sábado, 16 de maio de 2015

"(...) é preciso necessariamente concluir, de tudo o que disse antes, que Deus existe: pois ainda que a ideia de substância esteja em mim por ser eu mesmo uma substância, eu não teria, porém, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não houvesse sido posta em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita" (Descartes)

                           
                    


                              O Deus cartesiano
                         No caminho da autonomia secularizadora



Introdução

Atendo-se à Revelação, o teólogo do século II, Orígenes, preconizava que o mundo foi criado por Deus, ou melhor, pelo Lógos. Para a filosofia cristã, Deus é o ser verdadeiro que, segundo Clemente de Alexandria, teria sido entrevisto por Platão. Santo Agostinho, o maior pensador da Antiguidade posterior cristã, pensava Deus como a Verdade e a Luz Imutável, a cuja busca consagrou grande parte de sua vida, após a conversão ao cristianismo. Para Agostinho, todas as coisas foram criadas por Deus e constituem elas reflexos da sabedoria divina.
Em linhas gerais, a doutrina de Deus da filosofia cristã pode ser descrita como se segue:

1) O Novo Testamento adotou completamente a fé no Deus do Antigo Testamento, de sorte que, para os cristãos, Deus é o fundamento absoluto do Ser. Ao mesmo tempo, é também o Deus vivo e pessoal, livre e onipotente da criação, da revelação e da salvação. Esse Deus é infinitamente superior ao mundo e incognoscível, muito embora seja tão próximo e familiar que torna possível ao homem estabelecer uma relação íntima e pessoal com ele. É assim que o homem se aproxima de Deus, reconhecendo-o e percebendo-o.

2) Há duas novidades que merecem destaque na concepção cristã de Deus. A primeira diz respeito à crença em que Deus atua não só na história do povo de Israel, mas também na história de toda a humanidade. O cristianismo enfatizou a universalidade da ação salvífica de Deus, que transforma a história humana numa história sagrada. A segunda novidade consiste na afirmação de que Deus é amor. Acresce-se a isso a convicção de que Deus é Pai, Pai de amor, que se comisera dos homens, que põe sua onipotência a serviço do amor, dando testemunho desse amor na pessoa de Jesus Cristo, o qual é concebido como o próprio Deus que se fez carne para salvar a humanidade de seus pecados.

3) Finalmente, a compreensão cristã de Deus abriga a natureza trina de Deus: Pai, Filho e Espírito. Essa doutrina, ainda que contida nas epístolas paulinas e no Evangelho de Mateus (28:19), só viria a consagrar-se como conteúdo de fé nos concílios da Igreja dos séculos IV e VI, após árduos conflitos. A doutrina da Trindade, como ficou conhecida, não se limitando ao pensamento teológico, penetrou o pensamento filosófico até a Idade Moderna. Essa doutrina não obnubila a natureza una de Deus. O Deus único vive na trindade de pessoas e sua unidade encerra, originalmente, a multiplicidade. Um mundo plural de coisas finitas só poderia provir de um Deus que encerra em si uma multiplicidade. É porque Deus é a plenitude infinita do Ser, da vida, inclusive da vida espiritual-pessoal, e do amor, que ele se basta a si mesmo. Para ser Deus, ele não necessita do mundo nem dos homens.

Conquanto se admita que a antropologia cartesiana tem raízes em Agostinho, o Deus de Descartes é distinto do Deus de Santo Agostinho (e poderíamos dizer de grande parte dos autores cristãos da tradição). Duas são as questões que me ocuparão, portanto: qual é a natureza do Deus cartesiano? e qual estatuto tem esse Deus em sua antropologia?


2. A verdade eterna: o cogito agostiniano

Intentando responder aos céticos, para os quais a verdade incondicionalmente válida parece inalcançável, Santo Agostinho sustentará que encontramos a verdade em nós mesmos. Para demonstrá-lo, ele nos faz ver que quem duvida sabe que duvida, sabe que esse saber é verdadeiro e tem certeza disso. Há, pois, um saber na dúvida, um saber que não é elidido pela dúvida. Mesmo duvidando, sei que duvido, que penso, que vivo e procuro a verdade segura. Ora, vê-se que Agostinho, antes mesmo de Descartes, chegou à certeza imediata do ato espiritual da reflexão existente por si (Posto que me engane, sou).
Não devemos daí concluir que o cogito cartesiano resulte de mera apropriação do cogito agostiniano. O cogito cartesiano inscreve-se num horizonte hermenêutico outro e específico. Convém, no entanto, deter-nos um pouco mais em Agostinho, antes de contemplar o cogito cartesiano.
Se encontramos a verdade em nós mesmos, então não só encontramos o saber sobre nós mesmos, mas também o saber sobre a verdade geral e necessariamente válida. Encontramos não só verdades contingentes factuais, mas também verdades necessárias da razão, leis do pensamento e do ser, que, estando em nosso pensamento, fornecem-lhe as normas. Agostinho retoma isso especialmente de Platão. O que é propriamente verdadeiro, para Agostinho, não é o fato singular na transitoriedade dos acontecimentos, mas a verdade eterna. Essa verdade eterna é imutável. Donde provêm, pergunta Agostinho, as “verdades eternas”, como as das leis lógicas, matemáticas, éticas e metafísicas? Não poderiam elas provir da experiência sensível, porquanto a experiência sensível é mutável. Há normas, em que se funda nossa experiência, que não poderiam provir dos sentidos. Assim, por exemplo, podemos apreender a ideia de unidade, mas não podemos tirá-la da multiplicidade das impressões sensíveis; essa ideia é anterior a estas impressões. A unidade é uma verdade eterna que governa nosso pensamento. Seria o nosso pensamento a origem dessa ideia? Agostinho dirá que não, pois também nosso pensamento está em constante mudança. Seguindo, em parte, Platão, Agostinho assumirá que há ideias eternas que constituem condições normativas anteriores ao pensamento. Mas, ao contrário de Platão, tais ideias eternas não subsistem por si mesmas, mas demandam um fundamento incondicionado e imutável de sua validade. Tal fundamento Agostinho identifica com Deus, “a verdade eterna mesma”. As ideias eternas são ideias no pensamento de Deus.
Uma primeira distinção entre o cogito agostiniano e o cartesiano deve ser já salientada: em Agostinho, o saber sobre o próprio pensar prende-se à experiência viva de si mesmo. Na medida em que penso e vivo, que penso na vida concreta, é que sei e tenho certeza de mim mesmo. Sucede diferente com Descartes, em cuja filosofia o ego cogitans (eu pensante) é um sujeito puro que, sem mundo e incorpóreo (aparentemente), se contrapõe à objetividade.


3. O cogito cartesiano

Não sem razão Descartes é apontado como o pensador que marca a etapa antropocêntrica da filosofia ocidental. Descartes é quem marca filosoficamente a passagem do Medievo para a Modernidade. Ele foi, por um lado, o último medieval; e, por outro, o primeiro “moderno”. Tendo-se dissipado a certeza produzida pela hermenêutica cristã, coube a Descartes restituir os fundamentos da construção do cogito. Descartes trouxe-nos de volta à consciência a finitude e a contingência humanas, exatamente no momento em que se esvaiu a certeza oferecida pela fé cristã. Sua antropologia é devedora da filosofia agostiniana: também Descartes enfatizou a relação entre conhecimento e vontade, mas o fez sem o fundo cristão que sustentou a visão harmônica da época de Agostinho. Com Descartes, põe-se em primeiro plano a problemática do conhecer e as aporias da metafísica da subjetividade. Seu interesse consiste em assegurar-se do eu (quem sou e como conheço) antes de propor o modo pelo qual se pode chegar ao mundo e a Deus. Descartes supõe a existência de um sujeito emancipado de uma ordem objetiva e da ordem cósmica. Abre caminho para a liberdade e para o afastamento do determinismo. Em cena, irrompe o eu autônomo e conquistador que pretende assegurar-se de si mesmo e encontrar um lugar seguro onde possa restabelecer sua relação com Deus e com o mundo.
O cogito ergo sum desembocará num solipsismo monista: afirma-se um eu desmundanizado e contraposto ao mundo empírico. Descartes parte do eu como evidência ôntica. Esse eu adquire consciência de si por auto-reflexão. O cogito cartesiano é puro, é o da consciência humana, transcendente à experiência de um eu empírico; é um eu solipsista que não se reconhece como parte de um nós nem como enraizado na tradição.
Com a hipótese do gênio maligno, ou seja, de um Deus que possa nos enganar, Descartes deixou entrever o abandono da confiança medieval em um Deus responsável pela verdade e o fundamento do ser, como também afirmou uma postura radical de autonomia secularizadora. A partir de então, deve-se assegurar da veracidade do próprio Deus. A hipótese do gênio maligno, inspirada em Ockham, põe em xeque a veracidade de Deus como o que torna possível ao entendimento humano atingir a verdade. Em contrapartida, mantém-se a consciência certa do eu, a partir da auto-reflexão do cogito. Duvida-se de tudo, mas nunca de si (porque Deus, sendo infinitamente bom, não pode fazer com que eu duvide de minha existência pensante). É importante reter que não é mais Deus a garantia última da verdade, mas o eu auto-suficiente que se fia das ideias claras e distintas.
Descartes não fez senão lançar as bases da crítica religiosa posterior, reivindicando a autonomia do cogito face à heteronomia do homem religioso que confia em Deus. Assim, se preparou o terreno para Voltaire, o qual estendeu a dúvida à justiça de Deus (o problema da teodiceia). A isso acresça-se que, submetendo ao crivo racional a afirmação de Deus e à busca por certezas sólidas, Descartes pavimenta o caminho que trilharia Feuerbach para contestar a existência e a essência de Deus.
É preciso enfatizar, no entanto, que Descartes não era ateu, tampouco duvidava da existência de Deus. O seu Deus, no entanto, não é um Deus a quem se devem dirigir orações. Deus é necessário ao pensamento; é uma ideia inata no homem, o qual tem em Deus seu fundamento último. Nesse sentido, Descartes continua a tradição do argumento ontológico. Se é verdade que a reflexividade interiorizante encontra no cogito seu fundamento último, não deixa de descobrir a necessidade de Deus que é o substrato ontológico que provoca no homem a ideia de Deus. Descartes não chega a levar a efeito a dúvida radical. Por outro lado, Deus é quem garante a veracidade do homem e, em última instância, é responsável por estabelecer a relação entre o homem e o mundo.
É chegado o momento em que o estatuto de Deus se esclarece: o postulado de Deus, na antropologia cartesiana, torna possível estabelecer a correlação do cogito com a realidade. Afinal, Deus é o ser perfeito que não pode nos enganar. Trata-se de um Deus a que Descartes recorre pela necessidade de explicar o homem. Sem Deus, não se pode afirmar absolutamente a verdade. É verdade, por outro lado, que Descartes reconhece a finitude do cogito que não pode ser a origem das ideias do infinito e da contingência, a qual não permite que se alcancem as certezas absolutas. Ao mesmo tempo, conserva o ideal de chegar a essas certezas e afirma o eu como fundamento absoluto e indubitável.
Quando ponderamos sobre a autonomia do cogito cartesiano, tendo em conta a postulação de Deus, notamos que ela sofre um abalo: pois o cogito precisa assumir a ideia de Deus como colocada em si mesmo pelo próprio Deus, a fim de assegurar-se de si mesmo enquanto cogito. O sujeito está, portanto, constituído por uma ideia que ele mesmo não produziu - circunstância esta que faz eco ao pensamento de Agostinho e de Anselmo.
Se, por um lado, Descartes assume Deus como fundamento da confiança na razão humana; por outro lado, fornece uma imagem humana de Deus, para, em seguida, postulá-lo como fundamento das elaborações do cogito. Em certa medida, Deus só é, enquanto eu tenho a ideia de Deus; mas a ideia de sua perfeição e onipotência é que garante a existência de Deus fora de meu pensamento.
Em Descartes, pode-se dizer que parece subsistir muito pouco do Deus bíblico criador, Pai do amor e de infinita benevolência; se há algo dele, não é mais que uma imagem pálida de sua transcendência. O Deus cartesiano é um Deus do pensamento, um Deus que é postulado pela racionalidade, a fim de assegurar a certeza do eu pensante e da existência do mundo.  




quarta-feira, 29 de abril de 2015

"O "mundo verdadeiro" - uma ideia que para nada mais serve, não obriga a nada -, ideia tornada inútil, logo refutada: vamos eliminá-la!" (Nietzsche)

                                  
                                                             



                                     A visão pessimista e a visão trágica
                                               Schopenhauer e Nietzsche






Em Assim Falou Zaratustra (2011), escreve Nietzsche:

“A obra de um deus sofredor e atormentado me parecia então o mundo. Sonho me parecia então o mundo, e ficção de um deus; colorida fumaça ante os olhos de um divino insatisfeito. Bem e mal e prazer e dor e tu e eu eram, para mim, colorida fumaça ante olhos criadores. O criador quis desviar o olhar de si mesmo – então criou o mundo” (p. 31-32).

Há pouco, detive-me a revisitar as linhas cartesianas. E o que aí reencontro é, deveras, interessante, intelectualmente edificante, mas organicamente superficial e inócuo. Sou um apreciador das filosofias existencialistas, mormente as que combinam o pessimismo com a verve do desespero. Para compensar o declínio a que elas podem levar, encontro na visão trágica de Nietzsche uma espécie de âncora que me impede de abandonar-me inteiramente no vácuo do absurdo que elas não cessam de denunciar.
Se o homem fosse simplesmente um animal como os outros, ele viveria num mundo não-problemático. Ora, o mundo dos animais não-humanos é um mundo sem assombro. É o assombro que faz o homem ser um “animal metafísico”.
Donde provém – esta pergunta tão logo se impõe – o assombro humano? Schopenhauer é quem responde: PROVÉM DO CARÁTER ACIDENTAL DO MUNDO. É a questão da dor contra a qual se debate o homem que torna o mundo motivo de assombro.
O espetáculo da dor e do mal moral é que faz Schopenhauer desaprovar a existência. Seu pessimismo não tem outra razão de ser senão em face do horror provocado pela realidade da dor. A dor é um escândalo, uma perturbação que precisa ser eliminada. Para Schopenhauer, a pregnância da dor e do sofrimento no mundo é prova de que este mundo não merece ser aprovado.
No entanto, Schopenhauer não abandona a ideia de felicidade, da fruição de uma felicidade negativa, quase inumana. A felicidade negativa consiste em evitar a dor, o desprazer. Contra Schopenhauer, comentadores houve que notaram não ser evidente que a ausência de dor, a eliminação da dor seja ela mesma um estado de felicidade. Em todo caso, certamente não é isso o que buscamos quando o que queremos é fruir a felicidade.  
A filosofia de Schopenhauer é uma filosofia amarga, angustiante que, erigindo-se sobre a evidência da dor e do sofrimento no mundo, se nos apresenta como uma empresa racional que se orienta para negá-lo.
Na perspectiva trágica de Nietzsche, por outro lado, a dor, que não deixa de ser uma evidência, é considerada uma parte essencial da tessitura da existência. A dor não deve nos desencorajar de viver, ela não deve ser razão suficiente para desaprovarmos o mundo. Nietzsche encontra no espírito dionisíaco sua fórmula afirmadora da vida. Toda a filosofia nietzschiana é uma filosofia afirmadora da existência, em que pese o reconhecimento do sofrimento como parte estrutural. O homem dionisíaco é um sábio trágico: ele diz SIM À VIDA. Ele tem “a volúpia de viver segundo a lógica da vida, a da vontade de potência”.

De tudo que  precede, depreende-se que tanto em Schopenhauer quanto em Nietzsche o sofrimento é um a priori. Na verdade, o sofrimento é um a priori a toda filosofia existencialista, como a de Schopenhauer e a de Nietzsche. Schopenhauer, no entanto, endossa uma visão pessimista em face da existência – visão à luz da qual não hesita em afirmar que a essência da vida é dor, e a dor é razão suficiente para que desaprovemos o mundo, que é simplesmente uma objetivação da Vontade, uma Vontade que é cega e absolutamente livre. Decerto, o mundo, para Schopenhauer, se apresenta sob a forma da representação (este é o mundo empírico, fenomênico) e da vontade (coisa-em-si). Os pormenores, nesse tocante, não me interessa explicitar. Importa-me frisar que a proposta da filosofia schopenhaueriana é a negação da vontade de viver como único caminho para extinguir o sofrimento. A visão trágica de Nietzsche se expressa num esforço afirmativo da vida, representado na figura do sábio dionisíaco. Dionisio surge como um signo da afirmação da vida, do devir, do múltiplo.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

"É preciso sofrer depois de ter sofrido, e amar, e amar mais, depois de ter amado". (Guimarães Rosa)

                              
                   

                                 No horizonte da depressão
                           Estilhaços filosóficos



Os sintomas são recorrentes. Hoje, pela manhã, eles me acometeram. Estou irritadiço, enfadado, fadigado, e profundamente desanimado; mas disposto a me tratar. Reconheço-me doente e preciso tirar algum proveito disso. Volto aos livros... Camus: “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio.”
A filosofia só me serve se, de algum modo, me ensina a viver bem; de outro modo, não me serve sequer para “pregar um prego”. Ontem, uma amiga da UERJ me ligou, preocupada e atenciosa; disse que precisa de mim e de meu potencial, que o mundo precisa de meu potencial; isso me alegrou momentaneamente e me gestou alguns pensamentos. Pois sou um educador, e nada me dá tanto contentamento quanto provocar o desejo pelo saber. Sei que a docência, neste país, sofre de muitos poréns; as dificuldades e as frustrações acompanham a lida diária do professor; elas são reais e até o desencorajam... Mas há algo que me é visceralmente verdadeiro: VIVER É SEMPRE RESISTIR. O sofrimento pode ser fonte de criação. Viver é resistir ao não-ser, à tendência da vida a destruir, a arruinar... Daí que existir é trabalho de edificação, e se a filosofia não se põe a serviço desse trabalho, de nada serve realmente, pois que filosofia “é a vida tentando se pensar”; onde há pensamento há resistência, fôlego... Mas acho sinceramente que isso é destino (que os gregos tematizavam como necessidade absoluta) – diríamos hoje predisposição genética – porque nem todos se dispõem ao exercício da filosofia, ou à arte da poesia, que também é uma forma de pensar, distinta, se bem que mais elevada...
A academia matou a filosofia... Hoje a experiência que os estudantes de filosofia têm com a filosofia na universidade é semelhante à que os vivos têm com os mortos ou à que o jardineiro tem com o jardim; eles nutrem por ela uma deferência ou a cultivam; mas essa experiência está longe da experiência originária dos gregos... Em todo caso, é preciso passar pela filosofia acadêmica para depois abandoná-la, (re)criando um modo próprio de fazer filosofia, de vivê-la... Não viso ao diploma por si mesmo; já os tenho; viso à fruição do prazer que a filosofia pode proporcionar e de que no momento estou sendo privado. Ou não totalmente privado, porque mesmo ausente das aulas, não estou ausente dos livros que me ensinam a filosofar, a saber, a viver.
O que sou senão apenas mais um dentre os que sofrem e precisam dar sentido ao seu sofrimento, para resistir na existência, que é tarefa, que é trabalho de edificação, pois a morte está imiscuída na estrutura de uma única célula, a fazer seu trabalho continuamente... Por isso, as condições de manutenção da vida são sempre frágeis... É preciso resistir... existir, resistir, ou desistir – todas se prendem ao latim SISTERE (‘tomar posição’, estar fixo).
Os antigos preconizavam que o essencial é viver o instante, é pedir ao presente o que ele pode dar... É também aproveitar o momento propício (Kairós), a densidade da duração, aquela ponta de tempo. Trata-se de ser indiferente ao passado e ao futuro. É alegrar-se na experiência do momento sem esperança de retorno. Quão difícil é isto quando o momento é impregnado de sofrimento! Não obstante, o que esta  lição oferece se revela profundamente verdadeiro: o presente é o real; o real é o presente.

“Aristipo lamenta que a maioria não saiba encontrar o júbilo onde ele se encontra: na adesão ao instante, na expansão de si limitada ao presente do qual é preciso tirar proveito como de uma oportunidade que não volta a se apresentar. O pecado pagão consiste em perder o presente”.

O tédio: tema sério. Filosoficamente importante. No sonho, como pensava Nietzsche, as configurações do real aparecem como produto de um processo criativo do qual o homem se reconhece como agente produtor e criador... No sonho, cada indivíduo é artista pleno, observou Nietzsche. Justamente o que nos falta na vida em vigília... E na experiência estrutural do tédio existencial.

Mas, e se não houver religião suprema nem sentido político perfeito para a vida? E se o sentido da vida for a própria vida, e vivê-la com sabedoria e ternura for o único propósito que lhe pudermos dar? Então a via cômica pode nos salvar de nós mesmos, persuadindo-nos a nos levar menos a sério (...)”.

A falta de sentido exuberante da vida é o que pode nos enrobustecer o amor pela vida e pela vida dos outros com quem a compartilhamos. É por esse caminho que me esforcei por pensar a reinscrição do sagrado numa filosofia do desespero, como a de Kierkegaard e a de Cioran. Afinal,

Não sabemos por que a Terra, a nossa mãe provedora, porém indiferente, nos pariu, e ela talvez não saiba também; mas aqui estamos, lançados na exuberante falta de propósito do ser. Parece uma pena não desfrutar dela por si só. Mas, antes de podermos contemplar esse estado feliz, teremos de pensar novamente nos monstros que reprimem a alegria humana – e nas pessoas notáveis, poucas em qualquer geração que resistem a eles” (p. 168-169).




terça-feira, 17 de março de 2015

"O que para o indivíduo é o sono, a morte é para a vontade como coisa em si" (Schopenhauer)

             

                      



            A indestrutibilidade do querer-viver
          A metafísica da morte segundo Schopenhauer


Não intento submeter a uma análise acurada a metafísica schopenhaueriana da morte. Por conseguinte, os problemas suscitados pela abordagem que Schopenhauer faz da morte no quadro de sua metafísica estão, forçosamente, fora do escopo desta exposição. Meu objetivo é, deveras, cerceado: estou interessado apenas em passar em revista, em linhas gerais, o tratamento dispensado por Schopenhaeur ao tema da morte à luz de sua metafísica, em cujo cerne está o conceito de Vontade.
Principio minhas considerações com o seguinte excerto que penso ser uma síntese da doutrina metafísica da morte, em Schopenhauer:

“O fim da pessoa é tão real quanto era o seu começo, e no mesmo sentido em que não éramos antes do nascimento, não seremos mais depois da morte. Entretanto, a morte não pode suprimir aquilo que foi posto pelo nascimento, ela não pode arrebatar, portanto, aquilo pelo que, antes de tudo, o nascimento foi possível. Nesse sentido, nascido e desnacido é uma bela expressão. Ora, todo conhecimento empírico não fornece mais que meros fenômenos: só estes são, por isso, atingido pelos acidentes temporais do nascimento e da morte, mas não é atingido aquilo que aparece neles, o ser-em-si. Para este, a oposição criada pelo cérebro entre o nascimento e a morte não existe: ela não tem mais sentido, nenhuma significação”. (OMVR, p. 59, ênfase minha).


Detenho-me a analisar o trecho, por etapas. Tome-se, então, a primeira parte:

“O fim da pessoa é tão real quanto era o seu começo, e no mesmo sentido em que não éramos antes do nascimento, não seremos mais depois da morte.”

Nesse primeiro momento, Schopenhauer reconhece como certa a morte da pessoa e igualmente certo o fato de que sua existência transcorre entre dois “nadas”: uma infinidade de tempo precedeu ao aparecimento da pessoa (ou seja, ao seu nascimento), e outra infinidade de tempo se seguirá à sua morte. A essa verdade, Schopenhauer contrapõe outra pretensa verdade. Considerando-se o que se segue,


“Entretanto, a morte não pode suprimir aquilo que foi posto pelo nascimento, ela não pode arrebatar, portanto, aquilo pelo que, antes de tudo, o nascimento foi possível.”




é necessário esclarecer o que foi posto pelo nascimento. Cada ser vivo encerra em si um querer-viver. Ao nascer, cada ser traz em si esse querer-viver. É esse querer-viver que é posto pelo nascimento. Esse querer-viver não é aniquilado pela morte. Esse querer-viver é a coisa-em-si, a expressão da própria Vontade. A Vontade é a condição de possibilidade para o próprio nascimento. Em tempo, vou elucidar o que é a Vontade, para Schopenhauer. Prossigamos, considerando o próximo fragmento:


“Ora, todo conhecimento empírico não fornece mais que meros fenômenos: só estes são, por isso, atingido pelos acidentes temporais do nascimento e da morte, mas não é atingido aquilo que aparece neles, o ser-em-si. Para este, a oposição criada pelo cérebro entre o nascimento e a morte não existe: ela não tem mais sentido, nenhuma significação”.


Schopenhauer segue Kant, ao sustentar que ao conhecimento só são dados os fenômenos e não a coisa-em-si. O nascimento e a morte recobrem apenas os fenômenos, mas jamais o ser-em-si. O ser-em-si jamais é atingido pelo nascimento e pela morte.
O que é a Vontade, pois? Em primeiro lugar, não é a vontade individual. A Vontade, em Schopenhauer, é um princípio metafísico. A Vontade é a coisa-em-si, é um princípio indestrutível; é o fundo sobre o qual repousa o corpo e junto deste a consciência (a consciência não existe sem o corpo). Esse princípio, a Vontade ou a coisa-em-si, se manifesta à consciência como vontade, mas o conhecimento não pode ir além da manifestação da vontade, de modo que a vontade em sua essência íntima permanece desconhecida. Acrescente-se que a Vontade é uma vontade cega, é inconsciente, uma simples tendência. E o mundo é a objetivação da Vontade. A Vontade – enfatize-se – é a coisa-em-si, é a substância do fenômeno. O homem é o fenômeno mais perfeito da Vontade.
Essa Vontade não se extingue com a morte e, na medida em que ela produz o corpo, que é imagem da vontade, ela representa no homem o que nele há de imperecível. Portanto, o que morre é o corpo, a consciência, o intelecto; em suma, a individualidade. Mas a vontade de vida (o querer-viver) que existe no indivíduo, e também no gênero, é indestrutível. Por isso, Schopenhauer pode corroborar o que observou Spinoza: “nos sentimos e nos experienciamos como eternos”.
Schopenhauer afirma terem errado os filósofos que viram no intelecto o princípio metafísico, indestrutível e eterno do homem. Esse princípio está exclusivamente na vontade, que é inteiramente diferente do intelecto. O próprio Schopenhauer advertiu seu leitor de que o cerne de sua doutrina consiste na diferenciação entre intelecto e vontade. A vontade é unicamente primitiva. Acompanhemos Schopenhauer no seguinte passo:

“Sendo a vontade a coisa-em-si, a substância, a essência do mundo; e a vida, o mundo visível, o fenômeno, não sendo mais que o espelho da vontade, segue-se daí que a vida acompanhará a vontade com a mesma inseparabilidade com que a sombra acompanha o corpo: onde houver vontade, haverá também vida, mundo. A vida está, portanto, assegurada ao querer-viver, e por quanto isto subsista em nós, não devemos preocuparmo-nos com nossa existência nem mesmo diante da morte” (p. 32)


Ponderemos sobre esse trecho. A Vontade, diz Schopenhauer, é a coisa-em-si ou a essência do mundo. A vida, o mundo acessível à experiência sensível, o fenômeno são espelhos da Vontade. São objetivação da Vontade. A vida se sustenta num querer-viver, que é a manifestação da Vontade em cada ser vivo.
A esta altura, gostaria de ressaltar a influência do bramanismo e do budismo no pensamento schopenhaueriano. Por um lado, em consonância com essas duas sabedorias orientais, Schopenhauer argumenta que o ser mesmo do homem é indestrutível e indissociável da totalidade do mundo. Por outro lado, admite ele que precedeu ao nascimento uma existência que se prolonga após a morte. Não há, portanto, um começo e um fim para o ser em si do homem. O meu ser verdadeiro é indestrutível; ele não se identifica com o meu eu, que é temporário e perecível. Nosso ser verdadeiro, dirá Schopenhauer, não é atingido pela morte, está a salvo da morte.
Na esteira do platonismo, Schopenhauer distingue entre o mundo dos fenômenos, com suas formas, que são o tempo e o espaço, as quais são princípio de individuação, e o mundo das coisas em si – mundo independente daquelas formas. O tempo e o espaço são princípio de individuação, porque, seguindo de perto Kant, Schopenhauer nega-lhes uma existência absoluta. Schopenhauer os pensa como formas do conhecimento que temos de nossa existência, de nossa natureza e de todas as coisas.
Com base na distinção entre o mundo dos fenômenos e o mundo das coisas em si, Schopenhauer argumenta que a morte só é o destino do indivíduo humano quando se considera o mundo fenomênico. Nesse mundo, o indivíduo morre, mas o gênero humano permanece infinitamente. Por outro lado, no mundo das coisas em si, a diferença entre o indivíduo e o gênero se esvaece, “e todos os dois são imediatamente uma só e única coisa”.
A vontade de vida existe tanto no indivíduo quanto no gênero, de sorte que a permanência da espécie espelha a indestrutibilidade do indivíduo. A morte, sustenta Schopenhauer, jamais atinge o indivíduo em seu querer-viver, que é o íntimo do seu ser. Somente o corpo, junto da consciência individual, os quais se ligam ao fenômeno, desaparece.
Parece, contudo, que a doutrina de Schopenhauer falha na tentativa de oferecer uma consolação filosófica em face do medo que o homem tem da morte. Ela parece falhar porquanto ignora o valor atribuído pelo homem, um animal metafísico, a sua individualidade. Ao homem não parece contentar a ideia de que apenas seu ser verdadeiro permanecerá após a morte quando o que se dissipará é sua individualidade que lhe é tão cara.
Para encerrar, é preciso reconhecer que a capacidade de reflexão, o advento da razão se fizeram acompanhar da necessidade metafísica, do questionamento do homem sobre a existência de todas as coisas e sobre sua própria existência. A morte, numa conexão necessária com a razão, acarretou o surgimento da religião e da filosofia, implícita aí a possibilidade tanto de cegueira quanto de lucidez. Toda uma tradição sapiencial mostra que não é da razão que decorre o medo da morte; pelo contrário, pelo bom uso da razão, o homem pode libertar-se do medo da morte. Esse medo da morte encontra sua origem em outro lugar. Devemos reconhecê-la na dimensão imortal de nosso ser (no querer-viver). De fato, o apego à vida decorre de um querer cego, do nosso ser mais profundo. Por conseguinte, é a dimensão imortal de nosso ser que torna a morte temível, e é justamente a dimensão mortal (intelecto) que faz com que não a temamos.



quinta-feira, 12 de março de 2015

A marcação de plural no sintagma nominal - "Olha os caderno novo que eu ganhei"

                
                                   


                          Um caso de variação linguística
                      A marcação de plural no sintagma nominal


“A começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder”

(Maurizio Gnerre)


O tema deste texto recobre um fenômeno linguístico do qual se ocupa, com especial interesse, a sociolinguística. Tenciono dar a saber e discutir um caso de variação linguística a partir da análise da manifestação de concordância no interior do sintagma nominal.
Inicialmente, contudo, considerarei alguns conceitos sociolinguísticos pressupostos pela análise. Antes de apresentá-los, refiro um passo do linguista Marcos Bagno (2011), com o qual, na sua Gramática Pedagógica do Portuguêsnos adverte que a reação à mudança linguística é uma característica comum a todas as culturas humanas.


“A reação à mudança linguística é um traço universal das culturas humanas. A língua está de tal forma entranhada em cada um de nós que imaginar que ela um dia deixará de ser o que é se revela uma ideia insuportável, uma noção capaz de causar, em muitas pessoas, mesmo que inconscientemente, um medo quase semelhante ao medo de morrer. Porque a mudança da língua é, de fato, a morte da língua tal como uma geração de falantes a conhece (muito embora a língua esteja também, a todo instante, além de morrendo, renascendo) (...)”. (Bagno, 2011, p. 116)


Malgrado o exagero com que chega a comparar o medo da morte com o medo de uma suposta depravação da língua, Bagno permite-nos dizer que, se a reação à mudança linguística é um fato universal atestado em todas as sociedades, a variação e a mudança linguísticas também o são. Nenhuma língua natural permanece inalterável ao longo do tempo. Todas as línguas do mundo são perpassadas, essencialmente, pela diversidade de usos. Variação e mudança são fenômenos inerentes à realidade linguística. As línguas são dinâmicas, porque dinâmicas são as sociedades em que elas são usadas; as línguas variam e mudam, porque também variam e mudam as sociedades das quais aquelas são a base fundamental. A mesma ideia pode expressar-se na observação de que as línguas são fenômenos históricos, instituições culturais. Ora, nem a história, nem as culturas humanas permanecem inalteráveis. As línguas, portanto, não só acompanham as transformações histórico-culturais (também sociais, políticas, econômicas...), como também as expressam.
sociolinguística é uma das subáreas da Linguística e se ocupa com o uso social da língua no interior das comunidades de fala. A sociolinguística concentra sua atenção na correlação entre fatores linguísticos e fatores sociais que influenciam o uso da língua. Ela se situa no espaço interdisciplinar, na fronteira entre língua e sociedade, procurando dar conta, de modo especial, das ocorrências linguísticas concretas que comportam um caráter heterogêneo.



1. A noção de “erro” linguístico



Do ponto de vista sociolingüístico, o que, vulgarmente, se chama de “erro linguístico” baseia-se numa avaliação negativa que, não sendo de ordem linguística, é estritamente calcada sobre o valor social atribuído ao falante, considerando sua classe socioeconômica, seu grau de escolarização, seus antecedentes geográficos, sua maior ou menor participação nas esferas de poder, seu sexo, sua cor de pele e outros preconceitos culturais e socioeconômicos.
O suposto “erro” linguístico desencadeia, infelizmente, uma série de avaliações negativas sobre o falante e supõe uma cadeia de causas e consequências que, por ser de natureza ideológica, é, necessariamente, falsa: quem fala errado, pensa errado, age errado, não é estimável e confiável, etc.
Uma lição elementar da sociolinguística é que não há variação linguística sem alguma avaliação social. Numa sociedade tão fortemente hierarquizada como a sociedade brasileira, todos os valores culturais e bens simbólicos se situam também em escalas hierárquicas que se organizam segundo valorações como “bom”, “ruim”, “certo”, “errado”, “feio”, “bonito”, etc. A língua é o bem simbólico mais importante de uma sociedade, e seu uso, portanto, é submetido àquelas escalas hierárquicas de valoração.
Não menos importante é levar em consideração o fato de que, entre as formas de uso valoradas como “erradas”, há formas que se consideram mais “erradas” do que outras. A medida da gravidade desses “erros” é inversamente proporcional à escala de prestígio social: quanto menos prestigiado socialmente é o usuário da língua; quanto menor é seu nível socioeconômico, maior é a gravidade atribuída aos supostos “erros” de sua fala.
Não custa insistir em que as valorações positivas ou negativas que recaem sobre os usos linguísticos assentam em pressupostos, orientados ideologicamente, sobre a origem sócio-cultural e econômica dos falantes. Ademais, a classificação das variedades linguísticas em “certas” e “erradas” se faz com base em critérios políticos e ideológicos. Quem detém o poder dispõe das condições pelas quais pode impor (e impõe) a sua variedade linguística como aquela pela qual se deve pautar o comportamento linguístico de todos os membros da sociedade.
Como toda seleção implica exclusão, todas as demais variedades linguísticas dos grupos dominados serão tomadas como variedades “erradas”, “imperfeitas”, “inadequadas” e serão designadas com termos que carreiam grande teor de pejoratividade.
Destarte, quando os linguistas observam que não há usos linguísticos “certos” e “errados” em si, estão chamando a atenção para o fato de que “certo” e “errado” não são defeitos das formas linguísticas, mas efeitos da valoração socioideológica a que não só elas são submetidas, como também, mormente, seus usuários. Quem discrimina o modo de falar de alguém está discriminando, na realidade, a pessoa que fala e, por extensão, a classe social a que ela pertence. Por isso, o preconceito linguístico é, fundamentalmente, um preconceito social.




1.1. Heterogeneidade e unidade na língua


Todas as sociedades são constituídas por segmentos que atuam como forças em direção à mudança ou em direção à conservação do status quo. Os segmentos dominantes social, política, econômica e ideologicamente adotam a segunda direção: estão interessados na conservação do status quo. A língua, na medida em que é uma realidade social, encontra-se, permanentemente, suscetível à pressão dessas duas forças: uma que impulsiona a variação e a mudança; outra que pressiona no sentido de manter a unidade, refreando a variação. Há, portanto, uma tensão constante e interação entre essas duas forças antagônicas, donde resulta que as línguas exibem inovações, conservando, contudo, sua coesão interna.
A noção de comunidade linguística é dependente da convergência de padrões estruturais e estilísticos. Portanto, a comunidade linguística deve sua existência ao impulso que conduz à manutenção da unidade.
A variação ocorre em consonância com as propriedades sistêmicas da língua e se efetua porque é contextualizada e regular. Todas as línguas mantêm-se numa espécie de equilíbrio instável, porque, de um lado, exibem, fundamentalmente, uma pluralidade de usos, uma diversidade de formas de expressão que se realizam segundo padrões regulares; de outro lado, conservam padrões, que, por não variarem, se dizem categóricos, e que contribuem para produzir a coesão interna do sistema linguístico, sem a qual não haveria possibilidade de intercomunicação entre os falantes de comunidades de fala diferentes. Além disso, insisto em que a variação é ordenada, ela se submete a regras previstas pela gramática da língua.




1.2. Sistematicidade, legitimidade e estigmatização


Do ponto de vista da ciência linguística, todos os usos linguísticos são legítimos e se prestam à previsibilidade, em que pese às variações estilísticas.
É importante reconhecer que todos os padrões linguísticos se prestam à avaliação social, que pode ser positiva ou negativa, o que os torna indicadores do tipo de inserção social do falante. As formas que recebem maior valor social são aquelas que se fazem acompanhar de um alto grau de monitoramento e de letramento. Às formas de maior prestígio se associam maior sensibilidade, percepção e planejamento linguístico.
Não se ignore o fato de que a diversidade linguística se distribui num continuum. Assim, os falantes adquirem primeiro as variantes informais e, num processo sistemático e gradativo, vão apropriando-se de registros mais formais, que se aproximam das variedades de maior prestígio.
Todas as línguas, portanto, apresentam variantes mais prestigiadas do que outras. E entre as formas desprestigiadas, algumas são mais estigmatizadas do que outras, em virtude da classe social de seus usuários, os quais já são alvo de estigmatização em termos socioeconômicos e culturais.



1.3. Variação linguística: variantes e variáveis

A variação linguística, conforme deve ter ficado claro, é um fenômeno universal. A variação se manifesta por meio de formas linguísticas alternativas denominadas de variantes.
Variantes são, portanto, grosso modo, as diversas formas alternativas de se dizer a mesma coisa. Essas formas alternativas constituem um fenômeno variável.
Existem variáveis dependentes sempre que o uso das variantes for influenciado por variáveis, quer de natureza interna à língua, quer de natureza social (externa). Essas variáveis ou grupo de fatores que podem ser de natureza estrutural (interna à língua) ou de natureza social chamam-se variáveis independentes. Elas exercem pressão sobre os usos acarretando o aumento ou a diminuição de ocorrência das variantes.
Cumpre enfatizar que as variáveis recobrem tanto o fenômeno em variação quanto o grupo de fatores. Esses grupos de fatores são parâmetros reguladores dos fenômenos variáveis e condicionam positiva ou negativamente o uso das formas variantes.



2. A marcação de plural no sintagma nominal

2.1. O Sintagma nominal: definição e estrutura



sintagma nominal  é um constituinte oracional formado, necessariamente, de um substantivo ou palavra suscetível de ocupar a posição própria do substantivo, que é a de núcleo do sintagma nominal.  Doravante, usarei a abreviação SN para representar o sintagma nominal. Todo SN é, portanto, uma unidade significativa da oração e terá como núcleo uma palavra de natureza morfológica substantiva. O SN pode constituir-se de seu núcleo apenas, ou pode, além do núcleo, encerrar outras unidades articuladas a ele. Vejam-se dois exemplos que ilustram as duas formas de estruturação do SN: em (1), com apenas o núcleo; em (2), com elementos articulados ao núcleo.

(1) São Paulo é a maior cidade brasileira.
       SN
     núcleo


(2) Este meu anel de ouro.
            Núcleo

Em (2), toda a unidade “Este meu anel de ouro” corresponde ao sintagma nominal, cujo núcleo é “anel”. A esse núcleo, se acham articulados os elementos “este”, “meu” e “de ouro”. Em (1), a extensão do SN se reduz ao seu núcleo.

As unidades que se articulam ao núcleo do SN cumprem a função sintática de determinantes ou de modificadores. Os determinantes se dispõem à esquerda do núcleo; e os modificadores podem prender-se à esquerda (no caso dos adjetivos que admitem anteposição ao substantivo), mas, frequentemente, se articulam à direita do núcelo.
Considerem-se os exemplos abaixo (o asterisco marca a inaceitabilidade da construção e a interrogação a dúvida quanto à sua aceitabilidade):

(3) Este meu anel dourado
   * Este meu dourado anel

(4) Este excelente artigo histórico
  * Este excelente histórico artigo

(5) Os três meninos simpáticos
    Os três simpáticos meninos  (?)



Urge definir os determinantes e os predicadores. Começo por responder à questão: o que são determinantes? A função sintática dos determinantes é desempenhada por unidades que se articulam à esquerda do substantivo, quer para identificar sua referência tendo em vista a situação espaço-temporal, quer para fixar-lhe o estatuto informacional, quer ainda para delimitar seu número. O grupo dos determinantes abriga: os artigos (definidos e indefinidos), os pronomes possessivosdemonstrativosindefinidos e os numerais ordinais e cardinais. Nesse grupo, também devemos incluir o pronome relativo “cujo”, que não nos interessará na presente discussão.
A classe dos determinantes é sintático e semanticamente heterogênea. Veja-se, a título de exemplificação, o comportamento semântico-pragmático do artigo definido e do pronome demonstrativo, nos sintagmas nominais destacados, nas frases abaixo:



(6) Dois homens encapuzados roubaram uma joalheria, mas os bandidos foram presos assim que deixaram o local.

(7) Nunca mais vi aquela moça que conheci naquela festa.


Em (6), o sintagma “os bandidos” comporta uma informação já dada, ou seja, faz remissão ao segmento “dois homens encapuzados”, anteriormente expresso. O artigo definido cumpre aí a função de indicar que a informação veiculada no sintagma que introduz é já conhecida do interlocutor/leitor. Por ocasião da leitura, o leitor constrói um modelo textual, que é uma representação mental que toma forma com base no texto e que funciona como uma memória partilhada e publicamente alimentada pelo próprio texto. Assim, uma vez introduzido no modelo textual do leitor um referente (ainda não mencionado), este passa a ter o estatuto “ativo”, porque sob o foco da memória de trabalho, é o que sucede em (6). A introdução do referente “dois homens encapuzados” torna-o passível de reativação, situação que se dá com a introdução do sintagma encetado pelo artigo definido “os bandidos”. O primeiro referente introduzido passa a preencher um “nódulo” no modelo conceitual do mundo textual construído. Nesse sentido, o artigo definido, que preenche a função sintática de determinante do SN “os bandidos”, é índice de identificabilidade do referente, ou seja, ele marca o estatuto informacional do referente como “identificável” ou acessível no modelo textual. Esse estatuto é garantido pelo compartilhamento de conhecimentos entre o locutor e o seu interlocutor. Em suma, o artigo definido é usado, sistematicamente, em sintagmas nominais que fazem remissão anafórica, ou seja, que devem ser interpretados em dependência com algum segmento anteriormente expresso no texto. Esses sintagmas introduzidos por artigo definido comportam, então, informação velha ou dada (isto é, já conhecida, ou acessível a partir de um segmento precedente, ou mesmo inferível a partir dos contextos sociocognitivos partilhados).
Em (7), o demonstrativo “aquele” é um dêitico memorial ou recognitivo, visto que sua interpretação referencial pressupõe o acesso a um tipo de conhecimento experiencial e socioculturalmente compartilhado (Roncarati, 2010, p. 65). Em outras palavras, o uso do demonstrativo recognitivo pressupõe a seguinte condição: o interlocutor deve compartilhar com o locutor algum tipo de conhecimento calcado na experiência que, em última instância, é de base sociocultural. A compreensão do sintagma encetado por esse demonstrativo depende de que o interlocutor possa acessar em sua memória o saber a respeito do referente categorizado.
Necessário será identificar as posições ocupadas pelos determinantes relativamente ao núcleo do SN. Como podem ocorrer mais de três elementos à esquerda do núcleo, a posição 1 será ocupado pelo elemento mais afastado do núcleo; e a posição quatro, pelo elemento mais próximo. As posições 2 e 3 seguem a ordem numérica. Assim, temos



(8) Todos os últimos bons alunos foram aprovados no vestibular.
     P1   P2   P3    P4




A identificação das posições será importante quando da investigação do fenômeno de concordância no interior do SN. Considere-se, agora, a função de modificador.
No interior do SN, o modificador é o adjetivo ou um substantivo que preencha a função do adjetivo. A função de predicador pode também ser desempenhada por um grupo formado de preposição (em geral, “de”) e substantivo. Esse grupo é um sintagma preposicional (SP) encaixado no SN. Chamamos modificadores, portanto, as unidades que, articuladas ao núcleo de um SN, lhe acrescentam um ingrediente semântico. Semanticamente, os modificadores qualificam ou classificam o referente designado pelo substantivo que preenche a posição de núcleo do SN. Seguem-se os exemplos abaixo, nos quais se destacaram as duas formas de manifestação do modificador nominal: em (9), na forma de adjetivo; em (10), na forma de SP (sintagma preposicional).



(9) O anel dourado.

(10) O seu trabalho de história.



2.2. A marcação do plural no SN

Principalmente a partir de 1980, foram produzidos muitos estudos sobre a concordância de número no SN. Esses estudos apontam uma significativa variedade de padrões de concordância, não só em função do diversificado número de unidades que podem preencher o sintagma nominal, como também em função de fatores linguísticos e societários condicionantes.
Com vistas a examinar a questão, vou-me ater apenas às três primeiras, se bem que dispensarei especial atenção à primeira e à segunda, dentre as cinco variáveis consideradas pelos estudos. Essas cinco variáveis são as que se demonstraram mais relevantes na marcação do plural no SN. Seguem-se as variáveis:

1) alterações morfofonológicas decorrentes do mecanismo de flexão;
2) estruturação do SN;
3) características dos falantes (sexo, idade, nível de escolarização, origem urbana ou rural);
4) tipos de registro (formal ou informal);
5) modalidade da língua (falada ou escrita).



2.3. Alterações morfofonológicas e estruturação do SN


A classe de palavra e sua posição na estrutura do SN são variáveis importantes para o estabelecimento de padrões de concordância nominal. Não menos importante para a compreensão do referido fenômeno é considerar o princípio de saliência fônica, que se caracteriza pela maior ou menor identidade entre as formas singular e plural nos vocábulos.
Com base no princípio de saliência fônica, observou-se que as formas menos marcadas fonologicamente, ou seja, aquelas em que a diferença fônica entre singular e plural repousa apenas na presença do morfema de número [s], seriam mais suscetíveis de não apresentar a marca de número. Por outro lado, as formas mais marcadas para o plural tenderiam a apresentar a ocorrência da marca de plural. Considerem-se os seguintes exemplos que ilustram essa condicionante fonológica para a marcação de plural no SN:

(11) Ela levou os menino pra escola.

(12) Desenhou uns corações no caderno.




Em (11) e (12), destacou-se em negrito o núcleo do SN. Em (11), a marca de plural foi cancelada no núcleo (aparecendo apenas no determinante), em virtude de a marcação de plural no substantivo “menino” ser menos saliente, ou seja, essa marcação se faz apenas com o acréscimo da desinência de número [s]. Nesse caso, a tendência é pluralizar apenas o determinante e deixar no singular o núcleo do SN. Em (12), tanto o determinante quanto o substantivo núcleo foram pluralizados, porque, nesse caso, há maior saliência fônica na marcação de plural no substantivo, dado o fato de formas terminadas em “ão”, muita vez, sofrerem uma mudança morfofonológica maior quando flexionadas para o plural. No caso da palavra “coração”, o plural modifica a configuração fonológica da última sílaba “-ção”, que passa para “-ções”. O princípio de saliência fônica mostra que, nesse caso, quando se marca o plural, o que se ouve é outra configuração fonêmica.
Outro princípio, igualmente relevante, que tem sido levado em consideração por diversos estudos é o do paralelismo formal. Reza esse princípio que marcas acarretam marcas, e ausência de marca (marca-zero) leva à ausência de marca.
Assim, estando presente o morfema de plural [s], ele poderia condicionar a presença dessa marca nos demais elementos do SN. Analogamente, a ausência da marca num elemento do SN acarretaria a ausência da marca nos demais elementos. Senão, vejamos:

(13) TodoS  oS meuS livroS são novos.
                   Sintagma nominal

(14) Comprei oS livro didático.



O exemplo (13) ilustra a situação em que a presença da desinência [s] em todos os determinantes acarreta a sua presença no núcleo do SN “livros”. Esse é o padrão de flexão adotado pelos falantes das variedades de prestígio da língua, nas quais a marcação de plural se faz por redundância: marca-se o plural em todos os determinantes passíveis de flexão, o que leva a necessidade de pluralizar também o núcleo do SN. No exemplo (14), entretanto, ainda que a marca de plural ocorre no determinante, ela é cancelada no núcleo, o que implica seu cancelamento no modificador também. Os falantes que seguem esse padrão de concordância nominal não sentem a necessidade de operar com o princípio de redundância; eles apenas sinalizam que o SN está no plural marcando com [s] o primeiro elemento do sintagma. É importante dizer que eles não erram; apenas seguem outra regra ou padrão.
Conquanto variáveis como tonicidade do item no singularcontexto fonológico subsequente possam ser consideradas na compreensão da variabilidade dos padrões de concordância no SN, as que foram anteriormente mencionadas têm se demonstrado mais relevantes.
Voltarei a considerar aspectos estruturais do SN que se apresentam como fatores importantes na marcação de plural em seu interior. Agora, no entanto, refiro o resultado de um estudo que levou em conta variáveis sociais.





2.4. Variáveis sociais

Quando se consideram as variáveis sociais, é notável que, no Brasil, sobressaia o nível de escolaridade do falante, que é um marcador de sua classe social.
Almeida (1997) e Brandão & Almeida (1999), desenvolvendo pesquisas que coletavam registros de fala de indivíduos analfabetos com baixo nível de escolaridade (tendo no máximo a quarta série do ensino fundamental), em zonas rurais do Rio de Janeiro, constataram que chega a 87% a frequência com que se dá o cancelamento da marca de plural no núcleo do SN. Por outro lado, o cancelamento dessa marca nos determinantes e modificadores é menor: 4% naqueles; 21% nestes.
É necessário certo cuidado na interpretação desses dados, pois que uma série de condicionamentos se entrecruzam, do que resultam diferentes combinações de itens marcados/ não-marcados quanto ao número.

2.5. Revisitando aspectos estruturais

Volvendo olhares para a estruturação do SN novamente, é necessário considerar, em primeiro lugar, a complexidade da estruturação do SN, o qual pode se constituir de mais de três elementos suscetíveis de flexão, chegando a cinco, como se pode ver em (15):

(15) Todos os nossos últimos bons alunos ingressaram em universidades públicas.

No corpus de Almeida, figuram SNs com apenas dois elementos. Sendo estruturalmente mais simples, esses SNs ou apresentam todos os seus elementos flexionáveis com marca de plural, ou apenas o primeiro deles. Ressalte-se, todavia, que, uma vez ocorrendo o numeral no SN, é sistemático o cancelamento da marca de plural no núcleo. Os exemplos (16), (17) e (18), a seguir, ilustram casos de SN com um elemento apenas articulado ao núcleo ou com um numeral:

(16) As espadas são de ouro.

(17) A gente pesca em outraS lagoa.

(18) Ele tem três barco.

Os SNs que exibem mais de dois elementos, quer encerrem três, quer encerrem quatro, são, deveras, mais interessantes. A variedade dos padrões demanda nossa atenção.
Atendo-me aos elementos que se topam à esquerda do núcleo, há que destacar os seguintes padrões de concordância nominal:

a) havendo um e apenas um elemento flexionável antes do núcleo, esse elemento recebe a marca de plural. O núcleo, por sua vez, pode recebê-la ou não.

(19) As espinhas miúdas.
(20) Uns barco novo.

(21) Aquelas onda perigosa.

É claro que (19) ilustra o padrão que governa a concordância nominal nas variedades de prestígio da língua. Nas variedades de menor prestígio, o padrão é outro: marca-se o plural apenas no determinante, deixando no singular o núcleo.

b) ocorrendo dois constituintes pré-nucleares flexionáveis, o que ocupa a posição 1 recebe a marca, e o que ocupa a posição 2 pode recebê-la ou não:

(22) Todos os prato
(23) Todos esses dia.
(24) As própria rede.

Nos três exemplos, o núcleo é mantido no singular. A despeito da variabilidade da macação de plural nos determinantes, via de regra, a marca de plural aparece sempre no primeiro elemento. Pode-se estipular uma regra que parece estar sendo seguida, que se formaliza como: havendo dois determinantes flexionáveis no SN, é suficiente marcar o plural apenas no primeiro elemento. Note-se que a marca [s] pode ser cancelada no segundo elemento, como mostra o exemplo (24).

c) se o elemento pré-nuclerar se acha na posição 3, o cancelamento da marca é a norma.

(25) Os dois melhor mês.

Em (25), há três elementos antes do núcleo, e a regra parece prever o cancelamento da marca [s] apenas no terceiro elemento, o que ocupa a posição 3, a mais próxima do núcleo.

Quando se consideram os modificadores que se dispõem à direita do núcleo, ou seja, os elementos pós-nucleares, o padrão é o cancelamento da marca de número no modificador. Vejamos os exemplos abaixo:

(26) Uns barco novo.

(27) Umas nuvens cinzenta.

(28) Uns vinte ano passado.

Esses casos também ilustram a variabilidade comum à marcação de plural no interior do SN. Note-se que todos os determinantes aparecem no plural. Essa é uma regra que já vimos: havendo um elemento flexionável antes do núcleo, esse elemento é pluralizado. O núcleo, conforme vimos também, pode ou não receber a marca de plural: em (26) e (28), ele não apresenta a marca; apenas em (27), apresenta-a. Como, no entanto, estamos levando em consideração o que ocorre com o modificador, ou seja, com o adjetivo posposto ao núcleo do SN, inferimos daí que os falantes parecem estar seguindo um padrão bastante regular: o cancelamento sistemático da marca de plural no modificador pós-nuclear.
Cumpre ainda observar que a ocorrência de um numeral em qualquer das posições pré-nucleares é condição para o cancelamento de plural no elemento seguinte, conforme atestam os seguintes exemplos:


(29) Esses três tipo.

(30) Três outro garoto.

Outros estudos, levando em conta o cruzamento de variáveis tais como distribuição dos constituintes do SN e o tipo de marcas precedentes, atestaram que os elementos pré-nucleares tendem a ser atualizados com a marca de número, e os constituintes nucleares e pós-nucleares tendem a não apresentar a marca, muitas vezes, de modo categórico e independentemente de haver ou não marcas formais e/ou semânticas anteriormente enunciadas.
Considerando-se tão-só a distribuição dos constituintes, isto é, a ordem em que ocorrem, o cancelamento de marca verificou-s em 6,5% dos casos nos elementos pré-nucleares, 82% nos nucleares e 89% nos pós-nucleares.
Os casos visitados, nesta exposição, não esgotam a complexidade do fenômeno de concordância no SN. Outras estruturas oracionais, em que figuram SNs, como as construções predicativas e passivas com “ser” tiveram de ser colocadas fora do escopo de minhas preocupações, dadas as limitações de espaço. Não obstante, os casos examinados aqui revelam que o mecanismo de concordância nas variedades desprestigiadas da língua é extremamente complexo; é mais complexo do que o padrão seguido pelos falantes cultos, que tendem a estender a marca de plural a todos os elementos flexionáveis do SN.
Tendo em vista tudo que foi exposto, é importante frisar que os falantes que não seguem a marcação de plural por redundância, a que se verifica nas variedades formais da língua, não estão cometendo erros, mas seguindo outros padrões. Nas variedades desprestigiadas da língua, a operação de concordância depende não só da noção de conjunto extensiva ao SN, mas também da noção de subconjuntos que do SN se infere. Assim, ao conjunto de elementos que se acham à esquerda do núcleo, aplica-se, normalmente, a marca de plural; aos que se acha à direita, essa marca não é aplicada.