sábado, 27 de abril de 2013

"O amor-próprio é o lugar vazio do amor" (BAR)


      

                A ingenuidade do amor-próprio


Não raro, topo com frases como “Devemos ter amor-próprio em primeiro lugar”, “Antes de querer que alguém me ame, tenho de me amar primeiro”, em redes sociais de relacionamentos da internet. Basta-nos dar uma olhada no conjunto de postagens do facebook para nos certificar da farta frequência com que frases como aquelas se estampam nesse ambiente de relacionamentos virtuais.
Hoje, uma lamparina me acendeu na alma. Suspeitei (não desde o princípio) de que há algo que precisa ser revelado aí. Será que uma frase como “Devemos ter amor próprio em primeiro lugar” encerra uma crença verdadeira, em algum sentido? Estou falando em verdade aqui e peço que o leitor não escute Nietzsche (aliás, sempre que emprego a palavra “verdade” já não é mais Sócrates, através de Platão, que se me afigura ao espírito, ou melhor, o discurso deles, mas Nietzsche, a sussurrar-me que a verdade é uma ficção, ou mesmo Foucault, que me lembra que a verdade é construção de um trabalho histórico). É por isso que eu não descurei do uso de em algum sentido. Assim, suponho que uma crença é verdadeira se tiver alguma utilidade para quem a sustenta. Claro, isso não exclui a possibilidade do engano, do erro. Não quero me concentrar na questão da verdade. Para os meus propósitos, basta-me assumir que a verdade é uma espécie de caleidoscópio. Tem muitas regiões, muitas faces. A verdade é multifaceta. No entanto, ela não se reduz a cada uma de suas partes. A verdade, com Hegel, é o todo. É possível que nos apropriemos de parcelas da verdade, sem que estejamos de posse da verdade.
Prossigo.
O que me chama atenção nesses enunciados? Em primeiro lugar, a pessoa que os produz supõe que a experiência do amor próprio (tentarei defini-la mais adiante) antecede à experiência de amar ao outro e de ser por ele amado. Nada mais longe da verdade, conforme tentarei mostrar. Vou, contudo, protelar, por ora, o desenvolvimento dessa questão. Em segundo lugar, consigo ver aí a ignorância do eu sobre sua própria constituição. Quero dizer que a pessoa que produz “Devo me amar em primeiro lugar” ignora o fato de que o próprio sentimento que tem de seu eu, a imagem que tem de si é produzido ou é construída na relação com o outro. Vou-me esforçar por desenvolver essa concepção, de agora em diante. Posteriormente, retorno ao problema do amor próprio, ocasião em que procurarei avaliar o seu significado, a sua função e consequências para o eu. Não deixarei de definir os conceitos, que cuido importantes para a compreensão das questões suscitadas e discutidas aqui – certamente, um deles é o de imagem.
Cismando, identifico algo de fascinante na experiência do eu. É dela que passarei a tratar doravante. O que acho fascinante é que, se, de um lado, temos, a partir da sensação e percepção de nosso corpo, um sentimento bastante concreto do nosso eu; por outro lado, basta que alguém nos inste a nos descrever a nós mesmos, a falar sobre quem somos e como somos, que nos vemos em face do desconhecido. Alguns de nós sentem dificuldade para falar sobre si mesmos. Essa experiência é corroborada pela psicanálise. Lacan, por exemplo, dizia ser o eu “o lugar do desconhecimento”. No momento em que tenho a certeza de ser eu mesmo na experiência de meu corpo sentido e vivido, essa certeza mascara a minha ignorância sobre o que eu sou e de onde eu venho. Mas ponho freio no comboio de pensamentos que avança depressa. Vamos com calma. É o “eu”, ou melhor, o que é o “eu” a questão sobre a qual me debruço agora. Entra em cena o conceito de experiência. Não farei rodeios. A experiência é forma de conhecimento imediato e vivido. Podemos ter experiências externas, que envolvem nossa relação com o mundo, e experiências internas de nossos estados mentais, de nossas emoções e sentimentos. Implicadas na experiência estão as sensações e as percepções. É porque estão englobadas nas experiências que preciso defini-las. Na verdade, sensações e percepções são formas de experiência. Então, por sensação deve-se entender a experiência de perceber pela aplicação dos sentidos. Não vou descer a pormenores sobre sua dimensão fisiológica. Basta-nos entender que a sensação nos fornece as qualidades exteriores e interiores, a saber, as qualidades das coisas e os efeitos que essas qualidades exercem em nós. Na sensação, sentimos, ouvimos, degustamos, etc. O organismo reage aos estímulos exteriores, sem que consiga distinguir com clareza os estímulos exteriores do sentimento interior que eles provocam. Há na sensação, em suma, a interação do físico e do psíquico.
No tocante à percepção, consiste ela no processo ou resultado dele em que tomamos consciência de objetos, de relacionamentos e eventos por meio dos sentidos. A percepção envolve atividades cognitivas tais como reconhecer, observar, discernir, identificar, etc. Há na percepção – e isto é importante! – uma interpretação e organização dos estímulos recebidos que, durante o processo mesmo de perceber, se transformam em conhecimento dotado de significado. Reitero: perceber é interpretar. Se digo “percebo que você não me ama”, faço uma interpretação, com base em minhas experiências (em que estão envolvidas sensações), sobre como me sinto em relação ao outro e como vejo o outro na sua relação comigo. No caso, percebo (interpreto) a ausência de amor dele por mim. Percebo uma lacuna, atribuo um sentido àquela experiência, àquela relação: trata-se para mim de uma relação marcada pela carência de amor, pelo vazio que experimento na alma pela falta do amor correspondido.
Tenho de lembrar, contudo, que as sensações não são experienciadas isoladamente. São muitas as sensações que experienciamos e elas nos afetam em conjunto simultaneamente. Cabe à percepção reuni-las. É a percepção, que envolve interpretação, que constitui a síntese das sensações simultâneas. Assim, sentimos o quente (que embora seja uma propriedade da coisa, não existe sem que antes tenhamos contato com uma coisa quente; o quente existe quando o sentimos), mas percebemos que a água é quente. Nesse caso, elaboramos um juízo (associamos um predicado a um sujeito pela cópula “ser”) com base numa experiência sensitiva. Percebemos então que a qualidade ‘quente’ está contida na água, ou está associada a ela. É na experiência perceptual que os conceitos de “água”, “é” e “quente” nos são dados. Não me parece difícil concluir que temos sensações na forma de percepções, já que aquelas surgem na experiência reunidas num dado momento.
Agora podemos avançar. Vou me deter a meditar sobre o que é o “eu”. Para tanto, sigo a trilha do psicanalista e psiquiatra J. D. Nasio, em seu livro Meu corpo e suas imagens (2009).
Defini a experiência justamente porque intento levar o meu leitor a compreender que a maneira como experienciamos o mundo é determinante do modo como pensamos. Nossos pensamentos, ideias, concepções, visões de mundo são determinados por nossas vivências.
A primeira observação fundamental que deve ser feita sobre a natureza do eu é que é produto de uma interpretação. Eu sou como eu mesmo me interpreto. O eu é uma entidade imaginária. O eu é uma imagem. Isso não é tudo que podemos dizer do eu, evidentemente. Mas, antes de prosseguir, preciso definir o conceito de imagem com que eu estou desenvolvendo estas reflexões. O primeiro campo experiencial que a ideia de imagem sugere é o da visão. De fato, há imagens visuais, mas também há imagens auditivas, olfativas, há imagens sensoriais (que resultam de uma transposição psíquica da percepção de um objeto exterior). Imagem, então, não se reduz ao campo visual.
Para Nasio, que se situa no domínio da psicanálise, não há imagem sem um investimento afetivo. Dentre os diferentes conceitos de imagem que o autor nos apresenta, destaco o de duplo que se imprime na consciência quando temos uma sensação afetiva importante para nós (produz-se aqui uma imagem mental consciente). Chamo atenção para a expressão sensação afetiva. Veremos que a construção das imagens do eu e do outro envolve sensações, sentimentos, afetividade, não só crenças, julgamentos e opiniões.
Na perspectiva de Nasio, não há imagem que não seja deformada. E aqui lembro que, em psicanálise, toda interpretação é uma forma de distorção. A imagem que o eu constrói de si na relação com outro será permeada de distorções e de enganos.
Voltarei à perspectiva de Nasio, um pouco mais adiante. Creio ser necessário agora precisar, sob a perspectiva da psicologia cognitiva, o que se deve entender por imagem.
O que precisa ficar claro é que a imagem é uma representação de uma experiência sensorial exterior produzida por e em nossa mente. Ela é recordada, sem a necessidade de alguma estimulação externa. Chama-se mentalização ao processo pelo qual se vão produzindo cognitivamente informações sensoriais provenientes dos cinco sentidos, de modo individual ou coletivo. Essas informações são os materiais de que são feitas as imagens mentais. Pode-se falar também em uma mentalização visual, caso em que a imaginação envolve a sensação de termos na mente “retratos”. Esses “retratos” (imagens) podem ter origem na memória de experiências visuais anteriores ou de sínteses produzidas pela imaginação.
Finalmente, temos também a imagem corporal. Esse tipo de imagem é uma pintura mental ou um quadro mental que uma pessoa faz de seu próprio corpo em sua totalidade, nela incluídas características físicas e funcionais, bem como suas próprias atitudes com relação a essas características.
Voltarei, como disse, à concepção de Nasio de imagem. Ela supõe uma relação do eu com o próprio corpo. Aliás, a experiência que o eu tem de si envolve a imagem que constrói de seu próprio corpo. Nasio vai escrever: “considero a imagem do corpo a própria substância do nosso eu” (p. 54).
De minha parte, penso que a imagem, sem deixar de ter um aspecto simbólico e psíquico, é uma representação, para a qual concorrem crenças, julgamentos, opiniões, sensações, sentimentos, com base em nossa experiência sensório-perceptiva (que envolve sensações em forma de percepções). Mas também, na medida em que não penso o eu como, por exemplo, pensara Descartes - uma entidade abstrata, um pensamento, uma certeza de si – senão como um “eu” simbolicamente ancorado num corpo (é uma imagem que se constrói supondo uma relação com a imagem do corpo), a produção da imagem supõe um corpo dotado de um cérebro estruturalmente adequado para tanto.
Não percamos de vista a questão do eu. Estamos nos interrogando sobre o que é este eu e como ele se constitui, ou seja, como ele é percebido pela consciência do sujeito. Espero tenha ficado claro que o eu é uma criação resultante da interpretação que nós fazemos de nós mesmos. Essa interpretação implica uma auto-reflexão. Quando nossos pensamentos se voltam sobre nós mesmos, vamos construindo uma imagem do nosso eu.
Um eu pré-consciente não nos é acessível. O eu não constitui a totalidade da consciência, não se identifica com ela. Sartre via no eu um objeto da consciência e, provavelmente, inspirado em Freud, disse que o eu não é proprietário da consciência. Se não é proprietário, o que é então? Para o filósofo existencialista francês, o eu é um objeto da consciência e, como tal, pode ser reinventado. Essa concepção acena, em outros termos, com a ideia de que o homem é um projeto, de que é livre e de que pode reinventar-se continuamente.  
Uma ideia que já foi bastante repisada por mim, mas que se me demonstra fundamental para a compreensão do que é o “eu” é a de que o eu só se reconhece na relação com o outro. Só há eu quando colocado diante do outro. O outro dá ao eu o sentimento de si, uma autoconsciência. Nessa relação, observa-se uma constituição recíproca do eu e do outro, num jogo interativo de produção de imagens: imagem que o eu tem de si na relação com o outro; imagem que o outro constrói do eu com que se defronta; imagem que o outro tem de si mesmo; e imagem que o eu constrói do outro. É possível haver sobreposição de imagens: posso construir uma imagem da imagem que o outro faz de mim; ou construo uma imagem sobre a imagem que o outro faz de si.
A esta altura, acredito tenha ficado clara a ideia de que o “eu” não é um ser, não é uma coisa dentro da nossa cabeça. É, sem dúvida, um sentimento de si, um sentimento subjetivo de existir (Nasio, 2009, p. 55). Mas esse sentimento está longe de nos ser transparente à consciência. Lembro Lacan: “o eu é o lugar do desconhecimento”.
Mas voltemos a Sartre. Se, como pensava esse filósofo, o eu é o lugar da ausência, do nada, um lugar do silêncio do significante, disso se segue que sou o que os outros pensam a meu respeito. Isso é uma parte do que parece ser verdadeiro. A outra parte é que sou aquilo que penso que sou também.
Concluindo: é apenas na relação, na troca e na comparação com o outro que eu me descubro (venho à tona), que me apresento a mim (ainda que não com total clareza). Não há, ao contrário do que insiste o senso-comum, como escapar à comparação com o outro, já que dela depende, em parte, a constituição de nosso eu.
O eu é, então, uma imagem, ou um lugar simbólico que se constrói dialeticamente na relação com o outro. O eu é um lugar de uma dialética significante já que supõe a relação com o outro com base na diferença, num universo estruturalmente significativo. Entendamos o que quero dizer com dialética entre o eu e o outro. Pensar dialeticamente é (desde Hegel) discernir por relações de contradição, visando a superá-las por sucessivas sínteses. Um objeto se define numa relação de contradição com outro objeto. Assim, o senhor é o não-escravo, ou seja, na relação com o escravo, o senhor se define pelo que não é: o senhor é o não-escravo. O mesmo raciocínio se aplica ao escravo. Ele se define na relação de contradição com o senhor: o escravo é o não-senhor. A contradição, diga-se de passagem, se distingue da oposição, por consistir numa negação interna de um dos termos da relação. Ao definir o senhor nega-se internamente a condição de escravo.
Tendo em conta o exposto, eu me defino por aquilo que não sou ou pelo modo como não sou. Eu sou com base naquilo que não sou. Eu me defino numa relação de contradição – se bem que entendo não ser sempre necessário negar o outro nessa relação; portanto, reformulando minha compreensão, eu me defino numa relação de contradição ou de diferença em relação ao outro. Estou consciente de que a contradição implicaria negar completamente o outro em mim, o que não parece ser sempre possível ou desejável. No caso ilustrado do senhor e do escravo, quando o senhor se define nega a humanidade ao escravo. Torna-o objeto de sua (do senhor) consciência subjetiva. Claro é que, embora seja superior ao escravo, o senhor precisa dele para se definir como tal. Dada a relação que se estabelece com base num poder opressor, que reduz o outro à servilidade, arrancando-lhe a humanidade, é mais correto falar em contradição e não de diferença ou oposição.
Não pretendendo avançar nesse terreno, o fato é que quando se diz “eu sou diferente de você”, o eu se apropria do espaço da diferença em relação ao outro para nesse espaço se definir. Nesse lugar da diferença, ele fabricará suas próprias significações, suas imagens; o eu significará a si mesmo.
Disse que não há possibilidade de evitar a comparação com os outros. Por conseguinte, observar significa observar (saber) que estamos sendo observados. Precht, em Amor – um sentimento desordenado (2012), nos ensina sobre a formação da consciência de si pelo eu:


“(...) Nosso si mesmo e nosso sentimento de autoestima alimenta-se da autoconfirmação. As características com as quais nos definimos, as forças, as fraquezas, as expectativas de nossa atratividade, nosso charme, e a impressão que produzimos vêm do xadrez social que jogamos com nosso ambiente (...) Observamos os outros e, nessa hora, observamos como somos observados” (p. 168, grifo meu).



Saliente-se neste trecho a importância da percepção sensorial, do olhar que nos é fonte de significados e objeto de interpretação. Ao olhar o outro e ao ser olhado por ele, interpretamos (produzimos sentidos) o modo como esse outro nos situa na posição de objeto-do-olhar. Há um jogo especular na relação do eu e do outro que se entreolham: o eu que olha e é olhado percebe-se, ao mesmo tempo, como observador (fonte da percepção óptica) e observado (objeto dessa percepção). No olhar do outro me vejo como num espelho. Quando interpreto o modo como o outro me olha, produzo uma imagem do meu eu a partir do modo de olhar do outro. Em outras palavras, observar o modo como o outro me olha é fazer uma interpretação cujo resultado é a produção de uma imagem de meu próprio eu.
Retendo ainda a ideia de que não é possível deixar de fazer comparação na relação com o outro, cabe dizer que o que sabemos sobre nós, ou seja, a nossa autoimagem se constitui com base na percepção da diferença existente entre nossos talentos, nossas capacidades, nossos valores, nosso caráter, e os talentos, capacidades, valores e caráter dos outros. Pode acontecer que na percepção dessa diferença nossas características sobressaiam às do outro; pode suceder também que tenhamos certas características que estão ausentes no outro.
A imagem especular que sugeri para explicar a relação entre observador e observado, indispensável à constituição do eu, redunda em que nossa autoimagem nada mais é do que reflexo, por vezes, resultante de uma espécie de filtragem da imagem que os outros constroem de nós. Nossa autoimagem vai sendo moldada, com o aproveitamento e o descarte de significados que compõem a imagem que o outro tem de nós. Em suma, minha autoimagem se molda a partir da imagem que o outro constrói de mim.
Evidentemente, essa imagem (representação) que o outro constrói de mim depende de seus julgamentos, de suas crenças sobre meu comportamento, minhas atitudes, minha fala, sentimentos, emoções, etc. A imagem que as pessoas afins tem de nós é, certamente, mais importante que a imagem que estranhos tenham de nós (dizemos, normalmente, pouco nos importar com o que pensam de nós aqueles com quem não temos qualquer proximidade). Claro que nos enganamos a nós mesmos ao declarar nossa indiferença ao que os estranhos a nós pensam a nosso respeito; e isso se deve, em parte, porque é com base no que os outros pensam de nós que definimos o nosso eu.
Por outro lado, é no pensamento que temos sobre o que somos que o eu se forja. O eu se reconhece como aquele que pensa ser. Ao colocar o pensamento na origem do surgimento do eu, estamos dizendo que o eu é representação, para cujo processo desempenha papel fundamental a imaginação.
Acima, fiz referência ao fato de que a representação da imagem do eu conta com sentimentos e emoções. A isso quero acrescentar que a atenção que os outros dispensam a nós é uma fonte de autoestima. Aqui, chamo atenção para o delineamento da questão principal desse estudo: o amor próprio. Uma verdade sobre a experiência amorosa que passa despercebida por homens e mulheres não familiarizados com a teoria psicanalítica nem com a filosofia, quando se ocupa do tema, é que, na experiência de amor, amamos no outro nossa própria imagem refletida nele (nesse caso, temos a componente narcísica do amor objetal). Também amamos uma imagem do outro que construímos (isso parece ser reconhecido pelas pessoas), mas o que não é tão evidente é o fato de que o amante ama a si mesmo na imagem que o amado constrói dele, amante. Segue-se daí que a autoestima dependa da atenção dispensada pelo outro; e mais – segue-se daí que o amor próprio depende de que sejamos objeto de estima pelo outro. Quero dizer que essa experiência de amor próprio não é algo que nos é dado desde que nascemos. Precisamos ser primeiramente amados para então, tendo experienciado o amor tanto na condição de fonte irradiadora quanto na condição de objeto desse amor, desenvolver o amor próprio. Estou ciente de que não defini ainda o que entendo por amor próprio. Por ora, estou supondo que o leitor sabe, com base no senso comum, o que significa o amor próprio.

“É nossa imagem no olhar do outro que nos empresta nossos próprios contornos. E a imagem mais importante entre todas é aquela refletida por uma pessoa que nos é mais importante que todas as outras, aquela que amamos e nos ama (Precht, 2012, p. 169)


O trecho nos leva a entender a importância do amor dirigido ao outro como condição para que possamos amar a nós mesmos. É interessante notar que a experiência do amor próprio supõe que o eu seja, ao mesmo tempo, fonte e objeto do amor. O eu se desdobra num outro que se identifica com o si. É um eu outro de si mesmo. Logicamente, a fonte só pode irradiar amor sobre si mesma se produz uma imagem de um outro de si, que é objeto do amor. A essa altura, o leitor poderia se perguntar se a emergência desse outro como objeto no amor próprio não instituiria uma diferença em relação ao eu. Eu diria que é isso mesmo, porque o eu que ama a si mesmo ama uma imagem de si (um duplo de si). Para mim, nesse amor, o que é colocado no altar do eu como objetos de seu amor são seus valores, suas características mais caros; os traços desagradáveis acusados pelos outros ou eventualmente reconhecidos pelo próprio eu não entram no escopo do seu amor. A imagem do amor próprio é depurada de tudo quanto aos olhos do eu não é sequer digno de sua própria estima. Uma imagem bastante sugestiva pode ajudar na compreensão do que tento explicar. Imagine que o amor-próprio, à semelhança de um holofote, ilumine para a consciência do eu apenas os traços positivos, prestigiados, agradáveis de sua personalidade. É sobre o terreno dos tesouros do eu que recai a luz do amor próprio. Em suma, no amor-próprio, surge uma imagem-outro-de-mim depurada que passo a amar. A consciência do amor-próprio é uma autoconsciência do amor a um eu ideal que é outro de si.
Ainda me concentrando na relação entre eu e o outro, noto que Hurssel, dando-se conta da capacidade de o ser humano observar o modo como é visto no olhar do outro, cunhou a expressão “empatia dirigida”. Assim, “eu posso entender que o outro entendeu que eu o entendi” (Precht, p. 168). Nesse sentido, importa ver que, no momento em que eu reconheço que o outro reconheceu que eu o entendi ou o compreendi, eu me coloco no lugar reservado a mim no reconhecimento pelo outro da compreensão que tive dele. Daí a empatia dirigida: uma empatia (perceber como uma pessoa sente), mas dirigida a si mesmo. Em outras palavras, no reconhecimento pelo outro de que eu o entendi, há um lugar que posso ocupar como imagem valorizada pelo outro; nesse lugar concentro minha estima, ou é desse lugar que eu me estimo.
Agora, posso lançar olhares novamente sobre a lição de Nasio. Para Nasio, a imagem do corpo é a essência do eu (p. 54). Mas o autor adverte que não devemos identificar o nosso eu com nosso corpo de carne e osso. Na verdade, o que somos resulta do que sentimos e vemos de nosso corpo. O corpo é, assim, o centro para o qual se dirigem nossos sentimentos e nosso olhar e é na base dessa experiência do corpo que o eu se constitui. Nasio escreverá “sou o corpo que sinto e o corpo que vejo” (p. 54).
O leitor deve reter que Nasio introduz o papel da percepção do corpo na constituição do eu. O eu não deixa de ser encarado, por exemplo, como “uma ideia íntima”, mas é uma ideia íntima forjada do corpo. O eu é a representação mental de nossas sensações corporais. Mas essa representação “é mutante e incessantemente influenciada por nossa imagem do espelho” (ib.id.). Desse último enunciado concluímos que para a construção da imagem do eu é determinante a imagem do corpo percebida pelo eu defronte de um espelho (que não precisa ser a superfície vítrea que temos em casa diante da qual vemos nossa imagem; esse espelho que me dá a imagem de meu corpo pode ser e, por vezes, o é o “outro” presente à minha consciência ou como presença simbólica em meu inconsciente). Isso explica que pessoas obesas possam desenvolver uma subestima de si mesmas. A imagem do seu eu poderá ser muito pouco atraente. Evidentemente, essa baixa autoestima será influenciada e agravada pela insatisfação do eu em não atingir os padrões de beleza que o Outro encarna. Ou seja, o seu desejo, ainda que inconsciente, de atingir os padrões de beleza estabelecidos em sua cultura moldará a imagem que o eu construirá de si. Por vezes, são os obstáculos impostos por sua constituição genética que, inviabilizando a satisfação do desejo interiorizado pelo eu por força daqueles padrões, motivam a construção de uma imagem depreciativa do eu.
Nasio reconhece dois tipos de imagens de que se constitui o eu: imagens corporais e imagens mentais. Esses dois tipos de imagens, embora diferentes, são indissociáveis. O eu é tanto a “imagem mental de [suas] sensações corporais [quanto] a imagem especular da aparência do [seu] corpo” (p. 55). Nasio destaca a importância de considerar o sentir o corpo e reconhecer seus movimentos diante do espelho como experiência inegável de ser um eu. Acompanhemos as palavras do autor no trecho abaixo:

“O que é o eu? O eu é um sentimento, o sentimento de existir, o sentimento de ser você. Um sentimento eminentemente subjetivo porque fundado sobre o vivido igualmente subjetivo de nossas imagens corporais. Considero, pois, o eu uma entidade essencialmente imaginária cunhada por nossas ignorâncias, erros e miragens que confundem a percepção que fazemos de nós mesmos (p. 55)”.



A percepção de nosso eu, como se vê, é perturbada por uma nebulosa, de modo que se torna extremamente difícil produzir uma percepção límpida e profunda do nosso eu. Nasio nos leva a concluir que “não existe um eu puro; o eu resulta sempre de uma interpretação pessoal e afetiva do que sentimos e vemos de nosso corpo” (p. 56).
Já mencionei que, na psicanálise, a interpretação é sempre uma atividade de distorção. Logo, segundo Nasio, dizer que a imagem do corpo é a substância do eu é, na verdade, dizer que é a substância deformante do eu. Instáveis e afetivas, as imagens deformadas de nosso corpo acarretam uma imagem distorcida de nosso eu.
Não considerarei o papel da protoimagem inconsciente no processo de constituição do sentimento do eu. Pretendo, assim, evitar me delongar mais ainda.
O que é o amor-próprio? Para definir o amor-próprio, devemos definir previamente o amor. Não farei incursão nesse domínio, é claro. Basta entender o amor como uma estima protetora. No caso do amor-próprio, trata-se de uma estima protetora diante da qual o eu se coloca como objeto a ser protegido. Protegido contra quê? Contra os efeitos danosos das frustrações, dos dissabores, das decepções, dos traumas legados pelo amor objetal. O amor-próprio é um sentimento de defesa de si mesmo erigido pelo eu contra as intempéries da vida. O amor-próprio não é o amor-eros, ou seja, o amor paixão. Também não entendo ser o amor-próprio um tipo de amor narcísico. Não vejo que haja nele um investimento libidinal. Não entendo haver um regresso da libido ao eu. Simplesmente porque o amor-próprio emerge num momento de crise do eu. Quem o afirma precisa dar testemunho de sua autossuficiência (ilusória) em face do outro.
O amor-próprio emerge de um lugar marcado pela solidão, pela frustração, pela decepção decorrentes da carência de amor que supõe a presença imaginária do outro. Estou de acordo com Precht quanto ao fato de que o amor é campo de desordens  (tanto no sentido de que é impossível explicá-lo com base numa única ordem de fatores quanto no sentido de que provoca desorganização de nossas sensações e estados mentais). O amor é arena de instabilidades, de conflitos, de insegurança, mas também é o palco de necessidades, de anseios, desejos, projetos, de conforto, de segurança, etc. O que me parece ser constante nas experiências amorosas, cujas feições podem assumir contornos caricaturais, é a suposição de uma relação baseada na reciprocidade afetiva com o outro. A condição primeira do amor é que nos sintamos realmente amados pelo outro. Amor demanda amor. O leitor poderia objetar que é possível que uma pessoa esteja enganada ao sentir que o outro a ama. Como o sentimento envolve uma interpretação, uma percepção, essa percepção poderia redundar ilusória. Todavia, não creio que esse amor não correspondido perdure. O equívoco aqui me aponta outro caminho para pensar a condição do amor: talvez, a primeira condição do amor é só podermos amar pessoas em que nos vemos refletidos. Seja como for, penso que não há amor humano desinteressado; o amor humano é fonte de demandas.
Ninguém tem necessidade de desenvolver sentimento de amor-próprio quando está amando e sendo amado. A pessoa se satisfaz em ser objeto de amor do outro e ama a imagem ideal construída do outro. Ama também a imagem de si ideal refletida no outro. Essa atmosfera entretecidamente amorosa a satisfaz, a inebria. O amor correspondido dispensa a necessidade de amor-próprio.
No amor-próprio, o eu experimenta uma sensação ilusória de poder existir, de satisfazer-se sem carecer do afeto, da afeição, da estima do outro. O eu vive uma ilusão de satisfação, mas no silêncio do íntimo ruge-lhe a convicção de que o amor-próprio que declara sentir é precário para lhe dar significado e prazer – melhor ainda, para lhe dar potência de existir. Seu amor-próprio é uma máscara para a sua infelicidade em face da indiferença do outro. É uma couraça com que se protege da sua condição de ser consciente da solidão, do abandono e do terror de seu destino derradeiro: a morte inevitável.
O que me parece claro, portanto, quando consideramos a ideia do amor-próprio e da possibilidade de sua experiência é que só podemos amar a nós mesmos se um dia tivermos sido amados (não por nossos próximos, mas por outros que não os nossos). O fato de minha mãe me amar não é suficiente para que eu me ame. Talvez, porque eu cuide que não é um mérito para mim ser amado por minha mãe; o amor dela é, para mim, uma experiência a que ela está obrigada desde o meu nascimento. Não há mérito envolvido aí. Todavia, quando somos objeto do amor de um outro que não sentimos que deveria estar implicado numa condição de obrigação de nos amar, despertar-lhe o amor dele por nós é visto como um mérito nosso.
Insisto em que a experiência de amor objetal, ou seja, que supõe a relação com o outro, que implica o outro, precede a experiência de amor por si. Antes devemos amar um outro e experienciar a satisfação aí envolvida, perdemo-nos no outro e nos decepcionar com ele, perder o amor dele, para então erigir o altar do amor-próprio. No amor recíproco não há lugar para o amor-próprio.
O bebê não parece ser capaz de amor-próprio. Primeiro ele é amado; primeiro precisa ser amado, precisa do amor de sua mãe para sobreviver – amor que demanda cuidados, de que depende também sua subsistência material. É só depois, ao longo da vida, nas incontáveis experiências como sujeito, na adolescência e na fase adulta, tomando consciência de que o amor original, acalentado junto aos seios maternos, assume outras feições, outras formas, por vezes, frágeis, fluidas, inconstantes, repletas de adversidades, contrariedades, conflitos, e tomando consciência de que aquele amor original não encontrará uma imagem exata de si nas relações com os outros; enfim, é só depois que se dá conta de que o amor de sua primeira infância, para ele fonte de segurança, dá lugar a uma forma de amor cheia de riscos, potencialmente capaz de lhe trazer infelicidade, frustrações e traumas, é que passará a acreditar na possibilidade de satisfazer-se com o único amor do qual não se separará: o amor-próprio. Mas a esse amor não pode conferir mais valor ou poder do que ele pode comportar. É bem verdade que pode ser útil em ocasiões em que, sentindo-nos desprezados, rejeitados, só nos resta a solidão do amor por si. Mas ele não deixa de ser ilusório, ele não deixa de reclamar o amor do outro, o amor pela nossa imagem forjada no amor do outro. É só no amor do outro que posso me amar realmente.
O amor-próprio é a defesa, portanto, dos desditosos, dos infelizes, dos mal amados contra a frieza e indiferença do mundo ao seu sofrimento real. É a couraça de homens e mulheres encarcerados no egoísmo e no individualismo que se assenhoreiam de si. É a única fortaleza (ilusória) de homens e mulheres que vivem nas condições da liquidez do amor, em sociedades em que cada vez estão mais conectados e cada vez menos dispostos a perseverar em seus relacionamentos convencionais. O amor-próprio parece ser o único alimento disponível no mercado para saciar a fome desses homens e mulheres desnutridos que dormem acalentados pela crença de que suas conexões são suficientes para lhes fornecer, ao menos, um débil estado de satisfação e felicidade.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

O sujeito emerge da linguagem


                                 

                                        O sujeito
            Entre o esquecimento e a ilusão de autonomia


Em Vontade de Potência (2011), deparou-se-me a frase, que destaco de seu co-texto, e a cito aqui para ilustrar um sentimento que, por vezes, se abate sobre minha constituição psicofísica: “O homem cansa-se da vida quando não a vive plenamente”. Por muitas vezes, me cansei da vida. Por muitas vezes, a vida me pesou como um piano que temos que carregar sobre as costas para levá-lo ao andar de cima. Mas convém reinseri-la no seu co-texto de origem, para que o potencial de sentido seja restaurado:

“O homem cansa-se da vida quando não a vive plenamente. Viver plenamente não significa o conceito de plenitude do objetivo que quer plenitude objetivada. Plenitude é objetividade e subjetividade, é Apolo e Dioniso, é consciente e inconsciente” (p. 59).


Como todo enunciado reclama interpretação, não poderia ser indiferente a este trecho. Alguns conhecimentos prévios precisam ser ativados na memória do leitor. A filosofia de Nietzsche é uma filosofia que enaltece o espírito dionisíaco, que representa o “sim” à vida, que representa a emoção, o sentimento, a ação. É afirmação da vida. A Dioniso, Nietzsche opõe Apolo, que, para ele, representa a razão, a ordem, a harmonia, tão bem representados no espírito da racionalidade grega. Racionalidade emblematicamente encarnada por Sócrates, de quem Nietzsche dizia ser expressão da decadência, porque sua filosofia, pelas mãos de Platão, negava a vida mesma em favor de uma vida transcendente, irreal. Dioniso representa as forças ativas dos instintos, das pulsões, ao que se opõe Apolo, que representa a razão, guiada pela vontade de verdade. Dioniso, lembro aqui, era o deus, entre os antigos gregos, da conduta violenta, dos excessos, das bebedeiras. Quiçá esse espírito festivo, até desordenado, caracterizado pelos excessos, pela intensidade de existir, tenha levado Nietzsche a concluir que Dioniso sintetiza tudo que há de afirmativo da vida. Creio não será custoso ao leitor, tendo volvido novamente o olhar para o excerto referido, associar Apolo ao consciente e Dioniso ao inconsciente. Nietzsche não via no inconsciente, ao contrário de Freud, as forças monstruosas que podiam levar o homem à ruína, por isso pôde insistir em que a plenitude depende de que a vida seja experienciada pela conjunção daquelas duas esferas da natureza humana. Mais subjetividade para a consciência, mais sonho, mais fantasia, a fim de evitar que ela funcione à semelhança de uma máquina, é o que desejava Nietzsche. O homem é consciente e inconsciente; nele os polos positivo e negativo são indissociáveis. Viver plenamente para o homem significa, portanto, segundo Nietzsche, viver a conciliação de sua dimensão consciente com sua dimensão inconsciente, de seu polo positivo com seu polo negativo.
É preciso, contudo, fazer avançar este texto, para o que tenho de deixar para trás a filosofia de Nietzsche. Se lhe evoquei, ao menos a sombra, é para incitar-me o corpo a prosseguir neste trabalho com a linguagem.
O tema deste texto é o sujeito do discurso. Algumas questões que procurarei responder serão: como se constitui o sujeito? É ele sobredeterminado pelo social? É ele completamente consciente de seus atos? Pode ele existir independentemente da linguagem? Em suma, quero mostrar o que tem a nos ensinar sobre o sujeito a Análise do Discurso (doravante, AD) da vertente francesa e a Psicanálise de orientação lacaniana. Primeiramente, discorrerei sobre o sujeito à luz da abordagem da AD, me detendo na contribuição de Charaudeau. Não deixarei, portanto, de oferecer uma visão geral do conceito de sujeito na AD, muito embora seu desenvolvimento se apóie na lição de Charaudeau. Num segundo momento, analisarei um trecho do texto Dando a volta por cima, de Cybele Ruas, a fim de ilustrar de que modo a teoria de sujeito proposta por Charaudeau pode enriquecer o trabalho de interpretação/compreensão textual. Ao cabo deste longo trajeto, discutirei, não exaustivamente, a visão lacaniana de sujeito.
Tenho consciência de que não escrevo para especialistas na área, ainda que haja entre os meus leitores pessoas que já estudaram o assunto ou estão suficientemente familiarizadas com ele. Ciente disso, começo notado o que não é o sujeito. O sujeito não é o indivíduo de carne e osso, ou seja, o ser humano empírico falante; também não é o autor (no caso do texto escrito). Na compreensão da dinâmica interacional dos sujeitos, importa mais entender o papel desempenhado pelo imaginário, ou seja, como os sujeitos se constituem interacionalmente, na linguagem, numa dinâmica de produção de imagens recíprocas. A construção dessas imagens depende da elaboração de hipóteses pelos sujeitos em interação. É preciso fazer, portanto, uma transposição do pensamento do domínio da materialidade empírica do indivíduo, da pessoa humana de carne e osso para o domínio do ser do discurso, cuja existência e materialidade é discursiva. Pode haver marcas linguísticas desse ser no discurso, como veremos. Na constituição do sujeito, o simbólico (linguagem) e o imaginário atuam reciprocamente. Mas não vou me apressar.
Disse que os sujeitos “se constituem interacionalmente na linguagem”. Outra lição importante é esta: não há sujeito fora da linguagem. Tanto na AD (e isso vale para a Linguística de um modo geral) quanto para a psicanálise o sujeito emerge para a existência apenas no domínio da linguagem. Não existe sujeito antes que ele se aproprie da linguagem ou antes que ele seja afetado pelo simbólico (como veremos no caso da psicanálise). De passagem, noto que, no tangente à noção de autor, terei algumas palavras a dizer. A função autor é, no senso-comum, superestimada. Na escola, quando o professor trabalha com a leitura, o faz quase sempre supondo o autor (pensado como o ser humano empírico) e pensando-o como o único responsável pelo seu discurso. Durante o ensino de leitura, os alunos são instados a compreender o que o autor quis dizer (pressuposta, nesse caso, a crença equivocada em que o sentido já está dado, cabendo ao leitor apenas “pescá-lo”). À medida que formos compreendendo como se dá a constituição dos sujeitos, veremos – e nisso acompanho Charaudeau – que a noção de autor é operacionalmente dispensável.
Quem quer que se dedique a ensinar sobre a constituição do sujeito não se pode escusar de levar em conta e definir conceitos tais como ideologia e/ou formação ideológica, formação discursiva, pré-construído e discursivização. Outros conceitos, intimamente ligados à noção de sujeito, poderão ser considerados, segundo a orientação teórica e objetivos de quem queira ensinar sobre esse tema, é claro. Para os meus propósitos, levarei em conta e definirei, no momento adequado, os conceitos de discursivização, ideologia, formação discursiva e pré-construído. Comecemos, sem mais delongas, a compreender a noção de sujeito.
A noção de sujeito envolve: a) as relações do sujeito com a situação de comunicação em que se acha; b) os procedimentos de discursivização; c) os saberes, opiniões e crenças que supõem partilhados com outros sujeitos (parceiros da comunicação); d) suas competências comunicativa, discursiva e linguística.
No tocante à situação de comunicação – e não pretendendo aqui fazer incursão em sua problemática – deve-se ter em conta que ela não pode reduzir-se à situação de comunicação imediata, ao ambiente físico e social ( objetos presentes no campo experiencial dos interactantes, papéis sociais assumidos por eles, instituições, etc.) em que se encontram os interactantes. Ela deve envolver um “ambiente cognitivo partilhado”, um contexto sociocognitivo, ou seja, ao considerarmos a situação de comunicação, devemos levar em conta o conjunto de crenças, saberes, opiniões, valores (background) armazenado na memória dos sujeitos, por força das experiências socioculturais vivenciadas. Esse “ambiente cognitivo partilhado” será determinante para a produção e compreensão do discurso.
No que diz respeito à discursivização, basta saber que se trata do mecanismo discursivo pelo qual se tornam evidentes no texto as instâncias dos atores (pessoas do discurso – eu/tu), do tempo (agora) e do espaço (aqui). A instanciação dos atores se chama actorialização; a do tempo, temporalização; a do espaço, espacialização.
É em Pêcheux, analista do discurso francês, que a influência do sujeito lacaniano se faz marcante. Para Pêcheux, o sujeito do discurso se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina. O sujeito se esquece de que, na sua voz, falam outras vozes; se esquece de que o que diz é determinado por um pré-construído (definirei adiante essa noção). Como sujeito de linguagem e, portanto, sujeito social, por trás do sujeito fala uma comunidade discursiva; em sua voz ecoa, sem que ele esteja disso necessariamente consciente, um coro de atores sociais que encarnam as crenças, os valores, as ideologias, os conhecimentos da sociedade ou grupo social a que ele, sujeito, pertence. Em Pêcheux, o sujeito se constitui na ilusão de ser o senhor do que diz. Trata-se do fenômeno da interpelação (Althusser) do indivíduo em sujeito do discurso. O sujeito, então interpelado pela ideologia (não há sujeito sem ideologia), é convocado a se pronunciar, a falar e, ao fazê-lo, esquece-se das determinações ideológicas que lhes preexistem à fala a determinam. Ele não é, repito, a origem do seu discurso, não é o senhor do que diz. Clara está a influência da psicanálise, desde Freud, encontrando em Lacan um teórico empenhado, na compreensão do sujeito: o sujeito não é senhor do que diz, tal como o eu não é o senhor em sua própria casa.
Noto, de passagem, que, na AD francesa dos anos 60-70, de que são expoentes Pêcheux e Charaudeau, a ideologia é um conceito central. Considerarei, então, a ideologia, em dois sentidos, que me parecem encontrar abrigo nos trabalhos da AD. O primeiro sentido do termo que parece ser comum entre os teóricos que se ocuparam do problema, quer sejam eles filiados a AD, quer sejam filósofos, sociólogos, etc. é o de “sistema global de interpretação do mundo social” (DAD, 2006, p. 267). Esse sistema coerente de interpretação do universo social desempenha um papel histórico no seio de uma sociedade determinada. A AD se baseia no princípio segundo o qual não há discurso sem ideologia, todo discurso é atravessado por uma ou mais formações ideológicas. Ideologia não tem, aqui, um sentido negativo em si (tal como tem na tradição marxista), muito embora possa servir ao estabelecimento e reprodução de relações de dominação de classes, muito embora possa servir para a conservação do status quo, muito embora possa servir para falsificar a realidade social e histórica, naturalizando-a, por exemplo.
O segundo sentido do termo ideologia remonta à compreensão de Althusser. Esse filósofo francês entendia a ideologia como relação imaginária dos sujeitos com sua existência real, que se concretizava em aparelhos e práticas materiais. Evitando faltar com o rigor na exposição do modo como ele entendia a ideologia, precisarei que a ideologia, em Althusser, é a forma de os homens representarem a si mesmos, de modo imaginário, as suas condições reais de existência. Na ideologia, os homens representam a si o modo como imaginam ser essas relações, e não as relações tais como realmente são. Isso explica, por exemplo, que eles possam acreditar que, por serem assalariados, estão numa relação de não-opressão e justiça com o seu patrão (muito embora saibamos com Marx que essa relação, no modo de produção capitalista, é injusta, porque marcada pela espoliação do proletário com a apropriação da mais-valia pelo capitalista).
Destarte, a ideologia está vinculada ao inconsciente por meio da interpelação dos indivíduos em sujeitos. Sob o efeito da ideologia, o sujeito a) crê na transparência da linguagem (ou seja, que os sentidos estão nas palavras, se deixam ver claramente nelas, nos textos) b) crê, portanto, que uma palavra designa uma coisa, que ela tem um significado imanente, c) e não se preocupa em problematizar o estatuto dos sujeitos. Nesse último caso, como se constituam pelo esquecimento daquilo que os determina, os sujeitos não estão em condição de problematizar sua posição de sujeito. Aliás, o sujeito, na prática textual em AD, é entendido como forma sujeito, já que ele se caracteriza por ser afetado pela ideologia; quando o sujeito do discurso se identifica com a formação discursiva que o determina ele assume a forma sujeito (um sujeito “assujeitado”). Esse sujeito não é uno, mas clivado; transita por diferentes formações discursivas; o sujeito são muitos.
Disse anteriormente que a fala do sujeito é predeterminada por um pré-construído. O termo supõe uma oposição entre algo anteriormente estabelecido com o que está sendo construído por ocasião do discurso. O pré-construído é, portanto, a marca num enunciado de um discurso que o antecede. Nesse sentido, o pré-construído se prende inextricavelmente à noção de interdiscurso (o já dito). Há duas coisas importantes que devemos ter em conta nessa noção: a) ela sugere uma imbricação (sobreposição parcial) entre discursos e entre formações discursivas exteriores e anteriores; b) ela também sugere a instabilidade da oposição entre o interior e o exterior de uma formação discursiva.
O termo formação discursiva foi, como se pôde ver, recorrente até aqui. Imponho-me a tarefa de expor algumas palavras sobre ele. Foi Foucault, em A arqueologia do saber (2008), que cunhou o termo. A seguir, dou a saber o trecho em que Foucault define o conceito de formação discursiva, a fim de que não percamos de vista, na compreensão, o sentido pretendido pelo seu criador:


“No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade, uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações, diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (p. 43)”.



Em negrito, destaquei duas expressões que me parecem fundamentais na compreensão do conceito. Em primeiro lugar, é preciso compreender de que “sistema de dispersão” se trata. Na verdade, se trata da compreensão por Foucault de que não é possível – e nem necessário – pretender estabelecer uma unidade de temas, conceitos, objetos com base na qual os enunciados poderiam se filiar a totalidades a que poderíamos aplicar rótulos como “a medicina”, “a psicologia”, “a gramática”, etc. Em outras palavras, Foucault observou que a análise não poderia partir da suposição da existência de uma unidade que permitiria tratar os discursos em um conjunto coerente. Pouco a pouco, ele se deu conta de que o importante é que se estudem “formas de repartição” e que se busque descrever as regras, as condições que tornam possível a existência dos enunciados. Se pôde Foucault falar em formação (discursiva), é porque ele foi capaz de inferir uma ordem em face do “caos” (aparente) em que pareciam habitar os enunciados ou os textos. Essa ordem se encontra no sistema de regras. A formação discursiva recobre, então, uma dispersão, uma unidade dividida (porque sistemas de repartição cujos elementos – “objetos”, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas – não aparecem unificados compondo uma totalidade imediatamente apreensível) e um sistema de regras que torna possível o aparecimento de certo número de enunciados.
É com Pêuchex que a noção de formação discursiva, entretanto, passaria a ser útil a AD. Lembro que Pêuchex desenvolve seus estudos no quadro teórico do marxismo de Althusser. Assumindo que toda “formação social” se caracteriza por relações antagônicas entre classes e por posições políticas e ideológicas organizadas em formações que incluem relações de antagonismo, dominação e aliança, defenderá que uma formação discursiva determina o que se pode e deve dizer a partir de um dado lugar social numa dada conjuntura sócio-histórica. Com Pêuchex, o conceito de formação discursiva se reveste de um sentido normativo do dizer-fazer.
Sua compreensão de formação discursiva terá importantes implicações para a AD, duas delas são: a) o princípio segundo o qual as palavras mudam de sentido segundo a formação discursiva em que apareçam; b) e a ideia de que é nas formações discursivas que se dá o “assujeitamento”, a “interpelação”, ou seja, que emerge o sujeito ideológico.
Posteriormente (no fim dos anos 70), Pêuchex revisará sua compreensão do conceito e passará a entendê-lo na relação necessária com o interdiscurso, de tal sorte que a formação discursiva não será vista como um espaço estrutural fechado, mas aberto, sempre suscetível de ser invadida por outras formações discursivas. Saliente-se, de passagem, que desde os anos 80, o termo não tem tido a mesma acolhida nos trabalhos dos teóricos franceses da AD. Isso tem a ver, em parte, pela obscuridade de sua definição.  Todavia, ainda hoje pode demonstrar-se útil ao empreendimento analítico no interior da AD.


O sujeito em Charaudeu

Creio que, doravante, a noção de sujeito começará a ganhar mais concretude semântica e se tornará operacional no processo de interpretação e compreensão textual. Vou-me esforçar para que essa crença se verifique verdadeira, ao termo desta seção.
Antes de iniciar nosso percurso pelos caminhos teóricos abertos por Charaudeu na tentativa de apreender a questão do sujeito, deve-se ter em conta três outras características do sujeito do discurso:
1) Como ele seja atravessado por muitas vozes, que dizem a partir de lugares sociais  diferentes, o sujeito é polifônico. Outras vozes falam através dele;

2) O sujeito se constitui, constituindo sentido;

3) O sujeito é clivado, a saber, dividido, porquanto traz consigo vários tipos de saberes, de alguns dos quais está consciente, de outros quase consciente, e de outros ainda não está consciente.

Charaudeau propõe um desdobramento do sujeito. Assim, o autor diferenciará, no domínio da produção, o sujeito comunicante (EUc) de um sujeito enunciador (EUe); e no domínio da interpretação, um sujeito interpretante (EUi) de um sujeito destinatário (EUd). O EUc está para o EUi assim como o EUe está para o EUd. Há, portanto, ao menos, quatro sujeitos:

Sujeito comunicante (EUc) relacionado ao Sujeito interpretante (EUi)
Sujeito enunciador (EUe) relacionado ao Sujeito destinatário (EUd).

Tratarei de expor, em subseções separadas, cada uma das formas sujeito, situando-as no domínio que lhes é correspondente. Antes, porém, é necessário enfatizar que, para Charaudeau, “toda interpretação é suposição de intenção” (p. 32). Ao entrarem em interação, os sujeitos necessariamente elaborarão um trabalho contínuo e recíproco de hipóteses. A interação intersubjetiva instaurada pela linguagem pressupõem como condição necessária a elaboração de hipóteses pelos sujeitos na busca por produzir sentidos e se compreenderem. Há alguns conceitos importantes que precisam ser previamente definidos para que possamos compreender adequadamente a dinâmica do trabalho empreendido pelos sujeitos na produção e compreensão do discurso e na constituição recíproca deles mesmos.

1) Condições de Produção

Mencionei já o fato de a noção de sujeito recobrir as relações dos sujeitos com a situação de comunicação; destaquei também que essa situação precisa ser interpretada como um “ambiente cognitivo partilhado”. As condições de produção ou circunstâncias do discurso, em Charaudeau, constitui o conjunto de saberes supostos como partilhados pelos sujeitos e que são ativados por eles por ocasião do processo de interação. Mas o autor enfatizará que a situação extralingüística não está excluída de seu domínio semântico, mas faz parte das condições de produção.
As condições de produção abrigam: a) saberes a respeito do mundo (práticas sociais partilhadas; b) saberes supostos sobre os pontos de vista recíprocos dos sujeitos do discurso (p. 32).

2) A noção de contrato

Também entendido como contrato de comunicação, o contrato designa a condição para que os interactantes se compreendam minimamente. Ele supõe que todo ato de linguagem para funcionar precisa se estabelecer numa espécie de consenso entre os interactantes. Esse consenso envolve: a) o reconhecimento pelos interactantes de traços identitários uns nos outros, traços estes que os definem como sujeitos; b) o reconhecimento do objetivo desse ato de linguagem; c) o reconhecimento mútuo do tema envolvido no ato; d) o reconhecimento da relevância das coerções e normas socioculturais que determinam esse ato. Assim, por exemplo, numa situação em que pai e filho interajam, eles se reconhecem como sujeitos portadores de uma identidade social (que se define tanto pelo viés da biologia quanto pelo viés da lei) e se reconhecem como sujeitos que ocupam cada qual um lugar social (na verdade, seus lugares serão reforçados, demarcados no discurso). Essa identidade social é um pré-construído, porque é definida anteriormente à prática discursiva. Durante a prática discursiva, no entanto, os interactantes construirão identidades discursivas. Identidade social e identidade discursiva são indissociáveis. A identidade social é reforçada, recriada ou mesmo ocultada no discurso. E a identidade discursiva só pode estabelecer-se sobre a identidade social, que se lhe constitui a base.  Assim, um pai (identidade social) pode assumir, durante a prática discursiva, outras formas de identidade de pai, tais como a de um pai autoritário, protetor, compreensivo, castrador, indiferente, etc.
Sem pretender levar adiante a questão das identidades, tal como a esboço aqui, vale notar, de passagem, que a identidade discursiva, construída pelos sujeitos nas práticas discursivas de que participam, servem para responder à questão básica: “Estou aqui para falar como?”. Há que acrescentar que, embora a identidade social seja já-construída, não redunda daí que tanto ela quanto a identidade discursiva não devam ser consideradas dentro da situação de comunicação. Ao contrário, ambas devem ser consideradas dentro dessa situação. Outro ponto importante é que a identidade discursiva se constrói pelos modos como os sujeitos se apropriam da palavra, pela forma como constroem a organização enunciativa do discurso (por exemplo, se falam como “eu” ou em nome de um “nós”) e na mobilização dos imaginários sócio-culturais e discursivos. Oportunas são as palavras de Charaudeau, quando nos chama a atenção para a importância de reconhecer um jogo interacional entre a identidade social e a identidade discursiva e para as formas de escamoteação do ser pelo dizer ou mesmo identificação entre ambos:

“É neste jogo de vai-vem entre identidade social e identidade discursiva que se realiza a influência discursiva. Segundo as intenções do sujeito comunicante ou do sujeito interpretante, a identidade discursiva adere à identidade social formando uma identidade única “essencialista” (“eu sou o que eu digo” / “ele é o que ele diz”), ou se diferencia formando uma identidade dupla de “ser” e de “dizer” (“eu não sou o que eu digo”/ “ele não é o que ele diz”). No último caso, ou se pensa que é o “dizer” que mascara o ser (mentira, ironia, provocação), ou se pensa que o “dizer” revela um “ser” que ignora a si mesmo (denegação, revelação involuntária: “sua voz o traiu”) (2009, p. 5)



De certo modo, essa questão estava já na agenda dos antigos gregos, que supunham ser o logos (palavra, discurso, razão) capaz de revelar o ser das coisas. Ou seja, até que ponto a linguagem permite-nos acesso ao ser da realidade foi uma questão que ocupou o pensamento dos filósofos clássicos.
Além de reconhecer traços identitários um no outro, pai e filho também reconhecerão o objetivo envolvido no ato de comunicação, bem como o tema que o sustenta. Ainda que se encontrem numa esfera social não diretamente afetada por coerções sociais válidas em outras esferas (por exemplo, válidas nas esferas públicas), o pai encarna valores e padrões de moralidade que obrigam o filho a se comportar de tal e qual modo em face do pai. Dependendo da identidade discursiva assumida por este, o filho poderá exibir um comportamento – também discursivo – que sinalize mais ou menos intimidade, distanciamento, admiração, respeito, confiança, etc. ou pode ainda, em face de um pai autoritário, mostrar profunda reverência e medo; e essas emoções, esses modos de ser vão repercutir no modo como ele se comportará discursivamente. Na verdade, os modos como o filho sentir-se na presença do pai, tendo em conta também o tipo de identidade que este construirá na prática discursiva, serão determinantes do seu comportamento discursivo.
Sumariando esta seção, a noção de contrato recobre, então, a existência de pelo menos dois sujeitos em interação, a existência de convenções, normas e acordos que regulamentam as trocas linguísticas entre eles, bem como a existência de saberes comuns graças aos quais a intercompreensão é possível, e toda a situação de comunicação. Também devemos incluir no contrato comunicativo as estratégias discursivas e os tipos e gêneros textuais.


3) Representação social

Também designada de representação coletiva, a representação social envolve a relação entre a significação, a realidade e sua imagem. Vou-me demorar um pouco nessa questão, não só porque cuido-a fundamental para a correta compreensão da problemática do sujeito, mas também porque ela nos ensina muito sobre uma questão filosófica clássica: a realidade pré-existe ao pensamento e à linguagem? Em outras palavras, existe uma realidade independente do pensamento e da linguagem? Ou ainda temos acesso (cognitivo) direto à realidade? É possível conhecer a realidade mesma?
De um modo geral, os antigos supunham a possibilidade de o homem, pelo pensamento estruturado num discurso capaz de discernir entre a aparência e a essência das coisas, alcançar (conhecer), portanto, o ser (essência) das coisas ou da realidade. Ainda procurando a brevidade, na tradição filosófica ocidental, duas grandes visões podem ser distinguidas, no que diz respeito a essa questão: uma visão supunha a existência de uma realidade ontológica a que o pensamento poderia ter acesso (implicada aqui a concepção de que a linguagem espelha o pensamento) e que se opunha um mundo sensível de aparências (Platão é, sem dúvida, quem instaurou no pensamento ocidental essa cisão na forma de ver o mundo); a outra visão supõe que entre a realidade ontológica e o sujeito cognoscente, há uma espécie de “tela de construção do real” (DAD, p. 432). Em outras palavras, entre a realidade e o sujeito cognoscente há a significação.
É a esta última visão que me inclino. Estou convencido de que o mundo, para os seres humanos, é mundo significado. O real, para os seres humanos, é real semiotizado. Mesmo um elemento do mundo natural só existe para o homem quando dotado de um “investimento simbólico” (Azeredo, 2007, p. 17). Nomear é fazer os seres e as coisas ganharem existência, e não uma atividade de etiquetação de objetos num mundo previamente dado. Entendo que a existência para o homem é uma abertura do real ao simbólico – simbólico que constitui o ser mesmo do homem. Para o homem, a existência é mergulhada em significados e por eles é entretecida.
As palavras criam conceitos. Quando nomeamos uma coisa ou ser, inserimo-la num universo de significações de que ela toma parte em relações significativas com outras coisas e seres. A linguagem, assim, estrutura nossas experiências de mundo. Dá forma e sentido a essas experiências. É parte fundamental de um processo interacional ou intersubjetivo de fabricação do real, com o concurso de um aparelho perceptual-cognitivo adequado e de práticas culturais, em cuja base se acha um sistema gerador de significados. A linguagem é a base da cultura.
O exposto acima faz eco às palavras de Azeredo (2007), que darei a conhecer ao leitor em dois parágrafos, na íntegra. Convém ponderar sobre a lição do autor. Convém também atentar para o papel fundamental da cultura na relação do homem com o mundo:

“(...) o domínio simbólico e a cultura que deriva dele são uma espécie de ponte que liga o homem ao mundo. Podemos, no entanto, adotar outro ponto de vista: o mundo humano não é um mero conjunto de objetos, mas um sistema de significados; não se encontra “fora” do homem como uma coleção de coisas que ele possui, ganha, perde, deseja ou descarta: o que chamamos de “mundo humano” é o universo de valores e conceitos que interiorizamos ao longo da vida, no convívio com nossos semelhantes, muitas vezes estruturados dicotomicamente, como realidade/fantasia, remédio/veneno, normalidade/diferença, prazer/sofrimento, beleza/feiúra, direito/dever, prêmio/punição. É esta interiorização que nos “humaniza”, à medida que nos integra na “sociedade dos seres humanos” (p. 17).


Eis o que me parece ser a ideia fundamental no texto do autor: “o mundo humano é um sistema de significados”. Não se nega a existência do mundo das coisas fabricadas pelo homem e dos seres naturais (animais, plantas, montanhas, etc.); nega-se que esse mundo exista independentemente do homem, nega-se que esse mundo exista exteriormente ao homem. Graças à função de simbolização da linguagem, esse mundo é segmentado em categorias conceituais que constituem ‘dados’ de nossa consciência. Evidentemente, essa segmentação, esse recorte do mundo em categorias fornecidas pela linguagem se dá nas experiências socioculturais que supõem o mundo. À medida que os homens vão forjando os valores e os conceitos com os quais vão (re)construindo a realidade e a compreendendo, eles vão produzindo “o mundo humano”, que é, como eu disse, mundo entretecido de sentidos. Pensar a relação entre o real e a linguagem é pensar a oposição entre um mundo humano e um mundo natural. O surgimento do mundo humano instaura uma divisão no próprio real. O real deixa de ser, como se pensa o homem comum, um ‘dado’ a ser percebido pelos sentidos, mas como um sistema de significações construído pelos seres humanos em suas práticas culturais de existência. Não quero com isso dizer que a percepção-cognição não esteja envolvida na fabricação simbólica do real; quero apenas dizer que esse real não é uma coisa previamente existente e pronta para ser percebida pelos sentidos humanos.
Lacan, aliás, insistirá na ideia de que o bebê só se tornará sujeito, portanto, ser do mundo humano, quando, por assim dizer, afetado pela dimensão do simbólico. A linguagem nos humaniza e nos eleva à nossa condição natural. Por isso, dirá Lacan, que a vida biológica está fora da experiência do sujeito. Ele só se relacionará com ela por meio da linguagem, que a modifica e a fragmenta.
Voltemos a Azeredo. O trecho seguinte se segue ao anterior e nele a ideia central é a “transformação do mundo natural em história e cultura” pela ação do homem - ser simbólico -, portanto, com o concurso da linguagem:

“Uma pedra, uma árvore, um peixe existem como peças de um sistema ecológico no mundo natural, mas, no mundo humano, interiorizado como história e cultura, esses seres passam a existir como significados graças ao uso – ou, mais exatamente, ao investimento simbólico – que o homem faz deles. É esse uso e investimento que os inscreve no mundo humano, no qual se tornam conceitos e ganham sentido: a pedra, por exemplo, pode servir nas construções e no calçamento de ruas, ser usado como arma ou transformar-se em objetos de arte, a árvore pode fornecer alimentos, remédios, matéria-prima para móveis e abrigos; o peixe é essencialmente o alimento, mas preparado de diversas maneiras: assado, escaldado, frito, ou mesmo cru, mas em lâminas, como na culinária japonesa” (ib.id.)


Não devemos subestimar o papel da cultura na fabricação do real. Na verdade, cultura e linguagem são inseparáveis nesse processo. A cultura é uma dimensão que atravessa todos os aspectos da vida do homem em sociedade. É o modo de ser e de existir do próprio homem no mundo. É no interior das práticas culturais que os sistemas semióticos (artes, música, fotografia, etc.) , dos quais a linguagem verbal se destaca, são forjados e podem produzir sentidos. A cultura é um sistema de pensar, de sentir, de agir, de fazer e de relacionar-se com o mundo e com o Absoluto. Ela constitui uma teia de significados e valores que se tornam constitutivos da realidade e que orientam os homens em suas experiências uns com os outros e com o mundo.
Essas reflexões fazem-me retornar à lembrança a concepção que tenho de existência humana. No homem, a existência é a abertura do ser para o sentido ou significado. Se existir é estar em relação com, é “evadir-se de si”, é “sair de si”, “exteriorizar-se”, no homem e para ele, existir é lançar seu ser ao significado; eu acrescentaria: é lançar seu ser para o significado e nele aprisioná-lo. Reitero que os homens estão condenados a produzir sentidos. Sua existência é toda ela atraída irresistivelmente para (a produção de) o sentido.
Também é nesse terreno de reflexões que gostaria de situar um conjunto de ideias que, quiçá, auxilie o leitor na sua experiência de leitura. Espero que esse conjunto de ideias alicerce uma crítica textual desconstrutiva. Decerto, estas ideias não são novidade, mas não é menos verdade que elas não costumam ser imediatamente acessíveis à consciência do homem comum.
Quando nos preocupamos em buscar a verdade, em saber quem está com a razão, quase nunca estamos totalmente conscientes de que todas as ideias, as concepções, as crenças, as opiniões, as ideologias, visões de mundo, saberes, teorias, ilusões engendradas pelos discursos e por eles veiculadas remontam a uma fonte primária e única: o próprio ser humano. Mas não o homem abstrato, como se pairasse acima do universo sócio-histórico e cultural, por ele mesmo fabricado, mas o homem sócio-historicamente situado, influenciado, moldado, determinado, ainda que não totalmente (certa margem de liberdade não lhe pode ser negada), por toda uma comunidade de formações sociais estruturadas em crenças, valores, instituições, ideologias de sua época. Portanto, quem crê é o homem; quem pensa é o homem; quem diz é o homem; quem se ilude é o homem; quem oprime é o homem; quem engana e se engana é o homem.
Levar em conta as consequências dessas ideias é importante não só quando nos debruçamos sobre as religiões e nos perguntamos sobre a existência dos deuses, mas também quando nos deparamos com declarações que acenam com a naturalização de práticas sociais, que servem para sustentar relações de opressão, de dominação de certos grupos sobre outros. Estendendo ainda o alcance das consequências dessas ideias, elas nos ajudam a trilhar caminhos no sentido de uma compreensão mais profunda das formas como os homens representam para si suas relações com o mundo, das formas como eles instauram e reproduzem, justificam toda sorte de relações, de práticas que contrariam e ferem seus ideias mais caros, entre os quais os que nos foram legados pela Revolução Francesa.
Na prática, considerando-se a relação do leitor com o texto, especialmente em sala de aula, o caminho que aponto com as ideias referidas é o do desenvolvimento de uma consciência de suspeita no leitor em face do discurso que se vai emergindo quando da leitura do texto. O desenvolvimento da competência textual e discursiva do leitor significa desenraizá-lo de um estado de inocência em face do texto. O leitor inocente é um leitor que supõe poder achar uma verdade de que é portador o autor do texto; é, além disso, um leitor que supõe que o sentido está ali no texto boiando em sua superfície. É o leitor pouco eficiente no mergulho cognitivo necessário para alcançar uma compreensão profunda do texto. É também o leitor desatento para as outras vozes que ecoam no texto e para os outros textos que são evocados, ou com os quais o texto lido se relaciona. É o leitor que, produzindo uma leitura restritamente horizontal do texto, perde a oportunidade de fazer ligações entre elementos e porções de palavras que se acham em regiões diferentes e distantes do texto. É, em suma, o leitor que não é bem sucedido na atividade de produção de inferências que lhe permite recuperar os implícitos e raciocinar jogando com esses conteúdos em sucessivas relações entre eles e deles com conteúdos explícitos.
Voltemos à questão da representação social.
Para Wittgenstein, as representações não evidenciam o mundo, mas são o mundo. Segundo ele, é somente por elas que tomamos conhecimento do mundo. Bourdieu insiste, a seu turno, que é necessário “incluir no real a representação do mundo” (Bourdieu, 1982: 136).
Para efeito de compreensão do conceito de representação social ou coletiva, vou situá-lo em dois domínios do conhecimento humano: o primeiro é da psicologia social. Nesse domínio, a representação envolve um trabalho de interpretação da realidade pelas relações de simbolização que estabelecemos com ela e também um trabalho de produção de significados. Assim, as representações sociais se constituem de um conjunto de crenças, de conhecimentos, de valores e de opiniões que são produzidas pelos sujeitos sociais de um mesmo grupo ou sociedade e partilhadas entre eles. Evidentemente, esse conjunto diz respeito a um objeto social considerado. Também é no interior da psicologia social que se diferenciam níveis de construção da representação: há um nível profundo, concebido como um ‘núcleo duro’, a partir do qual as representações ‘não negociáveis’ se constroem e se relacionam por consenso, e constituirão a memória da identidade social; e um sistema periférico de representações, no interior do qual as categorizações são construídas e tornam possível a ancoragem das representações na realidade imediata do momento. Nesse caso, os sujeitos produzem modelos cognitivos de contexto, pelos quais eles representam e buscam compreender as situações sociais de que participam.
O segundo domínio é o da AD. Aqui se destacam as contribuições de Bakhtim e Charaudeau. Aquele por ter introduzido no pensamento da linguística moderna as noções de interdiscursividade e dialogismo, na base das quais toda uma teorização posterior das representações pôde ser desenvolvida.
É com base em Charaudeau que podemos compreender, para os meus propósitos, o conceito de representação social. O autor observa que, uma vez que as representações servem para organizar o real por meio de imagens mentais veiculadas no discurso, elas devem ser inseridas no real, ou mesmo fornecidas pelo próprio real. É importante entender que as representações se estruturam em discursos sociais que vão dar testemunho do saber sobre o mundo, do saber sobre as crenças que incluem sistemas de valores de que se servem os indivíduos para julgar essa realidade. Também esses discursos que testemunham conhecimentos e crenças vão viabilizar a construção de identidades pessoais (os membros de um grupo podem construir uma consciência de si), com base numa identidade coletiva.


O Desdobramento do sujeito

No domínio da interpretação

a) Sujeito destinatário (TUd) e o Sujeito interpretante (TUi)

O sujeito destinatário (TUd) é o interlocutor construído (uma imagem), é um destinatário ideal fabricado pelo EUc. O EUc tem total domínio sobre esse interlocutor, já que lhe fixa um lugar onde supõe que sua intencionalidade lhe será totalmente transparente.
O sujeito interpretante (TUi), por sua vez, ao contrário do TUd, situa-se e atua fora do ato de linguagem produzido pelo EUc. Como todo ato de linguagem, uma vez produzido, reclama interpretação, claro é que o TUi intervém nesse ato. Os processos de produção e interpretação estão integrados. O TUi é, portanto, o sujeito a quem compete o processo de interpretação, cujos efeitos escapam, no entanto, ao domínio do EUc. Disso se segue, consoante nota Charaudeau (2010: 46)

“Assim sendo, se supomos que o TUd está em relação de transparência com a intencionalidade do EU, o TUi, ao contrário, se encontra em uma relação de opacidade com essa intencionalidade, já que não é uma criatura do EU. O TUi só depende dele mesmo e se institui no instante exato em que opera um processo de interpretação”.


A esta altura, duas observações são essenciais. A primeira diz respeito ao conceito de intencionalidade. Embora se encontre em seu texto o termo “intenção”, observa o autor que a opção pelo uso dele se deve a sua intenção de expressar a ideia de “um conjunto de intenções que podem ser mais ou menos conscientes, mas que são todas marcadas pelo selo de uma coerência psicossociolinguageira” (p. 48). Assim, pretende salientar o aspecto inconsciente envolvido no ato de linguagem, bem como os efeitos do contexto sócio-histórico sobre este ato. A segunda observação é ter em conta que o TUi situa-se na esfera externa do ato de linguagem. Ao contrário do TUd, ele não é uma imagem construída pelo EUc.



No domínio da produção

Sujeito comunicante (EUc) e o Sujeito enunciador (EUe)

Tanto quanto o TUi o EUc é um sujeito agente que se institui como locutor e ao qual compete construir um discurso. A ele cabe o poder de iniciar o processo de produção. Ele é também testemunha de um real, muito embora de um real construído no seu universo discursivo. Lembro que o real não tem uma existência prévia ao discurso. Charaudeau observa, a esse respeito, o seguinte: “(...) Não consideramos que haja em algum lugar uma realidade fixa, indiferente à linguagem e mais verdadeira que ela. Conferimos ao real um valor de estatuto imaginado pelo homem” (p. 51, ênfase no original). É preciso, contudo, frisar: não se trata de ver aí um real subjetivamente construído, como um mero produto de crenças, valores e saberes subjetivos. Na verdade, por trás do sujeito, há uma comunidade que encarna essas crenças, valores e saberes do qual ele é herdeiro. Disso se segue que o real é uma construção intersubjetiva que se dá na linguagem no interior de um dado sistema cultural.
No que diz respeito ao EUe, deve-se ter em conta que, da perspectiva da interpretação, ele é um sujeito construído pelo TUi. É uma imagem do ser do discurso construída pelo TUi. Quando nos situamos no domínio da produção, o EUe será uma imagem de enunciador construído pelo EUc e representará sua intencionalidade.


Observações

Tendo em vista o exposto acima, preciso fazer algumas considerações suplementares. Tendo em conta o EUc, urge entender que ele assume o papel de produtor de um ato de linguagem e, nesse momento, imagina como seria a reação do TUd. O TUi, a seu turno, ocupa o lugar de interpretante de um ato de linguagem em virtude do que ele pensa sobre o EUc. Ao produzir uma imagem do EUc, ele cria o EUe.
O EUe e o EUd são independentes, em parte, do EUc e do EUi. Aqueles são seres do discurso. É só no discurso que ganham um estatuto linguístico e passam a existir com relativa independência destes últimos.
Também preciso dizer que o EUe e o TUd são, em parte, transparentes, porquanto se inscrevem no ato de linguagem por meio da estruturação desse ato. Por outro lado, não há relação de transparência entre o EUe e o EUc (Charaudeau, p. 49). O Eue é tão-só uma representação linguística parcial do EUc, embora também seja uma representação construída pelo TUd. O Eue “é uma máscara de discurso usada pelo EUc” (ib.id.). Acrescente-se que, pode haver ocultamento graduado do Euc pelo EUe, ou mesmo um distanciamento igualmente graduado entre eles.
O que vimos apresentando e desenvolvendo até aqui leva-nos à conclusão, com Charaudeau, de que a noção de autor se demonstra pouco útil, do ponto de vista analítico. O autor, entendido, tradicionalmente, como uma função organizadora do discurso, recobre um sujeito duplo: o EUc e o EUe.
O EUc, conquanto se situe na esfera exterior ao ato de linguagem, não deixa de atuar na totalidade desse ato. Igualmente importante é considerar a intervenção, no processo interpretativo, do TUi, com base no conhecimento de que dispõe do EUc. Se o TUi intervém no processo de interpretação baseando-se no conhecimento que tem do EUc, segue-se daí que o EUc não é um ser único, já fixado de uma vez por todas. Ele será aquilo que o processo interpretativo dizer dele. O EUc depende do conhecimento que o TUi tem dele.
Cabe ainda referir os dois modos de proceder do EUc:

1o Ele constrói uma imagem do real como locus da verdade exterior a si mesmo (sujeito) e que se investe do poder de lei. Essa verdade situa-se além dele, independe dele, é algo que ele supõe, acredita descobrir e se encarrega de revelar, a-presentar no discurso. Nesse caso, o discurso para o sujeito comunicante não produz um efeito de verdade, mas, porque afetado pela ideologia, crer poder revelar a verdade;

2o Ele fabrica uma imagem de ficção que considera um lugar a partir do qual o sujeito se identifica com o outro. Essa imagem constituirá um lugar de onde se dá a projeção do imaginário desse sujeito.

Vale ainda considerar as duas apostas do sujeito falante: a) a primeira diz respeito a sua expectativa de que os contratos instituídos por ele por ocasião do evento interacional sejam aceitos e bem vistos pelo sujeito interpretante; b) a segunda aposta é atinente à expectativa que tem de que as estratégias empregadas surtam o efeito desejado.
É com a noção de estratégia, portanto, que encerro esta seção, após a qual iniciarei a análise de um trecho do texto do texto Dando a volta por cima, de Cybele Ruas. Em seguida, passo a considerar, com a brevidade exigida pela longa extensão deste texto, a esta altura, a questão do sujeito na psicanálise.
A noção de estratégia estriba-se na hipótese de que o sujeito comunicante (EUc) concebe, organiza e encena suas intenções de modo a produzir determinados efeitos – de persuasão ou sedução, sobre o sujeito interpretante (TUi). Seu objetivo é levá-lo a identificar-se , de modo consciente ou não, com o sujeito destinatário ideal (TUd), então, construído pelo EUc.


Uma proposta de análise

                             Dando a volta por cima

Cybele Ruas

[...] Algumas pessoas são resistentes, aparam os golpes da vida; outras simplesmente desabam. Não adianta ser duro como o aço: o impacto pode ser pior. É necessária alguma elasticidade, suficiente para absorver o golpe, mas é preciso recuperar o equilíbrio. Resiliência é o nome técnico para a capacidade de absorção do choque e recuperação da forma original.
Que golpes? Famílias disfuncionais, divórcio, viuvez, perda de filhos, desemprego, problemas financeiros, violências sofridas, mudança de cidade, ou de país – há muita coisa que pode nos atingir ou abalar. Não há como evitar os percalços da vida.
Nossa força pessoal é intimamente relacionada com a autoconfiança: quanto mais psicologicamente estáveis, mais resistentes seremos às tensões. [...]
A resiliência é como se fosse um músculo psíquico, que pode ser exercitado. Mas é melhor encará-lo como arte – de bem viver: as pessoas fortes não se deixam limitar pelas adversidades; estabelecem metas que vão sempre um pouco além, na certeza de que os tempos ruins são passageiros (...).
Há uma verdadeira indústria de vítimas, que tende a fazer que as pessoas se digladiem com traumas durante toda a vida: as fraquezas passam a ser nutridas a pão-de-ló. Na verdade, somos consideravelmente fortes, embora possamos não saber disto, e é esta força interior que devemos buscar.


Em primeiro lugar, situemos os lugares dos sujeitos, tendo em conta o discurso de que este texto é expressão. O Euc, externo ao discurso, é o produtor dos atos de linguagem que o constitui. É, em suma, o produtor do discurso. Esse EUc, ao longo do processo de construção do discurso, construirá uma imagem de si, denominada de Eue (sujeito enunciador). O Tud é a imagem do interlocutor (no caso do texto escrito, do leitor) construída pelo EUc. O Tud é, portanto, a imagem de leitor construída pelo EUc. O TUi é o ser exterior ao discurso, embora responsável pela interpretação do discurso. O TUi também construirá uma imagem do EUc, ou seja, também construirá um EUe, que pode ou não identificar-se com o EUe construído pelo EUc.
O texto em tela pertence ao gênero artigo, cuja publicação (penso eu) deve ter se dado num jornal de grande circulação. Trata-se de um texto escrito por uma especialista na área de psicologia com o objetivo de esclarecer um público leigo sobre o significado de um termo técnico próprio dessa área de conhecimento, qual seja, resiliência. De certo modo, o EUc supõe a ignorância de seu público sobre o que significa esse termo. Note-se a importância da elaboração de hipóteses: o EUc formula a hipótese inicial de que está escrevendo para um público não especializado na área e que, portanto, não detém o conhecimento do que significa resiliência. Logo, a imagem que o EUc constrói do leitor, que será seu TUd, é a imagem de quem “ignora o significado de um termo técnico importante em psicologia”. Evidentemente, essa hipótese inicial não totaliza a imagem do TUd. A essa hipótese, podem-se somar outras duas: “o Tud é alguém interessado em aprender sobre psicologia” e “o conhecimento do que significa resiliência pode ajudar as pessoas a compreender um fato importante a respeito do modo como elas se relacionam com o mundo”. Talvez, esta última hipótese pudesse ser reelaborada com outros termos, mas o que ela diz é que o EUc supõe que é importante saber o significado do termo, porque ele descreve tipos de personalidades que existem e que reagem às dificuldades da vida de um modo que foi identificado e descrito com o termo. É interessante ver aqui como as palavras, ao criar conceitos, permitem que a experiência representada passe a existir como um dado de consciência do homem. Claro é que a experiência de mundo das pessoas as ensina que certas pessoas exibem uma capacidade de superação de problemas que lhes impressiona. Todavia, antes que se criasse um termo, um conceito para representar essa experiência, ela não estava integrada num universo conceitual (embora a ela sentidos já pudessem estar associados, visto que nossas experiências são estruturadas na linguagem) com o qual interpretamos experiências semelhantes e as relacionamos com outras experiências análogas ou distintas. Resiliência descreve, assim, uma experiência que representada na forma de conceito se integra num universo simbólico. Ao ouvir a palavra resiliência, quem quer que conheça seu conceito ou significado ativa uma imagem mental dessa experiência. O signo é justamente isto: algo que está no lugar de. Não precisamos viver a experiência para saber do que se trata; uma vez sabendo o que significa a palavra resiliência, a experiência, assumindo a forma de conhecimento, de conceito, é ativada em nossa memória, é representada cognitivamente em nossa mente.
Tendo em conta as hipóteses iniciais do EUc, com as quais constroem o seu TUd (lembro que o leitor é o TUi), o EUc levará adiante o seu projeto de dizer. E ele o inicia com informações que supõe conhecidas do TUd. Em outras palavras, ele representa no discurso experiências com as quais – ele espera – o leitor venha a se identificar (“eu já vivi isso, pensará o leitor”). Trata-se de uma estratégia bastante eficaz para o seu propósito básico. Como o EUc quer introduzir no modelo textual do leitor um termo (uma informação nova) cujo significado supõe que ele, leitor, desconheça, conclui ser mais adequado iniciar seu texto representando experiências possivelmente já vividas pelo leitor, ou seja, representando um modelo de mundo reconhecido pelo leitor. Aqui está o efeito de verdade: o EUc, que também constrói uma imagem de si, supõe ser portador de uma verdade sobre o modo como o mundo funciona. Ou seja, nesse mundo textualizado pelo EUc, há pessoas que “são resistentes”, que “aparam os golpes da vida”, isto é, há pessoas que suportam com firmeza os problemas da vida, de tal modo que conseguem “dar a volta por cima”. No mundo proposto pelo EUc – melhor será dizer construído em seu discurso -, há pessoas que, tendo sido acometidas pelos problemas da vida, conseguem se recuperar após os traumas. Elas gozam de uma capacidade de superação de tais problemas que chama a atenção dos especialistas, a ponto de eles terem lhe destinado uma palavra que a descrevesse.
Noto, de passagem, tendo em conta a importância das hipóteses que o EUc vai produzindo sobre os saberes, as crenças, as expectativas do TUd, que, ainda no primeiro parágrafo, o EUc parece prever a conclusão, pelo leitor, após a leitura dos enunciados iniciais, segundo a qual “é preciso ser duro e resistente”. Opondo a essa conclusão justamente a ideia contrária (“Não adianta ser duro como o aço: o impacto pode ser pior”), o EUc poderá prosseguir argumentando no sentido contrário àquela conclusão, ou seja, entenderá que é preciso certa maleabilidade ou “elasticidade, suficiente para absorver (como uma esponja?) o golpe”. Em seguida, pela introdução do “mas”, o EUc encaminha a argumentação no sentido contrário a uma conclusão do leitor que ele mesmo EUc antecipa. A essa altura, o leitor poderia estar pensando: “se não devemos ser duros para agüentar o golpe, mas sermos maleáveis, não correríamos o alto risco de ser profundamente afetado?”. Ou seja, a conclusão do leitor poderia ser: “a falta de firmeza poderia me abalar profundamente”. Mas o EUc adverte, contrariamente, que é necessário ter a capacidade de se recuperar, de modo que a tal “elasticidade” precisa ter limites.
Claro é que o leitor pode não concordar com o EUc. Pode julgar que, baseando-se em suas experiências pessoais, o melhor a fazer é suportar com firmeza quase indestrutível os duros golpes da vida. Chamo atenção para o fato dos silenciamentos que atravessam as palavras. O EUc não diz tudo; a linguagem é insuficiente, ou melhor, é atravessada pela incompletude; os silêncios vazam das palavras. Há sempre uma lacuna ou lacunas que não são preenchidas pelo dizer. E nelas encontra o leitor a oportunidade de intervir, para o que se baseia no conjunto de suas crenças, conhecimentos, valores e experiências representados e armazenados em sua memória.
As questões que um pequeno parágrafo suscita são muitas, como se pode ver. Não pretendo me ocupar de todas aqui. Tampouco me seria possível fazê-lo.
O TUi, leitor, também constrói uma imagem do EUc. Também ele tem o seu EUe, que pode ou não identificar-se com o EUe fabricado pelo EUc. Os saberes, os valores, as crenças, as expectativas do TUi sobre o EUc constituirão a base sobre a qual construirá uma imagem deste. Não podemos subestimar a importância também das emoções e dos sentimentos do TUi em relação ao EUc. Por exemplo, esperando aprender mais sobre o conceito de resiliência – supondo-se aqui que o TUi já tivesse conhecimentos prévios sobre o assunto antes de ler o texto -, ele poderia se decepcionar com o EUc, caso este não contribuísse para alargar o terreno de seus conhecimentos sobre o assunto. Se o texto lhe parecesse redundante, porque repleto de informações já conhecidas, o TUi poderia construir uma imagem pouco favorável do EUc, isto é, o EUe do leitor (TUi) não se identificaria com o EUe do EUc.
Pode haver tensões nessa relação. O TUi, conquanto ao entrar no processo de interação, pela leitura (no caso), com o EUc aceite o contrato proposto, não está obrigado a concordar com o EUc totalmente. É claro que o TUd é projetado pelo EUc como um ser do discurso necessariamente suscetível ao convencimento ou à persuasão. Nesse sentido, o TUd é um ser do discurso suposto como concordante com a versão de mundo representada pelo EUc e com o modo como essa versão de mundo produz um efeito de verdade que será sustentado pela argumentação.
Não poderia levar adiante esta análise, visto que o tamanho do texto excedeu em muito os limites desejados para uma publicação em blog. Quero, contudo, insistir que as hipóteses são elaboradas tanto pelo EUc quanto pelo EUi. E elas não servem apenas para a construção das imagens dos sujeitos do discurso. No caso do sujeito interpretante, elas são movimentos linguístico-cognitivos constitutivos do próprio processo de interpretação. Portanto, o leitor está, a todo momento, ao longo do processo de leitura, elaborando hipóteses, lançando mão de estratégias que servem para a produção de um sentido para o texto (tendo em conta que os sentidos são muitos).
Igualmente importante é o papel das inferências durante a atividade de produção de leitura. O leitor, com base no seu conhecimento de mundo, estabelece, pelos processos de inferências, uma relação não explícita entre porções ou elementos textuais, ou ainda entre esses elementos e conhecimentos necessários para a compreensão.


O sujeito em Psicanálise: a contribuição de Lacan

Antes de atacar a questão do sujeito em psicanálise, é preciso dizer que, por meio dos trabalhos de Lacan, foi possível aproximar a psicanálise da AD, particularmente da vertente francesa. Foi a teoria do discurso proposta por Michel Pêcheux que deu origem a um percurso em que a AD e a psicanálise pôde-se integrar. Em Pêcheux, também houve espaço para o materialismo histórico, de influência althusseriana. A AD deste autor procura, então, articular a psicanálise ao materialismo histórico.
Nesta seção, enfocarei a contribuição da psicanálise com base nos estudos de Lacan. Particularmente, estarei interessado em apresentar e discutir os conceitos de sujeito, dentro da teoria psicanalítica proposta por ele, e os conceitos de “outro” e “Outro”. Com Lacan, via Pêcheux, a AD abriu espaço no palco do discurso para a voz do desejo inconsciente do sujeito. O sujeito, agora, é visto como sujeito do inconsciente, muito embora continue sendo sujeito de linguagem. Nesse tocante, a psicanálise só vem a confirmar aquilo no que os linguistas cujos trabalhos se desenvolvem na esteira da linguística da enunciação, da pragmática, da semântica argumentativa, aos quais se reúne, em coro, a AD, estão de acordo: o sujeito é sujeito de linguagem.
Começarei, então, reiterando: também em psicanálise, o sujeito deve ser estudado no âmbito da linguagem. Também nessa área do conhecimento humano não há sujeito sem linguagem; ele é construído na dimensão simbólica. Todavia, há uma outra dimensão do sujeito que a psicanálise se encarregará de desvelar: a sua dimensão inconsciente. Assim, na psicanálise, o sujeito é também sujeito do inconsciente. Vamos, então, compreender de que modo esse sujeito do inconsciente que só existe na linguagem se constitui. Desde já, informo que estou ciente de que não recobrirei todas as questões aí implicadas. Não tenho a intenção de fazê-lo. Darei apenas uma amostra da teorização psicanalítica sobre o sujeito.
Lacan, com vistas a desenvolver sua teoria do sujeito, parte da herança do pai da linguística moderna Ferdinand de Saussure. Tendo em conta a compreensão que o mestre genebrino tinha de signo linguístico – uma entidade dividida dicotomicamente em significante (imagem acústica) e significado (conceito) -, Lacan entende que o significante prevalece sobre o significado. Para ele, o significado resulta da articulação de significantes em cadeias. Só o significante é material e simbólico. Sua estruturação na cadeia de significantes é que produz o significado. Evidentemente, Saussure, embora pudesse endossar essa visão sistêmica da linguagem, não concordaria em dissociar o significante do significado no signo. O signo, em Saussure, não pode ser pensado e não existe sem a relação necessária entre o significante e o significado.
Claro é que a perspectiva teórica de Lacan é outra e as questões de que se ocupa, os objetivos para os quais suas reflexões se orientavam eram outros. Em suma, o universo de postulados e a metodologia de Lacan não era o mesmo proposto por Saussure. Prossigamos com Lacan.
Como a psicanálise, a partir daí, com Lacan pensará o sujeito? O sujeito será pensado como sujeito social. Lacan reconhece a raiz social do sujeito, reconhece que o ser humano toma parte numa ordem social, cuja unidade básica, que lhe serve de porta de entrada para essa ordem, é a família. De que modo, contudo, se constitui esse sujeito do inconsciente, sem o qual não haveria psicanálise?
Tendo em conta a importância do papel da família no processo de humanização do ser biológico que é o bebê, Lacan ensinará que ao nascimento desse ser preexiste uma ordem social, cultural e significante, a qual encerra valores, ideologias, significações. Essa ordem se estrutura material e simbolicamente assumindo a forma de um Outro. O Outro é essa estrutura significante que representa a ordem social. É a mãe, considerada aqui como um lugar de ser criador (não necessariamente a mulher que dá à luz uma criança , mas qualquer pessoa que venha a desempenhar esse papel para o bebê), que representará para o bebê o Outro. Atentemos para o trecho abaixo, em que Elia, em O conceito de sujeito (2007), nos ensina a respeito do papel da mãe:

“O que a mãe transmite é, primordialmente, uma estrutura significante e inconsciente para ela própria (ela não sabe o que transmite, para além do quê  ela pretende deliberadamente transmitir), e não poderia ser simplesmente o conjunto de valores  culturais (entendendo-se sob esse termo toda a complexidade de elementos significativos ordenados na família e na sociedade à qual pertence a mãe e  bebê)” (p. 40).


É importante reter esta ideia: a mãe, embora encarne o Outro, não está consciente da estrutura significante que ela está a transmitir ao bebê. A ordem significante (o Outro) é destacada da ordem de significados e valores, de tal modo que o que o bebê interioriza não é um conjunto de significados, mas “um conjunto de marcas materiais e simbólicas – significantes” (p. 41). Não obstante o fato de a mãe interiorizar no bebê esses significantes, não redunda daí que ele seja passivo. O bebê, na verdade, é um sujeito que produz um ato de resposta. Ele é agente, portanto.
Recapitulando, o sujeito se encontra com o Outro, em um dado momento. Num segundo momento, esse encontro ganha algum significado, que lhe permite atingir e reconhecer algum nível de constituição. Como o significante prevalece, consoante Lacan, sobre o significado no inconsciente (a estrutura do inconsciente é uma estrutura significante), em certo momento, o bebê tem um encontro com o significante. Nesse encontro, o sujeito é convocado a dar uma resposta. É nesse encontro que o sujeito iniciará o trabalho de sua constituição.
Certamente, esta síntese deixa muitas questões em aberto; quiçá suscite mais dúvidas do que esclarecimentos. Mas as dúvidas são importantes para nos manter ávidos por aprender mais, por buscar as respostas de que carecemos para uma compreensão mais satisfatória de um dado aspecto da realidade. As dúvidas movem o espírito, conduzem-no à aventura do pensamento.
Antes de por um ponto final neste texto e procurando ser o mais claro possível, não poderia deixar de dizer que a ideia de que o Outro preexiste ao sujeito é sensivelmente perturbada pela ideia, aparentemente contraditória, de que o Outro, na verdade, também surge no encontro com o sujeito. Até onde consegui entender, é preciso postular uma pré-história de um bebê que não é delimitável na história do Outro. Essa pré-história tem estatuto simbólico e não se confunde, por exemplo, com a experiência de gravidez. Um dos elementos dessa pré-história do Outro, entre os quais estão desejos, desígnios, demandas, que remonta a um ancestral do bebê, é o nome que ele receberá. Evidentemente, o nome é anterior ao encontro do bebê nascido com o Outro, no entanto, ele só existe no momento em que o bebê o recebe. Esse encontro do bebê com o seu nome atualiza o passado, traz o passado à existência. É nesse sentido que o Outro se constitui na relação com o sujeito. Os desígnios, desejos e demandas de que o Outro é portador são atualizados no encontro com o bebê. Nesse sentido, o Outro passa a existir ao mesmo tempo em que se dá a constituição do sujeito.