável que essa má fama da filosofia entre nós se deva muito a sua redução à metafísica e, particularmente, a uma interpretação vulgar e equivocada da filosofia de Platão, que, propondo um realismo das ideias, chamou de real ao mundo inteligível ou das ideias, cuja existência acreditava ser independente do pensamento e do conhecimento. Em Platão, há uma subversão do modo comum como entendemos o mundo: o mundo dado à experiência sensível é um mundo das aparências (dos objetos, seres que vemos, tocamos); o mundo real e verdadeiro é o mundo das Formas ou Ideias perfeitas. Tradicionalmente, a metafísica é definida como a ciência das causas e princípios primeiros. É nela que se situa a grande questão com que a filosofia ficou marcada no imaginário popular, qual seja, a questão do ser. A metafísica encerra, portanto, a ontologia (estudo do ser), em cujo interior se pode situar uma doutrina do Ser Divino ou do Absoluto.
Surpreendentemente ou não, é possível encontrar, em obras de introdução à filosofia, o reconhecimento pelo autor da inutilidade da filosofia. Um caso ilustrativo disso está no trabalho de Roberto Rossi, intitulado de Introdução à filosofia – história e sistema (2004), em que o autor, embora reconheça a inutilidade da filosofia, vê nela uma vantagem:


“A própria inutilidade da filosofia é sua força, porque é ela que a torna livre. Se eu devesse pensar em função de alguma vantagem, de uma urgência, de um interesse, deveria dar só aquela resposta e somente aquela. Na verdade, a liberdade não existe na natureza. Pelo contrário, para ela é inútil e nociva” (p. 15)


Implícita aqui está a ideia de que a filosofia, enquanto prática racional pela qual o homem exercita sua liberdade e seu pensamento, a fim de compreender a si mesmo e o mundo em que vive, é uma forma de expressão de sua transcendência em relação à natureza. Essa ideia parece-me mais clara no passo a seguir:

“A liberdade é a essência do homem, precisamente porque o homem é capaz também de pensar sem a pressão das necessidades fisiológicas, sem se sujeitar apenas às obrigações práticas e ao utilitarismo funcional. (...) Atacar a filosofia, declarando-a inútil, significa, então, ter o mundo animal como padrão do homem, revelar cerda saudade da vida instintiva, cega, egoísta, da qual os animais representam a expressão máxima”. (pp. 15-16)

Quanto a mim, prefiro seguir a sugestão de Luc Ferry (2010) e ver na filosofia um caminho pelo qual o homem, com o concurso da razão, busca “salvar a si mesmo” – ou melhor, busca “salvar-se de si mesmo”. A minha experiência pessoal com a filosofia tem me ensinado que ela é, acima de tudo, uma atividade que se exerce por meio do pensamento reflexivo, através da qual domesticamos nosso próprio desconforto em face do mundo. A isso acrescente-se que é ela um caminho pelo qual aprendemos a lidar com a presença  percebida da morte no coração da vida. Nesse tocante, escreverá Ferry (2010):

“(...) é exatamente isso o que, num momento ou noutro, atormenta esse infeliz ser que é o homem, já que apenas ele tem consciência de que o tempo lhe é contado, que o irreparável não é uma ilusão, e que é preciso que ele reflita bem sobre o que deve fazer de sua curta vida”.
(p. 23)


Ensina o filósofo francês que a filosofia oferece ao homem meios de “salvar a própria pele”, não pelo caminho das ilusões, mas pelo caminho que o conduzirá à verdade sobre sua condição. O instrumento proposto pela filosofia é a razão. De posse dela, o homem pode trilhar esse caminho com suas próprias forças, o que supõe audácia e firmeza ( Ferry, 2010, p. 30).
Se quiséssemos provar quão equivocada é a crença na dissociabilidade entre filosofia e vida, sem que, para isso, precisássemos nos demorar em longos rodeios sobre a História da Filosofia, bastaria, referir, por exemplo, às contribuições dos estóicos, cuja sabedoria se aproxima claramente do budismo tibetano, ao propor que a esperança está entre as maiores adversidades da vida do homem. Ter esperança é colocar-se num estado de tensão que não se saciará, num estado de falta.
Diga-se, de passagem, que encontramos nos antigos gregos preciosas reflexões sobre como o passado e o futuro são prejudiciais à vida humana, ou seja, sobre como eles podem representar para os homens fonte de angústia, que os impede de viver a única forma real de vida: a do instante presente.
Aceita por uma grande parte de filósofos, quer sejam antigos, modernos ou contemporâneos, é a ideia de que o medo da morte impede o homem de viver. O medo da morte torna sua vida um tormento. Veremos, adiante, quando me ocupar, em linhas gerais, da filosofia de Martin Heidegger, que a angústia provocada pela consciência da finitude é intrinsecamente constitutiva do Dasein.
Para nós, modernos, que vivemos em condições marcadas por um ritmo de vida bastante acelerado, contentar-se em viver o instante presente pode parecer um modo de vida irrealizável, muito porque estamos continuamente projetando nossas vivências para além do aqui e agora, estamos traçando objetivos cuja realização se dará num futuro mais ou menos distante. Veremos, com Heidegger, que essa impossibilidade de o homem contentar-se em viver o instante presente se deve à própria constituição do Dasein, um ente que está sempre adiante de si, que se projeta para o futuro, que se autotranscende.
Sem mais delongas, façamos uma breve incursão na filosofia de Martin Heidegger (1889-1976), conhecido, na tradição da filosofia, como um dos maiores filósofos existencialistas da modernidade. Pouco importa aqui que seu projeto se distanciasse consideravelmente do de seus contemporâneos franceses. A sua principal obra Ser e o Tempo (1927) foi extremamente influente no movimento existencialista.
Um breve resumo de sua biografia não pode dispensar o fato de ter sido professor na Universidade de Freiburg (1916), onde se tornou aluno de Husserl.
Com a publicação de sua mais influente obra Ser e o Tempo (1927), Heidegger se afasta da fenomenologia de seu mestre, Husserl, e dá início ao seu empreendimento filosófico, cujo objetivo fundamental era investigar o sentido mais profundo da existência humana. Não se limitou a isso, no entanto. De sua agenda filosófica, fazia parte uma reflexão sobre as origens da metafísica e o significado de seu impacto sobre o pensamento ocidental.
Decerto, a preocupação basilar de Heidegger foi recolocar ou repensar a questão do ser que, na tradição do pensamento moderno, foi negligenciada em função da problemática do conhecimento e da ciência. Julgou necessário, assim, demolir a ontologia tradicional para trazer à cena do pensamento filosófico moderno o sentido original do ser. Heidegger propõe, então, que a existência só pode ser devidamente compreendida com base na análise do Dasein (traduzido como “ser-aí”). Há diferentes formas de definir e pensar o Dasein, conforme se verá. De um modo geral, no entanto, podemos pensá-lo como o ser humano que se abre à compreensão do ser.
Também figurou em sua agenda filosófica a reflexão sobre a questão da verdade, uma questão clássica na tradição filosófica. Nesse tocante, sua preocupação foi relacioná-la aos conceitos de ser e de conhecimento, com vistas a determinar sua gênese e seu sentido.

Dasein

Heidegger assumirá que o Dasein é um ente muito particular que permitirá o acesso à compreensão do ser. O Dasein é o único ente que coloca seu ser em questão, que está envolvido com o próprio ser e para quem a existência constitui um problema. É na relação de compreensão do Dasein sobre o mundo que se pode ter algum acesso ao ser dos entes. É somente através do Dasein que as coisas se revelam.
Heidegger propõe que o Dasein não se define por uma essência ou natureza previamente dada. Essa visão, decerto, motivou Sartre a escrever, posteriormente, a fórmula “no homem a existência precede a essência”. O Dasein é entendido também como um ser-no-mundo, ou seja, um ser-com-outros, um ser que assume uma situação no mundo. Todavia, ele não está completamente imerso no mundo. O Dasein é ser que se interpreta a si mesmo.
Como ser-no-mundo, somente o Dasein pode não ser si-mesmo, caso em que se encontra na condição de inautenticidade. Dela trataremos adiante. Heidegger atribui ao Dasein a propriedade existencial. Com base nela, o Dasein se difere dos demais entes, que se definem por categorias, que são suas propriedades essenciais.
É preciso compreender melhor a ideia de ser-no-mundo. Com ela, Heidegger quer dizer que o Dasein está essencialmente no mundo e que dele é inseparável. O Dasein está imerso no dia-a-dia da vida no mundo. Ele se interessa em explicar o que torna o mundo sua casa ou sua morada. O seu mundo é um mundo em contexto ao qual ele associa projetos e significados. O Dasein é “o que não é”. Ele sempre se projeta para possibilidades futuras.

Disposições

Sem perder de vista a importância do conceito de Dasein no trabalho de compreensão do sentido profundo do ser, levado a efeito por Heidegger, considero, agora, o conceito de disposições. São elas existenciais fundamentais do Dasein. Não devem ser vistas como fraquezas ou desvios da racionalidade. Na verdade, as disposições é que levam o Dasein (o impulsionam) a se defrontar com um enigma para cuja compreensão a razão se lhe demonstra insuficiente. Dentre as disposições mais importantes para a razão, a compreensão e conhecimento, destacam-se as paixões e os desejos. Heidegger entende que o ser se revela sem impedimento nas disposições. São disposições, além das duas referidas, a culpa, a ansiedade, o tédio e o medo.

À-mão

Por à-mão, Heidegger entende a forma como o Dasein se relaciona com as coisas. Essa noção envolve a ideia de praticidade e imediaticidade na forma como essa relação se dá. As coisas estão disponíveis para o uso pelo Dasein.
Tanto o conceito de ser-no-mundo quanto o conceito de à-mão apontam para o fato de que a filosofia de Heidegger visa a compreender o homem em sua existência concreta, da qual se destaca a importância de sua vida cotidiana. Heidegger ensinará que as coisas úteis estão necessariamente em uma situação e estão sempre relacionadas com outras coisas úteis numa rede de associações. A essa rede de associações em que as coisas estão dispostas potencialmente para uso, Heidegger chama totalidade instrumental.
A filosofia deve, então, voltar-se para a cotidianidade onde melhor nos situamos para apreender o ser, embora sempre de modo limitado. O mundo, em Heidegger, é o mundo prático da vida diária. O ser-no-mundo, portanto, envolve o manuseio das coisas e implica sua vinculação à prática. Importa entender que, para Heidegger, pressuposta em nossa percepção do mundo há sempre uma compreensão. Toda percepção envolve uma interpretação. O mundo existe de modo prático para a percepção de modo já significado na interpretação ou na suposição.

Estar-lançado

O estar-lançado é o aí contingente, é o fato de estarmos entregues a uma situação (aí) e de reconhecermos essa situação como contingente, de tal modo que essa situação poderia ter sido diferente do que é. Pense-se no fato de que você, leitor, nasceu, sem qualquer razão, numa família de classe média do Rio Grande do Sul, dela recebeu um nome e através dela desenvolveu sua individualidade. Mas poderia ter se dado que você nascesse entre aborígines da Nova Guiné. Portanto, o estar-lançado recobre o fato de que estamos entregues à contingência sem qualquer razão. É o que entendo como “ser arremessado à existência”. Está claro aqui que a filosofia de Heidegger nega a possibilidade de existir um Ser Superior que determinaria nossa situação no mundo.

Compreensão

Este conceito inclui a ideia de que o Dasein, uma vez lançado em direção ao futuro, torna possível a sua liberdade. O Dasein está sempre consciente de suas possibilidades. O conceito de compreensão destaca as possibilidades do Dasein. Lembro que o Dasein é aquele que ainda não é, que se projeta para o futuro, não sem traçar objetivos e motivar-se por ambições. Ele é sempre uma possibilidade de ser.
Heidegger, no entanto, ao contrário de Sartre, entende que temos certas possibilidades definidas e que nossa compreensão dessas possibilidades está sempre, ainda que parcialmente, determinada pelo nosso passado e por nossas disposições. Para Sartre, há uma ruptura entre o passado e o presente ou entre o presente e o futuro.
Subjacente ao conceito de compreensão está também a convicção de Heidegger segundo a qual há sempre, na interpretação, uma pressuposição de alguma coisa que é apresentada a nós. Por exemplo, percebendo a natureza de um apito antecipamos, com base na experiência, a imagem de um trem que se aproxima. A percepção da natureza do som do apito evoca a pressuposição de que, no mundo em que vivemos, trens têm apito. Assim, interpretamos o som percebido como “o som do apito de um trem”.

Ser-para-a-morte

O Dasein se define também como um ser-para-a-morte. A perspectiva da morte lhe confere unidade e completude. É preciso, no entanto, reconhecer, com Heidegger, que o Daisen, que é ser-no-mundo, vive, em sua cotidianidade, como se fosse imortal. Isso torna sua existência uma existência inautêntica.
Para Heidegger, compreender, de fato, a inevitabilidade da nossa própria morte significa reconhecer uma verdade ontológica constitutiva do Dasein. Heidegger propõe que aceitemos nossa própria morte, que aceitemos que somos “entes-para-a-morte”. É só por meio dessa aceitação que o Dasein se torna autêntico. Existir autenticamente é compreender o significado do próprio existir.
O grande problema, aqui, segundo Heidegger, consiste na tendência de o Dasein evitar considerar a própria morte. Na verdade, nós agimos como se não fôssemos morrer. Tendemos, ao contrário, a ver a morte como um fato que atinge “todo mundo”. A morte é, assim, reconhecida como um acontecimento do qual ninguém escapa, mas não como uma possibilidade real para mim mesmo no agora.
Heidegger propõe, então, que “antecipemos a própria morte”, o que significa confrontar-se com a possibilidade da realidade de nossa própria morte. Não pensar na morte como um acontecimento que só implica os outros.
Heidegger reconhece que, em geral, o Dasein não leva em conta a perspectiva de sua própria morte. Para ele, há dois modos inautênticos de compreender a morte: o medo e indiferença. A indiferença se divide em dois tipos: um é a indiferença em relação à morte tal como expressa por Epicuro. Para Epicuro, quando estamos vivos, a morte não existe; e quando a morte existir, nós não estaremos mais aqui. Ao óbvio dessa formulação se prende o ensinamento segundo o qual não devemos nos afligir com a morte, já que não podemos experienciar a sensação de estar morto. Quando a morte ceifar nossa vida, não estaremos mais aqui para nos preocupar com ela. O segundo tipo de indiferença consiste em pensar que a morte é um acontecimento que envolverá a todos nós indiscriminadamente. Ou seja, a indiferença aqui é justamente a atitude em face do fato de que a morte chega para todos nós. Na perspectiva de Heidegger, a inautenticidade dessa atitude em face da morte consiste em considerar a morte como um acontecimento que atinge o outro. A pessoa, na inautenticidade, não considera a possibilidade de sua própria morte.
O medo é outro modo de inautenticidade diante da morte. No medo, o sujeito considera a morte objetivamente, mas não subjetivamente, não como “a sua possibilidade mais própria”. Nesse caso, a morte é encarada como uma realidade futura, projetada para o futuro. O Dasein, temendo a morte, mas tratando-a como realidade distante e objetiva, foge à sua finitude. Ter consciência da finitude é, para o Dasein, aceitar a possibilidade de sua própria morte, da morte como uma realidade possível, a qualquer momento, que é sua e apenas sua.
Em Existencialismo (2013), Jack Reinolds sintetiza a relação do  Dasein com a morte, nos seguintes termos:

“A morte é uma estrutura existencial que subjetividade humana, e isso significa que a possibilidade de morrer é parte da estrutura de nosso mundo à medida que o experienciamos agora, não apenas como alho que é adiado para mais tarde. Em uma linguagem mais filosófica, podemos dizer que a morte é uma possibilidade futura que é constitutiva do “agora”, do presente”.
(p. 68)


Lembremos aqui o trecho da canção Por enquanto da Legião Urbana: “o pra sempre sempre acaba”. Ou seja, o presente só é na medida em que o compreendo como finito, como um espaço de tempo que não prosseguirá para sempre.
Que benefício, se pudermos dizer assim, haveria em seguir a proposta de Heidegger de aceitação de nossa própria morte, ou melhor, de encarar a perspectiva de nossa própria morte como possibilidade do ‘agora’? Para Heidegger, é justamente esse reconhecimento da realidade de nossa própria morte, como sempre possível, que nos permite estruturar nossa vida significativamente. A consciência genuína de nossa finitude motiva-nos à realização de nossos projetos. Reconhecemos que a morte não dá aviso prévio; ela pode nos surpreender a cada um de nós a qualquer momento. Por isso, mobilizamos nossas disposições para perseguir nossos objetivos, no sentido de atingi-los. Insiste Heidegger também que a morte, sendo um impedimento em potencial para a realização de nossos projetos, é uma condição necessária para a nossa liberdade e individualidade. Conforme nota Reinolds (p. 69), “somente se estivermos conscientes de nossa própria finitude seremos impelidos a agir agora e com urgência”.
O modo como Heidegger desenvolve a questão do ser-para-a-morte leva-nos a concluir, corretamente, que qualquer crença na possibilidade de uma vida pós-morte é não só ignorar o significado da morte e da existência, como também viver na inautenticidade. Donde se conclui que todos os religiosos que creem numa vida pós-morte vivem inautenticamente.
Finalmente, quero considerar duas outras noções implicadas no ser-para-a-morte, quais sejam, a de ansiedade (ou angústia) e a de decadência.
Antes de considerá-las, cumpre salientar que, no momento em que reconheço que eu devo morrer, eu passo a me compreender como um indivíduo. O reconhecimento da possibilidade sempre aí de nossa própria morte me individua. Não sou mais um na multidão. Essa individuação que a consciência da possibilidade da própria morte engendra leva a que o indivíduo reconheça que o outro não pode morrer em seu lugar. Não devemos pensar o outro na condição de mártir (aquele que sacrifica a própria vida por um amigo). Dizer que o outro não pode morrer em nosso lugar é dizer que o outro não pode antecipar por mim a minha própria morte. Novamente, trago à cena as palavras de Reinolds, que observa:

“(...) Heidegger sugere que o si-mesmo-impessoal evita uma compreensão autêntica da morte manipulando a indefinição do momento da morte – nós não sabemos  quando ela acontecerá, e por isso não entendemos completamente que vamos morrer – mas ele também argumenta que isso é claramente um truque”.
(p.72)

A ansiedade pode ser tomada como sinônimo de angústia. Empregarei esse último termo. Em termos gerais, a angústia, em Heidegger, diz respeito ao sentimento de insegurança diante do nada. O sentimento de que fomos lançados ao mundo, sem qualquer razão, para morrer é fonte de angústia.
É preciso distinguir angústia do medo. Na angústia, não há um objeto real a nos causar apreensão ou aflição; ao contrário, o medo supõe a presença de alguma coisa que nos ameaça. Assim, a perspectiva da morte causa em nós o sentimento de angústia. Somos um ser-no-mundo destinados a morrer e nada podemos fazer contra isso. Mas Heidegger não está preocupado em considerar a morte como dado empírico, mas a relação da vida com a perspectiva da morte. Sua preocupação recai sobre a relação do Dasein como ser-no-mundo que reconhece a possibilidade se sua própria morte. Assim, argumentará Heidegger, contra Epicuro e Sartre, que não precisamos estar à beira da morte, não precisamos estar desenganados pelo médico, sentenciados para morrer, para que nos demos conta de que “caminhamos em direção à morte”. Somos ser-para-a-morte, o que significa reconhecer que a possibilidade da morte é constitutiva da estrutura do Dasein.
O que significa a decadência, então, segundo Heidegger? Consiste ela na convicção de que todos iremos morrer e, nesse caso, não levamos em conta a possibilidade mesma de nossa própria morte. Pensamo-nos como um na multidão.
A angústia nos faz sentir que o mundo não é mais nossa casa.  Mas uma compreensão autêntica da morte leva-nos a entender que os papéis sociais que assumimos, que nossa identidade que se vai construindo em nossas vivências sociais não são senão ilusões. A própria identidade que construímos para nós revela-nos que “não temos possibilidades necessárias”, ou seja, não é necessário que, em face de um conjunto de possíveis, eu seja professor e um pai de família, por exemplo. Disso se segue que o significado de nossa existência dependerá tão somente de nós. Aqueles papéis ou aquelas identidades não definem quem realmente somos. Daí a autotranscendência do Dasein, daí também a sua projeção para possibilidades futuras. O Dasein é ser-no-mundo, mas não está enraizado no mundo, não está completamente determinado num contexto sócio-histórico dado.
Estou ciente de que a descrição que fiz de uma parte da filosofia de Heidegger foi apressada. Espero, contudo, não ter cometidos grandes falhas. Deixo ao leitor a tarefa de tirar as consequências da perspectiva de Heidegger sobre condição humana para considerá-las como contributos ao esforço para “salvar-se de si”. Deveríamos considerar a filosofia de Heidegger como uma filosofia do desespero? Estaria ela imbuída de uma visão pessimista sobre a existência humana? Ou será que ela pode constituir um caminho para o bem viver?
Decerto, para tentar responder a essas questões, deveríamos nos aprofundar na filosofia de Heidegger a fim de compreendê-la mais satisfatoriamente. Não obstante, as perguntas aqui sugeridas – que não esgotam todas as questões possíveis – servem-nos como estímulo para estudos mais aturados e extensos.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Vamos feminilizar o amor!



Para uma revolução feminina do amor


"O filósofo francês André Comte-Sponville escreveu, certa feita, algo como "foram as mulheres que inventaram o amor". Portanto, me parece que só elas podem livrar o amor da agonia a que ele sucumbiu entre nós, homens ocidentais do século XXI. Urge que se levante uma "revolução feminina do amor". Que as mulheres se reapropriem daquilo que lhes pertence por natureza: o amor. Amor que conheceram, desde que sentiu crescer em seu ventre um novo ser indefeso, tão dependente de seus cuidados. É nessa experiência de cuidados com este ser gerado em seu corpo que a mulher inventa o amor e proclama sua máxima: "AMAR É CUIDAR". Cuidar do que é nosso, cuidar dos que dependem de nós, cuidar para que a vida resista à sua tendência para a morte, dada a fragilidade que lhe é inerente. Não ignoro que o amor seja experiência de conflitos, de inseguranças e temores; mas, essencialmente, é experiência de cuidado, coisa de que as mulheres sabem bem, pois vivenciam isso, não só como mães, mas sempre que, olhando para o mundo com sua sensibilidade que lhe alarga o próprio olhar, se dão conta dos desprotegidos, dos miseráveis, dos desgraçados, dos indefesos, dos marginalizados; em suma, de toda sorte de desditosos que a ética masculina da dominação e da guerra de todos contra todos que se opõem a ela tratou de empilhar à margem do coração dos dominadores"


(BAR)

Eis o que me parece ser o amor perfeito (que se perfez)




"O amor é o palco mais elevado onde homens e mulheres encenam sua mais íntima contradição: a do desejo com a sua condição humana" (BAR)


                           

                                   Extrapolações matinais


A partir das 6 da manhã, a cama se me torna intolerável. Pensamentos vão-se-me empilhando na alma, produzindo um desconforto tal, que me expulsa do único estado em que me é possível esquecer a vida mesma para experienciar outras vivências, a que se segue, quase sempre, um sentimento de decepção, porquanto não sejam reais, num sentido forte. Sonhos compensam o estar vivo ou, como poderia dizer Freud (não exatamente com  estes termos), são as formas pelas quais o inconsciente se expressa ou se declara. E eu tenho sonhado bastante. Mas o pior sonho é aquele que sonhamos em vigília e do qual despertamos. Esse sonho em vigília, quase sempre, tem outra natureza: é uma ilusão.
O drama que se me encena na alma é agravado pelo fato de aos pensamentos perturbadores associarem-se altos níveis de ansiedade e frustração. Não confundamos ansiedade aqui com sofreguidão. Em psicologia, ansiedade não é sofreguidão. Refiro-me à ansiedade básica, que remonta à infância, e que inclui sentimento de solidão e impotência em face de um mundo hostil. É desse desconforto familiar no estar-no-mundo que se trata. Por frustração, também à luz da psicologia, entendo o estado emocional que resulta do impedimento, da decepção, de um interdito à realização de um desejo. E nossos amores modernos são celeiros fartos de frustrações.
A sabedoria antiga já rezava, muito antes da psicanálise surgir à cena no mundo ocidental, que a mulher é um enigma. Quase nunca se pode estar certo do que ela quer. Ela é um esconderijo que dissimula alguma coisa. Mas que coisa? Freud, seguido por Lacan, posteriormente, viria a endossar a tese de que só há um sexo: o falo, muito embora haja dois modos de gozo. A Lacan devemos uma frase que se tornou famosa: “A mulher não existe”. Freud insistirá ainda que a sexualidade feminina é, em essência, masculina, pois só há uma libido e essa libido é a masculina. Muitas feministas chiaram contra Freud (e contra Lacan?), por considerarem sua teoria da sexualidade feminina fruto de uma ideologia patriarcal predominante entre nós ainda. Especialistas em Freud já notara uma tendenciosidade masculina na abordagem da sexualidade feminina proposta por ele. 
Mas deixemos Freud, o que é ser mulher e a sexualidade de lado. O que aprendi, em minhas leituras de psicanálise, é que os homens (não sei se todos, mas alguns) buscam encontrar numa mulher a anima deles, ou seja, seu lado feminino. Esse “lado feminino” supõe que saibamos sua definição ou que essa definição descreva uma natureza feminina objetivamente. Mas deixarei a cargo do leitor os questionamentos. No amor romântico, há justamente essa busca: o homem deseja encontrar na amada sua anima. Alguns, ao contrário, não têm encontrado senão o silêncio do desconhecido, o escuro do desejo que não sabem por quê. Não livro nem homens nem mulheres da responsabilidade por seus infortúnios amorosos, pela sua desnutrição amorosa. Ah! Estes seres bípedes sempre insatisfeitos! Prisioneiros do desejo.  Gosto do trecho do texto Psicanálise, que consta da série O que é, em que o psicanalista Fabio Herrmann descreve a relação contraditória dos seres humanos com o desejo:

“(...) a casa que construíram, como a grande casa que a humanidade vem construindo para si, representa bem demais a realização de seu desejo. Ora, o problema é que nós não desejamos o que queremos, nem tampouco ficamos satisfeitos de encontrar o que desejamos. Na verdade, nós, humanos, não sabemos bem o que desejamos. Veja um exemplo. Antes de mais nada, nós somos aquilo que desejamos ser. É fácil entender, já que desejo é o nome daquilo que faz com que a gente pense, faça, seja. Ele parece vir de dentro da alma, mas é criado na vida social e biológica, de sorte que se pode dizer até que “somos desejados” desta ou daquela maneira. Somos desejados ativos ou entediados, cruéis ou compassivos, apavorados ou distraídos. Aliás, a humanidade deseja-se como é; e dizia, constrói-se o seu mundo de acordo com tal desejo. Só que não acredita que, de fato, se tenha desejado como é. Assim, tendo transformado o mundo a fim de lhe servir de casa, acha que não está ainda bem feito, que sobram muitas coisas desumanas a humanizar. O céu é muito alto, o tempo é longo demais, as guerras muito frequentes. Ora, se o tempo e o espaço são demais infinitos, é que os homens têm em si uma aspiração em desacordo com seu tamanho e duração de vida. Quanto às guerras, quem as faz?”
(pp. 54-55, grifo meu)


Como se vê, os homens são excesso e estão constantemente insatisfeitos, não porque o mundo criado por eles esteja em desacordo com o desejo (ao contrário, como sugere Herrmann, o mundo humano corresponde exatamente ao desejo humano). O homem constrói um mundo que reflete bem o seu desejo, tanto no que diz respeito àquilo que nele aprecia, quanto no que toca àquilo que nele odeia. Mas, ao olhar para a obra criada e para as coisas que nela odeia, o homem diz a si que não foi seu autor, que essas coisas precisam ser humanizadas. Sua insatisfação decorre do fato de acreditar que o mundo domesticado não corresponde ao que desejou. A insatisfação se nutre desse engano, encontra nele sua fonte. Daí a insistência com que culpa o mundo, a sociedade, a família, a cultura, esquecendo-se de que na origem de tudo isso se encontra o próprio excesso do homem e seu desejo criativo, mas tedioso.
Por ora, é o que temos para hoje. A satisfação, ao contrário do que sugere o mercado capitalista que engendra o consumismo, nunca está garantida. E sigamos como famintos (de amor?) pedindo socorro a que forças superiores desconhecemos, porque elas mesmas não são senão fumaças do incêndio de nosso desejo.