sexta-feira, 12 de junho de 2015

"A verdade última é desvelada lentamente por meio do desenrolar evolutivo da história das ideias" (Hegel)

                        
                                            
                                                 


                               A dialética hegeliana
                                e a crítica marxista

Neste texto, tenciono oferecer um recorte da dialética hegeliana, destacando suas propriedades, pressupostos e estrutura. Como seja meu objetivo oferecer um recorte, não estou interessado num exame exaustivo do tema, tampouco descerei a pormenores sobre o sistema hegeliano. A última seção deste texto é dedicada à contribuição da dialética marxista, que deve sua constituição e importância à dialética hegeliana.

1. Introdução

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um filósofo idealista alemão, nascido em Stuttgart, que elaborou um grande sistema metafísico que pretendia dar conta da lacuna entre aparência e realidade, negligenciada pelo idealismo transcendental de Kant. Hegel começa, portanto, de onde Kant parou.
Lembremos que, na metafísica de Kant, visto que a razão impõe certas categorias a priori à experiência, tudo que ela pode obter é um conhecimento sistemático dos fenômenos. A realidade por trás das aparências (do mundo fenomênico), que Kant denominou númeno, permanece incognoscível. Hegel, por seu turno, não aceitou o resultado a que chegou Kant. Para Hegel, é possível atingir a verdade absoluta, a qual se desvela lentamente no desenvolvimento evolutivo da história das ideias. Essa verdade absoluta é conceitual e não proposicional.
Hegel sustentou que a razão opera segundo um princípio fundamental que consiste em considerar falsas as contradições. Quando a razão está em face de uma ideia que envolve uma contradição, ela precisa levar adiante uma nova etapa no desenvolvimento do pensamento. A esse processo Hegel chamou dialética. Antes, porém, de atacarmos o tema da dialética hegeliana, considerem-se alguns aspectos do empreendimento filosófico de Hegel.
 A obra de Hegel é fortemente sistemática. Ela inclui, em um sistema integrado, todos os grandes temas e questões da tradição filosófica: ética, metafísica, filosofia da natureza, filosofia do direito, estética, etc. Para Hegel, atingir o saber absoluto é o objetivo final do desdobramento do espírito. A consciência crítica deve, pois, se auto-refletir, reconstruindo seu processo de formação.
Para Hegel, a reflexão filosófica deve começar pelo exame do processo de formação da consciência. Através da consciência crítica, de nossa situação histórica, podemos entender o próprio processo histórico, as leis da história, seu sentido e sua direção. Explicar a história é explicar o processo de desenvolvimento do Espírito. O Espírito é reflexão. O sujeito da história é o Espírito e seu objeto é também o Espírito. A cultura são as obras do Espírito, as quais, embora apareçam como coisas e fatos, são, na verdade, ideias, já que um Espírito produz ideias e não coisas.
Hegel entendia faltar ao sujeito kantiano uma imersão na história. O desdobramento do Espírito no mundo compõe a história. Hegel rejeita a visão dualista que assenta na oposição entre o fenômeno e o númeno. Nada deveria ficar de fora do escopo da atividade espiritual. Não se pode admitir a existência de algo externo ao Espírito. Hegel, portanto, rechaçou a noção de númeno e reelaborou a noção de fenômeno.
A Fenomenologia do Espírito tem como objetivo traçar a história do espírito humano, a elevação da consciência do conhecimento sensível ao saber absoluto.No Espírito Absoluto, o Espírito percebe-se idêntico a todo ser e qualquer realidade. Ele contempla-se a si mesmo. Fenomenologia, em Hegel, recobre o desenvolvimento do Espírito nas fases de produção do saber.
O espírito subjetivo é o espírito humano encerrado na subjetividade, a psicologia humana. O espírito objetivo exterioriza as categorias subjetivas. Dessa exteriorização resulta o mundo da moral, do direito, da história, da política, etc.
Para Hegel, o progresso da consciência é um produto da evolução histórica, cujo sentido só será conhecido no fim da história pelo filósofo que interioriza esse devir em seu pensamento.
Tudo é da ordem do Espírito: “o real é racional e o racional é real”, o que significa dizer que o real pertence ao domínio do Espírito, e o Espírito é a realidade. O Espírito, na medida em que se põe a conhecer as coisas, está construindo tudo o que existe; e, tomando consciência disso, reconhece-se como construtor de tudo, chegando a identificar-se com o próprio mundo. Esse é o saber absoluto. O saber absoluto é atingido quando o Espírito alcança o saber máximo de si mesmo. O conhecimento absoluto, segundo Hegel, é o “Espírito conhecendo-se a si próprio, sob a forma de Espírito”.
Em filosofia, o idealismo, movimento de que é representante Hegel, funda-se nas seguintes teses:

1a tese: Real é só o que tem um ser independente de qualquer outro;
2a tese: Aparência é  ser que depende de outro ser;
3a tese: Existência é o que pode ser imediatamente apresentado à consciência. Está no tempo e no espaço, se é físico; e , no tempo, se é psíquico;
4a tese: O real é somente o universal;
5a tese: O real não tem existência. O real é o universal e, portanto, um ser lógico;
6a tese: Existência é aparência;
7a tese: O real, sendo universal, é também pensamento, mente, inteligência, razão. Mas essa mente, pensamento, inteligência e razão é objetiva e abstrata; não existe na subjetividade;
8a tese: Este real é o ser último, princípio e fonte de todos os seres, o Absoluto, do qual o universo procede e pelo qual se explica;
9a tese: O real é o primeiro princípio como prioridade lógica e não cronológica.

Por fim, para Hegel, o ser é ser puro, é nenhuma determinação. O ser é idêntico a si mesmo. É imediatez indeterminada. O ser é a indeterminação pura e o vazio puro. O ser é o nada, nem mais nem menos que nada. A Ideia, por seu turno, é uma mente absoluta; é Deus em si mesmo. Essa mente absoluta preexiste ao universo. É Deus antes de se manifestar, aparecer. Sua manifestação é a Natureza, a antítese da Ideia. A Ideia é real, mas não existe. A Ideia precisa manifestar-se como Natureza para ter existência.
No Espírito, a Ideia não será apenas em si, mas também para si. O Homem é o elemento do Espírito; é ele que existe na natureza e, ao mesmo tempo, é um ser espiritual.

2. A lógica na filosofia de Hegel

Antes de nos debruçarmos sobre a dialética de Hegel, é indispensável compreender o que é a lógica para Hegel. Para ele, lógica é ontologia. É a ciência da ideia pura. Seu objeto é o pensar, mas o pensar como expressão da verdade. A lógica é o método próprio da filosofia. Ela não se ocupa de formas vazias, mas de conceitos densos e complexos. A lógica para Hegel é a ciência pura e ela tem como pressuposto a ciência do espírito desvelada, ou seja, a fenomenologia. Esta é responsável pela identidade entre pensar e ser.
A lógica hegeliana é uma lógica dialética alicerçada sobre a negação. A negação é tomada como positiva, no sentido de que ela não redunda numa nulidade, no nada abstrato. Essa negação não é negação absoluta, mas a negação de um conteúdo determinado por meio da afirmação de outro conteúdo determinado. A negação se resolve num resultado. Esse resultado é um conceito, mais rico do que o negado e do que aquele que lhe foi contraposto, visto que ele é a unidade das determinações (síntese) que se acham em um e outro, ou seja, no resultado e no conceito negado.
No início da lógica, o ser e o nada compõem uma unidade dialética. Nessa unidade, está a origem de todo o movimento que progride até seu ponto final, a saber, a Ideia Absoluta. A lógica assume como ponto de partida o puro ser, que é o conceito mais abrangente e mais abstrato, também mais vazio. O ser é completamente indeterminado e coincide com o nada. O ser e o nada é o mesmo. Na origem, a lógica encerra tanto o ser quanto o nada; mas o nada não é puro nada, é uma região do ser, um outro ser, portanto, o nada é.

3. A dialética hegeliana

A dialética de Hegel inicia-se com uma tese, que se toma, inicialmente, por verdadeira. A reflexão revela que há um ponto de vista, com igual pretensão de legitimidade, que se impõe como uma contradição da tese. Essa contradição é a antítese. Esses dois pontos de vista incompatíveis – tese e antítese – produzem uma nova posição conciliatória, chamada síntese. A síntese torna-se, então, tese, em face da qual, mais tarde, aparecerá uma antítese, à qual se seguirá uma nova síntese, e assim sucessivamente.
Esse processo gradual e necessário do pensamento é uma progressão em direção à verdade absoluta; no domínio da realidade, esse processo conduz ao Espírito Absoluto. O processo dialético de Hegel conclui-se com uma grandiosa concepção metafísica da mente universal.
Crítico da separação entre forma e conteúdo operada pela lógica clássica, Hegel defende que não há realidade objetiva independente do pensamento. Acrescenta que o pensamento é a realidade objetiva, e a realidade objetiva é o pensamento. Disso se depreende, com Hegel, que a lógica, sendo o estudo do pensamento, deve ocupar-se da realidade, mas não da realidade do mundo natural. Seu idealismo absoluto assenta na proposição de que a realidade se encontra no pensamento racional. A mente ou o pensamento racional é a realidade última. Portanto, a lógica é o estudo dessa realidade última em sua forma pura, a saber, abstraída das formas particulares que ela assume nas mentes finitas dos seres humanos ou no mundo natural.
Outro postulado do idealismo absoluto hegeliano, que têm importantes consequências para a lógica, consiste na assunção de que a razão molda o mundo, de sorte que o estudo do pensamento racional revelará, forçosamente, os princípios segundo os quais o mundo foi moldado.
A dialética hegeliana se apresenta sob seis formas:

1) dialética do ser: afirma-se a identidade entre o ser e o nada. O ser e o nada é o mesmo. Ser e nada é um;

2) dialética da essência: a essência é o ser enquanto aparecer indeterminado em si mesmo;
3) dialética do conceito: o conceito é a unidade dialética de ser e essência;

4) dialética da relação entre ser, essência e conceito: a essência nega o ser, o qual se torna aparência. O conceito é a negação da primeira negação; nesse sentido, é o ser recuperado, enquanto mediação e negatividade infinitas do mesmo em si próprio.

5) dialética do ser, da essência e do movimento do conceito:  o processo dialético do transformar-se em outro situa-se na esfera do ser e o aparecer em outro é o processo dialético na esfera da essência.O movimento do conceito é desenvolvimento, mediante o qual ele se torna aquilo que já está contido em si próprio.

6) dialética da ideia absoluta: a lógica representa o movimento próprio da ideia absoluta e lhe serve de expressão. A Ideia existe no pensamento puro, no qual a diferença é e permanece completamente transparente. Como expressão, a lógica é exterior à ideia e, por ser exterior, ela desaparece como expressão.

3.1.  A dialética do senhor e do escravo

A dialética serve a Hegel como método pelo qual ele lê e interpreta a história e explica a Modernidade como período em que a Europa conhece o avanço industrial, ao longo do qual se institui o poder republicano. Hegel se notabilizou também como o inventor da dialética e como filósofo que seria tanto influente no desenvolvimento do pensamento de Marx quanto “superado” pelo próprio Marx.
A fenomenologia deve mostrar que o desdobramento das formas da consciência de liberdade redunda no conhecimento real do que verdadeiramente é, ou seja, do Absoluto. A fenomenologia significa o aparecimento do espírito que percorre o mesmo caminho percorrido pela consciência do indivíduo, transitando do orgânico para o cultural. Quando o espírito se determina, surge a consciência de algo, consciência que é relação com algo. No momento em que o indivíduo se torna autoconsciente, toma consciência do outro. Esse momento é ilustrado pela dialética do senhor e do escravo.
O senhor, que dominou o escravo, acaba por se tornar ele mesmo escravo, porquanto, por ter-se acostumado a ser servido, é incapaz de fazer por si mesmo qualquer coisa. O senhor não se realiza como autoconsciente, porque necessita do outro, que é também autoconsciente, e, como o escravo, na relação com o senhor, se reduziu à coisa, a objeto, não é reconhecido pelo senhor como consciência. Hegel acredita que, através do trabalho, o escravo chega a formar consciência de si, tornando-se capaz de atribuir a si mesmo um significado.
Importa entender que a dialética do senhor e do escravo termina em frustração, uma vez que o senhor, tornando o escravo o seu objeto, perde aquilo de que precisa para continuar a se afirmar. Ele não poderia mais afirmar-se diante de um objeto que, como tal, é incapaz de reconhecer essa afirmação. Da perspectiva do escravo, que foi reduzido a objeto, o processo também se frustra; pois, na verdade, ele não se realiza completamente. O escravo sabe não ser completamente um objeto. Conquanto esteja alienado de sua atividade e do produto dela, visto que tudo se destina ao senhor, ele ainda se percebe como um espírito. Ora, é o escravo quem trabalha e quem transforma a natureza.
Para Hegel, liberdade é conhecimento de si pelo Espírito. Liberdade não é possibilidade de fazer o que se quer. A liberdade é liberdade da consciência, do Espírito. E o Espírito é tanto mais livre quanto alcança um alto nível de conhecimento de si. Ele é tanto mais livre quanto mais consciente está do fato de que suas decisões são as que estão em consonância com a razão – que é uma força necessária e universal. A própria consciência se vê como necessária e universal.

3.2. Demonstração do método dialético na história universal

Nesta seção, cumprir-me-á elucidar como o método dialético interpreta a história universal. Na obra Filosofia da História, Hegel demonstra que um imenso movimento dialético domina a história universal desde o mundo grego até o presente.
A Grécia era uma comunidade assentada sobre a moral tradicional; era uma sociedade harmoniosa na qual os cidadãos se identificavam com a comunidade e não pensavam em agir contrariamente a ela. Essa comunidade tradicional constitui o ponto de partida do movimento dialético, a saber, a tese.
O próximo movimento é o da revelação da inadequação da tese. Na Grécia antiga, é o questionamento de Sócrates que põe a nu tal inadequação. Os gregos apreciavam o pensamento independente; todavia, quem pensa de modo independente da comunidade é inimigo mortal da moral tradicional. Doravante, a comunidade baseada no costume entra em crise, em face do princípio do pensamento independente. Não resta senão o desenvolvimento desse princípio, para o que o surgimento do cristianismo foi determinante.
A Reforma acarreta o reconhecimento do direito supremo à consciência individual. A harmonia da sociedade grega é extinta em proveito da liberdade. Esse é o segundo momento do pensamento dialético. É o oposto ou a negação do primeiro. Trata-se da antítese.
Sucede que o segundo momento também se revela inadequado. Afinal, a liberdade é demasiado abstrata e estéril para servir de base para uma sociedade. O exercício dessa liberdade culminaria com o terror da Revolução Francesa. Nem a harmonia tradicional nem a liberdade abstrata do indivíduo são satisfatórias para o bem-estar social. Disso resulta o terceiro momento da dialética, que consiste na síntese.
Na visão de Hegel, em Filosofia da História, a síntese, no movimento dialético total, é a sociedade alemã de sua época. Hegel via essa sociedade como harmoniosa, porque era uma comunidade orgânica, sem deixar de preservar a liberdade individual; e a preservava, porque era uma sociedade que exibia uma organização racional.
Todo movimento dialético termina com uma síntese, mas nem toda síntese representa o fim do movimento dialético, tal como o pretendido por Hegel. A síntese, certamente, reconcilia tese e antítese, mas pode revelar-se unilateral em algum outro aspecto. Por isso, a síntese se tornará tese de um novo movimento dialético.
Cumpre ainda ilustrar o movimento da dialética hegeliana no âmbito do pensamento. Na obra intitulada de Lógica, o método dialético é aplicado às categorias abstratas com as quais pensamos. Hegel principia com o conceito mais indeterminado e vazio: o ser, ou a simples existência. O puro ser carece de objeto que o torne apreensível pelo pensamento. O ser, diz Hegel, é pura indeterminação e vacuidade. É inteiramente vazio. O ser, de fato, não é nada.
A primeira tese é, portanto, o ser. O ser se transforma em sua antítese, que é o nada. O ser e o nada são ambos opostos e o mesmo; sua verdade reside nesse movimento de atração e repulsão entre os dois. Esse movimento é o devir. Acompanhando o que se disse acerca da dialética hegeliana, até aqui, não será custoso concluir que o devir é a síntese.


4. O trabalho dialético: a contribuição marxista

A Hegel devemos a afirmação: “A verdade é o todo”. O que significa dizer que a verdade é o todo? Significa que, se nós não virmos a totalidade, incorreremos no descuido de atribuir um valor exagerado a uma verdade limitada. Isso estorvaria nossa compreensão de uma verdade mais geral.
A dialética marxista está assentada no pressuposto segundo o qual o conhecimento é totalidade; e a atividade humana em geral é um processo de totalização, que jamais atinge uma etapa definitiva.
Embora tenha sido influenciado pela filosofia de Hegel, Marx deve muito aos materialistas Epicuro e Demócrito. O materialismo clássico exerceu uma significativa influência no desenvolvimento de sua crítica ao pensamento de Hegel. Marx se propôs revisar a filosofia idealista de Hegel. Em vez de assumir que o Espírito é responsável pelo mundo, Marx sustentou que o que é determinante de cada época da história são os modos de produção. O modo de produção é a forma como o homem organiza o trabalho. A história, no quadro do materialismo histórico, é estudada tendo em conta a relação do homem com a necessidade de organizar o trabalho.
O modo de produção passa a ocupar o lugar do Espírito. Marx não se ocupou com o desdobramento da filosofia; preferiu mostrar o desenvolvimento da sociedade e da economia. A tese básica do materialismo histórico consiste em que as ideias são produto de mecanismos materiais. As ideias, as concepções, a filosofia, a religião, não passam de manifestações mentais dos homens, ligadas ao modo como eles organizaram a maneira de produzir e reproduzir a sociedade e suas vidas individuais. Marx acreditava que uma vida ética só poderia ser alcançada pela supressão, na vida social, da ideologia.
Volvendo nossa atenção para a contribuição marxista no domínio da dialética, é necessário ter em mente o fato de que o ser humano percebe ou cria objetos que são partes de uma totalidade. Em cada ação levada a efeito, o homem lida, inevitavelmente, com problemas interligados. Por conseguinte, a fim de resolvê-los, ele precisa formar certa visão de conjunto deles: é com base nessa visão de conjunto que podemos avaliar a dimensão de cada elemento do estado-estado-de-coisas sobre o qual nos debruçamos.
É evidente que a visão de conjunto é sempre provisória e nunca pode pretender esgotar a realidade a que se refere. A realidade é sempre mais complexa do que o conhecimento que dela podemos ter. Há sempre alguma coisa que escapa às nossas sínteses.
A síntese é, portanto, a visão de conjunto que permite ao ser humano descobrir a estrutura significativa da realidade com a qual se defronta, numa dada situação. A totalidade é essa estrutura significativa desvelada pela visão de conjunto.
No entanto, a totalidade é mais do que as partes que a compõem. A totalidade tira sua razão de ser do modo como estão articulados os seus elementos. Esse modo de articulação lhes dota de características que não possuiriam isoladamente. Não menos importante é reter que há totalidades mais abrangentes e totalidades menos abrangentes. Estas, evidentemente, integram-se às primeiras.
Do que precede, infere-se que trabalhar dialeticamente com o conceito de totalidade supõe sempre a necessidade de determinação do nível de totalização exigido pelo conjunto de problemas com os quais lidamos. Outrossim, é impreterível não esquecer que a totalidade é apenas um momento de um processo de totalização.
A dialética se define, assim, como uma maneira de pensar que se elabora em função da necessidade de reconhecimento da constante emergência do novo na realidade humana. A dialética nunca pode deixar de rever suas sínteses, sob pena de negar a si mesma.
Sem pretensão à exaustão, cumpre, no entanto, frisar que a modificação do todo é mais complicada que a modificação de cada uma das partes. Cada totalidade muda de um modo que lhe é específico. As condições de mudança variam em consonância com o caráter da totalidade e do processo específico do qual ela é um momento.
Veja-se um exemplo de como podemos operar com totalizações. Se eu estou interessado em estudar a realidade política atual do Brasil, o nível de totalização exigido nessa tarefa implicará a visão de conjunto da sociedade brasileira, à luz da qual se discriminam a sua economia, a sua história e as contradições atuais. Se, por outro lado, estou interessado em aprofundar minha análise, com vistas a compreender a situação do Brasil no âmbito mundial, necessitarei de um nível de totalização mais abrangente. Esse nível deverá encerrar uma visão de conjunto do capitalismo, da sua gênese, da sua evolução, dos seus conflitos no mundo contemporâneo, etc. Do que se expôs, segue-se que o conhecimento, nessa perspectiva dialética marxista, é sempre totalizante e que a atividade humana é um processo de totalização.
A dialética hegeliana (que, em grego, é diálogo, é pensamento e palavra (lógos) divididos em polos contraditórios) trata a história como processo temporal movido internamente por divisões e contradições, cujo sujeito é o Espírito como reflexão. A dialética hegeliana – insistimos – é idealista, porque seu sujeito é o Espírito, e seu objeto também é o Espírito. As obras do Espírito (a cultura),embora apareçam como fatos e coisas, são ideias. Um espírito produz ideias e não coisas.
O idealismo hegeliano assenta na proposição segundo a qual a história é o movimento de oposição, negação e conservação das ideias, e essas ideias são a unidade do sujeito e do objeto da história, que é o Espírito.

Marx, posto que conserve o conceito de dialética como movimento interno de produção da realidade, cujo motor é a contradição, legado por Hegel, demonstra que a contradição não é a do Espírito consigo,não é a de sua face subjetiva com sua face objetiva, não é a de sua exteriorização em obras e sua interiorização em ideias. Para Marx, a contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais e essa contradição chama-se luta de classes.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Deflacionismo e modalização

                                Resultado de imagem para Lógica




                                          A Sophia linguística
                               Pela necessidade de ruptura com o senso comum


1. Um breve recorte histórico

Embora sob o domínio das especulações filosóficas por mais de dois mil anos, as questões linguísticas passaram a fazer parte, pelo menos com a publicação da obra Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, em 1916, da alçada da Linguística, que então, na letra de seu próprio pai, deveria ser uma ciência autônoma. É bem verdade que a Linguística, enquanto ciência, já existia a partir  dos últimos anos do século XVIII e que o impacto da publicação do Curso de Saussure só se deu no fim da década de 1920. Também é verdade que a Linguística moderna, cujo pai é considerado Saussure, não seguiu, com fidelidade, os passos determinados por seu fundador, para o qual o objeto de estudo desta ciência deveria ser a Langue, ou seja, a língua tomada em si e por si mesma (e isso tem mais que ver com seu desenvolvimento revisionista-crítico do que com uma mera infidelidade às teses saussurianas). Quero dizer que, ao longo das décadas, ficou claro aos linguistas que a língua não se reduzia a um sistema de signos autônomo, que seu estudo, caso pretendesse fornecer um modelo descritivo adequado da realidade linguística,  deveria contemplar fatores de ordem social que influenciam o uso da língua.
A Linguística é, hoje, reconhecidamente uma ciência, que dispõe de um objeto e métodos próprios. Nas décadas seguintes – no Brasil, especialmente as de 1960 e 1970 – à publicação do Curso, os modelos formalistas (estruturalismo e gerativismo) se tornaram os modelos hegemônicos. Em comum, têm eles o interesse pela forma da língua, a saber, por sua estrutura, sem qualquer consideração de variáveis sociais que influenciam o uso que os falantes fazem da língua. Na década de 1970, nos Estados Unidos e na Europa, linguistas houve que reatualizaram princípios funcionalistas, que já encontravam repercussão em trabalhos de linguistas anteriores a Saussure – trabalhos produzidos no final do século XIX.  As teorias funcionalistas trouxeram em seu bojo o interesse fundamental não mais pela forma dos enunciados, mas pelas funções a que serve o uso da língua. Embora diversas, as teorias funcionalistas estão de acordo no tocante à primazia da função sobre a forma: o uso da língua influencia a forma assumida pelos enunciados – eis o postulado central do funcionalismo. Os modelos funcionalistas inscreveram a dimensão social da linguagem no horizonte de interesse dos estudos linguísticos. O uso da língua, que é o verdadeiro escopo de investigação dos modelos funcionalistas, é de natureza fundamentalmente social. Mas o uso da língua não só exibe uma face social; exibe também aspectos cognitivos. Foi então que década de 1980 conheceu a chamada virada cognitivista nos estudos linguísticos. Toda ação, inclusive as ações linguísticas (estas objeto de estudo da Pragmática), é acompanhada de processos cognitivos. Não tardou para que se eliminasse a separação clássica entre processos de ordem cognitiva e fenômenos sociais, ou seja, entre o que acontece no interior da mente dos usuários da língua e o que acontece no exterior dela. Com base no postulado segundo o qual a cognição é produto das nossas ações e de nossas atividades sensório-motoras, surgiu a perspectiva sociocognitivista-interacionista, então preocupada em compreender como os processos cognitivos acontecem em sociedade, e não somente nos indivíduos. Essa perspectiva incorpora aspectos sociais, culturais e interacionais à compreensão daqueles processos.
Como se vê, a Linguística, hoje, é uma ciência pluridisciplinar, estando em constante diálogo com disciplinas tais, como a sociologia (sociolinguística), a psicologia (psicolinguística), a História, a Psicanálise (as Análises do Discurso) e a própria Filosofia. A interdisciplinaridade que atravessa o campo da Linguística é, em última instância, uma consequência da natureza do próprio objeto de estudo dessa ciência: a língua, que se revelou aos estudiosos como uma realidade heterogênea e heteróclita. Língua é, fundamentalmente, uma prática social, uma atividade intersubjetiva, uma realidade sócio-histórica. A língua só existe no uso, nas práticas linguajeiras de que participam sujeitos históricos.

2. O Deflacionismo e sua questão linguística

Mesmo consciente de que não se pode esperar que todos os filósofos profissionais ou estudantes de filosofia manifestem adequado domínio teórico na exposição de suas intuições linguísticas costumeiras, é lícito deles exigir o cuidado no emprego que fazem de certas noções com vistas a expressar aquelas intuições. Esse cuidado se expressa numa preocupação com a exatidão na definição do significado dos termos empregados. Um caso ilustrativo disso é o uso da noção de “ênfase” para explicar a ocorrência de construções como “é verdade que”, em enunciados como (a) É verdade que dois mais dois são quatro. É sinal de prática teórica ingênua o explicar o uso de “é verdade que” como uma marca de ênfase, como se, na falta de uma compreensão melhor desse uso, se pudesse dizer acertadamente que essa expressão é um recurso de que se vale o falante para marcar ênfase. Tal modo de proceder metalinguisticamente acaba por converter a noção de “ênfase” numa espécie de dispositivo ad hoc, além de ignorar o fato de que se pode marcar a ênfase por meio de atividades epilinguísticas (quando o produtor do texto opera conscientemente ajustes em seu texto a fim de melhor expressar as possibilidades de sentido: p. ex., o uso repetido de “tudo”, em “Coma tudo, tudo, tudo!”, marca ênfase, se comparado com a forma do enunciado correlato “Coma tudo”.), ou por meio de recursos supra-segmentais, como entonação, altura da voz ( p. ex.: na pronúncia do “NÃO”, em “NÃO quero!”).
Concentremo-nos, doravante, na questão linguística prevista na posição do deflacionismo, a fim de esclarecê-la sem recorrer a explicações simplistas que apelam para a noção de ênfase. Começo por esclarecer o que sustenta o deflacionismo.
Em epistemologia, o deflacionismo mantém que a verdade não é uma propriedade substancial da proposição. O deflacionismo pretende dessubstantivar a verdade. Em última instância, pode-se dizer que o deflacionista dessencializa a verdade, destitui-a de qualquer carga metafísica. O filósofo deflacionista sustenta que a verdade não é, absolutamente, um predicado, não é uma propriedade “real”. A verdade é redundante, porque o que se fala sobre a verdade é algo puramente formal.
Vejamos como o deflacionista defende sua posição. Ele diz que, numa proposição como (b),
(b) É verdadeiro que dois mais dois são quatro.

a expressão em itálico “é verdadeiro” não constitui um predicado substancial da proposição. Ela figura no enunciado por razões pragmáticas, performáticas, subjacentes ao uso da linguagem. Cabe esclarecer, portanto, o que significa dizer que a expressão “é verdade” deve sua ocorrência a fatores pragmáticos.
À luz de uma abordagem pragmática da língua, ou seja, uma abordagem que leve em conta o uso da língua e, portanto, os usuários da língua, seus propósitos sociocomunicativos, e o próprio contexto comunicativo, observa-se que o falante que produz “é verdadeiro que”, ou “é verdade que” marca, em seu enunciado, uma atitude epistêmica, que se expressa na forma de adesão ao conteúdo do enunciado. Essa adesão a, ou comprometimento com, engajamento com o conteúdo do enunciado tem um evidente efeito argumentativo. Portanto, do ponto de vista argumentativo, o falante, ao usar “é verdadeiro/ verdade que p”, está marcando seu comprometimento, seu engajamento com certa orientação argumentativa na produção de seu próprio discurso. É claro que esse engajamento só pode ser descrito quando consideramos o enunciado como parte de uma totalidade discursiva e não isoladamente. Tome-se, portanto, o seguinte evento interacional, no qual dialogam os interlocutores A e B:

A – Pedro disse que a irmã dele não estava em casa ontem. Mas acho que ele não disse a verdade.
B – Não sei se você foi até à casa dele para verificar, mas é verdade que ela ia sair ontem.

Note-se que o falante B, ao usar o marcador “é verdade que”, compromete-se com o conteúdo do que enuncia, dá, por assim dizer, “a cara a tapa”. Esse comprometimento se expressa também em relação à orientação argumentativa assumida por seu discurso, pois que B procura argumentar contrariamente à suspeita levantada pelo falante A. Este lança dúvida sobre à confiabilidade do que disse Pedro (“talvez ele não tenha dito a verdade”), mas B argumenta que A pode estar equivocado ao levantar desconfiança contra Pedro, porque “é verdade que ela ia sair”. Em outros termos, B assegura que está de posse do conhecimento de que Lúcia poderia não estar em casa, pois ia sair. É claro que, na prática linguística, os usuários da língua não atuam e nem sempre estão interessados em assegurar-se das fontes de seus conhecimentos sobre as ocorrências do mundo. Para o analista da linguagem, não está em questão determinar se B está justificado para dizer “é verdade que ela ia sair”, mas sim reconhecer que quem diz “é verdade que...” está se comprometendo com uma posição argumentativa, está manifestando sua completa adesão ao conteúdo comunicado. Isso tem consequências sociointeracionais. A teoria das faces verá no uso de “é verdade que” um recurso que expõe à ameaça a face positiva do próprio falante. Ou seja, quem diz “é verdade que” põe em risco sua imagem sociocultural positiva, pois que assume dispor de uma fonte de conhecimento que, se, posteriormente, verificar-se não ser uma fonte de saber, pode atrair para si alguma forma de depreciação social. Ele pode passar-se por mentiroso, malicioso, enganador, etc. É claro que o falante pode se defender contra uma suposta acusação de insinceridade. Suponhamos que A saiba que Lúcia não saiu, mas estava em casa, na cama com muita febre. Se A acusasse B de mentiroso porque disse, com alto grau de confiabilidade, que Lúcia ia sair, B pode defender-se dizendo que ele se comprometeu com a possibilidade de Lúcia sair, mas não com o fato de ela ter saído. Ora, B ouviu dizer (suponhamos da própria Lúcia) que no dia em questão Lúcia pretendia sair. Assim, B marcou sua adesão ao conteúdo do seu enunciado, que expressava um saber de que ele, B, dispunha.
Em suma, do ponto de vista pragmático, expressões como “é verdade que” não marcam ênfase. São, na verdade, modalizadores epistêmicos, pois que marcam uma adesão do falante ao conteúdo do seu enunciado em termos de um saber disponível. Assim, a diferença entre “eu sei que” e “eu acredito que” é de grau de modalização. Quem diz “eu sei que p” afirma um grau de adesão maior ao conteúdo do enunciado, afirma estar de posse de um saber do qual a proposição subsequente à conjunção “que” é expressão. Quem, por outro lado, diz “eu creio que”, marca um grau de adesão mais frouxo. Lembro que usamos “eu creio que” para marcar nossa expectativa ou desejo de que se realize o estado-de-coisas descrito na oração completiva. Por exemplo, quem diz “eu creio que o Brasil será campeão da Copa América”, expressa uma expectativa, uma confiança em que o estado-de-coisas descrito será realmente o caso.
Argumentativamente, modalizar enunciados é uma prática extremamente desejável e eficaz para que atinjamos os objetivos perseguidos. Sempre que não dispomos de evidências suficientes para fundamentar um saber, convém lançar mão de expressões do tipo “talvez”, “é provável que”, “parece que”, etc.  Modalizar  enunciados é um bom expediente para que nos protejamos dos ataques de nossos interlocutores; é um recurso de que dispomos para proteger nossas faces e as faces de nosso interlocutor. Imagine-se que num debate filosófico A sustente (c):

(c) A - É certo que Nietzsche foi um metafísico.

Mas B, discordando, afirme (d):

(d) B – Não é verdade que Nietzsche foi um metafísico.

A questão de ter sido Nietzsche um metafísico ou um antimetafísico é discutível na filosofia. E argumentos favoráveis a uma e outra tese podem ser sustentados e encontrar apoio entre os especialistas. O que interessa é notar o seguinte: por um lado, o valor de verdade da proposição “Nietzsche foi um (anti)metafísico” é dependente de disputas interpretativas autorizadas pela própria obra nietzschiana ( uma e outra interpretação pode ser autorizada pela obra do filósofo); por outro lado, os defensores de cada uma das posições marcam uma forte adesão ao conteúdo de seus enunciados, isto é, uma forte adesão à orientação argumentativa conferida ao seu discurso.
Certamente (note-se o uso desta forma modalizadora!), o uso da construção “é verdade que” (ou “é verdadeiro que”) tem um efeito de sentido que não se pode ignorar. Certamente, essa construção cumpre uma função discursiva; mas, para o deflacionista, não há uma diferença substancial epistemológica entre dizer “é verdade que p” e, simplesmente, “p” (p. ex. dois mais dois são quatro).

Para o deflacionista, portanto, afirmar p é afirmar que p é verdadeiro, e que se crê que p; e crer que p é crer que p é verdadeiro. É também crer que temos razões para crer em p (ou seja, estamos justificados para p).

sábado, 16 de maio de 2015

"(...) é preciso necessariamente concluir, de tudo o que disse antes, que Deus existe: pois ainda que a ideia de substância esteja em mim por ser eu mesmo uma substância, eu não teria, porém, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não houvesse sido posta em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita" (Descartes)

                           
                    


                              O Deus cartesiano
                         No caminho da autonomia secularizadora



Introdução

Atendo-se à Revelação, o teólogo do século II, Orígenes, preconizava que o mundo foi criado por Deus, ou melhor, pelo Lógos. Para a filosofia cristã, Deus é o ser verdadeiro que, segundo Clemente de Alexandria, teria sido entrevisto por Platão. Santo Agostinho, o maior pensador da Antiguidade posterior cristã, pensava Deus como a Verdade e a Luz Imutável, a cuja busca consagrou grande parte de sua vida, após a conversão ao cristianismo. Para Agostinho, todas as coisas foram criadas por Deus e constituem elas reflexos da sabedoria divina.
Em linhas gerais, a doutrina de Deus da filosofia cristã pode ser descrita como se segue:

1) O Novo Testamento adotou completamente a fé no Deus do Antigo Testamento, de sorte que, para os cristãos, Deus é o fundamento absoluto do Ser. Ao mesmo tempo, é também o Deus vivo e pessoal, livre e onipotente da criação, da revelação e da salvação. Esse Deus é infinitamente superior ao mundo e incognoscível, muito embora seja tão próximo e familiar que torna possível ao homem estabelecer uma relação íntima e pessoal com ele. É assim que o homem se aproxima de Deus, reconhecendo-o e percebendo-o.

2) Há duas novidades que merecem destaque na concepção cristã de Deus. A primeira diz respeito à crença em que Deus atua não só na história do povo de Israel, mas também na história de toda a humanidade. O cristianismo enfatizou a universalidade da ação salvífica de Deus, que transforma a história humana numa história sagrada. A segunda novidade consiste na afirmação de que Deus é amor. Acresce-se a isso a convicção de que Deus é Pai, Pai de amor, que se comisera dos homens, que põe sua onipotência a serviço do amor, dando testemunho desse amor na pessoa de Jesus Cristo, o qual é concebido como o próprio Deus que se fez carne para salvar a humanidade de seus pecados.

3) Finalmente, a compreensão cristã de Deus abriga a natureza trina de Deus: Pai, Filho e Espírito. Essa doutrina, ainda que contida nas epístolas paulinas e no Evangelho de Mateus (28:19), só viria a consagrar-se como conteúdo de fé nos concílios da Igreja dos séculos IV e VI, após árduos conflitos. A doutrina da Trindade, como ficou conhecida, não se limitando ao pensamento teológico, penetrou o pensamento filosófico até a Idade Moderna. Essa doutrina não obnubila a natureza una de Deus. O Deus único vive na trindade de pessoas e sua unidade encerra, originalmente, a multiplicidade. Um mundo plural de coisas finitas só poderia provir de um Deus que encerra em si uma multiplicidade. É porque Deus é a plenitude infinita do Ser, da vida, inclusive da vida espiritual-pessoal, e do amor, que ele se basta a si mesmo. Para ser Deus, ele não necessita do mundo nem dos homens.

Conquanto se admita que a antropologia cartesiana tem raízes em Agostinho, o Deus de Descartes é distinto do Deus de Santo Agostinho (e poderíamos dizer de grande parte dos autores cristãos da tradição). Duas são as questões que me ocuparão, portanto: qual é a natureza do Deus cartesiano? e qual estatuto tem esse Deus em sua antropologia?


2. A verdade eterna: o cogito agostiniano

Intentando responder aos céticos, para os quais a verdade incondicionalmente válida parece inalcançável, Santo Agostinho sustentará que encontramos a verdade em nós mesmos. Para demonstrá-lo, ele nos faz ver que quem duvida sabe que duvida, sabe que esse saber é verdadeiro e tem certeza disso. Há, pois, um saber na dúvida, um saber que não é elidido pela dúvida. Mesmo duvidando, sei que duvido, que penso, que vivo e procuro a verdade segura. Ora, vê-se que Agostinho, antes mesmo de Descartes, chegou à certeza imediata do ato espiritual da reflexão existente por si (Posto que me engane, sou).
Não devemos daí concluir que o cogito cartesiano resulte de mera apropriação do cogito agostiniano. O cogito cartesiano inscreve-se num horizonte hermenêutico outro e específico. Convém, no entanto, deter-nos um pouco mais em Agostinho, antes de contemplar o cogito cartesiano.
Se encontramos a verdade em nós mesmos, então não só encontramos o saber sobre nós mesmos, mas também o saber sobre a verdade geral e necessariamente válida. Encontramos não só verdades contingentes factuais, mas também verdades necessárias da razão, leis do pensamento e do ser, que, estando em nosso pensamento, fornecem-lhe as normas. Agostinho retoma isso especialmente de Platão. O que é propriamente verdadeiro, para Agostinho, não é o fato singular na transitoriedade dos acontecimentos, mas a verdade eterna. Essa verdade eterna é imutável. Donde provêm, pergunta Agostinho, as “verdades eternas”, como as das leis lógicas, matemáticas, éticas e metafísicas? Não poderiam elas provir da experiência sensível, porquanto a experiência sensível é mutável. Há normas, em que se funda nossa experiência, que não poderiam provir dos sentidos. Assim, por exemplo, podemos apreender a ideia de unidade, mas não podemos tirá-la da multiplicidade das impressões sensíveis; essa ideia é anterior a estas impressões. A unidade é uma verdade eterna que governa nosso pensamento. Seria o nosso pensamento a origem dessa ideia? Agostinho dirá que não, pois também nosso pensamento está em constante mudança. Seguindo, em parte, Platão, Agostinho assumirá que há ideias eternas que constituem condições normativas anteriores ao pensamento. Mas, ao contrário de Platão, tais ideias eternas não subsistem por si mesmas, mas demandam um fundamento incondicionado e imutável de sua validade. Tal fundamento Agostinho identifica com Deus, “a verdade eterna mesma”. As ideias eternas são ideias no pensamento de Deus.
Uma primeira distinção entre o cogito agostiniano e o cartesiano deve ser já salientada: em Agostinho, o saber sobre o próprio pensar prende-se à experiência viva de si mesmo. Na medida em que penso e vivo, que penso na vida concreta, é que sei e tenho certeza de mim mesmo. Sucede diferente com Descartes, em cuja filosofia o ego cogitans (eu pensante) é um sujeito puro que, sem mundo e incorpóreo (aparentemente), se contrapõe à objetividade.


3. O cogito cartesiano

Não sem razão Descartes é apontado como o pensador que marca a etapa antropocêntrica da filosofia ocidental. Descartes é quem marca filosoficamente a passagem do Medievo para a Modernidade. Ele foi, por um lado, o último medieval; e, por outro, o primeiro “moderno”. Tendo-se dissipado a certeza produzida pela hermenêutica cristã, coube a Descartes restituir os fundamentos da construção do cogito. Descartes trouxe-nos de volta à consciência a finitude e a contingência humanas, exatamente no momento em que se esvaiu a certeza oferecida pela fé cristã. Sua antropologia é devedora da filosofia agostiniana: também Descartes enfatizou a relação entre conhecimento e vontade, mas o fez sem o fundo cristão que sustentou a visão harmônica da época de Agostinho. Com Descartes, põe-se em primeiro plano a problemática do conhecer e as aporias da metafísica da subjetividade. Seu interesse consiste em assegurar-se do eu (quem sou e como conheço) antes de propor o modo pelo qual se pode chegar ao mundo e a Deus. Descartes supõe a existência de um sujeito emancipado de uma ordem objetiva e da ordem cósmica. Abre caminho para a liberdade e para o afastamento do determinismo. Em cena, irrompe o eu autônomo e conquistador que pretende assegurar-se de si mesmo e encontrar um lugar seguro onde possa restabelecer sua relação com Deus e com o mundo.
O cogito ergo sum desembocará num solipsismo monista: afirma-se um eu desmundanizado e contraposto ao mundo empírico. Descartes parte do eu como evidência ôntica. Esse eu adquire consciência de si por auto-reflexão. O cogito cartesiano é puro, é o da consciência humana, transcendente à experiência de um eu empírico; é um eu solipsista que não se reconhece como parte de um nós nem como enraizado na tradição.
Com a hipótese do gênio maligno, ou seja, de um Deus que possa nos enganar, Descartes deixou entrever o abandono da confiança medieval em um Deus responsável pela verdade e o fundamento do ser, como também afirmou uma postura radical de autonomia secularizadora. A partir de então, deve-se assegurar da veracidade do próprio Deus. A hipótese do gênio maligno, inspirada em Ockham, põe em xeque a veracidade de Deus como o que torna possível ao entendimento humano atingir a verdade. Em contrapartida, mantém-se a consciência certa do eu, a partir da auto-reflexão do cogito. Duvida-se de tudo, mas nunca de si (porque Deus, sendo infinitamente bom, não pode fazer com que eu duvide de minha existência pensante). É importante reter que não é mais Deus a garantia última da verdade, mas o eu auto-suficiente que se fia das ideias claras e distintas.
Descartes não fez senão lançar as bases da crítica religiosa posterior, reivindicando a autonomia do cogito face à heteronomia do homem religioso que confia em Deus. Assim, se preparou o terreno para Voltaire, o qual estendeu a dúvida à justiça de Deus (o problema da teodiceia). A isso acresça-se que, submetendo ao crivo racional a afirmação de Deus e à busca por certezas sólidas, Descartes pavimenta o caminho que trilharia Feuerbach para contestar a existência e a essência de Deus.
É preciso enfatizar, no entanto, que Descartes não era ateu, tampouco duvidava da existência de Deus. O seu Deus, no entanto, não é um Deus a quem se devem dirigir orações. Deus é necessário ao pensamento; é uma ideia inata no homem, o qual tem em Deus seu fundamento último. Nesse sentido, Descartes continua a tradição do argumento ontológico. Se é verdade que a reflexividade interiorizante encontra no cogito seu fundamento último, não deixa de descobrir a necessidade de Deus que é o substrato ontológico que provoca no homem a ideia de Deus. Descartes não chega a levar a efeito a dúvida radical. Por outro lado, Deus é quem garante a veracidade do homem e, em última instância, é responsável por estabelecer a relação entre o homem e o mundo.
É chegado o momento em que o estatuto de Deus se esclarece: o postulado de Deus, na antropologia cartesiana, torna possível estabelecer a correlação do cogito com a realidade. Afinal, Deus é o ser perfeito que não pode nos enganar. Trata-se de um Deus a que Descartes recorre pela necessidade de explicar o homem. Sem Deus, não se pode afirmar absolutamente a verdade. É verdade, por outro lado, que Descartes reconhece a finitude do cogito que não pode ser a origem das ideias do infinito e da contingência, a qual não permite que se alcancem as certezas absolutas. Ao mesmo tempo, conserva o ideal de chegar a essas certezas e afirma o eu como fundamento absoluto e indubitável.
Quando ponderamos sobre a autonomia do cogito cartesiano, tendo em conta a postulação de Deus, notamos que ela sofre um abalo: pois o cogito precisa assumir a ideia de Deus como colocada em si mesmo pelo próprio Deus, a fim de assegurar-se de si mesmo enquanto cogito. O sujeito está, portanto, constituído por uma ideia que ele mesmo não produziu - circunstância esta que faz eco ao pensamento de Agostinho e de Anselmo.
Se, por um lado, Descartes assume Deus como fundamento da confiança na razão humana; por outro lado, fornece uma imagem humana de Deus, para, em seguida, postulá-lo como fundamento das elaborações do cogito. Em certa medida, Deus só é, enquanto eu tenho a ideia de Deus; mas a ideia de sua perfeição e onipotência é que garante a existência de Deus fora de meu pensamento.
Em Descartes, pode-se dizer que parece subsistir muito pouco do Deus bíblico criador, Pai do amor e de infinita benevolência; se há algo dele, não é mais que uma imagem pálida de sua transcendência. O Deus cartesiano é um Deus do pensamento, um Deus que é postulado pela racionalidade, a fim de assegurar a certeza do eu pensante e da existência do mundo.  




quarta-feira, 29 de abril de 2015

"O "mundo verdadeiro" - uma ideia que para nada mais serve, não obriga a nada -, ideia tornada inútil, logo refutada: vamos eliminá-la!" (Nietzsche)

                                  
                                                             



                                     A visão pessimista e a visão trágica
                                               Schopenhauer e Nietzsche






Em Assim Falou Zaratustra (2011), escreve Nietzsche:

“A obra de um deus sofredor e atormentado me parecia então o mundo. Sonho me parecia então o mundo, e ficção de um deus; colorida fumaça ante os olhos de um divino insatisfeito. Bem e mal e prazer e dor e tu e eu eram, para mim, colorida fumaça ante olhos criadores. O criador quis desviar o olhar de si mesmo – então criou o mundo” (p. 31-32).

Há pouco, detive-me a revisitar as linhas cartesianas. E o que aí reencontro é, deveras, interessante, intelectualmente edificante, mas organicamente superficial e inócuo. Sou um apreciador das filosofias existencialistas, mormente as que combinam o pessimismo com a verve do desespero. Para compensar o declínio a que elas podem levar, encontro na visão trágica de Nietzsche uma espécie de âncora que me impede de abandonar-me inteiramente no vácuo do absurdo que elas não cessam de denunciar.
Se o homem fosse simplesmente um animal como os outros, ele viveria num mundo não-problemático. Ora, o mundo dos animais não-humanos é um mundo sem assombro. É o assombro que faz o homem ser um “animal metafísico”.
Donde provém – esta pergunta tão logo se impõe – o assombro humano? Schopenhauer é quem responde: PROVÉM DO CARÁTER ACIDENTAL DO MUNDO. É a questão da dor contra a qual se debate o homem que torna o mundo motivo de assombro.
O espetáculo da dor e do mal moral é que faz Schopenhauer desaprovar a existência. Seu pessimismo não tem outra razão de ser senão em face do horror provocado pela realidade da dor. A dor é um escândalo, uma perturbação que precisa ser eliminada. Para Schopenhauer, a pregnância da dor e do sofrimento no mundo é prova de que este mundo não merece ser aprovado.
No entanto, Schopenhauer não abandona a ideia de felicidade, da fruição de uma felicidade negativa, quase inumana. A felicidade negativa consiste em evitar a dor, o desprazer. Contra Schopenhauer, comentadores houve que notaram não ser evidente que a ausência de dor, a eliminação da dor seja ela mesma um estado de felicidade. Em todo caso, certamente não é isso o que buscamos quando o que queremos é fruir a felicidade.  
A filosofia de Schopenhauer é uma filosofia amarga, angustiante que, erigindo-se sobre a evidência da dor e do sofrimento no mundo, se nos apresenta como uma empresa racional que se orienta para negá-lo.
Na perspectiva trágica de Nietzsche, por outro lado, a dor, que não deixa de ser uma evidência, é considerada uma parte essencial da tessitura da existência. A dor não deve nos desencorajar de viver, ela não deve ser razão suficiente para desaprovarmos o mundo. Nietzsche encontra no espírito dionisíaco sua fórmula afirmadora da vida. Toda a filosofia nietzschiana é uma filosofia afirmadora da existência, em que pese o reconhecimento do sofrimento como parte estrutural. O homem dionisíaco é um sábio trágico: ele diz SIM À VIDA. Ele tem “a volúpia de viver segundo a lógica da vida, a da vontade de potência”.

De tudo que  precede, depreende-se que tanto em Schopenhauer quanto em Nietzsche o sofrimento é um a priori. Na verdade, o sofrimento é um a priori a toda filosofia existencialista, como a de Schopenhauer e a de Nietzsche. Schopenhauer, no entanto, endossa uma visão pessimista em face da existência – visão à luz da qual não hesita em afirmar que a essência da vida é dor, e a dor é razão suficiente para que desaprovemos o mundo, que é simplesmente uma objetivação da Vontade, uma Vontade que é cega e absolutamente livre. Decerto, o mundo, para Schopenhauer, se apresenta sob a forma da representação (este é o mundo empírico, fenomênico) e da vontade (coisa-em-si). Os pormenores, nesse tocante, não me interessa explicitar. Importa-me frisar que a proposta da filosofia schopenhaueriana é a negação da vontade de viver como único caminho para extinguir o sofrimento. A visão trágica de Nietzsche se expressa num esforço afirmativo da vida, representado na figura do sábio dionisíaco. Dionisio surge como um signo da afirmação da vida, do devir, do múltiplo.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

"É preciso sofrer depois de ter sofrido, e amar, e amar mais, depois de ter amado". (Guimarães Rosa)

                              
                   

                                 No horizonte da depressão
                           Estilhaços filosóficos



Os sintomas são recorrentes. Hoje, pela manhã, eles me acometeram. Estou irritadiço, enfadado, fadigado, e profundamente desanimado; mas disposto a me tratar. Reconheço-me doente e preciso tirar algum proveito disso. Volto aos livros... Camus: “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio.”
A filosofia só me serve se, de algum modo, me ensina a viver bem; de outro modo, não me serve sequer para “pregar um prego”. Ontem, uma amiga da UERJ me ligou, preocupada e atenciosa; disse que precisa de mim e de meu potencial, que o mundo precisa de meu potencial; isso me alegrou momentaneamente e me gestou alguns pensamentos. Pois sou um educador, e nada me dá tanto contentamento quanto provocar o desejo pelo saber. Sei que a docência, neste país, sofre de muitos poréns; as dificuldades e as frustrações acompanham a lida diária do professor; elas são reais e até o desencorajam... Mas há algo que me é visceralmente verdadeiro: VIVER É SEMPRE RESISTIR. O sofrimento pode ser fonte de criação. Viver é resistir ao não-ser, à tendência da vida a destruir, a arruinar... Daí que existir é trabalho de edificação, e se a filosofia não se põe a serviço desse trabalho, de nada serve realmente, pois que filosofia “é a vida tentando se pensar”; onde há pensamento há resistência, fôlego... Mas acho sinceramente que isso é destino (que os gregos tematizavam como necessidade absoluta) – diríamos hoje predisposição genética – porque nem todos se dispõem ao exercício da filosofia, ou à arte da poesia, que também é uma forma de pensar, distinta, se bem que mais elevada...
A academia matou a filosofia... Hoje a experiência que os estudantes de filosofia têm com a filosofia na universidade é semelhante à que os vivos têm com os mortos ou à que o jardineiro tem com o jardim; eles nutrem por ela uma deferência ou a cultivam; mas essa experiência está longe da experiência originária dos gregos... Em todo caso, é preciso passar pela filosofia acadêmica para depois abandoná-la, (re)criando um modo próprio de fazer filosofia, de vivê-la... Não viso ao diploma por si mesmo; já os tenho; viso à fruição do prazer que a filosofia pode proporcionar e de que no momento estou sendo privado. Ou não totalmente privado, porque mesmo ausente das aulas, não estou ausente dos livros que me ensinam a filosofar, a saber, a viver.
O que sou senão apenas mais um dentre os que sofrem e precisam dar sentido ao seu sofrimento, para resistir na existência, que é tarefa, que é trabalho de edificação, pois a morte está imiscuída na estrutura de uma única célula, a fazer seu trabalho continuamente... Por isso, as condições de manutenção da vida são sempre frágeis... É preciso resistir... existir, resistir, ou desistir – todas se prendem ao latim SISTERE (‘tomar posição’, estar fixo).
Os antigos preconizavam que o essencial é viver o instante, é pedir ao presente o que ele pode dar... É também aproveitar o momento propício (Kairós), a densidade da duração, aquela ponta de tempo. Trata-se de ser indiferente ao passado e ao futuro. É alegrar-se na experiência do momento sem esperança de retorno. Quão difícil é isto quando o momento é impregnado de sofrimento! Não obstante, o que esta  lição oferece se revela profundamente verdadeiro: o presente é o real; o real é o presente.

“Aristipo lamenta que a maioria não saiba encontrar o júbilo onde ele se encontra: na adesão ao instante, na expansão de si limitada ao presente do qual é preciso tirar proveito como de uma oportunidade que não volta a se apresentar. O pecado pagão consiste em perder o presente”.

O tédio: tema sério. Filosoficamente importante. No sonho, como pensava Nietzsche, as configurações do real aparecem como produto de um processo criativo do qual o homem se reconhece como agente produtor e criador... No sonho, cada indivíduo é artista pleno, observou Nietzsche. Justamente o que nos falta na vida em vigília... E na experiência estrutural do tédio existencial.

Mas, e se não houver religião suprema nem sentido político perfeito para a vida? E se o sentido da vida for a própria vida, e vivê-la com sabedoria e ternura for o único propósito que lhe pudermos dar? Então a via cômica pode nos salvar de nós mesmos, persuadindo-nos a nos levar menos a sério (...)”.

A falta de sentido exuberante da vida é o que pode nos enrobustecer o amor pela vida e pela vida dos outros com quem a compartilhamos. É por esse caminho que me esforcei por pensar a reinscrição do sagrado numa filosofia do desespero, como a de Kierkegaard e a de Cioran. Afinal,

Não sabemos por que a Terra, a nossa mãe provedora, porém indiferente, nos pariu, e ela talvez não saiba também; mas aqui estamos, lançados na exuberante falta de propósito do ser. Parece uma pena não desfrutar dela por si só. Mas, antes de podermos contemplar esse estado feliz, teremos de pensar novamente nos monstros que reprimem a alegria humana – e nas pessoas notáveis, poucas em qualquer geração que resistem a eles” (p. 168-169).