segunda-feira, 15 de abril de 2013

"O discurso religioso é um discurso autoritário"


     


                              O discurso religioso
                     À luz da Análise do Discurso


Neste texto, pretendo analisar um trecho colhido do Catecismo da Igreja Católica (2000), com base no tratamento dispensado por Orlandi (2006) ao discurso religioso. Para a realização dessa tarefa, apresentarei, num primeiro momento, os conceitos e postulados teóricos sobre os quais se assenta a reflexão desta autora sobre o discurso religioso, tipificado como discurso autoritário. Num segundo momento, analisarei o trecho do Catecismo à luz da abordagem teórica de Orlandi.
Em princípio, creio necessário dar a saber alguns pressupostos atinentes à linguagem, ao discurso e à ideologia. O desenvolvimento de minhas reflexões se estriba na concepção de linguagem como forma de ação social, historicamente situada. Como forma de ação social, a linguagem é constituída socialmente, mas também é responsável pela constituição de identidades sociais, relações sociais e sistemas de crença e conhecimento.
O discurso, a seu turno, longe de ser produção de informações, constitui uma etapa da prática social. Ele é responsável pela constituição, reprodução e mudança das estruturas sociais. Destarte, entendo o discurso como uma prática social que molda a estrutura social e, ao mesmo tempo, é moldada por ela. O discurso é, portanto, com Fairclough (2001), tanto forma de ação social através da qual as pessoas agem umas sobre as outras quanto forma de representação. A representação – deve-se frisar – se estabelece pela elaboração de conceitos e deve ser entendida como reconstrução do mundo, e não uma forma de “espelhá-lo”. O mundo do discurso não corresponde ao mundo tal como é, mas a um mundo reconstruído (textualizado). Não há uma realidade objetiva que o discurso deve simplesmente expressar ou espelhar; a realidade é construída na intersubjetividade discursiva. O discurso é um modo de ação sobre o mundo e a sociedade.
Ademais, assumo, com Orlandi, que o discurso é efeito de sentidos entre interlocutores (sujeitos) e que o social é constitutivo da linguagem. É porque o social é constitutivo da linguagem que ela produz a ilusão do sujeito e a imobilidade e unicidade do sentido; por outro lado, é porque a linguagem é fato social, que os sentidos podem ser muitos e diversos (polissemia).

“Então, os interlocutores, a situação, o contexto histórico-social, i.e., as condições de produção, constituem o sentido da sequência verbal produzida. Quando se diz algo, alguém o diz de algum lugar da sociedade para outro alguém também de algum lugar da sociedade e isso faz parte da significação (Orlandi, 2006, p. 26)”.


A relação entre o social e a linguagem também se expressa na ilusão do sujeito como fonte do que diz, ou mais precisamente, como fonte do sentido. No entanto, o sujeito que produz o discurso é também por esse discurso produzido; o sujeito acredita ser a única fonte do sentido, quando, na realidade, retoma sentidos preexistentes. Essa ilusão do sujeito deixa de existir quando reconhecemos que todo discurso, para produzir sentidos, deve pertencer a uma formação discursiva, que, por sua vez, é constituída de uma formação ideológica. A formação discursiva compreende os enunciados e as regras que tornam possível seu aparecimento, numa dada época e espaço social; compreende as condições de produção desses enunciados, que são definidas historicamente. Por meio desse conceito, busca-se explicar como cada enunciado tem seu lugar e sua condição de aparecimento e como as estratégias pelas quais cada um é produzido derivam do mesmo jogo de relações. Por formação ideológica entende-se “o conjunto complexo de atividades e representações que não são nem “individuais” nem “universais”, mas se relacionam mais ou menos às posições de classes em conflito umas com as outras (Pêuchex & Fuchs, 1990, p. 166)”.
Urge definir ainda dois outros conceitos, quais sejam, o de estrutura social e o de ideologia. A estrutura social é um termo que serve para explicar padrões de comportamento que são recorrentes e duradouros num sistema social. A estrutura social constitui um arranjo, uma organização, no interior da qual as representações coletivas de uma sociedade organizam as expectativas dos indivíduos num padrão de instituições sociais e de normas. Essas normas é que definem aquelas expectativas. As instituições, por sua vez, conformam as relações sociais. Estas, então, se estruturam de tal modo que os indivíduos assumem funções particulares na totalidade do social. Nesse sentido, a estrutura social supõe dois tipos de estruturas: estruturas institucionais e estruturas relacionais. Tal maneira de conceber a estrutura social é inspirada em Durkheim.
Como se sabe, a ideologia é um termo cuja significação varia consideravelmente segundo os teóricos que o empregam. Assumirei aqui a posição de Althusser, para quem a principal função da ideologia é a interpelação, ou seja, a constituição dos indivíduos em sujeitos, os quais ou se submetem ao sistema de dominação ou lutam contra ele. A ideologia, nessa perspectiva, visa à produção da hegemonia, fornecendo aos sujeitos sociais conceitos e imagens através dos quais eles compreendem a existência social. Com Althusser, a ideologia repousa sobre o princípio segundo o qual as ideias derivam da maneira como as coisas parecem ser; a ideologia leva os homens a aceitarem a obviedade das coisas e os desencoraja da atividade de construção do conhecimento e de reflexão.
Considero importante me deter um pouco mais na visão de Althusser sobre ideologia. Althusser define a ideologia como “uma representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (1985, p. 85). Portanto, o que os homens representam na ideologia não são as suas condições reais de existência, mas a sua relação imaginária com essas condições reais de existência. A ideologia é uma representação imaginária do mundo. Nas palavras de Althusser,

“É nesta relação que deve estar a “causa” que deve dar conta da deformação imaginária da representação ideológica do mundo real. (...) é a natureza imaginária dessa relação que sustenta toda a deformação imaginária observável em toda ideologia (p. 87)”.


Insisto neste ponto: o que os indivíduos representam na ideologia não são as suas condições reais de existência, mas sim a sua relação imaginária com essas condições. Voltarei a considerar a perspectiva de Althusser, mais adiante. Doravante, definirei os três tipos de discurso propostos por Orlandi, detendo-me, no entanto, a apontar as características do discurso autoritário, do qual o discurso religioso é um representante.
Orlandi, em Linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso (2006), no artigo intitulado de discurso religioso, distingue entre três tipos de discurso, a saber, o lúdico, o polêmico e o autoritário. Conquanto seja este último que me interessará, nessa exposição, definirei, com base no que ensina Orlandi, os dois primeiros. O tipo lúdico se caracteriza por uma expansão da polissemia e seu referente é mais transparente aos interlocutores. O tipo polêmico supõe um controle da polissemia, visto que os interlocutores procuram determinar a direção do referente. No discurso autoritário, a seu turno, a polissemia tende a ser contida, estancada, uma vez que o enunciador se pretende único responsável pelo sentido e procura ocultar o referente sob o que diz. Passarei a desenvolver mais pormenorizadamente a noção de discurso autoritário, doravante.
Começo notando que Orlandi propõe como um dos critérios para estabelecer a sua tipologia discursiva a reversibilidade. Ensinará a autora que a reversibilidade é condição do próprio discurso (p. 239). Disso se segue que não há discurso sem algum grau de reversibilidade. A reversibilidade nunca poderá atingir o grau zero, isto é, deixar de existir, sob pena de o discurso se romper. Mas o que é reversibilidade? Segundo Orlandi, por essa noção, evita-se fixar de modo categórico o locutor no lugar de locutor e o interlocutor no lugar do interlocutor. A noção supõe uma alternância entre locutor e interlocutor na produção/ compreensão do discurso. Os lugares de cada um dos participantes do discurso se definem na relação recíproca entre eles: o lugar do locutor se define pelo lugar do interlocutor e vice-versa. É nessa relação que o espaço da discursividade é definido.
Acima, disse que a reversibilidade não pode deixar de existir. No caso do discurso autoritário, a reversibilidade tende a ser diminuída. Em outras palavras, ela tende a se aproximar do grau zero, sem, contudo, atingi-lo. O discurso autoritário produzirá, então, uma ilusão de reversibilidade. Essa ilusão é necessária ao funcionamento desse tipo de discurso.
Outro critério com que Orlandi estabelece sua tipologia é o de polissemia. Antes, porém, de defini-lo e desenvolvê-lo, vou elencar as características do discurso autoritário:

a) trata-se de um discurso com forte marca de persuasão;
b) Nele mais evidentemente se expressa a dominação pelo uso da palavra;
c) A reversibilidade (eu-tu-eu) praticamente inexiste (na verdade, nele se produz a ilusão de reversibilidade);
d) O sujeito receptor (tu) se torna passivo, não podendo intervir no discurso de modo a modificar o que está sendo dito. Ele não tem autonomia para produzir outro sentido senão aquele já sedimentado na formação discursiva a que pertence o discurso;
e) Trata-se de um discurso que não aceita mediações e questionamentos;
f) Tende a monossemia e a voz da autoridade sobre o assunto dita as verdades;

O discurso autoritário é, portanto, o tipo de discurso que mais exibe suas formas de dominação. Podemos apontar também quatro traços que definem o discurso autoritário. O primeiro é a distância. A distância se expressa na atitude do enunciador em face do seu enunciado. Nesse caso, os referentes são apagados e a voz do enunciador é mais forte e se destaca. O segundo traço é o da modalização. Diz respeito ao grau de adesão do enunciador à validade ou valor de verdade de seu enunciado. A modalização se define pelo modo como o enunciador constrói seus enunciados. Nesse caso, o discurso autoritário se caracteriza pelo largo uso de formas de imperativo e por recursos parafrásticos. Claro é que há outras marcas, que apresentaremos mais adiante. O terceiro traço é o da tensão. Nesse caso, destaca-se a relação entre o enunciador e o enunciatário. O enunciador procura se impor ao enunciatário, deixando pouco espaço ou nenhum espaço para as respostas deste. A voz do enunciatário é calada; e a voz do enunciador é a de quem manda. O sujeito religioso (o receptor) não interpreta; tão-só repete a interpretação que lhe é imposta. O quarto traço é o da transparência. Aqui vale notar, de passagem, que, segundo Orlandi, a linguagem se caracteriza pela opacidade (os sentidos não estão “lá”, não “brotam” das palavras, não são auto-evidentes; mas resultam da relação do sujeito (que só existe pela ideologia) com a história (que não se confunde com datas, mas compreende os processos de produção e circulação dos sentidos). Não obstante a opacidade inerente à linguagem, os discursos autoritários tendem a ser mais transparentes, visto que seu produtor pretende que seu destinatário os compreenda mais rápido e facilmente. O grau de polissemia (a possibilidade de os sentidos serem múltiplos) é diminuído.
Consideremos, agora, o segundo critério a que me referi, qual seja, o da polissemia. Com Orlandi (p. 240), é lícito dizer que o discurso autoritário (e, portanto, o discurso religioso) tende a monossemia (produção de um único sentido). A polissemia, nesse caso, é contida, é mitigada. É preciso enfatizar, contudo, que devemos falar em “tendência à monossemia”, visto que todo discurso se relaciona com outros discursos; ademais, todo discurso é constituído por seu contexto imediato de enunciação e por seu contexto sócio-histórico; e é na relação entre formações discursivas e ideológicas que ele se estabelece. Daí que a polissemia não é completamente suprimida. Por definição, todo discurso é polissêmico, visto que os sentidos, que são múltiplos, escapam ao domínio do sujeito locutor. Mas, no discurso autoritário, há uma forte tendência para refrear a polissemia.

Althusser e o discurso religioso

Volto, portanto, à contribuição de Althusser, a fim de mostrar como este autor entende a estrutura formal da ideologia religiosa cristã. Para que compreendamos a visão de Althusser da ideologia cristã, devemos conhecer duas teses na base das quais suas reflexões se apóiam: 1) só existe prática através de uma ideologia; 2) só existe ideologia através do sujeito e para sujeitos. Assim, consoante Althusser,

“Deus define-se portanto a si mesmo como sujeito por excelência, aquele que é por si e para si (Sou Aquele que É) e aquele que interpela seu sujeito (...) eis quem tu és: és Pedro (Orlandi, 2006, p. 241)”.



Na visão de Althusser, apenas Deus nomeia e não é nomeado. O filósofo francês marxista distingue entre um Outro Sujeito único e uma multidão de sujeitos religiosos. Essa multidão é definida na relação com esse Outro que a transcende. Deus é o Sujeito e os homens são seus interlocutores, seus espelhos, seus reflexos. Como tais, eles são interpelados por Deus. Para Althusser, toda ideologia é especular, já que os sujeitos são submetidos ao Sujeito e nele se reconhecem. Desse modo, a ideologia garante: a) a interpelação dos indivíduos em sujeitos; b) a submissão desses sujeitos ao Sujeito; c) o reconhecimento mútuo entre sujeitos e o Sujeito, dos sujeitos entre si e do sujeito por si mesmo; d) a crença pelos sujeitos de que, uma vez reconhecendo quem são, tudo ficará bem.
Em Althusser, o sujeito tem, ao mesmo tempo, uma subjetividade livre e uma subjetividade submetida. Ele é autônomo, mas assujeitado, porque submetido a uma autoridade superior. A noção de livre-arbítrio revela aqui sua face contraditória: o sujeito precisa aceitar (livremente) sua sujeição. Os sujeitos se submetem ao Sujeito e por ele são reconhecidos. Orlandi vê na noção de livre-arbítrio uma coerção, que é do domínio simbólico.

“Em relação à coerção, não é nem necessário dizer que não se trata de força ou coerção física, pois a ideologia determina o espaço de sua racionalidade pela linguagem: o funcionamento da ideologia transforma a força em direito e a obediência em dever (p. 242)”.


Orlandi definirá, por conseguinte, o discurso religioso como aquele em que fala a voz de Deus. A voz de Deus fala na fala do padre, do papa ou do pastor. Por um processo de mistificação, a voz de Deus é subsumida na voz do padre (está no lugar de), “sem que se mostre o mecanismo pelo qual essa voz (a de Deus) se representa na outra. A mistificação é resultado do apagamento da forma como o representante se apropria da voz de Deus. Segundo Orlandi, a subsunção de uma voz pela outra é o “como se” desses discursos. O “como se” não se deve confundir com o “faz-de-conta”, visto que este se relaciona com o imaginário; aquele, com o simbólico.

“Assim, quando digo que a voz de Deus se fala no padre, é “como se” Deus falasse: a voz do padre é a voz de Deus. Essa é a forma da representação, ou seja, da relação simbólica (p. 244)”.


Urge notar que o representante da voz de Deus não pode modificá-la; ele também não goza de autonomia na forma como a conduzirá; o padre, ao apropriar-se da voz de Deus, ao enunciar o discurso do próprio Deus, se submete a essa voz. Segundo Orlandi, “há regras estritas no procedimento com que o representante se apropria da voz de Deus: a relação do representante com a voz é regulada pelo texto sagrado, pela igreja, pelas cerimônias” (p. 245). Na verdade, é o texto sagrado, é a igreja, são as cerimônias que falam na fala do padre. Sua fala é regulada por essas instâncias, as quais, por sua vez, não são senão a expressão da instância superior que é a voz de Deus. É a voz de Deus que ecoa dessas instâncias e nelas se revela, por meio da fala representativa do padre.
Como Orlandi considera que Deus fala na fala do padre, instaura-se, no discurso religioso, um desnivelamento fundamental na relação entre o locutor e o ouvinte: o locutor, que é o Sujeito, que é Deus, situa-se no plano espiritual; e o ouvinte é do plano temporal (os sujeitos religiosos, o homem). Segundo a autora,

“(...) locutor e ouvinte pertencem a duas ordens de mundo totalmente diferentes e afetadas por um valor hierárquico, por uma desigualdade em sua relação; o mundo espiritual domina o temporal. O locutor é Deus, logo, de acordo com a crença, imortal, eterno, infalível, infinito e todo-poderoso; os ouvintes são humanos, logo, mortais, efêmeros falíveis, finitos, dotados de poder relativo. Na desigualdade, Deus domina os homens (p. 243).”


Orlandi refere outras assimetrias, que se originam dessa assimetria básica entre essas duas ordens de mundo. Com base na oposição imortalidade/ mortalidade, os homens são instados (ou coagidos) a buscar a salvação pela fé. Dirá Orlandi que “o móvel para a salvação é a fé” (p. 243). Sabendo-se mortais, os homens deverão, pela fé, buscar a vida eterna. A assimetria instaura a não-reversibilidade: o homem não pode ocupar o lugar do Locutor, que é o lugar de Deus. A assimetria fixa a relação de interlocução no discurso religioso.
Vimos que há separação entre os planos espiritual e temporal. O padre que é a voz de Deus fala de um lugar determinado – do plano espiritual, o qual domina o plano temporal. Em virtude da separação fundamental entre os planos, instaura-se uma distância entre a voz de Deus e a voz do homem, ou entre a significação divina e a linguagem humana. A isso acrescenta Orlandi “e assim se mostra e se mantém a obscuridade dessa significação, inacessível e desejada (p. 245)”. A obscuridade abre caminho para diferentes leituras, mas, se elas ultrapassarem certos limites, são encaradas como transgressões, donde se seguem cismas, novas seitas, etc.
A interpretação da palavra de Deus tem de orientar-se por um conjunto de regras. Os sentidos não podem ser quaisquer uns. O discurso religioso, reitero, tende à monossemia. Por isso, a interpretação certa é a da Igreja, no caso do cristianismo. O texto é a Bíblia, considerada a palavra revelada de Deus; e as cerimônias é que determinam o lugar próprio dessa palavra.
A assimetria distingue dois grupos de interpretantes: na ordem temporal, figuram os representantes da Igreja (padres, Bispo e o Papa), os quais se relacionam com o sagrado; na ordem espiritual, encontram-se os mediadores (Nossa Senhora, os Santos). No tocante ao lugar de Jesus Cristo, ensina Orlandi:

“Nessa distinção, deve ocupar lugar à parte Jesus Cristo; sendo o Deus que habitou entre os homens, não é nem representante nem mediador. Sua natureza é particular, pois, embora seja a parte acessível de Deus, é o próprio Deus (p. 246)”.


Orlandi mantém que, mesmo quando o cristão pode falar diretamente com Deus, a não-reversibilidade se mantém. Segundo a autora, isso não modifica o seu poder de dizer (p. 247). A sua fala é ritualizada, é preestabelecida. Há fórmulas convencionais para se dirigir a Deus, ainda que a relação com este se assente na familiaridade. O eu-cristão lançará mão de orações ou expressões mais ou menos cristalizadas ao se dirigir a Deus.
A autora observa ainda que o estatuto jurídico dos interlocutores se mantém: a onipotência divina contrasta com a submissão humana. Dizer que o estatuto jurídico não se altera é dizer que o poder de dizer é o mesmo. Abaixo, lemos como a autora descreve a relação assimétrica entre o homem e Deus:

“Como a dissimetria se mantém, é preciso que os homens, para serem ouvidos por Deus, se submetam às regras: eles devem ser bons, puros, devem ter mérito, ter fé, etc. É preciso, pois, que eles assumam a relação da dualidade, a relação com o Sujeito diante do qual a alma religiosa se define: esses sujeitos, para serem ouvidos, assumem as qualidades do espírito, qualidades do homem que tem fé (p. 247)”.


Orlandi não distingue entre discurso teológico e discurso religioso, muito embora ela aponte a distinção tradicionalmente feita entre esses dois discursos: o primeiro sendo mais formal do que o segundo e destinado a sistematizar dogmaticamente as verdades religiosas; ao contrário, o segundo seria aquele caracterizado por uma relação espontânea e direta com o sagrado. Como a não-reversibilidade se conserva em ambos os tipos de discurso, a autora não vê por que distingui-los.
A título de registro – embora não seja esta uma questão que me ocupa aqui -, vale dizer, com Gramsci, que a homogeneidade ideológica na religião mascara a multiplicidade de religiões distintas e, não raro, contraditórias. Mesmo no domínio de uma mesma designação religiosa, como o catolicismo, é possível distinguir um catolicismo dos camponeses, um catolicismo das mulheres, um catolicismo de intelectuais, por vezes, velado e incoerente (Orlandi, p. 248).
Vimos que a religião se estrutura numa série de dualismos (mortalidade/ imortalidade; homem/Deus; mundo espiritual/ mundo temporal, etc.). Outro dualismo estabelecido pelo sistema ideológico da religião é o que se instaura entre o Homem e a Natureza. Nesse caso, o Homem, tomando na relação com Deus, é puro espírito. Devo notar que essa é a interpretação de Orlandi, da qual tenho de discordar. Não nego que há uma ênfase na dimensão espiritual humana que é posta em contraste com a materialidade da Natureza. Não nego que a Natureza constitua um outro mundo (um mundo exterior), objetivo, em contraste com o Homem, que encerra uma dimensão espiritual. No entanto, o homem também é atravessado por uma dualidade: é corpo e é espírito. A dimensão corpórea é desvalorizada em face da dimensão espiritual. Disso se segue que o corpo seja, simbolicamente, sobrepujado pelo espírito. Para Orlandi, no que a acompanho, o dualismo homem/natureza e matéria/espírito torna possível a ligação entre os planos temporal e espiritual.
Duas noções devem ser referidas e compreendidas aqui na sua relação com o homem e Deus. São elas a de espírito e a de . O espírito torna possível a relação entre o homem e Deus. A fé é uma das qualidades do espírito e é através dela que o homem pode alcançar a salvação. Como a condição humana é uma condição de pecado, a fé torna-se o caminho para que o homem se liberte dessa condição e alcance a salvação.
Mas é sempre bom insistir que, não obstante o valor da fé, ela não elimina a não-reversibilidade do discurso religioso. Segundo Orlandi, “a fé é uma graça recebida de Deus pelo homem” (p. 250). A fé não provém do próprio homem, mas de Deus. Se é somente pela fé que o homem pode alcançar a salvação, é a fé também responsável por instaurar divisões, quais sejam, entre os fiéis e os não-fiéis, entre os eleitos e os não-eleitos. A fé delimita a comunidade religiosa e define o escopo do discurso religioso, de tal sorte que “para os que creem, o discurso religioso é uma promessa, para os que não creem é uma ameaça” (ib.id.).
Do exposto acima, se conclui que a fé se assenta no princípio da exclusão. E a Igreja é o espaço onde se realiza a exclusão: “os que pertencem a ela (os que acreditam) e os que não pertencem (os que não acreditam). A Igreja é depositária da leitura correta dos textos sagrados, é ela que detém a palavra da salvação, e é ela que administra os sacramentos. Orlandi conclui que a fé comprova a não-reversibilidade do discurso religioso, uma vez que ela é um dom divino e está submetida à Igreja e ao conjunto de suas leis.
Não tenho a intenção de recobrir, nessa atividade de reescrita, todo o trabalho de Orlandi, de modo que algumas outras questões aventadas e discutidas pela autora ficarão de fora desse texto. Não tenciono esgotar o assunto, portanto. Antes de passar à análise do fragmento do Catecismo, terei de referir as formas como a ilusão de reversibilidade se apresenta. Observa Orlandi que a ilusão de reversibilidade se manifesta na visão, na profecia, na performatividade das fórmulas religiosas e na revelação.
A ilusão se expressa na passagem do plano temporal para o espiritual. Ela pode tomar duas direções: uma de cima para baixo, caso em que Deus compartilha com os homens suas propriedades; e uma de baixo para cima, caso em que o homem se eleva a Deus, assimilando suas qualidades (onipotência, onipresença, onisciência, eternidade, etc.). Nesse caso, estão a profecia, a visão e o misticismo. Ai se encontram o profeta, o vidente e o místico.
Por outro lado, no caso em que Deus se rebaixa até o homem e partilha com ele suas qualidades, se acham as fórmulas performativas: a infabilidade do Papa, a possibilidade de ministrar sacramentos, a consagração da missa, as bênçãos, os exorcismos, etc.
Para Orlandi, a noção de milagre também corrobora a ilusão de reversibilidade, dado que aí também se dá a passagem de um plano a outro. No milagre, se articulam a interferência de Deus e o cientificamente inexplicável.
Ainda, segundo a autora, na religião o poder da Palavra é evidente e a Palavra consolida a assimetria. Escreverá a autora “o poder da palavra está bem distribuído e regulado na relação entre o homem e Deus”, disso se segue que a Deus se associam atos linguísticos performativos tais como “institui”, “interpela”, “ordena”, “regula”, “salva”, “condena”, etc., ao passo que ao homem se ligam atos como “respondem”, “pedem”, “agradecem”, “desculpam-se”, “exortam”, etc.
No tocante à não-reversibilidade, nota a autora que ser representante, no discurso religioso, é estar no lugar de, e não estar no lugar próprio. Aqui se nota uma diferença fundamental entre o discurso religioso e os demais tipos de discurso: nestes, os lugares dos interlocutores são disputados e há uma “retórica de apropriação”. O sujeito é suficientemente competente para falar do lugar que lhe cabe. Por exemplo, quando o professor, antes aluno, passa a falar como professor, em virtude de ter obtido um diploma que o qualifica para tanto. Logo, ele, professor, falará do lugar que lhe é próprio. Orlandi observa que sucede diferente no caso do discurso religioso.

“O representante, ou seja, aquele que fala do lugar de Deus transmite Suas palavras. O representa legitimamente, mas não se confunde com Ele, não é Deus. Essa, do meu ponto de vista, é a expressão fundamental da não-reversibilidade. E daí deriva a “ilusão” como condição necessária desse tipo de discurso: o como se fosse sem nunca ser (p. 253)”.


Decerto, há outros fenômenos envolvidos no discurso religioso, que a autora considerou em seu artigo, tais como a interdiscursividade, a intertextualidade, a blasfêmia, a marca e a propriedade, as antíteses, a estrutura retórica (exortação- enlevo-salvação). Como este texto excedeu o número de linhas desejável para a sua divulgação num blog, não me ocuparei desses fenômenos aqui. Passarei, então, a analisar o excerto do Catecismo, para o que me baseio na proposta de Orlandi.

Uma amostra de análise


RESPOSTA DO HOMEM A DEUS

ARTIGO 1
       EU CREIO

“Obedecer (...) na fé significa submeter-se livremente à palavra ouvida, visto que sua verdade é garantida por Deus, a própria Verdade. Desta obediência, Abraão é o modelo que a Sagrada Escritura nos propõe, e a Virgem Maria, sua mais perfeita realização”.
(2000, p. 48)


De imediato, noto que o título Resposta do Homem a Deus é já expressão da assimetria entre Deus e o homem. Como vimos, enquanto Deus interpela, o homem precisa responder. E a resposta do homem supõe sua “submissão livre” à palavra de Deus, portadora da Verdade. A Verdade de Deus não pode ser questionada. Na verdade, submetido à palavra de Deus, o homem não está em condições de questionar; a ele cabe apenas obediência e submissão. É notável também a ocorrência do ato de linguagem Eu creio, confirmatório da fé cristã e da submissão livremente consentida.
Um dos aspectos marcantes do discurso religioso é o recurso à intertextualidade. Claro é que a intertextualidade não é uma propriedade exclusiva desse discurso, mas ela cumpre uma função persuasiva inegável. Ao recuperar a história de Abraão que oferece seu filho Isaac em sacrifício a Deus, o produtor do texto reforça a necessidade de obediência irrestrita do fiel a Deus. Lembro que a Bíblia é a expressão da autoridade, da verdade de Deus e a referência a ela serve para reforçar no eu-cristão o sentimento de obediência e submissão a essa autoridade. Abraão e Maria são figuras-modelo de obediência e submissão à Vontade de Deus nas quais os fiéis devem se espelhar.
É interessante notar também que a submissão exigida no ato de fé deve ser submissão “à palavra ouvida”, o que sugere que o lugar do eu-cristão é de mero receptor passivo da palavra. A ele basta tão só ouvir a palavra; não lhe é dado o direito de elaborar uma interpretação da palavra ouvida que não esteja inscrita no código hermenêutico da Igreja. A Palavra ouvida, que é a Palavra de Deus, é portadora de um único sentido. Na verdade, como o eu-cristão não interpreta, o lugar que lhe é fixado é o da mera reprodução do sentido sedimentado. Ele apenas se limita a reiterar o sentido previamente estabelecido pelas autoridades interpretantes (padres, bispos, teólogos).

domingo, 31 de março de 2013

poema da noite






Silente abandono

O céu chora palavras
Num enegrecido volume
De nuvens densas
De vontade e tristeza

Sinto a alma ranger
O corpo inteiro esmorecer
A noite achegar-me
Convidando-me ao abandono
À solidão que me conforta

Deixo-me estar em silêncio
Porque a vida dói-me mais
Quando falo
Ou escrevo.

(BAR)

quinta-feira, 28 de março de 2013

"Poesias são borboletas da alma; tesouros da ausência; relicários da loucura." (BAR)





Canto amargo


Eu quero o canto doce e amargo
De um amor humano que nada espera
Nem lindo verão nem linda primavera
P’ra este instante é que eu o aguardo

Se por ventura a alma me inunde docemente
Com promessas sonoras de eternidade
Terei apenas a certeza de que mente
Como os amantes que só dizem a verdade

Se relutante inda em minh’alma permanecer
Silenciarei meu coração por toda a vida
Nem mais um verso haverei de escrever

E tendo então a alma um canto de despedida
Quando chegar-me a hora de morrer
Direi do amor só conheci a dor maldita

(BAR)





Confissão

Se me amas como dizes realmente
Confessa-mo no silêncio de teu coração
P’ra que só eu saiba desta confissão
E possa então dormir alegremente

(BAR)





Contradição

Se me amas com a mesma veemência
Com que me declaras tua dor
Então me dizes por que tão funda carência
Se a ti dedico todo o meu amor?

(BAR)

quarta-feira, 27 de março de 2013

"Há homens que já nascem póstumos." (Friedrich Nietzsche)


               


                  Nietzsche e a verdade oculta no homem

Pretendo, neste texto, discutir a problemática do conceito de verdade, em filosofia, a partir da contribuição de Nietzsche. Esse empreendimento, no entanto, não dispensa considerações sobre o legado dos antigos gregos. Revisitar o modo como os antigos gregos entendiam a verdade é importante, entre outras coisas, para a compreensão da crítica avassaladora que Nietzsche lançará ao ideal de verdade de que nós, modernos, somos herdeiros, pelo menos desde que Sócrates e seu ideal de racionalidade entraram em cena no mundo grego clássico. É na esteira dessa racionalidade clássica que Nietzsche desenvolverá sua filosofia com um martelo destrutivo.
Começo notando que nossa concepção de verdade – a do pensamento ocidental – formou-se a partir de três fontes: a grega, a latina e a hebraica. Vou referir e comentar, para os meus propósitos, apenas a concepção grega. Assim é que, em grego, a verdade se diz alétheia, que significa “o não esquecido”. Por extensão de sentido, alétheia passou a recobrir as noções de “não-escondido”, “não-dissimulado”. A verdade é, portanto, a automanifestação do ser ou da realidade, é seu desocultamento, seu desvelamento. Segundo Chauí (2008: 95), “a verdade é o que vemos numa contemplação, o que se manifesta, o que se mostra para os olhos do corpo e do espírito”. Alcançamos a verdade, quando atingimos a essência das coisas pelo entendimento. Quando a essência dos seres se revela, dizemos estar de posse da verdade. A verdade é, portanto, o desvelamento do ser, de tal sorte que identificamos a verdade com o ser e a falsidade com o parecer ou a aparência. Os antigos gregos nos ensinaram, então, que o verdadeiro é o ser e o falso o parecer (o que aparenta ser o que não é) (Chauí, 2008: 96).
Tão cara aos gregos tanto quanto a nós hoje, particularmente aos que se dedicam às ciências, é o conceito de evidência, intimamente ligado ao de verdade. Na realidade, só dizemos que atingimos a verdade, quando estamos de posse das evidências. A evidência é a manifestação clara da essência das coisas e do ser. É o desvelamento do ser das coisas. Desse modo, a evidência é o critério da verdade. A respeito da evidência, podemos ler, em Metodologia científica (2007), de Cervo et.al., o seguinte:

“(...) Evidência é manifestação clara, é transparência, é desolcultamento e desvelamento da natureza e da essência das coisas. A respeito daquilo que se manifesta das coisas, pode-se dizer uma verdade”.
(p. 11)


A esta altura, convém distinguir evidência de certeza. A certeza pressupõe um estado de espírito, portanto implica a adesão de alguém a um determinado ponto de vista ou a uma verdade. Quem diz ter certeza não teme o engano. A certeza surge quando o espírito dispõe de evidências. A certeza é dependente das evidências.
Opiniões, por sua vez, que são um tipo de crenças, têm caráter subjetivo e resultam de uma avaliação superficial das coisas ou dos fatos. Quem opina, não dispondo de certezas, teme o engano. Opiniões não pressupõem um exame cuidadoso sobre a realidade a que se ligam. Elas dispensam um exame crítico e justificativas teóricas e são relativas a quem as exprime. Quem opina considera algo como verdadeiro, sem, contudo, estar certo de que alcança a verdade. Platão – e nesse tocante, o acompanhava Aristóteles - via as opiniões (doxa) como produtos dos sentidos, portanto, sujeitas à variação, à ilusão e ao erro. Nesse sentido, as opiniões se opõem ao conhecimento, ao pensamento racional e à ciência.
Há três teorias de verdade muito conhecidas: a da verdade como correspondência, a teoria pragmática de verdade e a da verdade como coerência. Na verdade, poderia apontar uma quarta, a da verdade como redundância. É a primeira que me interessará aqui, no entanto. A teoria da verdade como correspondência reza que a verdade resulta da correspondência ou de alguma espécie de fidelidade descritiva do pensamento/proposição com a realidade. Dito de outro modo, a verdade é produto da correspondência entre a proposição e o fato. Na Idade Média, Tomás de Aquino entendia ser a verdade a adequação da coisa ao intelecto. Atualmente, é preferível falar em proposição. A verdade é a correspondência da proposição com a realidade que ela descreve ou representa. Por conseguinte, se digo “Está chovendo”, enuncio uma verdade se e somente se de fato estiver chovendo. Quando digo “está chovendo”, eu assumo que “é verdade [que está chovendo]”. Nesse momento, surge o problema do portador da verdade. A verdade se acha nas pessoas? Nos fatos? Nas proposições? Parece razoável admitir, em princípio, que apenas proposições podem ser verdadeiras ou falsas; seres e coisas podem ser reais ou irreais. Mas não segue daí que as proposições portariam a verdade; a verdade se acha no sentido delas, no que dizemos por meio delas, mas não sem o concurso da realidade. Não basta dizermos que “fantasmas existem” para daí concluir que é verdadeiro que eles existem. Isso seria absurdo. Só poderíamos aceitar a declaração “é verdade [que fantasmas existem]” se dispuséssemos de evidências para tanto. Proposições como estas em que se predica de coisas de cuja existência duvidamos ou cuja existência rejeitamos nos levam a considerar a posição dos coerentistas.
A teoria da verdade como coerência reza que a verdade depende de que haja coerência entre as crenças, ou entre as proposições dentro de um sistema de crenças específico. Para que se obtenha a verdade, é necessário que nenhuma crença entre em contradição com uma outra crença ou com um conjunto de crenças; as crenças precisam estar harmonizadas entre si. Teorias coerenciais da verdade se baseiam na concepção de Hegel, para quem a verdade é o todo. Destarte, uma proposição é verdadeira se estiver de acordo com nossos sistemas de crenças sobre o modo como o mundo funciona. Claro é que tais sistemas de crenças são construídos em nossas experiências socioculturais, de modo que grupos culturais diversos podem alegar ser detentores de verdades claramente inaceitáveis ou não reconhecidas como tais por outros grupos. Uma tribo africana pode assumir que é verdade que o pajé cura as doenças causadas pelos maus espíritos e nós, indivíduos do mundo “civilizado”, imersos numa cultura tributária da visão cientificista de mundo, e que compartilham outros sistemas de crenças (ainda que metafísicos), tenderíamos a considerá-los completamente enganados. Os coerencistas precisam lidar com algumas objeções, tais como o reconhecimento de que não basta haver coerência entre as proposições e as crenças para a obtenção da verdade; a realidade também precisa se pronunciar, caso contrário teríamos de assumir que as proposições de um contos de fada são verdadeiras, pelo simples fato de que elas são coerentes entre si, no interior da narrativa.
Eu gostaria de estender essas reflexões para o âmbito das teorias científicas e compreender nesse domínio em que medida podemos dizer que as teorias produzidas pela ciência podem revelar alguma verdade. Isso, todavia, me levaria muito além dos meus propósitos, de modo que deixarei muitas questões em aberto.
Disse que a realidade também precisa se pronunciar... Mas o que é a realidade? Ela pré-existe aos homens? Deve-se falar em uma ou muitas realidades? A realidade é algo dado, já classificado, pronto para ser compreendido? Ou é algo que se constrói, algo que é produzido num complexo de relações entre os seres humanos? Já tive a oportunidade de escrever sobre isso. A realidade é fabricada na inter-relação entre percepção-cognição, cultura e linguagem. A realidade humana é, fundamentalmente, uma realidade simbólica, entretecida de significados. Tanto a verdade quanto a realidade são construídas em processos intersubjetivos de produção de significados. Convém ponderar nas palavras do linguista Marcuschi (2005):

“As pessoas concordam intersubjetivamente porque classificam e organizam o mundo de forma parecida quando vivem na mesma cultura. Assim, o conhecimento objetivo, a verdade, a categorização etc., surgem como fruto de uma triangulação entre dois indivíduos e o mundo sem a necessidade de uma relação direta da mente com mundo e sim a coerência na relação com o mundo.”
(pp.58-59)


Que fique claro que não se está negando a existência de um mundo exterior à mente, de um mundo acessível à experiência sensorial (ainda que possa ser aí, muita vez, distorcido). Este mundo dos objetos, das coisas que nos cercam existe, mas ele não é dado, não está organizado, pronto a priori. Marcuschi corrobora esta ideia, notando que:

Não nego que exista certa relação entre linguagem e algo externo a ela, mas nego que ela seja estável, pronta e universal, e a mesma para todo o sempre. Afirmo que conhecer não é um ato de identificação de algo discreto existente no mundo e mediado pela linguagem: conhecer é uma atividade sócio-cognitiva produzida na atividade intersubjetiva (...). E a concordância geradora do consenso é o ponto de interseção que produz a crença objetiva.

(p. 69)


Trata-se, para Marcuschi, de colocar a objetividade como produto da intersubjetividade. Nietzsche chamaria essa objetividade de ficção. Portanto, uma ficção produzida nas relações culturais entre sujeitos situados historicamente. Assim é que “o mundo, dirá Marcuschi, não é um grande supermercado com gôndolas universais divinamente mobiliados” (p. 67), e aos homens não cabe apenas mobiliá-lo.  Tampouco a linguagem é um instrumento transparente, preciso, claro pelo qual o mundo seria revelado a nós. Ao contrário, ela é caracterizada pela opacidade (de modo que o sentido não é auto-evidente, não está na superfície do discurso, como algo de que poderíamos nos apropriar imediatamente); ela não permite o acesso transparente ao mundo; tampouco a uma verdade absoluta.
Se levarmos em conta o que nos ensina Marcuschi, seremos forçados a concluir que as verdades são produções discursivas, produções elaboradas nas práticas intersubjetivas pelo uso da linguagem, muito embora tendo o mundo como interseção e as mentes, constituídas de tal modo que podem operar em relações intersubjetivas.
Não espero tenha esgotado todas as questões aí envolvidas; longe disso. Preciso, contudo, me apressar em trazer à cena discursiva o filósofo Nietzsche, o protagonista de minha discussão sobre o tema da verdade. Começarei, apresentando-o.

1. Quem foi Nietzsche?

Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão (nascido na Prússia), é considerado um dos pensadores mais originais do século XIX e bastante influente na modernidade. Sua obra toma como ponto de partida uma reflexão sobre a cultura grega antiga e sobre sua influência no pensamento ocidental. Vale reiterar: é precisamente da filosofia grega que Nietzsche parte para construir todo um novo modo de pensar a história, a arte, a vida e o homem.
Um crítico feroz do passado, Nietzsche também pode ser considerado um profeta de um mundo novo, de um mundo renovado, de uma história futura depurada dos entulhos de séculos e milênios. Um dessacralizador dos valores tradicionais, Nietzsche considerava-se um genealogista, por arvorar-se em crítico ferrenho da origem dos valores morais e das categorias filosóficas que mascaram tais valores com vistas a satisfazer interesses particulares. Como tal, propunha uma “transvaloração”, ou melhor, “uma transmutação de todos os valores”. Para ele, os valores predominantes eram os dos fracos, os dos decadentes e sua criação negava a vida, o “querer-viver”. Por conseguinte, Nietzsche se notabilizou formulando uma crítica profundamente causticante e radical aos valores tradicionais da cultura ocidental, ao conservadorismo, ao cristianismo e à visão burguesa de mundo. Considerado o mestre da suspeita, ele desenvolveu uma filosofia demolidora. Dizia ser necessário filosofar com um martelo.
Em Nietzsche, não encontraremos fatos, apenas interpretações. Para ele, não há fatos, apenas interpretações. Não há transcendência; tão-só imanência e aparência que, no mais, se identifica com o ser. A lógica, uma ficção, não é senão produto dos instintos. Não há um ‘eu’ indiviso, senhor de si, tampouco sujeito, autônomo e livre.
Ao revisitar a filosofia grega e refletir sobre sua influência decisiva no pensamento ocidental, Nietzsche identifica dois elementos que a fundamentam: o espírito apolíneo (de Apolo), que representa a ordem, a harmonia, a razão; e o espírito dionisíaco (de Dionísio), que representa o sentimento, a emoção, a ação. Segundo Nietzsche, entre nós, o primeiro espírito teria predominado asfixiando tudo que fosse “afirmativo da vida”.
Considerado “irracionalista”, politicamente suspeito, Nietzsche foi um poeta notável, embora tenha sofrido uma crise de loucura (não se sabe se devido ou não a sífilis), alternando momentos de profunda lucidez com momentos de incoerências e contradições. Não cessou de denunciar a inanidade dos valores humanistas, dos direitos humanos, da igualdade democrática. Sua obstinação no ataque aos “ídolos” da religião, da ciência foi marcante em sua empresa filosófica. Segundo Luc Ferry (2010),

“Ele surge como o primeiro, para não dizer o único, a responder aos desafios de uma existência “humana, humana demais”, de uma vida, enfim, liberta das miragens da fé em algum ideal superior. Uma filosofia não mais do céu, mas da terra (...)”.

(p. 63)


Admirá-lo, sim, pelo menos naquilo que soube celebrar: a afirmação da vida, o humano demasiado humano! Mas jamais endeusá-lo! Estudá-lo para tentar compreender a profundidade e originalidade de seu pensamento, sem deixar de identificar aquilo que o torna nocivo, desconfortante para nós – ou pelo menos para os que dentre nós acolhemos os valores democráticos e humanistas. Sim, porque Nietzsche foi um antidemocrático. Como humano, demasiado humano, também escreveu tolices e cometeu erros. Em O Crepúsculo dos Ídolos, no capítulo em que ele se dedica ao problema de Sócrates, se topa um trecho em que podemos encontrar todos os elementos de uma posição claramente fascista, o que explicaria a sedução que seu pensamento exerceu sobre os nazistas.

“Sócrates pertencia, por sua origem, à mais baixa camada do povo: Sócrates era o populacho. Sabe-se, vê-se ainda como era feio... Afinal, Sócrates, era grego? A feiúra é frequentemente a expressão de uma evolução cruzada, entrevada pela mestiçagem... Com Sócrates, o gosto grego se altera em benefício da dialética. O que acontece exatamente? Antes de tudo, é um gosto distinto que é derrotado. Com a dialética, o povo consegue levar vantagem... O que precisa ser demonstrado para convencer não vale grande coisa. Em todo lugar onde a autoridade ainda é de bom-tom, em todo lugar em que não se “raciocina”, mas se ordena, a dialetização é uma espécie de polichinelo. Riem dele, não o levam a sério. Sócrates foi o polichinelo que conseguiu ser levado a sério...”


Confesso que, em algumas ocasiões em que li Nietzsche, experimentei um profundo desgosto, decepcionei-me. E questionava: como pode ser tão lúcido em vários momentos e em outros tão moralmente ultrajante? Luc Ferry, comentando este trecho de Nietzsche, escreve:

“É difícil, hoje, ignorar o que um discurso como esse pode ter de desagradável. Todos os ingredientes da ideologia fascista parecem estar aí entrelaçadas: culto da beleza e da “distinção” do qual o “populacho” está por natureza excluído, classificação dos indivíduos segundo suas origens sociais, equivalência entre povo e feiúra, valorização da nação, no caso, a Grécia, suspeitas dolorosas de uma impossível mestiçagem, supostamente explicativa não se sabe de que decadência... Não falta nada. Não fique, contudo, com essa primeira impressão. Não que ela seja – que pena! – inteiramente falsa. Como aliás, já lhe disse, não foi por acaso que os nazistas retomaram Nietzsche”.

(p. 207)


Luc Ferry prosseguirá buscando estimular seu leitor a permanecer nas páginas de seu livro a fim de compreender o pensamento de Nietzsche, não obstante o desagrado que a passagem referida cause nele e no leitor. E passagens como estas não rareiam na obra do insigne filósofo alemão, infelizmente. No entanto, não nos apressemos em fazer delas razão suficiente para rejeitar toda a filosofia de Nietzsche; elas apenas nos advertem de que mesmo as mais brilhantes mentes foram capazes de produzir disparates. Filósofos não são imunes aos preconceitos de sua época, muito embora nos sintamos justificados em esperar que eles sejam os mais habilitados a percebê-los, criticá-los e rejeitá-los. De qualquer modo, o que devemos ter em conta é que os filósofos também erram, como errou Tomás de Aquino ao escrever contra as mulheres... É preciso lê-los, portanto, com senso crítico aguçado antes mesmo de admirá-los; examiná-los e compreendê-los, antes de condená-los. Não precisamos ser sempre condescendentes com suas ideias e visões de mundo. Devemos discordar deles, sempre que as ideias e crenças sustentadas ferirem o sentimento predominante de nossa época, os valores que nos são caros, as virtudes que admiramos, a ética por cuja elaboração e manutenção lutamos. Como antidemocrático, Nietzsche simpatizava com os valores aristocráticos. Se, por um lado, ele se opunha ao igualitarismo e à emancipação das mulheres, condenava o movimento anti-semita então crescente na Europa à época.
É preciso que compreendamos que Nietzsche nunca esteve interessado em buscar ou descobrir uma racionalidade no caos que é o mundo (ele entendia o mundo como um caos). O universo ou a Vida, para ele, é um complexo tecido de forças contraditórias. Nietzsche as identifica chamando-as de forças reativas e forças ativas. No domínio intelectual, as forças reativas se encarnam na ciência e na filosofia clássica (para ser mais exato, se encarnam “na vontade de verdade” que as anima). As forças ativas, por sua vez, atuam na arte e se revelam no espírito aristocrático. Proponho, então, que tenhamos em conta essa oposição, doravante.
A esta altura, sinto necessidade de encontrar uma chave para começar a desbravar as florestas densas do pensamento de Nietzsche, sem pretender a exaustão. A chave que escolherei será a linguagem. Começarei, portanto, considerando como Nietzsche entendia a linguagem para, então, a partir desse domínio de reflexões, dar a saber como ele pensou a verdade, o homem, a história, a ciência e a arte. Não custará ao leitor perceber que esses temas estão interligados.

1. A linguagem como metáfora

Enceto esta seção, evocando a lição de Saussure sobre a natureza arbitrária do signo linguístico. Como se verá, não é propriamente dessa relação que se ocupa o pensamento de Nietzsche, mas a lição de Saussure nos ajuda a situar o problema da linguagem em Nietzsche.
Ferdinand Saussure nos ensinou, no início do século XX, que o signo é resultado de uma relação dicotômica entre duas faces: o significante e o significado. O significante, para o mestre genebrino, se definia como “a imagem acústica do som”, a impressão psíquica do som, não o som em si; o significado não mais era do que o conceito. Em filosofia, sem pretender considerar as nuances que toma nos pensamentos dos filósofos, o conceito se define como uma representação mental dos objetos de nossa percepção. Pelo conceito, designamos os ‘dados’ de nossa experiência sensorial. Saussure, então, entendia que a ligação entre o significante e o significado era arbitrária. Melhor seria dizer, notariam os estudiosos da Escola de Praga, convencional. De qualquer forma, com a qualificação “arbitrária” queria dizer Saussure que não havia um vinculo natural entre o significante e o significado; na verdade, esse vínculo era estabelecido pelos homens na base de um consenso social. Assim, por exemplo, não há nada na palavra “cavalo” que me leve a inferir, por uma relação natural, o significado ‘equino’, tampouco, a princípio, há algo que impediria que “cavalo” designasse o que entendemos por “árvore” (o que impede é a convenção social estabelecida em torno da ligação entre o significante e o significado; o indivíduo sozinho não pode romper radicalmente com esse laço determinado por convenção). Destarte, não obstante ter Saussure estabelecido como objeto de estudos para a então ciência nascente, a Linguística, a língua tomada em si e por si mesma, sem qualquer relação com o social, não deixou de reconhecer ser ela uma realidade social. Mas deixemos Saussure e retomemos a Nietzsche.
Como Nietzsche entendia a palavra (que em Saussure identificava-se com o signo, muito embora signo não seja redutível a esse estrato gramatical)? Nas palavras do filósofo, em Sobre Verdade e Mentira lemos:

“O que é uma palavra? é a reprodução de um estímulo nervoso em sons. Mas deduzir do estímulo nervoso uma causa fora de nós é já o resultado de uma aplicação falsa e injustificada do princípio da razão”.

(p. 30)


A preocupação de Nietzsche repousa em saber se a designação revela, de fato, as coisas do mundo. Em outras palavras, se a linguagem diz o mundo tal como é realmente. A resposta de Nietzsche é negativa e a justificará notando que a linguagem opera na base de metáforas. A primeira metáfora é a própria reprodução de um estímulo nervoso em uma imagem; a segunda é a transformação desta em som. Embora estejamos acostumados, por força da tradição escolar, a pensar na metáfora como uma figura de linguagem, um recurso de linguagem que caracteriza estilos literários, já foi mostrado, nos estudos linguísticos, que as metáforas estão na base dos processos semânticos da linguagem. Digamos, em termos filosóficos, a essência da linguagem é ser metafórica (bem como polissêmica, e Nietzsche bem o notara). Veja-se a quantidade de formas metafóricas que impregnam a nossa linguagem do dia-a-dia (p.ex. abra seu coração, tenha a mente aberta, ver uma luz no fim do túnel, pescar ideias, não cair a ficha, luz da vida, etc.). Por metáfora, Nietzsche entenderá, portanto, essa transformação de uma coisa captada pelos sentidos em uma imagem e desta em som.


2. Verdade, ciência, arte em Nietzsche

Assim, dirá Nietzsche, que a linguagem é uma metáfora para as coisas e que ela não espelha a realidade tal como é, mas serve tão-só para expressar as relações dos homens com essa realidade. O homem, pelo esquecimento, acredita ser capaz de atingir a verdade através da linguagem. A verdade é fruto desse esquecimento. Por isso, para Nietzsche, a verdade é uma ilusão, embora necessária, porque serve à sobrevivência.
De que esquecimento se trata, perguntará o leitor? Aquele segundo o qual são os homens que produzem as metáforas (palavras). Iludidos, os homens acreditam haver uma relação de causalidade entre a palavra e o objeto designado. Institui-se uma mentira social, necessária, no entanto, para a própria organização social e sobrevivência dos homens. O mentiroso é aquele que se usa das palavras, se vale de designações que contrariam as convenções estabelecidas. É somente em estado de rebanho, dirá Nietzsche, vivendo em sociedade, que os homens, por meio do engano, buscam a verdade. A linguagem lhes possibilita estabelecer normas de conduta dentro das comunidades.
A verdade em si, portanto, é inacessível ao intelecto humano, justamente porque ela não é outra coisa senão produto de operações metafóricas que entram na base de suas abstrações (conceitos).
Nietzsche reconhece nos homens um desejo de verdade; ele admite que os homens precisam buscar a verdade, porque disso depende a possibilidade mesma de viverem em estado de rebanho e de sobreviverem. Todavia, a “vontade de verdade” mascara uma face moral (e Nietzsche gostava de pôr a nu justamente o que está encoberto) que se define pela oposição entre verdade e aparência. Essa oposição leva a que se afirme uma vida além-mundo e se negue a vida mesma vivida neste mundo. A verdade é tomada, assim, como um valor superior e a ciência se torna a expressão mais alta dessa busca pela verdade, tomada como absoluta e à espera para ser descoberta.
A ciência concebe o mundo dotado de uma ordem mecânica, que funciona através de leis que, se compreendidas, permitem o acesso à verdade. Mas, dirá Nietzsche, que o mundo é um caos, que a lógica não se acha no mundo, mas nos homens. São eles que logicizam o mundo. São eles que projetam relações de causalidade entre os acontecimentos do mundo. A ciência está fundada na crença na vontade de verdade, de tal modo que a verdade ganha um valor superior, o que levou Nietzsche a reconhecer que a ciência não conseguiu liquidar Deus. A ciência tem seu Deus e ele se expressa na busca a todo custo pela verdade. A ciência professa uma fé no valor metafísico da verdade. A verdade é divina no domínio de referência científico. A ciência, ou melhor, os cientistas (note o processo metonímico aí: usar “ciência” para designar ‘aqueles que fazem ciência’) tendem, sem se darem conta disto, a endeusar a verdade, a tratá-la como algo transcendente (no sentido comum), embora acessível pelo método científico.
Em A vontade de Potência, lemos o seguinte:

“A vontade de verdade é uma crença – crença na superioridade da verdade – e é nela que a ciência se funda. Não há ciência sem o postulado, sem a hipótese metafísica de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade tem mais valor do que a aparência, a ilusão”.

(pp. 78-79)


A crítica de Nietzsche é uma busca por um mundo mais humano. Se a ciência se demonstrou incapaz de humanizar mais o homem, que alternativa poderia haver para ele? Eis que surge a arte, tão valorizada no pensamento de Nietzsche. Para ele, a arte não deixa de ser também uma mentira, mas uma mentira que confere profundidade à vida humana, preterindo, para tanto, da lógica. A arte transforma a visão que temos da vida. Ela causa um abalo, ensinará Nietzsche, na percepção que temos do presente. A arte leva em conta a ignorância natural do homem sobre si mesmo. Não tem ela pretensão de atingir alguma essência do homem, mas tão só a sua superfície. Mas é justamente ao fazê-lo, que ela aproxima o homem do homem. A arte torna a vida mais suportável.
Disse que o espírito dionisíaco se expressa na arte. E Nietzsche se vale dele para conduzir o homem a um retorno a si mesmo. Nietzsche se propôs a naturalizar o homem, livrando-o das sombras de Deus e de suas ilusões da razão. O homem que se reconhece no engano e reconhece o engano em que sua vida está imersa é um homem livre de seus ídolos (Deus, a verdade, a ciência, a razão, a lógica...).

3. Em cena, a História

As verdades são construções históricas. Nietzsche o reconhece. E um traço marcante que diferencia os homens dos animais é que aqueles vivem de modo histórico, ao passo que estes vivem de modo a-histórico. O homem tem consciência de seu passado e não esquece os momentos que viveu; ao contrário, os animais não podem recuperar o passado, eles estão completamente imersos no instante, no presente.
Ao resgatar o passado, os momentos vividos, pela memória, os homens podem experienciar profunda infelicidade. Para Nietzsche, a felicidade só poderia ser alcançada vivendo o presente. Há três tipos de história identificados pelo filósofo: a Monumental, a Antiquária e a Crítica.
A monumental encerra a descrição de fatos que são exaltados, que são considerados grandiosos. Nela, o passado é celebrado e a grandiosidade do presente depende deste resgate do passado e de sua celebração. Para Nietzsche, isso impede o progresso e faz com os homens depreciem o presente.
A antiquária lança o homem como participante do passado, mantendo nele vivas as lembranças dos instantes vividos. Mas aqui o passado é conservado no presente, o que impede a busca pelo novo, a aventura em desvendar o desconhecido. Os homens conservam a vida, mas não podem criá-la, isto é, buscar o novo. Nesse sentido, só tem valor o que é passado e é ele o modelo para viver o presente.
O sentido crítico da história, no entanto, é que permite o homem ser autêntico, dispensando a máscara de que se serve para sobreviver. Somente o sentido crítico da história o conduzirá adiante, a viver projetando-se para o futuro, que se tornará presente. Nesse sentido, o homem não precisa mais retornar ao passado monumental ou à sua forma antiquária para sentir-se plenamente realizado e vivo.