sexta-feira, 7 de agosto de 2015

"O conhecimento é uma chaga para a vida, enquanto a consciência é uma ferida aberta no âmago da vida" (Cioran)

                            

          A filosofia do desespero: o Nada e o Indivíduo [1]


Apresentação e Justificação

Inscrevendo-se no lugar de encontro entre a filosofia trágica e a filosofia pessimista, este projeto vincula-se ao programa de pesquisa em cujo escopo repousa a questão da inscrição do sagrado no pensamento filosófico contemporâneo, reconhecidamente afetado pelo niilismo, que será posicionado, no próprio trâmite investigativo, em cotejo com a metafísica cristã. Nosso intento consiste em investigar o modo como a hierofania (manifestação do sagrado) se inscreve no pensamento dos filósofos Sören Kierkegaard (1813-1855) e Emil Cioran (1911-1995), dois expoentes do que podemos chamar de filosofia do desespero. O instrumental conceitual de que nos serviremos para empreender nossa investigação será fornecido por Nietzsche e Heidegger, filósofos que, como patenteia Cabral (2014), abrem caminho para pensar a inscrição do sagrado na experiência niilista que profundamente marca a vida e o pensamento filosófico contemporâneos. A Nietzsche tomaremos os termos vontade de poder, diosinio, eterno retorno e além-do-homem, os quais, a despeito de suas especificidades semânticas, se enfileiram num campo hermenêutico que sustenta sua filosofia, enquanto filosofia de afirmação da vida. Todos esses termos dão testemunho do esforço empreendido pelo filósofo para superar o niilismo, cujas raízes ontológicas podem ser compreendidas pela consideração da questão da morte de Deus. Já em Heidegger, na medida em que a questão da reinscrição do sagrado se articula à verdade do acontecimento do ser enquanto tal, estaremos interessados em acompanhá-lo no percurso de seu método fenomenológico-hermenêutico, que lhe serviu para investigar a vida fática do ser aí humano. De modo algum, temos a pretensão, de resto infactível, de recobrir toda a extensão da analítica heideggeriana. Estaremos, por isso, interessados em, partindo do seu apelo a que se retome a questão do Ser em geral, acompanhá-lo em sua análise do Dasein (ser-no-mundo), naquilo que ela nos aproveita para a investigação do modo como o sagrado se inscreve e se ressignifica num pensamento que pensa o ser-no-mundo  a partir do lugar do desespero.
Urge dizer que a primeira questão que se nos apresentou de modo premente, antes mesmo de nos pormos a redigir este projeto, e que acena ao primeiro e fundamental desafio, consiste em como pensar a hierofania no interior de um pensamento filosófico que se faz na relação de um eu desesperado com um mundo esvaziado de qualquer sentido orientador. Não menos urgente é assinalar a importância que terá o conceito de modo de ser em nossa pesquisa. Nesse tocante, nossa investigação se norteará pela hipótese segundo a qual o niilismo, sobre o qual discorreremos mais adiante, enquanto acontecimento histórico e estrutural, foi decisivo para a produção do modo de ser próprio do homem contemporâneo: o homem desesperado. Daí a pertinência da questão sobre como é possível pensar a reinscrição do sagrado nessa existência desesperada.


  1. O Niilismo e a Morte de Deus

1. 1. O Niilismo como princípio de determinação

Principiamos com a observação de que, segundo Cabral (2014, p. 12)[2], o niilismo é um princípio de determinação da história ocidental. A morte de Deus, que é uma conjuntura do nosso tempo, por seu turno, revela a positividade do niilismo. Citemos o autor: o niilismo “é o acontecimento fundamental de nossa história atual” (p.16). Não perdemos de vista, com base em Cabral, o fato de que o niilismo não pode ser pensado reducionalmente em termos de deteriorização dos antigos princípios vinculativos (p. 23). Ainda segundo Cabral (p. 25), a caracterização negativa do niilismo que toma como causas os sintomas, quais sejam, “negação da instituição familiar, dissolução dos paradigmas políticos, rejeição da autoridade dos antigos saberes”, remonta ao romance do escritor russo Ivan Turguêniev.

“As interpretações hodiernas se mostraram insuficientes, pensando o niilismo como perda dos princípios vinculativos da tradição, e as interpretações não se preocupam em questionar a condição de possibilidade dessa perda. Sintomatológicas, elas gestaram diversas estratégias nostálgicas e remoralizadoras (...). Trata-se de assumir o niilismo como conjuntura atual do Ocidente e reconduzi-lo à sua condição de possibilidade” (Cabral, 2014, p. 26)


No esforço por repensar o niilismo, é indispensável, portanto, trazer à tona, na investigação, suas raízes ontológicas. O niilismo não se reduz às suas manifestações culturais. O que é preciso investigar é o lugar de determinação de sua essência.
A compreensão do niilismo como um fenômeno com raízes ontológicas torna razoável nossa hipótese de que ele contribui decisivamente para “produzir” um modo de ser característico do homem pós-moderno[3]: o modo de ser desesperado. A estrutura ontológica do mundo é abalada. O mundo não é mais a casa, o lar em que se encontra o homem. O mundo não mais se apresenta como um campo de sentidos sólidos, garantidos por uma heteronomia. A relação entre o homem e o mundo sofre uma irreparável fissura, através da qual irrompe no ser do homem o desespero. Essa relação entre o homem e o mundo passa a ser uma relação desesperada, uma relação em que o homem experiencia um excruciante abandono. Tome-se o que entendemos por “mundo”.
Note-se, de inicio, que sem linguagem, não há psiquismo, mas tão-somente processos fisiológicos, porquanto o que define o conteúdo da consciência são fatores sociais. A consciência se constitui do conjunto dos discursos que o indivíduo interioriza ao longo de sua vida. O homem aprende a compreender o mundo pelos discursos que interioriza e, na maior parte do tempo, os reproduz em sua fala.
O que chamamos de mundo humano não é somente a totalidade das coisas existentes como dadas à experiência sensorial humana. O conceito de mundo não se reduz, evidentemente, à noção de planeta em que habitamos.
O que é, então, o mundo? Num primeiro momento, realçando a importância da dimensão do simbólico na definição de “mundo”, podemos dizer que o mundo é um campo experiencial entretecido de significados em relação ao qual se constitui o homem e onde ele se conhece. O mundo só existe para o homem, porque é apenas para ele que esse mundo pode ser nomeado. O mundo é tudo aquilo que pode ser dito; é a totalidade ordenada passível de ser nomeada, de modo que as coisas só podem existir para uma consciência humana na medida em que são passíveis de receber um nome. Mas o vocábulo “coisas” designa não só os objetos materiais, acessíveis à nossa experiência sensível, mas também as entidades mentais, como ideias, sentimentos, entes imaginários, etc.
Não há existência possível para o homem fora da dimensão simbólica: tudo que existe para o homem tem um nome. Aquilo que não tem nome, em última instância, não existe, tanto no mundo exterior quanto no mundo interior da mente. O que não tem nome não pode ser pensado; e se não pode ser nomeado nem pensado, não existe.
Embora a linguagem verbal seja o sistema fundamental de criação e significação do mundo – a base fundamental da cultura e da sociedade -, não ignoramos a existência de outras formas de linguagem, como a da matemática, a das artes, as gestuais, etc. Aliás, a linguagem corporal é parte constitutiva do processo de produção de nossas interações verbais. Quando falamos, fazemos gestos com as mãos, revelamos expressões faciais, por exemplo, franzindo as sobrancelhas quando não concordamos com o que nos dizem, etc. As expressões de nosso corpo estão em sintonia com o significado de nossas expressões linguísticas. Não franzimos as sobrancelhas ao mesmo tempo em que demonstramos verbalmente contentamento. Franzir as sobrancelhas pode sinalizar reprovação e é de esperar que se acompanhe de expressões linguísticas que demonstrem reprovação ou insatisfação.
O mundo humano é também um gigantesco acervo de conceitos e conhecimentos. Quanto mais palavras conhecemos, quanto mais conceitos conseguimos articular, maior será o nosso mundo, maior é a extensão e alcance de nossa consciência. A extensão de nossa linguagem é proporcional à extensão do conhecimento que temos do mundo.
Num segundo momento, devemos reconhecer que estamos ativamente envolvidos com o mundo; tanto o mundo como as coisas são então percebidos como dotados de significado em função desse envolvimento ativo. A objetividade do mundo deriva de nossa experiência subjetiva com ele. Essa experiência subjetiva é primária. Os nossos processos cognitivos têm por base mesma a percepção e nossas capacidades sensório-motoras. Nossa cognição resulta dessas capacidades e de nossas ações no mundo.
O Dasein é sempre um ser interessado no mundo. O significado das coisas deriva do nosso interesse nelas, e disso resulta o caráter de nosso envolvimento com elas. Naturalmente, nosso envolvimento com o mundo não é tão-somente intelectual ou teórico, mas também emocional, prático, estético, imaginário, etc.
Nossa experiência é sempre um mundo pleno de significados. O mundo que um indivíduo percebe é, em certo sentido, o seu próprio mundo, diferente do mundo percebido por outro indivíduo. Esse mundo próprio é um mundo significativo e os significados que têm são aqueles que o indivíduo percebe.
Uma vez que o mundo é o horizonte a partir do qual é possível a experiência humana, o mundo não se reduz ao meu próprio mundo. O mundo e as coisas que nele encontro têm uma propriedade que independe de meus desejos e de meus interesses, de modo que grande parte dos significados das coisas que nele se topam são significados que encontro no mundo. A ideia de mundo como totalidade de significados implica a assunção de que as coisas só ganham significado na sua relação com outras coisas e seus significados, no horizonte da totalidade do mundo.
Finalmente, o sujeito, que não existe senão no mundo e em sua relação ativa com o mundo, é sempre sujeito que age sobre o mundo e sofre dele uma ação. Esse sujeito não se identifica com uma consciência abstrata, mas é sujeito corporificado. A experiência que temos do mundo tem como base nosso corpo: o mundo não é só objeto de reflexão e de interpretação; é mundo que experimentamos com o corpo, ao qual respondemos subjetivamente com o corpo. Em última instância,  o mundo, antes de ser mundo que compreendemos, é mundo que sentimos.
Com vistas a compreender melhor a dimensão do abalo niilista, ponderemos, brevemente, sobre o significado de existir. Existir é, decerto, mais do que o viver biológico. Se os animais são, se a planta é ( em-si, segundo Sartre), o homem é ser para-si, ao que nós acrescentaríamos, ser-com. Existir é um movimento relacional com o sentido, que é seu fundamento. Para o homem, existir é estar consciente da relação com o em-si. A existência do para si (a consciência humana), dirá Sartre, é liberdade e transcendência, pois que nega sua facticidade tanto quanto os objetos. O homem existe sabendo o que não é. E a relação com o sentido é sempre de abertura para um além de sua facticidade, de sua condição natural. O sentido é lugar de transcendência do homem em relação a essa condição, que não pode negar completamente, é claro (não pode deixar de ser finito), mas que lhe permite continuar a existir na condição de ser-para-a-morte (Heidegger). Ora, se o Dasein é constitutivamente um ser-para-a-morte, se a morte é sua possibilidade mais autêntica, se essa condição é fonte de angústia, não pode o homem abrir mão do sentido, de existir tecendo sentido. Se existir é correr para a morte inevitável; se, como notara Durkheim, a sociedade é um bando de homens que caminha em direção à morte inevitável, o homem está condenado, ao longo dessa corrida, a produzir sentidos, a tecer de significados as malhas de sua existência.
Um exemplo extremamente interessante que ilustra a indispensabilidade do sentido para o existir humano é o fenômeno do suicídio.  É um truísmo dizer que somente os seres humanos são capazes de se suicidar, mas o que daí se segue tem importância filosófica. O homem é o único ser que, deliberadamente, pode dar cabo de sua própria vida e não deixa de ser espantoso, para muitas pessoas, que alguém que goze de perfeita saúde  possa se matar. É possível que as razões para explicar o suicídio variem bastante, mas vistas em conjunto, de uma perspectiva filosófica, elas indicam a percepção pelo indivíduo da absurdidade de sua existência. O suicídio também ajuda-nos a ver a importância da dimensão do sentido para a própria conservação da existência. O suicídio parece testemunhar em favor do fato de que, para o ser humano, a manutenção do viver é dependente de sua coerência simbólica. Pessoas se matam porque a vida deixou de fazer sentido para elas. O niilismo dilui o enraizamento ontológico do homem no mundo, de modo que o homem se sente existindo num vácuo que lhe inspira terror.
Tomemos, agora, a importância do anúncio da morte de Deus. Novamente é Cabral (p. 26) que nos adverte de que a questão da morte de Deus, longe de servir à caracterização definitiva do niilismo, constitui o caminho para a compreensão de suas raízes ontológicas.
É claro que o niilismo exibe um caráter histórico, mas apenas na medida em que marca a presentidade de um processo histórico. O niilismo não só é “um princípio constitutivo de nosso presente histórico”, como também “vigora como determinante do desdobramento de nosso tempo” (p. 27). O niilismo é estrutural, e o é porquanto não se reduz às suas manifestações culturais, mas “acomete o modo de determinação do mundo histórico que é o nosso” (p. 27).



2. O niilismo, segundo Heidegger

Heidegger se lançou à investigação fenomenológica do niilismo, tendo em vista a descrição de suas raízes históricas e mais profundas. Para tanto, situou sua análise no lugar de abertura do ser, na ‘clareira’ (Litchung) do próprio ser.  É este o lugar de abertura de revelação-ocultamento do ser ao homem, que caracteriza a história do pensamento ocidental.
O homem ocidental experiencia o ente que se lhe apresenta de diversas formas, ao longo do tempo: algo gerado pela natureza ou artefato, criação divina, coisa extensa, objeto, matéria submetida à análise, à prova e à pesquisa cientificamente orientada. Vê-se, pois, que o “ser do ente” é algo que se apresenta cada vez de um modo diferente.
Heidegger observa, no entanto, que o homem, cada vez em que se debruça sobre a compreensão do que são os entes em seu ser, ele transcende o plano dos entes. Essa transcendência é metafísica. A metafísica é, portanto, para o homem ocidental, o modo fundamental de compreensão do ser do ente. A metafísica acontece no “apresentar-se” do ente, de uma certa forma, ao homem que se ocupa de compreendê-lo.
Quando o ente é definitivamente compreendido e determinado num dado momento histórico, por exemplo, como vontade de poder ou como trabalho, quando o que mais importa é se apropriar do ente como fonte possível de energia como coisa a serviço do trabalho técnico-científico, a abertura originária do ente, isto é, seu ser suscetível de diferentes compreensões se fecha. Disso resulta não só o esquecimento do ser, como também o esquecimento desse esquecimento. É justamente essas duas formas de esquecimento que caracteriza, para Heidegger, o niilismo. O niilismo, na visão heideggeriana, é esta situação em que “não há mais nada” do ser – donde a necessidade premente de retomar a pergunta sobre a essência do ser.



3. A morte de Deus como imperativo histórico

Em primeiro lugar, é premente considerar a pergunta “o que é Deus, para Nietzsche?”. Para Nietzsche, Deus congrega em si diversos conceitos metafísicos tradicionais: o ser, o incondicional, o Bem, o verdadeiro, o perfeito. Deus, nesse sentido, dota o devir de um estrutura de sentido sob uma pluralidade de elementos aparentemente caóticos (p. 29). Mas Deus também representa o princípio que articula e determina as diversas ações humanas, mormente em razão da influência do pensamento medieval cristão. Segundo Cabral (ib.id.), “o conceito de Deus aparece também como sentido existencial para as ações e, assim, justifica o devir teórico e praticamente”.
O que sucedeu, então? O acontecimento histórico da morte de Deus acarretou no homem o sentimento de abandono, visto que esse acontecimento significou a dissolução da estrutura sólida de caráter metafísico-existencial (p. 29-30). Enfatize-se que Deus encerrava em si o princípio metafísico e o sentido último da existência. Daí se segue que Deus era o signo que permitia pensar o absoluto, ter acesso a ele. Deus também representava a instância de estruturação e normatização das ações e dos pensamentos. Sua morte, portanto, assinala o desmoronamento daquele sentido último estruturante da existência. Sua morte impede o acesso ao absoluto ou ao “em si”, já que estes não mais existem. O devir carece de fundamento ontológico, e as ações não mais encontram apoio em um sentido último e absoluto.

“(...) O acontecimento da morte de Deus, que nada mais é do que um imperativo histórico de nosso tempo, permite a abertura de um novo campo hermenêutico que se diferencia do pensamento metafísico, por não se desdobrar com vistas ao em si. Isso porque a morte de Deus deflagra, dentre outras coisas (...), a instabilidade da perpetuação das metanarrativas ocidentais, o que produz o descerramento de um horizonte interpretativo não mais marcado pelo gesto metafísico de busca por fundamentos últimos ou absolutos dos entes e do mundo” (Cabral, 2014, p. 30, grifos nossos).


É oportuno retomar aqui a concepção do sentido como algo em aberto com vistas a compreender o que se pode concluir dessa abertura de um novo campo hermenêutico que se distingue do pensamento metafísico. Ora, o pensamento metafísico opera sempre com base na crença na unicidade do sentido e no controle sobre o sentido. Esse pensamento, na sua modalidade religiosa, se estrutura num discurso autoritário, onde mais expressamente se manifesta a dominação pelo uso da palavra. Por outro lado, o campo hermenêutico que se abre, com o imperativo da morte de Deus, não é mais coagido por um “em si” que sustenta a unicidade do sentido. Sua abertura é, pois, um alargamento do horizonte de possibilidades de sentido.



4. O suicídio

Num horizonte pessimista, o suicídio aparece como uma questão premente. Afinal, é razoável supor que um pessimismo exacerbado pode culminar com a própria negação da vida num domínio não mais teórico, mas prático. Camus – é oportuno lembrar – foi assertivo ao considerar o suicídio, em seu O Mito de Sísifo (2009).  Logo de início, ele escreve: “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia” (p. 17). De modo algum, estamos a sugerir que todo pessimismo filosófico traz em germe o desejo pela consumação do suicídio, tampouco que os filósofos denominados de pessimistas recomendam como solução última para o drama da existência, para a absurdidade do homem, o suicídio. Notemos que Schopenhauer afirma ser o suicídio um ato insensato. Vale acompanhar a posição de Schopenhauer nesse tocante, a qual será apresentada aqui de modo bastante esquemático. Para Schopenhauer, o suicídio é o aniquilamento do indivíduo, enquanto fenômeno, e não da vontade. O que se nega no suicídio não são os males da vida, mas sim as alegrias. O suicida deseja a vida, quer a vida. Sua insatisfação não decorre senão das contradições de que está impregnada a vida. Prossegue Schopenhauer, argumentando que, ao destruir o corpo, o suicida renuncia à vida, sem jamais negar o querer-viver. O suicida deseja a vida e até aceitaria a existência, se ela não fosse continuamente marcada por circunstâncias infelizes e penosas.
Ocorre que o suicídio – e aqui reside um aspecto importante para a nossa argumentação – se nos revela a contradição do querer-viver consigo mesmo. No grau mais elevado da objetivação da vontade, isto é, no indivíduo humano, essa contradição se manifesta com uma força poderosa: o indivíduo declara guerra contra si mesmo; ele quer ardorosamente a vida ao mesmo tempo em que, com ímpeto, se lança à tarefa de remover as adversidades; mas a vontade individual prefere suprimir o corpo a deixar-se sucumbir à dor. Schopenhauer concluirá dando-nos a conhecer a seguinte condição paradoxal: o suicida cessa de viver porque não pode deixar de querer. Não interessa nos deter nas consequências envolvidas na tentativa de Schopenhauer rejeitar o suicídio como solução para a dor de existir. Parece-nos, em todo caso, que Schopenhauer desloca o problema do suicídio da dramaticidade da existência individual (diríamos, com Merleau-Ponty, da corporeidade do vivido) para o domínio do em-si indestrutível e abstrato, de uma Vontade que não carece nunca de fenômenos. Schopenhauer parece recomendar uma resignação do indivíduo à essência da vontade, que é a dor, como um caminho para a salvação que deseja e que, ao contrário do que crê, não alcançaria com a morte, pois esta, eliminando o fenômeno, permite que a Vontade se afirme. A necessidade acompanha o aparecimento da vontade, e o indivíduo é impotente para suprimi-la, e ilude-se ao supor que o faz pondo termo a sua vida corporal. Há uma série de pressupostos que, forçosamente, silenciamos, como, por exemplo, o de que, para Schopenhauer, a morte não é aniquilação, o de que o suicídio não nos oferece o não-ser, o de que o suicídio constitui ele mesmo um obstáculo à redenção, etc.
É preciso abandonar, no entanto, o curso dessas reflexões para assinalar o que, deveras, concerne à nossa argumentação: no horizonte do pessimismo filosófico, a problematicidade do suicídio parece suscitar a necessidade da consideração da reinscrição do sagrado como uma presença silenciosa que desencoraja a consumação desse ato ao qual a vida debilitada no desespero se inclina. Faz-se mister uma observação aqui: acreditamos poder encontrar em Kierkegaard – como esperamos fique claro mais adiante – um terreno seguro em que nos movimentaremos para pensar a questão do desespero; mas, na medida em que a questão da reinscrição do sagrado deverá ser pensada à luz de uma filosofia do desespero que não se orienta por nenhuma promessa metafísica, ou melhor, de uma filosofia em cujo horizonte desapareceu o lugar de Outro transcendente que responde pelo sentido último, segue-se daí que o desespero deverá ser interpretado como desesperança, isto é, como perda profunda e irremediável de qualquer esperança numa redenção por uma transcendência. O estado de desespero é, portanto, aquele experienciado por quem já não aguarda, não espera nada mais além do real, por quem orienta sua vida unicamente pela imanência. O desespero, quando consumado, pode, no entanto, ser alegre e ativo (ativo porque liberta o homem da passividade suposta na esperança). Estamos, neste momento, pensando com Spinoza, ao definir a alegria, em sua Ética (2011: 141), como “a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior”. Trata-se de encaminhar uma reflexão sobre o desespero em que ele se revele não como mera perda e abandono, mas como estado em que o homem, não sem esforço, não sem enfrentamento de si mesmo, quer realizar a sua perfeição. Esse estado de perfeição, Spinoza chamou de beatitude (p. 232).
Diferentemente do que sucede em Kierkegaard, em cujo pensamento ainda se vê Deus como a instância ontológica responsável pela origem do sentido existencial em relação à qual o homem se esforça por realizar a síntese entre o finito (corpo) e a alma (infinta), em Cioran, essa instância dá lugar ao Nada. Cioran pergunta-se sobre o modo como pode encontrar sentido em seus tormentos, o que sugere que o sentido pudesse de algum modo ser descoberto nas regiões desérticas e aterradoras do seu ser. A intuição do Nada e a evidência do sofrimento elidem a possibilidade do sentido. O sentido se põe então como um problema para a existência desesperada: não se trata mais de buscar sentido, esperar um sentido já posto, mas de produzi-lo, construí-lo. É o homem (o indivíduo humano) que precisa construir sentido em face de um universo indiferente, infinito e escuro. Do que se expôs até aqui, segue-se a urgência da questão: o que há na condição humana desesperada que a move em seu desespero? O que a faz, apesar do desespero, prosseguir em sua marcha, de resto, absurda? A nossa hipótese nos encaminha à busca por uma resposta mediante a especulação sobre a reinscrição do sagrado.





[1] Este texto é parte do miniprojeto Niilismo e Teofania: a reinscrição do sagrado na filosofia do desespero : uma abordagem de Kierkegaard e Cioran, submetido à FAPERJ como requisito para obtenção de uma bolsa de iniciação à pesquisa (UERJ).
[2] CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o deus não-cristão, vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014.
 [3] LYTOARD, J.F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 2008.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

"Toda existência é trágica na medida em que ela é vivida antes de ser pensada" (Rosset)

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             O trágico como anticonceito filosófico
            Prelúdios de uma sabedoria trágica


Explicar, do latim explicare (‘tornar inteligível’, ‘interpretar’, ‘justificar’) – esta é a tarefa a que me devoto com o intento de oferecer-me não só a oportunidade de alguma fruição de prazer mais gratificante, porque prolongado, como também reanimar o diálogo, prematuramente interrompido, com um colega que, tanto quanto eu, aprecia o curso criativo das conversações filosóficas.  É imprescindível dizer que este meu texto não pretende ser expressão de qualquer ensinamento. Cuido-me capaz de ensinar alguma coisa apenas na área do conhecimento em que me especializei e em que, portanto, obtive uma competência satisfatória. Não obstante, nesse domínio, estou continuamente aprendendo, visto que, no exercício do ensino, há sempre aprendizagem. Segue-se daí que ensinar é aprender não só o conteúdo ensinável, mas também aprender a ensinar o que é passível de ser ensinado.
Estando claro que nada posso ensinar, no domínio da filosofia (sobretudo, porque a filosofia não é ensinável), espero, portanto, que meu principal interlocutor, ao dar-se o trabalho de ler este texto, tome-o como um espaço necessariamente dialógico. Com a produção deste texto, ao longo da qual pretendo explicar minha escolha filosófica – meu modo de viver – espero descerrar um horizonte à luz do qual diálogos ulteriores possam ser possíveis e fecundos.
O momento em que se deu o estancamento do fio dialógico que dava consistência ao intercurso de nossas reflexões foi justamente o momento em que meu interlocutor rejeitou o caráter trágico da existência. A conversa foi entabulada com o meu interesse de consultar meu interlocutor sobre o proveito do exercício filosófico. Toda resposta que se elabore na tentativa de demonstrar que há algum valor neste exercício, ou que dele se pode extrair um proveito que não encontra par em qualquer outra forma de reflexão/ atividade pressupõe uma concepção do que é filosofia. A questão “o que é filosofia” é ela mesma problematizada pela própria filosofia; e são inúmeras as respostas oferecidas a ela. E todo aquele que se aproxima da filosofia, que a ela dedica seu tempo e sua atenção, terá, mais cedo ou mais tarde, de prestar esclarecimentos sobre o que entende por filosofia. Quero dizer que o exercício filosófico começa por uma compreensão das respostas oferecidas pela tradição à questão “o que é filosofia” num processo que envolve discussão das respostas e adoção por parte do iniciado na filosofia de uma concepção de filosofia (que não significa, necessariamente, mera apropriação) com base na qual uma forma de elaboração de pensamento filosófico que lhe seja própria possa ser trazida à luz.
Parece-me que é parte da maturidade filosófica de quem exercita a filosofia e se exercita, enquanto existente, na filosofia, a escolha de uma orientação filosófica que melhor testemunhará seu modo de viver. O filósofo não é apenas aquele que pensa e constrói sistemas; mas é, em essência, aquele que sabe viver e morrer em consonância com o seu sistema. Por conseguinte, o exercício da reflexão filosófica, a atividade própria do filósofo, se caracteriza, fundamentalmente, por uma perfeita harmonia entre o seu sistema de ideias e seu sistema de vida. Para os antigos, a filosofia é um modo de ser, uma escolha de vida. Originalmente, portanto, a filosofia é uma prática de vida destinada a cunhar modos de ser. Aos colegas que junto a mim se dedicam ao estudo acadêmico da filosofia, faço, pois, um apelo para que não se esqueçam jamais do vínculo necessário entre filosofia e modo de viver, para que, atendendo à recomendação de Aristóteles, experienciem a atividade filosófica como um exercício que se deve estender por toda a vida. Apelo, finalmente, para que não duvidem, por um instante sequer, de que a prática da filosofia visa à transformação radical do eu de quem a ela se dedica; no exercício filosófico, não só nossa visão de mundo se transforma, mas também é nossa personalidade que se metamorfoseia.
Evidentemente, a escolha a que não se deve esquivar aquele que pretende viver uma vida filosófica não é possível senão depois do contato com certo conjunto de orientações filosóficas. O contato com essas diversas orientações filosóficas é parte do estudo acadêmico da filosofia. Os estudantes de filosofia só poderão (talvez a maioria) escolher a orientação que melhor expressa uma coerência com seu modo de viver após ter entrado em contato com as diversas orientações filosóficas ao longo do curso de filosofia. Não só após o contato com elas; mas, sobretudo, após o convívio aturado com elas fora da sala de aula.
A escolha de uma orientação filosófica por quem se dedica ao exercício da filosofia constitui uma questão cujos desdobramentos interessam à própria filosofia. Sua pertinência deverá ficar aqui, no entanto, apenas sugerida e ensombrecida, porquanto não é sobre ela que estendo minha preocupação neste texto. Malgrado a necessidade de abandonar a questão, neste estágio de minhas reflexões, não posso silenciar sobre o fato de que meu encontro com a filosofia, que se deu há dez anos, quando do ingresso no mestrado em Estudos da Linguagem na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), foi e continua sendo profundamente marcado pelo lugar de tangência entre a filosofia trágica e a filosofia pessimista.
No esforço por reinstituir um espaço dialógico com meu interlocutor, devo preveni-lo de que a exposição que faço do tema do trágico como elemento caracterizador de uma orientação filosófica, denominada de filosofia trágica se desenvolverá não sem fraturas no tratamento das questões implicadas na compreensão da filosofia trágica. Ademais, a cada vez em que dou um investimento verbal à abordagem do tema, instauram-se, por força da natureza da linguagem, espaços de silenciamentos. Tal é a condição fundante da própria possibilidade de haver sentidos. Por maior que seja a extensão de um texto, por mais exaustivo que seja o tratamento dispensado a um objeto de pensamento, jamais é possível esgotar as possibilidades de dizer, de significar, de produzir sentidos. Será forçoso esclarecer a questão da significatividade do silêncio, por ora, apenas entrevista ao me referir à condição fundante da possibilidade de sentidos. O tema as formas do silêncio é desenvolvido no interior dos estudos da Análise do Discurso pela analista do discurso brasileira Eni Pucinelli Orlandi. Não obstante a limitação ao domínio do discurso, o modo como o tema se desenvolve mobiliza um exercício de pensamento claramente filosófico. Não reside nisso, contudo, o meu interesse por considerá-lo; se o faço, é porque pretendo demonstrar quão ilusória a crença em que, ao dizer, esgotamos as possibilidades de outros dizeres, de outros sentidos. Terminada esta etapa de minha exposição, atacarei o problema que consiste em precisar o que se entende por trágico quando se defende, filosoficamente, a posição segundo a qual a condição de todo ente, particularmente e de modo especial, do ente humano é uma condição trágica. A discussão desse problema envolverá a necessidade de definir a extensão semântica da palavra trágico e a de esclarecer o que faz de um pensamento filosófico um pensamento trágico. Creio em que a suspensão do diálogo com meu colega e interlocutor se deveu menos ao fato de ele ter rejeitado ser a existência constitutivamente trágica do que à suposição nossa de que estávamos de acordo no tocante ao significado da palavra trágico no contexto de nosso diálogo. Não só ele parecia assumir, de antemão, o conteúdo semântico de trágico, como também eu não dispunha das condições necessárias para iluminá-lo, para o que seria indispensável fazer alguma digressão que, possivelmente, nos distanciaria do escopo de nossas reflexões. Numa conversa informal, tal digressão não teria como consequência senão estorvar os próprios participantes.

1. As formas do silêncio

Todo dizer é expressão de uma relação necessária com o não-dizer. Há uma dimensão de silêncio que remete ao caráter da incompletude da linguagem. A incompletude da linguagem se prende ao reconhecimento:
a) da errância dos sentidos (a sua migração);
b) da vontade de um (da unidade, do sentido fixo); do lugar do non sense, o equívoco.

A incompletude da linguagem é o lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível. Portanto, a errância dos sentidos, a vontade de unidade, do sentido fixo, o lugar do non sense, o equívoco e a própria incompletude da linguagem (para a qual voltarei olhares mais adiante, a fim defini-la melhor) estão no cerne do funcionamento da linguagem.
Em seu As formas do silêncio (2007), Orlandi escreve: “As palavras transpiram silêncio” (p. 12). Há, pois, silêncio nas palavras. O silêncio é fundante: ele funda a possibilidade de sentido. O silêncio é um lugar de recuo onde se pode significar, a partir do qual o sentido faz sentido. Novamente, ouçamos Orlandi:

“O silêncio como horizonte, como imanência do sentido (...) aponta-nos que o fora da linguagem não é o nada mas ainda sentido” (p. 13).


O silêncio, pensado em sua historicidade constitutiva, não é ausência de som, mas é um acontecimento que atravessa as palavras, que existe entre elas, que indica que o sentido pode ser sempre outro. As palavras produzem silêncio; o silêncio “fala”; as palavras silenciam (p. 14).
O silêncio garante o movimento de sentidos. Dizemos sempre a partir do silêncio. Cada palavra enunciada “apaga” necessariamente outras palavras. Isso se dá porque o silêncio também é constitutivo do dizer. Assim, observa Orlandi

“O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à interpretação: tudo tem de fazer sentido (qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico” (p. 29-30).


Portanto, o silêncio não é falta. A linguagem é excesso. O silêncio não fala simplesmente; ele significa. No silêncio, o sentido é. (p. 32).

“A linguagem é conjunção significante da existência e é produzida pelo homem para domesticar a significação” (ib.id.).


O silêncio é disperso, e a fala o segmenta, o estrutura. O silêncio é o que torna possível a significação, todo dizer. O silêncio é presença, é “o elemento místico” (Wittgenstein). O sentido do silêncio não deriva do sentido das palavras. Nem o sentido, nem a linguagem são transparentes.
Não se pode não significar. O silêncio se relaciona, necessariamente, com a significação, e a linguagem é o movimento incessante das palavras para o silêncio e do silêncio para as palavras. É necessário insistir em que as palavras estão carregadas de silêncio. Por um lado, não podemos suprimir das palavras o silêncio; por outro lado, não podemos recuperar o silêncio só pela verbalização.
Por fim, retomando-se a noção de incompletude da linguagem, reitere-se que a incompletude é uma característica fundamental da linguagem. O fenômeno da incompletude da linguagem recobre a) o fato de serem diversas as formas de manifestação da linguagem; b) o fato de que o sentido está sempre em aberto; c) o fato de que o texto é multifuncional enquanto objeto simbólico. A incompletude repousa no fato de que o dizer é aberto. A crença numa “palavra final” é efeito de uma ilusão. O dizer não tem um início verificável; e o sentido toma múltiplas direções; está sempre em curso. A incompletude da linguagem decorre, portanto, do fato de que a própria linguagem é categorização dos sentidos do silêncio; é um modo de domesticá-los.
A linguagem também é opaca. A opacidade da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem interpretação. A opacidade ou não-transparência da linguagem consiste também na propriedade de o sentido poder ser sempre outro.
Tendo em vista o exposto, ao procurar aqui dizer o trágico jamais posso ter a pretensão de dizer tudo. Ademais, estando eu preocupado  tão-só em fixar-lhe um horizonte semântico mais preciso, a consideração que dele farei será marcada por fraturas, por rupturas, por saltos que se evitariam num tratamento que se pretendesse minucioso e articulado.

2. O filósofo trágico não é um pessimista

Filósofos como Lucrécio, Montaigne, Pascal e Nietzsche são reconhecidos como filósofos trágicos. A primeira questão que se nos apresenta ao sugerir a possibilidade de uma filosofia trágica consiste em definir o que significa tragédia. Sabe-se que tragédia é um gênero de expressão artística, particularmente marcante na história do teatro. No domínio da arte, a tragédia, segundo alguns teóricos, não recobre apenas adversidades, sofrimentos, iniqüidades, mas, principalmente, uma corajosa resistência ao destino. A tragédia deve, pois, expressar a reação a um evento, e não apenas o evento fatídico em si. Para alguns teóricos, a tragédia começa com a arte, que a vida imita. Com o tempo, o significado da tragédia foi estendido do domínio da arte para a vida, restando aqui um eco da arte, o qual foi silenciado quando a tragédia passou a caracterizar o modo de configuração da própria vida. Atualmente, para a maioria das pessoas, tragédia significa uma ocorrência da vida, caracterizada por dor, sofrimento, infelicidade injustificáveis. Isso, no entanto, não impede vários teóricos de argumentar que, na vida real, não existe tragédia, com base no pressuposto, deveras criticável, segundo o qual, na tragédia, enquanto manifestação artística, é sempre possível revelar o valor que a destruição libera. Segunda essa perspectiva, o sofrimento da vida real é passivo, horrível e indigno; ao contrário, na arte trágica, o sofrimento traz o selo do esplendor heróico da resistência, razão por que a arte é dotada de uma gratificação que falta à vida. Essa perspectiva buscará nos convencer, por exemplo, de que o Holocausto não foi uma tragédia, mas a morte da tragédia. No entanto, assentada na crença de que a tragédia se define por uma resistência heróica às condições adversas, essa perspectiva trai a si mesma, no momento em que não reconhece o fato de que houve uma heróica resistência de alguns judeus ao nazismo; além disso, certamente, muitas pessoas lutam bravamente contra enchentes, doenças, invalidez, genocídio, etc.
Não se pode ignorar o fato de que, a despeito da discrepância entre a tragédia como arte e a tragédia como modo de configuração da vida, grande parte das obras de arte trágica se construiu por meio da suposição segundo a qual a tragédia parece ser uma experiência real e não meramente um fenômeno estético.
Também não devemos perder de vista o fato de que a tragédia, de Hegel a Nietzsche, migrou para a especulação teórica. Desde então, a tragédia passou a ser uma Ideia majestosa, uma forma de contrailuminismo, uma teodiceia, mais do que uma questão de suplicio e aflição.
Na visão trágica de Nietzsche, por exemplo, o mundo é, essencialmente, caótico, ilegível, e o conhecimento trágico necessita da arte para tornar tolerável a própria existência. Esse conhecimento trágico supõe a percepção de que o mundo é desprovido de significado. No respeitante a Pascal, sua crítica ao racionalismo não é uma crítica à razão. Pascal não estava preocupado em denunciar os limites da razão. Na verdade, a crítica ao racionalismo levada a efeito por ele se orientou pelo interesse de fazer ver que o racionalismo deve sua impotência àquilo que se oferece à razão. O que se oferece à razão é, nota Pascal, irremediavelmente indiferente. Não se trata, portanto, para Pascal, de denunciar uma suposta fraqueza da razão, mas de demonstrar que o objeto da razão não é cognoscível. A razão, assim, está apta a conhecer, mas não se lhe apresenta nada para conhecer. A razão não pode pensar como uma natureza a existência, porque esta é uma não-natureza. Natureza aqui designa a constituição do ser cuja existência não resulta nem do acaso, nem da vontade humana. Natureza supõe uma totalidade ordenada. Pascal nega que haja tal totalidade ordenada; para ele, a existência não abriga qualquer razão oculta (lógos), nenhuma estrutura secreta, nenhum princípio do diverso inacessível ao conhecimento humano, em virtude de supostos limites da razão. À luz de tal perspectiva, nem as “verdades” nem os “erros” conduzem a alguma grande consequência filosófica. No tangente às primeiras, elas só acrescentam fatos a fatos; os erros, por sua vez, não estorvam nenhuma verdade. No seu livro Lógica do pior (1989), assinala Rosset:

“Se se busca o que resta de trágico nos cem mil mortos de Hiroxima após a intervenção da interpretação histórica, sociológica, política, militar, que resta? Cem mil mortos, ou seja, um morto como todos os mortos, algo de banal, de cotidiano, de silencioso, enfim, de trágico – desse trágico ao qual o espetáculo das maçãs no jardim convida já, de maneira mais imediata e simples. A morte em si mesma não é a priori trágica: não mais, em todo caso, do que a vida nem do que quer que seja, desde que esse algo resista à interpretação” (p. 65-66).


Esse trecho deve nos levar à compreensão de que o trágico está, por um lado, em toda parte, impregna a cotidianidade; e, por outro lado, é o próprio silêncio, ou seja, resiste a qualquer tentativa de interpretação. Ao se passar do silêncio para o pensamento do trágico, faz-se falar o trágico pela impossibilidade de interpretá-lo.
Considere-se a asserção que constitui o título desta seção: o filósofo trágico não é um pessimista.  É necessário reconhecer duas diferenças básicas entre uma filosofia trágica e uma filosofia pessimista. A primeira diferença diz respeito à suposição de que há “algo” (uma natureza ou o ser). O pessimista supõe que existe algo do qual afirma o caráter insatisfatório. O pessimismo filosófico baseia-se na afirmação do pior, a partir da suposição de uma certa ordem (natureza), de um certo sentido, cujo caráter incoerente não cessa de demonstrar. Para o filósofo pessimista, há uma totalidade ordenada que não pode ser legitimada. Há ordem, mas não há um “ordenador”. Donde se segue que a filosofia do “dado” (a filosofia pessimista) culmina com uma filosofia do absurdo.
Sabe-se que Schopenhauer, sendo um expoente da filosofia pessimista, procurou pensar o mundo por meio da postulação de um “dado”, que chamou de Vontade – uma Vontade cega, ilusória, repetindo-se mecanicamente. Embora desprovida de propósito, a Vontade permite superar o caos do mundo, a fim de lhe revelar sua ordem. Isso significa afastar do horizonte hermenêutico da filosofia pessimista o princípio do acaso.
O pensamento trágico, por sua vez, mantém que o que existe carece de “natureza”, de “ordem”, não é nem ser, nem objeto adequado de pensamento. Na filosofia trágica, não há a condição de possibilidade dos acontecimentos. Só há encontros, ocasiões, que não pressupõem jamais o recurso a qualquer princípio que transcende as perspectivas trágicas da inércia e do acaso. Por conseguinte, a filosofia do trágico é uma filosofia do acaso. O pensamento trágico afirma a insignificância radical de tudo que acontece. Aliás, o pensamento de Pascal, se examinado até as últimas consequências nos levará a uma verdade que se impõe irrecusável – “não sou um ser necessário”. Dizer que não sou um ser necessário significa reconhecer que eu, enquanto existente, poderia nunca ter existido. Em outras palavras, a minha existência não tem uma necessidade que me impede de sentir que eu poderia não ter existido. Não sou um ser necessário afirma correlativamente sou um ser contingente.
Cumpre ainda dizer – e, fazendo-o, silencio muita coisa -, que o pensamento trágico é aprobatório, embora não deixe de considerar o seu contrário, que é o suicídio. Aqui está a segunda diferença entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista: o pensamento trágico assente à existência; o pessimista, por outro lado, reconhecendo que a ordenação do mundo é má, não pode aprovar a existência.
A aprovação é o único ato disponível ao sujeito da ação, isto é, ao homem. Ou ele se solidariza com a sua viagem à semelhança de um passageiro de avião de uma grande empresa aérea, que não tem acesso aos comandos da direção (Pascal), ou a recusa pelo suicídio. No pensamento trágico, a aprovação é um privilégio justamente por seu caráter incompreensível e injustificável. O homem não carece de nada; e toda a alegria de viver é irracional. Essa alegria é experienciada no cotidiano sem que seja possível justificá-la. O homem é excesso; por isso o espanto do filósofo trágico: seu maravilhamento na alegria e na dor.
Não se deve estabelecer uma distinção absoluta entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista, se consideramos que tanto o primeiro quanto o segundo são duas lógicas do pior. Mas a lógica do pior de que é expressão o pensamento pessimista não tem relação com o pior da lógica trágica. No pensamento trágico, afirma-se a impossibilidade de um dado enquanto natureza constituída; no pensamento pessimista, há uma ordem já dada, reconhecida.
A título de conclusão, sem pressupor, no entanto, que esteja suficientemente esclarecida a significatividade da visão trágica da existência, insisto em que a verdade a que nos quer conduzir o pensamento trágico consiste em ver o mundo como obra do acaso ou do destino. Sendo obra do acaso, o mundo carece de uma natureza, isto é, de um princípio estruturador, ordenador, e a vida não é mais que um derivado, entre outros, da realidade fundamental da morte. É oportuno tornar clara uma relação que, embora aparentemente inusitada, elucida o horizonte a partir do qual o “drama ontológico” revelado pelo pensamento trágico é constitutivo da ideia de trágico. Trata-se de evidenciar a relação entre a festa e o trágico.
Em certo sentido, a relação entre a festa e o trágico pode ser estabelecida pelo fato de o pensamento trágico ser uma experiência filosófica de aprovação em função de uma busca do pior.  Ademais, essa relação se torna possível quando levamos em conta o acaso como regra de exceção e princípio da festa (Rosset, 1989, p. 129). Já no sentido que toca à constituição da própria lógica do pior, de que é expressão o pensamento trágico, a relação entre o trágico e a festa pode ser estabelecida se compreendemos que, sendo o mundo obra do acaso, se, por isso mesmo, o mundo carece de uma “natureza” (ou ser, essência), resta-nos senão viver num estado de indiferença em relação a tudo o que acontece e existe. Essa indiferença, contudo, não é a indiferença do tédio, estado em que esperamos o acaso com certeza, mas a indiferença que consiste em nada esperar, já que tudo é acaso. Indiferença da festa, portanto – se tudo é acaso, o mundo é uma festa. O mundo da festa é o mundo da exceção (ausência de regras ontologicamente fixadas). Nele, o acaso sobrevém sempre. Nele, o que acontece, o que existe apresenta as características da festa: irrupções inesperadas, excepcionais, irreproduzíveis; ocasiões que se apresentam uma única vez, num lugar e para uma pessoa. Ensinamento trágico: teoria do kairós (o tempo oportuno). Tudo que acontece deve ser apreendido no único momento possível. Cada instante vivido tem as características do jogo, da festa, do júbilo.
O pensamento trágico, como vimos, rejeitando a ideia de natureza, afirma ser o mundo obra do acaso. O acaso que tem em vista o pensamento trágico é o acaso original ou constituinte. O acaso é original porque recusa a ideia de natureza na origem de sua possibilidade, isto é, nesse caso, recusa a existência de uma natureza, a saber, uma totalidade ordenada, da qual irromperia, num tempo e lugar determinados, o acaso; ele é constituinte, porque é origem produtora de tudo que pode acontecer e que se reconhece sob o nome de natureza. O acaso original, portanto, é anterior a todas as formas de existência e impregna todo o modo de configuração vital.




sexta-feira, 31 de julho de 2015

"Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz." (Epicuro)

                 
                        


                  Epicurismo e sua ética hedonista[1]

"Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo enquanto velho, porque ninguém é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz"
(Epicuro - Carta a Meneceu)


1. O prazer (hedoné)

O epicursismo[4] é a doutrina filosófica, cujo fundador foi o filósofo grego atomista Epicuro (341-270 a.C.), nascido em Samos, e que preconiza, no âmbito da moral, ser o bem o prazer, isto é, a satisfação de nossos desejos e impulsos de forma moderada. Foi justamente por fundar sua moral no prazer que Epicuro foi acusado por seus contemporâneos e pela posteridade de defensor da volúpia. No entanto, o próprio Epicuro não descurou de advertir que se deve buscar os prazeres moderados, afastando aqueles que não são nem naturais nem necessários.
Segundo Epicuro, o prazer é o soberano bem; e a dor, o soberano mal. A busca do prazer deve levar à ataraxia[5], isto é, ao estado de impertubabilidade da alma, pela supressão da dor. O prazer é o começo e o fim da vida feliz; e o prazer e a dor ensinam-nos o que devemos procurar e o que é necessário que evitemos. O bem viver, na visão de Epicuro, consiste em saber gerir bem os prazeres.
O prazer é o princípio da vida feliz, porquanto é o primeiro bem conforme à natureza e, por isso, é com base nele que usufruímos ou rejeitamos as coisas, em consonância com a sensação. O prazer é o fim, porque é desejado por si mesmo; é o prazer o bem que dá sentido a todos os bens.
A ética epicurista funda-se sobre a regra que consiste na busca do prazer e na necessidade de escapar a toda dor do corpo e a toda perturbação da alma. O caminho pelo qual alcançamos a eudaimonia, a vida feliz, envolve duas exigências: a ausência de dor e a ausência de perturbação na alma.
O prazer é o sumo bem, pois que a ele todos os seres vivos tendem, desde o nascimento. Todos os seres vivos buscam o prazer e se esforçam para escapar à dor por meio de uma inclinação natural. O prazer é um estado que envolve a carne[6] e é reclamado por ela. É necessário libertar a carne do sofrimento, a fim de que o prazer seja alcançado. Ao prazer se subordinam todos os valores e todos os bens espirituais. O prazer não é um estado passageiro ou fugaz, mas um estado permanente que supõe o equilíbrio das partes do corpo; é o estado que experimenta um corpo com saúde.
Uma vez que o prazer deve estar em conformidade com a Natureza (phýsis) e que sua busca é conforme à nossa natureza, todo prazer é rigorosamente físico, de sorte que os prazeres espirituais também o são, sobretudo porque, no epicurismo, a alma é dotada de corporeidade, conforme atesta o seguinte fragmento de Epicuro:

A alma é corpórea, composta de partículas sutis, difusa por toda estrutura corporal, muito semelhante a um sopro que contenha uma mistura de calor, semelhante um pouco a um e um pouco a outro, e também muito diferente deles pela sutileza das partículas, e também por este lado capaz de sentir-se mais em harmonia com o resto do organismo.[7]


Do trecho supracitado, não é custoso depreender que a física epicurista não admite a separação entre alma e corpo. Não só a alma é corpórea, como também há uma integralidade da alma com o corpo. A alma permeia toda a estrutura corporal. A alma traz em si a causa principal das sensações, mas estas não seriam possíveis se não estivessem integradas ao resto do organismo. Dessa integração resulta que, deteriorando o corpo, a alma também se dissolve.
Que as considerações precedentes não nos induzam a um erro que, de todo modo, parece ter-se consagrado na posteridade, qual seja, o que decorre da crença de que Epicuro pense ser todo e qualquer prazer um bem. O excerto a seguir, conquanto encerre o postulado básico da ética epicurista, suscitando-nos a crença verdadeira de que a vida feliz depende da busca do prazer, nem por isso deixa de nos advertir de que essa busca envolve um critério.

Chamamos ao prazer princípio e fim da vida feliz. Com efeito, sabemos que é o primeiro bem, o bem inato, e que dele derivamos toda a escolha ou recusa e chegamos a ele valorizando todo bem com critério do efeito que nos produz.[8]


Epicuro proíbe-nos de escolher todo e qualquer prazer, porque há prazeres pelos quais sofremos “maiores pesares”[9]. É necessário distinguir entre o prazer estável ou em repouso e o prazer em movimento. Os prazeres em movimento podem ser bons, como os que se experimentam na saciedade da sede e da fome, na proteção contra o frio, etc. Sucede, todavia, que esses prazeres precisam ser renovados, porque eles são movidos por carências que não cessamos de sofrer. Como, continuamente, sentimos fome, sede e frio, continuamente necessitamos do prazer sobrevindo à supressão dessas sensações.
Por outro lado, o prazer em repouso, porquanto não decorre de carências, é sempre experimentado sem a afecção prévia da dor, do sofrimento ou da perda. Por conseguinte, o verdadeiro prazer reside na serenidade ou tranquilidade da alma e do corpo.
No fragmento seguinte, colhido de Carta a Meneceu (2002, p. 39), Epicuro não só rejeita a possibilidade de escolher qualquer prazer, mas também nos lembra que, não raro, preferimos certos sofrimentos aos prazeres, sempre que àqueles sobrevêm prazeres maiores.

Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advém efeitos os mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem sempre ser evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal, ao contrário, um mal como se fosse um bem. (grifo nosso).


Esse trecho reclama alguns comentários, os quais, elucidando-o, assentam o terreno em que se situará o objeto de nossas próximas considerações. Urge notar, em primeiro lugar, que a natureza é sempre a medida para a determinação do que é bom e do que é mau. Os prazeres são um bem, porque todos os seres vivos tendem naturalmente a ele; a dor, por seu turno, é um mal, porque todos os seres vivos tendem naturalmente a esquivar-se dela. Não obstante, a qualidade dos prazeres pode variar segundo as circunstâncias, o que nos demanda a capacidade de avaliação que nos orienta na escolha daqueles prazeres que não carreiam dor futura. Analogamente, ainda que dores e sofrimentos sejam, naturalmente, um mal, ocasiões há em que devemos escolher suportá-los, se, após ponderação, ficarmos convencidos de que isso nos acarretará maiores prazeres.
Acresce-se, em segundo lugar, que, muitas vezes, deixamo-nos seduzir por coisas que se apresentam como um bem, perdendo de vista o mal maior que dele se seguirá. Isso se dá por nos deixarmos ceder à credulidade, à superstição e à ignorância. Cumpre-nos, na próxima seção, mostrar como a alma avalia os prazeres.

2. A avaliação dos prazeres pela distinção entre os desejos

Segundo Epicuro, a alma avalia os prazeres distinguindo, entre os desejos, aqueles que são naturais daqueles que, não sendo naturais, estão calcados sobre vãs opiniões. Acresça-se que, entre os desejos naturais, há os que são necessários à felicidade; outros, à própria vida; e os que, embora naturais, não são necessários para atingir as duas finalidades.
Constituem desejos naturais e necessários uma alimentação sóbria, uma habitação, uma veste que nos proteja contra o frio ou o calor, etc. Por outro lado, são desejos naturais não necessários os que variam os prazeres mediante a variedade da alimentação, da bebida, do vestuário, etc. Segundo Epicuro, tais desejos podem tornar-se imoderados muito facilmente, donde se segue a necessidade de disciplina constante para moderá-los. Por isso, a felicidade e a bem-aventurança dependem da ausência de dor e da moderação nos afetos. Epicuro é explícito ao rejeitar estar na posse das riquezas e na abundância das coisas, ou mesmo na obtenção de cargos e do poder, a felicidade; e igualmente claro é ao advertir os “incautos”, que insistiam em distorcer sua doutrina, de que eles estavam equivocados. Pode-se ler sobre as referidas rejeição e advertência no que se segue:

Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-se aos prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como crêem certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não nos compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma.[10]


Há que considerar, finalmente, os desejos não naturais e não necessários, que surgem de nossas vãs opiniões. Assim, acreditamos que o prazer se acha na riqueza ostensiva, na fama, na glória, na posse de poder. Para Epicuro, essa crença errônea se acompanha do medo e da perturbação: aquele que ostenta sua riqueza teme perdê-la; aquele que não a possui teme não conseguir obtê-la. No primeiro caso, o indivíduo se perturba com a possibilidade de se ver privado do prazer que acredita estar na posse da riqueza; no segundo caso, perturba-se por não conseguir usufruir o prazer que acredita haver nessa posse.
Consoante mantém Epicuro, a frugalidade dos desejos naturais necessários garante nossa independência, nossa autarcía (autossuficiência); por outro lado, a intemperança dos prazeres que decorrem da vã opinião não só nos impede a autossuficiência, como também nos torna prisioneiros da perturbação. Os desejos naturais e necessários nos livram da dor; os desejos naturais e não necessários, embora nos livrem da dor, podem acarretar danos. Finalmente, os desejos inaturais e não necessários são aqueles que não nos livram da dor e podem ainda nos causar prejuízos. Não há desejos inaturais e necessários, porquanto “inatural” e “necessário” são atributos mutuamente excludentes.
Para Epicuro, devemos ceder a um desejo que nos conduz à tranquilidade, estado sobre o qual repousa a felicidade, e devemos renunciar a um desejo que não nos permite fruir esse estado de tranquilidade. Ainda no que diz respeito aos desejos, é notável o fato de a doutrina epicurista antecipar aquilo que se tornaria um postulado da psicanálise freudiana: a insaciabilidade do desejo.
A experiência comum basta para nos assegurar de que o prazer obtido diminui gradualmente à proporção que nos acostumamos a ele. O termo científico para caracterizar essa experiência é adaptação hedônica. É no momento exato em que nos acostumamos a algo prazeroso que ele deixa de ser prazeroso. Ao estado de insatisfação em que nos encontramos, porque acostumados ao que é agradável, segue-se um novo desejo que demanda satisfação. Mas não tarda para que este estado de satisfação obtido ceda lugar à nova insatisfação, a que se segue outro desejo que reclama satisfação, e o processo se dá ad infinitum. Schopenhauer via aí uma trama que torna impossível a experiência de uma felicidade positiva e duradoura, porque nos vemos sempre suscetível à alternância entre o desejo, ao qual precede uma carência, a satisfação – no entanto, sempre temporária – e o tédio, no qual o prazer está destinado a se converter. O movimento desejo-satisfação (prazer)-tédio é cíclico, de modo que jamais atingimos a satisfação plena de nossos desejos, visto que, continuamente, somos lançados ao estágio inicial do ciclo: estamos permanentemente desejando e continuamente insatisfeitos.
Em  O mal-estar na cultura (2010), Freud soube bem reconhecer que, a despeito de o funcionamento psíquico ser comandado pelo que chama de programa do princípio de prazer, por força do qual somos impulsionados a buscar o prazer e desejamos permanecer nesse estado indefinidamente, toda permanência anelada não é mais que “uma sensação tépida de bem-estar” (p. 63). Após considerar só ser possível experienciar a felicidade como fenômeno episódico, escreve Freud, patenteando que seu pensamento se alinha com o ensinamento epicurista[11]:

Toda permanência de uma situação anelada pelo princípio de prazer fornece apenas uma sensação tépida de bem-estar; somos feitos de tal modo que apenas podemos gozar intensamente o contraste e somente muito pouco o estado.[12]


Parece claro que Freud está de acordo com o fato de que só nos é possível experienciar uma felicidade do tipo negativo, a saber, o estado em que não experimentamos dor (ou desprazer), em que não nos encontramos infelizes.
Retomemos, por algum instante, a contribuição de Schopenhauer, com vistas a assinalar que, a par da influência inconteste da mística hinduísta e budista em seu pensamento, influência de que os trechos que citaremos não deixam de dar testemunho, claros nos parecem também os traços da concepção epicurista sobre a felicidade. Pelo menos ao se ocupar dela, em sua obra A arte de ser feliz (2001), Schopenhauer demonstra sua afinidade com o pensamento epicurista no tratamento das condições para a vida feliz[13]. Senão, vejamos:


O meio mais seguro de não se tornar muito infeliz consiste em não desejar ser muito feliz, portanto em reduzir as próprias pretensões a um nível bastante moderado no que diz respeito a prazeres, posses, categorias, honra, etc., pois a aspiração à felicidade e a luta para conquistá-la por si só já atraem grandes desventuras. A moderação, por sua vez, é sábia e aconselhável, porque é facílimo ser muito infeliz, enquanto ser muito feliz não apenas é difícil, como também é totalmente impossível.[14]

Malgrado o pessimismo característico que atravessa profundamente o pensamento schopenhaueriano e que nos acautela do inconveniente na pretensão de ler Schopenhauer à luz do horizonte hermenêutico epicurista, sem matizar aqui e ali a medida da influência epicurista sobre seu pensamento, é clara sua anuência à regra da moderação dos desejos e dos prazeres. Essa anuência o aproxima do pensamento não só epicurista, mas dos gregos de um modo geral. Seu pessimismo exacerbado explica por que Schopenhauer realça muito mais as possibilidades de dor e sofrimento do que as de felicidade, no que ele se demonstra herdeiro da sabedoria oriental, sem, contudo, silenciar o pessimismo do pensamento grego.
A tese schopenhaueriana em A arte de ser feliz constitui um sinal evidente da influência epicurista: toda felicidade positiva é quimérica, enquanto a dor é real.[15] Por isso, embora acredite que a verdadeira satisfação é impossível e que, por extensão, a felicidade positiva seja irrealizável para o homem, a ele é possível uma felicidade negativa, que consiste em evitar a dor. Cumpre, aconselha Schopenhauer, “não desejar ser muito feliz, a fim de não se tornar muito infeliz”[16].
A efetividade da dor é o postulado central de toda metafísica schopenhaueriana e reaparece como elemento orientador de seu exame sobre a felicidade. No trecho abaixo, Schopenhauer assume a posição epicurista e a radicaliza, pelo menos sob o segundo dois aspectos seguintes: 1) para ele, o prazer é negativo – caso em que anui a um genuíno epicurismo, posto que não use a expressão “prazer verdadeiro” para referir-se ao prazer negativo; 2) embora ele não pareça admitir a possibilidade de discriminar a qualidade dos prazeres de acordo com as circunstâncias, aconselha-nos a abstenção dos prazeres como meio de assegurar a ausência maior de dor. Nesse último caso, Schopenhauer parece sugerir que uma vida que se obstine na busca de prazeres e alegrias poderá arrastar-se para um turbilhão de dores e sofrimentos que só se poderiam evitar abstendo-se daquela busca. É lícito supor que, para Schopenhauer, nessa abstenção de prazeres e alegrias, que leva a uma ausência maior de dor, reside o verdadeiro prazer e a única felicidade possível.


Justamente porque na vida a dor é predominante, enquanto os prazeres são negativos, quem faz da razão o fio condutor da própria ação e, portanto, reflete sobre as consequências e o futuro de tudo aquilo que se propõe fazer, muitas vezes deverá aplicar o sustine et abstine e sacrificar os prazeres e as alegrias para assegurar a maior ausência possível de dor em toda a vida.[17]


Schopenhauer não poderia ser mais grego, ao apelar para a necessidade de empregar a razão na condução da ação. Nesse apelo, ele deixa entrever um coro de vozes que, fazendo eco à tradição socrática, encontra herdeiros ao longo da história do pensamento filosófico.[18] No entanto, para Schopenhauer, uma ausência de dor que seja tanto mais confortante quanto verdadeira só se obtém à custa da abstenção dos prazeres, posição esta a que um epicurista muito provavelmente não anuiria.[19] Ademais, em consonância com o seu pessimismo e a despeito de aceitar o postulado da razão como meio de conduzir a ação, Schopenhauer nos adverte de que a razão não nos promete em troca uma existência “não marcada por muitas dores”[20]
Como não seja da alçada desse trabalho o ocupar-se com a discussão sobre a medida da consonância do pensamento schopenhaueriano com o pensamento epicurista, cingir-nos-emos a dizer (esperamos sem grande equívoco) que, sustentando articuladas entre si as teses: 1) todo projeto de vida deve pautar-se pela intenção de evitar a dor; 2) a única forma possível de felicidade é a de uma felicidade negativa -, o tratamento schopenhaueriano da questão da vida feliz se filia à tradição epicurista, ainda que se possa esperar, muito em virtude do teor de seu pessimismo, uma divergência em um ou outro momento. Conjugando ainda as duas teses referidas com o postulado segundo o qual “viver é sofrer”, que constitui a primeira das quatro Nobres Verdades budistas, Schopenhauer constrói uma doutrina que só nos promete a experiência de um estado relativamente menos doloroso. Uma vez atinjamos a compreensão dessa verdade schopenhauriana, poderemos desfrutar o bem-estar que a vida nos concede.

3. A relação necessária do prazer com a virtude

Não obstante Epicuro aderir à experiência de um prazer positivo, que se alcança pelos sentidos, que envolve a corporeidade do vivido[21], um epicurismo, em sua forma radical, sem jamais desprezar os prazeres do corpo, aspira à experiência de prazeres negativos, razão por que leva uma vida ascética. A ética epicurista se pauta por uma lógica severa, nesse sentido: somos felizes quando experienciamos a tranquilidade; só estamos tranqüilos quando livres da dor; e só ficamos livres da dor quando todos os nossos desejos estão realizados; e nossos desejos só podem ser satisfeitos caso sejam moderados.
Do exposto, segue-se que o epicurismo nunca é uma permissão para o excesso de indulgência; mas, ao contrário, é sempre um compromisso com a austeridade. Seus princípios éticos prescrevem disciplina e discernimento. O maior prazer ou o prazer verdadeiro se acha na ausência duradoura de dor.
Distanciando-se dos estóicos, para os quais prazer e virtude deviam ser mantidos em esferas separadas, em função do fato de acreditarem que os homens maus e infelizes também gozam de prazeres, os epicuristas advogavam que a virtude é um meio para o prazer. No epicurismo, o prazer é o único motivo para a ação, visto que é o único padrão pelo qual se pode julgar a equidade da conduta. Destarte, uma ação é moral se ela produzir mais prazer do que dor; e imoral, se produzir mais dor que prazer. Disso resulta que nossos julgamentos éticos não devem apoiar-se nas ações em si (está certo fazer X?), tampouco nas suas consequências para os outros. Nossos julgamentos devem levar em conta apenas as emoções que uma ação produzirá em nós (se fizermos X, nos sentiremos bem?). Evidentemente, o padrão ético é sempre relativo, quer às pessoas que executam uma ação, quer às circunstâncias em que o fazem.
No sistema ético epicurista, à luz do qual a virtude está intimamente ligada ao prazer, ela jamais é considerada em si mesma. Assim, dirão os epicuristas, somos virtuosos não porque, necessariamente, apreciamos a virtude, ou porque a virtude em si mesma é algo admirável, mas porque desejamos o prazer que ela proporciona. Para um epicurista, portanto, toda virtude, necessariamente, acarreta prazer. Onde há virtude há prazer e também felicidade.
Podemos compreender por que o epicurista pensa ser o prazer o único motivo para a ação virtuosa, considerando os dois casos seguintes. No primeiro caso, diz-se que ser corajoso é virtuoso, mas, dirá o epicurista, aquele que é corajoso, que exibe coragem, não o faz por estimar a coragem, mas em vista de viver sem ansiedade. No segundo caso, e de modo semelhante, quem é moderado não o é porque valoriza a moderação, mas porque lhe é cara a paz de espírito que a moderação lhe acarreta.
Cumpre também lembrar que tanto para os antigos gregos quanto para os antigos romanos, a moderação era um traço de caráter de amplo alcance: a força para agir moderadamente era extensiva a todos os tipos de situação; logo, moderação, para eles, era semanticamente muito mais extenso do que nosso uso moderno do termo, deveras estrito.
Em suma, Epicuro sustenta a superioridade dos prazeres negativos, que são estáticos (implicam inatividade) e se caracterizam pela ausência de perturbação da alma e do corpo. Esses prazeres são considerados completos. A felicidade não se alcança na busca do prazer cinético ilimitado[22], que consiste em satisfazer continuamente determinados desejos, mas na busca do prazer estático limitado, a saber, a ausência de dor. Essa forma de prazer se caracteriza pela ausência de desejos que demandam satisfação. Assim, desde que todo desejo está satisfeito, não resta dor alguma, e o limiar de todo prazer possível se nos desvela sem obstáculos. De tudo que dissemos, pode-se, seguramente, concluir que a ética epicurista é uma terapêutica: a) estando o corpo em bom estado, mas a alma perturbada, o epicurista prescreve a correção das falsas opiniões acompanhada da supressão dos temores desencadeados por elas; b) estando o corpo em mau estado, mas a alma sadia, o epicurista prescreve a supressão da dor física pela formação de imagens mentais prazerosas relativamente ao passado, ou pela projeção positiva dessas imagens relativamente ao futuro.




[4] De um lado, o epicurista situa a felicidade no prazer; de outro lado, para o estóico, a felicidade consiste na exigência do bem segundo a razão. Essa exigência do bem ultrapassa o interesse individual. Comum aos epicuristas e aos estóicos é a pretensão de atingir a ataraxia (estado de tranquilidade ou impertubabilidade da alma). A ética estóica combina serenidade autossuficiente e benevolente, estado este que leva o sábio a uma indiferença em relação à pobreza, à dor, à morte, com a promoção de uma ordem política e civil que espelhe a ordem do cosmo. O estóico celebra a apatia, que se caracteriza por ser um estado de ausência de sentimentos baseados em crenças erradas, ou seja, de sentimentos que nos levem a não conferir à virtude o seu devido papel. A rigor, apatia é ausência de paixões; é não ter ou experimentar sofrimento. Daí ser ela um estado em que somos indiferentes aos reveses da vida.
[5] Os epicuristas advogavam que a ataraxia pode ser alcançada pela busca dos prazeres “tranquilos” e pela satisfação dos desejos naturais. É necessário renunciar aos desejos supérfluos (ser rico, poderoso, etc.), cuja satisfação acarreta mais perturbação do que prazer. O sábio feliz se contenta com o estritamente necessário.
[6] “Carne” é o termo usado por Epicuro (ele escreve “a voz da carne diz”) para designar o sujeito da dor e do prazer, isto é, o indivíduo. Nesse sentido, a carne não é uma parte anatômica do corpo, nem é separada da alma. Não há prazer e sofrimento sem que se tenha consciência e sem que esse estado de consciência se reproduza na “carne” (Hadot, 2010, p. 170-171).
[7] EPICURO. Física. Coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva et. al. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 16.
[8] Ibidem, p. 17.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] Não menos notável é a influência que sobre seu pensamento exerceu a filosofia de Schopenhauer. O pessimismo à moda schopenhaueriana instila-se nas páginas freudianas. Prova-o sua crença na impossibilidade de podermos experienciar uma felicidade positiva.
[12] Idem.
[13] Essa afinidade com o pensamento epicurista não deve obnubilar a presença de traços do modo de vida (sabedoria) estóico em seu pensamento. Dão testemunho da influência estóica sobre o pensamento de Schopenhauer, os fragmentos seguintes tomados, respectivamente, da Máxima 18 e da 19. Na máxima 18, lemos: “as coisas que dizem respeito ao nosso bem-estar devem ser enfrentadas somente com a capacidade de julgar que opera com conceitos e in abstracto, ou seja, a partir de uma reflexão fria e austera (...)” (p. 55). Na máxima 19, topa-se o seguinte: “Não permitir a manifestação de grande júbilo ou grande lamento com relação a algum acontecimnto, uma vez que a mutabilidade de todas as coisas pode transformá-lo de um instante para outro; em vez disso, usufruir sempre o presente da maneira mais serena possível: isso é sabedoria de vida” (p. 55 et.seq.)
[14] Máxima 36, p. 83.
[15] Ibidem, p. 84.
[16] Ibidem, p. 82.
[17] Ibidem, p. 85.
[18] Dessa miríade de vozes, entre as quais estão as dos cínicos, dos epicuristas, dos estóicos, Aristóteles é, sem dúvida, uma figura notável, cuja contribuição é evocada, várias vezes, por Schopenhauer no texto da Arte de Ser Feliz.
[19] Um epicurista não nos pede a abstenção dos prazeres, mas orienta-nos a fruir deles de modo moderado. Ademais, Schopenhauer não faz distinção entre os prazeres, tal como o exige a ética epicurista. A ataraxia não é um estado de abstenção de prazeres, mas a realização da forma de prazer mais pleno, qual seja, a da ausência de dor e perturbação.
[20] SCHOPENHAUER, Arthur. Op.cit., p. 85.
[21] Apesar de anacrônico, no contexto de nossa discussão, o conceito de corporeidade, tal como concebido por Merleau-Ponty (1999), parece servir bem para descrever o corpo no epicurismo, isto é, corpo como uma estrutura experiencial vivida, ou o corpo como constituído de estruturas físicas e experienciais vividas. “A corporeidade do vivido” indica que nossa relação com o mundo é primeira e fundamentalmente relação que se estabelece com o corpo, que, à luz dessa perspectiva, é um agregado de aspectos físicos, psicológicos e espirituais. O prazer e o sofrimento são, essencialmente, afecções que compreendem a estrutura experiencial do corpo.
[22] O problema com os prazeres cinéticos ou em movimento é que eles jamais se perfazem e sua busca depende da satisfação temporária de desejos que são, por natureza, insaciáveis. Por isso, embora possam ser bons em si mesmos, tais prazeres não garantem a ataraxia, estado permanente e feliz ao qual a ética epicurista pretende conduzir o homem.