sábado, 3 de janeiro de 2015

"Não há homem livre do desespero"

                  

            
             A existência como tarefa e criação
       Considerações sobre o desespero em Kierkegaard


Com este texto, inicio, neste ano de 2015, a produção do conjunto de novos suspiros da alma. A frequência com que escrevo para publicar neste blog tem sido cada vez mais embargada pelas flutuações de meu humor, que não cessam de me alertar sobre a inutilidade desta inveterada prática. É evidente que escrever me apetece e, não raro, me parece que esse hábito rivaliza, em termos de importância, com outras atividades necessárias em meu cotidiano. Isso, contudo, não é suficiente para me dissuadir da certeza de que os textos que eu escrevo e que eu divulgo, neste espaço virtual, não carreiam nenhum sentido transformador, não visam a transformar nada no mundo, conquanto eu esteja convencido de que usar a linguagem é sempre, em todos os casos, agir sobre o mundo e sobre os outros, com vistas a produzir algum tipo de modificação em seu estado.
Receio que, se eu me detiver em longas ponderações sobre meu desânimo costumeiro, que acompanha o labor da escrita, acabarei por protelar a confecção deste texto. Engana-se o leitor que pensa não ser custoso para mim construir meus edifícios verbais. Como eu persiga a perfeição ao longo da atividade de tessitura do texto, isto é, como eu esteja sempre preocupado em realizar as escolhas mais significativamente adequadas, despendo uma quantidade considerável de potência orgânica quando me detenho para decidir entre as possibilidades de realização lexical e sintagmática. Agora mesmo me assombra o fantasma da escassez verbal.
É chegado o momento de me apressar. Que comece o trabalho! Ele me tomará uma grande parte do dia!

1. O itinerário

No horizonte de minhas reflexões, que visam a retornar ao pensamento de Kierkegaard, se topa o interesse por esclarecer o tema do desespero em sua antropologia, à luz da qual a existência é pensada em seu devir, em seus paradoxos.
A essa tarefa que consiste em identificar e esclarecer, no interior da antropologia de Kierkegaard, devem preceder algumas considerações com as quais procurarei pôr em evidência a pertinência de uma série de conceitos que, se não apresentados e iluminados de antemão, dificultam uma compreensão satisfatória do lugar relacional que ocupa o desespero no desenvolvimento do pensamento existencialista de Kierkegaard. Por conseguinte, impõe-se-me a urgência de apresentá-los e esclarecê-los.

1.2. O irracionalismo

Sören Kierkegaard (1813-1855) é considerado um dos pensadores que integram o movimento do irracionalismo, marcante no final do século XIX. O irracionalismo tinha como meta a crítica da supremacia da razão, a qual era entendida como o único instrumento capaz de estabelecer a verdade, mormente depois de Hegel.
Os pensadores irracionalistas buscavam reanimar a questão da verdade, tomando como ponto de partida o processo da existência. Destarte, Kierkegaard afirmou a necessidade de viver uma verdade que fosse verdadeira para o eu.
Kierkegaard advogava que a existência humana tem por essência a auto-relação. Essa relação determina o modo de o homem – o indivíduo humano – estar no mundo. Essa relação se dá em três estádios, designados por Kierkegaard de estético, na qual o indivíduo assume uma posição de pura exterioridade; de ético, em que ele busca mediar o exterior e o interior; e de religioso, caracterizada por uma profunda interioridade, na qual o indivíduo se relaciona com Deus.
Kierkegaard criticou a falta de religiosidade do clero da Igreja Luterana e a influência negativa de Hegel no meio intelectual.

1.3. O devir do sujeito e a existência como tarefa

Destaco, inicialmente, que, ao se debruçar sobre o devir real do sujeito, Kierkegaard antecipou e descreveu o caráter dialético do que os psicólogos contemporâneos denominam de processo de subjetivação. Esse processo foi pensado por Kierkegaard enquanto ele o vivia. Com efeito, sua filosofia existencialista, resultando da união da inquietude humana com um empirismo metafísico, opõe-se radicalmente às nossas contemporâneas “ciências do homem”.
Ora, para Kierkegaard, não se trata de pensar a existência como objeto; trata-se, na realidade, de tomá-la como a origem a partir da qual cada indivíduo humano pensa e age. No homem e para o homem, existir não se identifica com o ser ou com o possuir uma existência objetiva, imediata. O homem é o único existente de fato; por isso, ele se diferencia dos outros entes que têm uma existência empírica e ignoram quem são.
Por outro lado, para o homem (entendido sempre como individuo, e não como a espécie), a existência é um trabalho, uma exigência: o homem existe enquanto tem de vir a ser, enquanto tem de edificar-se. O homem – sempre enquanto indivíduo – é um ente particular porquanto está adiante de si mesmo, está perpetuamente ocupado consigo, e interessado por si mesmo. É, ademais, um ente que se projeta para as suas possibilidades, para o poder ser, embora sempre situado em face de suas opções.
O indivíduo se determina por meio de seus atos, arrancando-se da imediatidade das coisas, impondo seu ato livre. Por conseguinte, ele ek-siste, isto é, mantém-se fora de si mesmo, em seu projeto, na relação com o que é. O existente é o único ente capaz de existir na abertura ao ser. Isso suscita a pergunta: o que significa existir para o homem?
Ora, segundo Kierkegaard, a existência, não constituindo objeto de uma consciência imediata, vai-se revelando progressivamente no curso do tempo como um apelo a que o existente se realize a si mesmo na relação com a verdade eterna, que é de ordem ontológica. A existência, para o homem, é ao mesmo tempo não ser Deus nem ser simplesmente como os demais entes e coisas que apenas existem na inconsciência da imediatidade e da coincidência consigo mesmo.
A antropologia de Kierkegaard assenta no seguinte axioma: se o homem se faz a si mesmo com liberdade, não o faz a partir do nada. Ora, ele está numa condição específica, na qual se acha a necessidade de se arrancar de sua animalidade, determinando para si a tarefa de realizar sua pessoa concreta.
O processo de subjetivação, na perspectiva de Kierkegaard, consiste num tipo de trabalho ao longo do qual o homem se faz a si mesmo, tomando consciência do eu que é, de sua liberdade que o convoca incessantemente a apropriar-se desse eu, a escolher-se, a decidir o que quer ser.

1.4. O espírito: a emergência da reflexividade

Lançado no mundo sob a forma biológica do corpo e de sua repercussão psíquica (a alma), o homem, sob a forma da imediatidade, precisa desenvolver o espírito, que é a faculdade de síntese reflexiva. O homem é, assim, uma síntese entre a alma e o corpo, e essa síntese não pode ser concebida, se tanto a alma quanto o corpo não estiverem unidos no espírito.
No esforço por tornar claro o conceito de espírito em Kierkegaard, precisarei me ater à definição de existência como cisão entre opostos. Essa cisão precede à tarefa de estabelecimento da sua síntese. Consoante Kierkegaard, a existência não se dá senão sob uma tensão insuperável.
Platão já intuía ser a existência atravessada por um tensão. Ensinava Platão que o homem se compõe de mortalidade e imortalidade e que ele se esforça por se libertar da finitude, de sua existência, que é representada pelo corpo mortal. E acreditava que o homem podia fazê-lo, porque ele é, em sua alma, essencialmente, imortal. Quando, por meio de Sócrates, Platão assevera que filosofar é “aprender a morrer”, estava a limitar essa morte ao corpo, já que este era considerado o túmulo da alma ou sua prisão.
A doutrina cristã se apressou em acompanhar esse helenismo, quando se afastou de sua origem judaica. Assim é que, para o cristianismo, o homem não se encontra em casa neste mundo; todavia, o cristão crê que a fé permite ao homem escapar, de certo modo, ao mundo, na esperança de que, no cumprimento da história, possa retornar à presença de Deus.
Sublinhemos que o homem é marcado pela clivagem entre a alma e o corpo, entre a interioridade e a exterioridade. É justamente no momento em que se opera essa cisão que irrompe a autoconsciência reflexiva, ou o espírito. O espírito dissolve, num primeiro momento, a unidade pré-consciente do corpo com a alma para, em seguida, unir novamente esta àquele.
Kierkegaard descreve esse estado de imediatidade recorrendo ao relato do Gênesis. Adão e Eva não conheciam aquela cisão quando habitavam o Paraíso. A separação entre aqueles elementos opostos – alma e o corpo – se seguiria à desobediência deles ao mandamento de Deus. O espírito, como sinal de liberdade, não só leva a efeito a cisão entre a alma e o corpo, como também o relacionamento entre eles (“e viram que estavam nus”).
É tarefa do homem, doravante, efetuar a síntese entre o finito (o corpo) e o infinito (a alma), e essa síntese é precisamente a essência do homem. Kierkegaard reconhece o problema, que não é mais o do ato de ascensão do espírito a Deus, pela desertificação do corpo ou do mundo, mas o do como da relação do eu consigo mesmo, a qual constitui a existência em sua divisão e em seu diálogo com Deus.
Kierkegaard não se cansou de lembrar que aquela relação não é possível senão pela mediação de seu fundamento comum, que é Deus. A síntese cristã demanda um esforço que não mais se pauta por um dualismo: é necessário realizar uma síntese, a qual é uma complexidade constituída de três termos – a alma, o corpo e o espírito.
A essência do homem consiste em lograr sucesso nessa relação em cuja base está Deus; por isso, de modo algum, o homem poderia furtar-se a ela. Kierkegaard não preconiza nenhuma fuga ao mundo e identifica como fim do homem a apropriação da existência enquanto existência: aqui e agora, em cada instante.
O espírito só advém com a referida cisão. O espírito instaura a consciência reflexiva de si. O homem só pode tomar consciência de seu corpo como corpo a não ser quando tem acesso ao espírito.
Uma observação se nos impõe, antes de terminar esta seção. Se é certo que a obra de Kierkegaard, conforme deve ter ficado claro, restitui ao indivíduo cartesiano uma proeminência ontológica, em contraste com os pensamentos de Spinoza, Hegel e Marx, para quem o indivíduo é subestimado em proveito do caráter determinístico do todo, não é menos certo também que Kierkegaard não foi cartesiano, quando se considera a totalidade de sua obra, que fundou na paixão a confiabilidade epistemológica. Um de seus epigramas famosos reza que “as conclusões da paixão são as únicas confiáveis”. Kierkegaard denunciou a carência de paixão em sua época.


1.5. A angústia, segundo Kierkegaard


Mesmo em estado de inocência, argumenta Kierkegaard, mesmo experienciando a calma e o repouso a que se liga um estado de ignorância, o homem não é animalidade bruta. O espírito, mesmo nesse estado de imediatidade, experimenta angústia diante do nada.
A alma de Adão e de Eva estava em união imediata com sua natureza. Eles ainda não existiam na modalidade do espírito, mas tão-só como possibilidade de espírito, tal como sucede com cada um de nós ao nascer. È apenas no momento em que tomam consciência de sua nudez que o espírito se faz presente no estado de esboço que cinde a alma e o corpo, circunstância esta que permite o surgimento da vida interior.
Kierkegaard entende que a angústia irrompe na ação do espírito que simultaneamente realiza a clivagem e a síntese entre a alma e o corpo, os quais passam a ser percebidos como separados pela consciência reflexiva. O homem toma consciência de sua imediatidade corporal e a vincula à exterioridade. Nesse momento, se experimenta a si mesmo como interioridade capaz de se determinar. A angústia, segundo Kierkegaard, prende-se a essa reflexividade nascente, à experiência originária que toca ao fato de existir, o qual é experienciado como ato de existir. A existência deixa de ter uma dimensão meramente factual para ser percebida como apelo a que ela se realize em cada ato, em cada escolha operada pelo indivíduo.
A angústia se apodera da consciência em face de todos os possíveis. Essa angústia decorre da intuição humana de que aquela síntese a se realizar, na maioria das vezes, fracassa na própria tarefa destinada à sua realização. A angústia é, pois, o lugar de emergência do si mesmo. Ela é desprovida de objeto, diferentemente do medo que o supõe; tampouco é intencional. Ela é o pathos em cujo bojo o indivíduo começa a tomar consciência de si mesmo. A angústia se põe na origem em que o indivíduo, confrontado com seu nada, com o abismo sem fundo do possível, do virtual, toma consciência de sua situação.
Reforce-se, aqui, a ideia de que a existência é o indivíduo livre, e não no sentido biológico. Esse indivíduo se define pelo cuidado com o ser. Ele é o homem que lança seu destino no tempo, no âmago da finitude e na presença da morte; é o homem que, por decisão sua, pode perder-se ou ganhar-se, vir a ser ou fracassar. Esse poder de ser e de não ser o abala profundamente, pois que esse indivíduo se descobre como “eu”. A angústia é o rugido da liberdade que confere vida à realidade de cada um e que leva cada um à condição de escolher, de se fazer responsável por si mesmo.


1.6. O eu como relação entre a alma e o corpo

Cumpre-me agora responder à questão O que é o eu para Kierkegaard? Começo por notar que é a totalidade da finitude que deve relacionar-se com o infinito. Essa finitude é complexa e estruturalmente fadada ao conflito interior, ao desequilíbrio entre elementos – alma, corpo e espírito - que se tornaram heterogêneos por força da consciência e pela divisão que ela, consciência, estabelece entre a alma e o corpo, a interioridade e a exterioridade.
O eu, segundo Kierkegaard, não é uma identidade abstrata ou um substrato substancial estático. O eu é, essencialmente, relação e, sobretudo, relação viva consigo mesmo. O eu é a reflexividade da relação entre a alma e o corpo, que se desdobra dinamicamente no tempo, tornando possível a realização da síntese entre o infinito e o finito, entre o temporal e o eterno, entre a liberdade e a necessidade, entre o absoluto e o relativo, entre o incondicionado e a condição. Todos esses pares constituem os polos assimétricos da condição humana.
O eu é a relação entre a alma e o corpo que se relaciona reflexivamente por meio do espírito. A reflexividade constitui o eu, que é a singularidade de cada um. Essa reflexividade arranca o indivíduo à impessoalidade da espécie.
Adverte Kierkegaard que o homem não se reduz a essa relação. A relação é estruturalmente mais complexa. O eu, enquanto relação que se relaciona consigo mesma, ou deve ter sido posta por si mesma, ou deve ter sido posta por outra coisa. Kierkegaard argumenta que o eu é incapaz de se estabelecer por si mesmo, de modo que ele foi posto por aquilo que, não sendo causado, é causa de toda a relação. Assim, o espírito se relaciona com o que é responsável por toda a relação, a saber, com Deus. Segundo Kierkegaard, resgatar de maneira consciente a relação com Deus da qual procedemos inconsciente e originalmente é nascer para si mesmo de verdade. Esse resgate é designado por Kierkegaard como uma espécie de segundo nascimento de um indivíduo que, depois de enfrentar as agruras espirituais, se sente renovado e é capaz de se renovar a cada novo dia.
Sucede, contudo, que essa alegria da renovação não pode ser alcançada sem dor. Há, deveras, uma tensão na interioridade, já que o eu não é determinado: ele se determina, ou seja, ele é que se escolhe. Ser determinado é negar o ser eu. Esta liberdade é responsabilidade, e existir é estar pleno de paixão pela liberdade, é estar consciente de que cada um de nós é infinitamente responsável pelo que escolhe vir a ser de modo definitivo. O eu só é eu quando assume sua própria singularidade por uma decisão moral que consiste em escolher a contingência que se é, que consiste em fazer da necessidade liberdade, contribuindo para a livre criação de si mesmo, na relação com a força ontológica verdadeira – Deus.
É oportuno lembrar o drama de Kierkegaard, que se expressou na forma do desequilíbrio entre o espírito e o corpo. A educação austera que recebera foi decisiva para a hipertrofia de espírito. Ainda que ele rejeitasse o asceticismo, acabou por se tornar um penitente, após deixar uma tumultuária noite de bebedeira, na qual foi lançado aos braços de uma prostituta por seus companheiros de embriaguez. Essa experiência representa o ápice da cisão. A lembrança desse trauma lançou-lhe na alma tormentos.
Dessa experiência traumática resultou sua convicção de que a vida humana é um dever de encarnação no tempo daquilo que Deus – a fonte eterna – doa ao espírito. Ele reconheceu que, abandonado a si mesmo, fracassou. Não soube equilibrar em si o eterno e o temporal, o infinito e o finito.
O processo de subjetivação, portanto, passa pelo reconhecimento de que o sujeito existente é, ao mesmo tempo, ser-no-mundo (imanente) e ser-superior-ao-mundo (transcendente). Ele é uma consciência que se desenvolve progressivamente quando descobre a sua verdade e procura encarná-la. Assim, existir é simultaneamente devir e ser. É por isso que a existência demanda a fé que, no fundo, é apreensão progressiva da eternidade através do tempo.
Para Kierkegaard, acompanhando Hegel, a fé é a certeza interior que antecipa a infinitude. Ela não se confunde com uma fuga ao mundo, um enclausuramento numa subjetividade exaltada. A fé é um esforço para descobrir o sentido da existência, ou seja, para viver uma vida dotada de sentido. A fé é tanto mais indispensável quanto mais se reconhece que a questão do sentido constitui um desafio filosófico que dá ao pensamento um outro interesse que não é o simples conhecimento.
Enquanto confiança, a fé é, por conseguinte, um caminho para o crescimento no ser, é abertura do tempo à eternidade. Destarte, é possível ao homem nutrir-se dela para viver da própria eternidade no tempo. A fé, sem jamais desarrancar o homem de sua condição temporal, lembra-lhe a sua vocação para a experiência da eternidade.


2. O desespero e suas formas

O percurso que nos conduziu até aqui foi trilhado com o propósito de assegurar o esclarecimento do conceito de desespero na antropologia kierkegaardiana.
Retome-se, aqui, a visão segundo a qual a existência é o aparecimento abrupto da liberdade em face do estado factual da existência. Existir é encarado, a partir de então, como uma tarefa pela qual o indivíduo assume a sua liberdade para se determinar a si mesmo no tempo, nutrindo-se, no entanto, da eternidade, donde procede sua vida.
Deve-se enfatizar este pressuposto básico: o desespero é uma característica essencial do ser humano. O desespero é um sentimento que o indivíduo experiencia em face da escolha de si mesmo.
A primeira forma de desespero liga-se à experiência de angústia em face do peso da liberdade que tem o sujeito para realizar sua tarefa mais autêntica, qual seja, a de ser humano, a de realizar a síntese entre a alma e o corpo. Mas essa síntese não pode ser bem sucedida a um ponto que se venha a dissipar a angústia. Ora, a angústia é angústia em face do salto de liberdade para a liberdade, e a liberdade é a essência do espírito.
O desespero decorre dessa impossibilidade de o homem esquivar-se de sua liberdade, para fugir à angústia. A existência não se nos apresenta como algo acabado. A passividade é-nos uma condição também desesperadora.
Outra forma de desespero prende-se ao receio de fracassar na tarefa de vir a ser. Nesse caso, o homem que quer ser mais teme não conseguir ser. O desespero é esse não conseguir ser. O desespero é uma determinação do espírito que se relaciona com o eterno em nós. Vale dizer que a impossibilidade de desfazer-se do eu é o desespero para o homem. A essa forma de desespero Kierkegaard chama de pecado. O desespero é pecado porque é o estado em que se encontra o homem que, em face de Deus, não quer ser o eu mesmo que é. Kierkegaard vê também no pecado, por extensão, o afastamento do homem em relação a Deus. O contrário do pecado não é a virtude, mas a fé. A fé não pode ser provada e não se explica. O pecado por si mesmo é a luta do desespero.
Se o desespero se vincula ao grau do desenvolvimento da consciência do eu, ou seja,  se é certo que o homem tende a ser mais desesperado quanto mais consciente de si mesmo estiver, quanto mais o seu eu estiver desenvolvido, o desespero permanece latente ou inconsciente também naquele indivíduo cuja consciência é menos desenvolvida. Seu desespero é um desespero inconsciente. Ele pode passar a vida inteira sem saber que está desesperado, porquanto não tomou consciência de ser um eu que deve construir-se a si mesmo em oposição às forças do “destino”. Tal é o caso do esteta, que vive na inconsciência de seu desespero, entregue inteiramente aos prazeres da sensualidade.


2.1. O desespero como doença mortal

Recapitule-se que o eu só existe quando é auto-relação, quando se volta sobre si mesmo e a própria relação assume a forma de um terceiro termo, de sorte que cada um desses termos passa a se relacionar com o relacionamento do eu consigo.
Tendo em conta o que se expôs, o homem pode, então, assumir duas atitudes: pode querer relacionar-se consigo, independentemente de quem o pôs nessa relação, ou pode não querer relacionar-se. Quando o homem se nega a relacionar-se consigo, posiciona-se no domínio da ficção. Pretende, assim, em vão, escapar a si mesmo; ele só poderia fugir de si mesmo, no entanto, matando-se.
Ora, essa impossibilidade de fugir de si mesmo produz, no homem, o desespero. Kierkegaard chama a esse desespero de desespero que não quer. Trata-se da forma de desespero que decorre da impossibilidade de o homem escapar-se a si mesmo.
Pode ainda suceder que o homem, por outro lado, deseje entrar em relação consigo, aceitando essa relação, mas negando-se a reconhecê-la como uma relação fundada por um Outro, isto é, por Deus. O homem exaspera-se por procurar uma origem para essa relação e o faz identificando-a com um ídolo ou se divinizando na crença ilusória de que está na origem dessa relação. O homem crê-se criador de si mesmo. Kierkegaard chama a esse desespero de desespero de quem quer ser por conta própria.
O desespero é uma doença mortal, porque, na condição de afecção, altera continuamente o equilíbrio em que o eu desejaria instalar-se. Destarte, o eu se manifesta continuamente como um desequilíbrio que se estabelece na auto-relação entre o que é e o que ignora que é.
O desespero se caracteriza pela discordância que se instala nessa síntese interna – síntese do finito e do infinito – de que resulta o eu enquanto auto-relação. Na origem, não existe tal discordância, porque o eu é pura possibilidade de ser e de não-ser. A discordância só existe na síntese, ou seja, a discordância entre o eu e si mesmo só há na síntese estabelecida pelo eu.
O desespero é a consciência da luta entre a vida e a morte, que martiriza qualquer indivíduo, ora brutalmente, ora de modo mórbido, ora ainda de modo tênue, mas sempre acenando com uma presença indicativa do fim. Afinal, o homem sabe que vai morrer, e esse é seu único e último projeto determinante.
O homem bem instalado no mundo das máscaras sociais, na lida cotidiana não percebe a face do desespero. Ele imagina-se um outro, para poder evadir-se de si. A questão central que se impõe a Kierkegaard, nesse ponto, é, portanto, o fato de o homem não poder libertar-se de si. Quem se desespera quer, no seu desespero, ser ele próprio, quer viver. Mas a vida não permite esperança.
A verdadeira face do desespero é, pois, o dilaceramento entre a imagem (autossuficiência) que o homem constrói de si e a sua origem (a de ser síntese). O desespero é a contradição que se depreende do querer ser ele mesmo e, ao mesmo tempo, não querer ser a sua origem. O desespero se assenta no solo da liberdade. O homem teme ser absurdamente o nada.


2.2. A universalidade do desespero

Não há homem livre do desespero. Sucede, contudo, que o homem é solicitado a viver de modo despreocupado em face do mundo. O homem vive imerso na banalidade da vida, na qual encontra satisfação imediata. Nessas condições, ele não se dá conta do desespero. Tampouco se apercebe da flutuação entre saúde e doença que acenam com a fragilidade da vida. Ele vive em segredo, e a vida lhe passa desperdiçada.
Kierkegaard nega que a felicidade se encontre no prazer. A felicidade é uma miragem, enquanto busca de um bem durável, no plano da finitude e do possível. Todo homem, por natureza, é desesperado.


2.3. O desespero e suas relações

O indivíduo humano é uma permanente relação que se dá através da liberdade. A síntese que é o homem – síntese do finito e do infinito – não é dada a priori, mas decorre de uma escolha. O eu, como vimos, é liberdade. Mas a liberdade envolve a contradição entre as categorias do possível e do necessário.
A consciência de si, no homem, é tanto maior quanto mais intensa é a vontade: um homem sem vontade é esvaziado do eu. Kierkegaard situa, pois, o desespero relativamente à dialética entre o finito e infinito e às categorias do possível e da necessidade, tendo em conta a consciência.




2.3.1. O desespero e as categorias de finito e do infinito

A análise do desespero, à luz das categorias do finito e do infinito, implica a compreensão dessa síntese que é o eu, dilacerado entre o desejo de se tornar concreto e o apelo a ser mais, espiritualmente.
O eu é livre na medida em que se orienta por conta própria. Entanto, o homem vive oscilando entre o desejo de viver na concretude da corporeidade e o desejo de ser mais espiritualmente. Essa oscilação está sempre impregnada de desespero. Todo equilíbrio no tempo é fugaz.
Na sua relação com a infinitude, o desespero leva o homem a escolher viver fora do real. Nesse caso, o indivíduo se projeta no imaginário e neste se perde, e se torna, assim, privado do seu próprio eu. Essa projeção no imaginário pode dar-se no domínio do conhecimento, do sentimento e da vontade. Ele se projeta para fora de si infinitamente.
O homem que vive de imaginação ama obstinadamente, de modo impessoal e sem vínculo. Ele vive privado de seu próprio eu. Conhece sem ligar-se ao objeto que estuda. E sua vontade é a de um eu que nunca realiza seus projetos. O isolamento no campo do imaginário também leva ao impedimento da relação com Deus.
Na sua relação com o finito, o desespero atormenta aquele que não ousa ser plenamente si mesmo, em toda a sua singularidade, assumindo sua inteira responsabilidade sobre a escolha entre os contrários. Esse indivíduo se dilui na banalidade do cotidiano, se encarcera no finito.


2.3.2. O desespero e as categorias do possível e da necessidade

Para que o eu se transforme e chegue a ser ele mesmo, tem de viver tanto no domínio do finito quanto no domínio do infinito. Essa necessidade é, fundamentalmente, dramática.
Na sua relação com o possível, o homem, como ser de possibilidades, só se realiza no domínio da necessidade. Mas, sempre que não se dá conta dos limites impostos pela realidade à realização de seus projetos, acaba por enlear-se nas teias da imaginação e do desejo.
Na sua relação com a necessidade, o eu não pode esperar nada além do que o real, visto que, do contrário, falsifica a sua condição como ser inacabado e carente, que tende ao infinito. A existência humana tem, segundo Kierkegaard, uma dimensão ou finalidade espiritual.



2.3.3. O desespero e a categoria da consciência

Consoante observa Kierkegaard, à medida que o indivíduo vai se desencantando das ilusões próprias ao mundo dos sentidos, ele vai adquirindo mais consciência da existência nas suas profundas contradições. Nem sempre, contudo, isso significa libertação. Pode suceder que essa consciência intensifique o desespero.
Cumpre definir dois tipos de desespero identificados por Kierkegaard.

a) desespero-fraqueza (tipo passivo)

Esse tipo de desespero é próprio de quem sabe o que significa ser existente – ser livre e determinado, mas não aceita e não deseja ser essa realidade.

b) desespero-desafio (tipo ativo)

Trata-se do tipo de desespero que afeta o homem consciente de si, que curte a sua solidão e aumenta progressivamente a consciência de seu eu. Para ser ele próprio, abusa desesperadamente da eternidade, inerente ao eu. Mas é precisamente por estar em face da eternidade que esse desespero se aproxima da verdade e, paradoxalmente, dela se vai afastando infinitamente. Isso se explica por que o homem deixar de reconhecer a força ontológica fundadora, em suma, não pode pretender ser como Deus. O indivíduo afetado por esse tipo de desejo quer dispor-se de si, fazer do eu o que quer ser. Como um estóico, um eu ativo, não reconhece nenhum poder acima dele.
Silencio sobre os três estádios em que se desdobra a existência, momento do pensamento kierkegaardiano contemplado em outro texto postado neste blog. Remeto o leitor à leitura desse texto, que trata do tema da angústia em Sartre e em Kierkegaard como um meio de integralizar sua compreensão.

Levando a cabo esta exposição,  cumpre notar que Kierkegaard pretende que alcancemos a compreensão de que o coração do drama humano repousa sobre a relação da existência com uma transcendência que torna possível a abertura da primeira para além de si mesma, ou seja, a existência significa poder de decisão, possibilidade de ser e de nada, significa existência como dúvida e fé, como uma ação interior da liberdade que se convoca a fazer escolhas decisivas.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O caso dos verbos auxiliares

                       
                                


                   O caso dos verbos auxiliares
  Alguns critérios para a determinação da auxiliaridade


A auxiliaridade, ou seja, o comportamento estritamente gramatical que certos verbos exibem quando entram a fazer parte do que, tradicionalmente, se tem chamado de locução verbal, é, sem dúvida, um dos tópicos mais controversos em gramática. Tenciono, neste texto, examiná-lo com vistas a avaliar a adequação de um conjunto de critérios sintáticos que nos permitiriam determinar se, dada a proximidade de dois verbos, um dos quais deve ou não ser considerado um verbo auxiliar. A apresentação desses critérios se seguirá a um longo e acurado esforço analítico de uma série de problemas recobertos pelo fenômeno da auxiliaridade.
Minha hipótese inicial é que os referidos critérios sintáticos, em si, isto é, quando tomados sem qualquer referência ao aspecto semântico implicado na questão, não dão conta de todos os casos que a tradição gramatical considera casos de locução verbal. Sem embargo, penso que eles são indispensáveis para que se consiga estabelecer as condições que fazem de uma combinatória verbal um caso de locução verbal.
Antes de encetar a discussão, faz-se mister dar a saber um elenco de conceitos básicos que devem ser, de antemão, conhecidos, a fim de que a própria discussão se torne tanto mais compreensível ao leitor quanto menos dispendiosa para mim. Com a apresentação e definição desse conjunto de conceitos, creio não só contribuir para facilitar o trabalho de compreensão do leitor, como também me escuso da necessidade de fazer, vez ou outra, ao longo da discussão, alguma digressão para esclarecer um conceito circunstancialmente relevante.

1. Conceitos básicos

1.1. O que é gramática?

O primeiro conceito que eu gostaria de esclarecer é o de gramática. Duas acepções do termo gramática estarão pressupostas no desenvolvimento desta exposição. A primeira acepção do termo gramática recobre a ideia de sistema de regras e princípios que governam a construção dos arranjos linguísticos. Nesse sentido, todas as línguas naturais são dotadas de uma gramática – de um sistema de regras -, que prevê as possibilidades combinatórias que tomam parte da produção de enunciados funcionalmente aceitáveis em cada língua. Assim, por exemplo, a gramática da língua portuguesa – o sistema de regras dessa língua – prevê uma regra que nos obriga a usar a preposição “de” para conectar o verbo “ter” a uma forma de infinitivo, procedimento de que resulta uma locução verbal (conforme veremos). Um exemplo dessa construção é a frase (a), abaixo:

(a) Tenho  de   sair cedo amanhã.
                         inf.

Por outro lado, a desobediência a essa regra gramatical torna a construção agramatical ou inaceitável para os usuários do português (o * marca a agramaticalidade):

(a1) *Tenho  # sair   cedo amanhã.

A segunda acepção do termo gramática que o leitor deve ter em conta ao longo desta exposição é recoberta pela designação gramática descritiva, a qual constitui uma hipótese elaborada pelo linguista com base na qual ele busca descrever e explicar a estrutura e o funcionamento de uma dada língua. A gramática descritiva, enquanto modelo teórico-metodológico, cientificamente construído com base nos postulados da observação e da análise de certo conjunto de “fatos linguísticos”, eles mesmos determinados pelo recorte teórico-metodológico que, por sua vez, norteia a observação e a análise, visa, portanto, à descrição e à explicação da gramática tomada na primeira acepção acima. A rigor, o que o linguista tenta descrever e explicar é esse sistema de regras – a gramática na primeira acepção - que se encontra inscrito na mente/cérebro dos falantes nativos na forma de um saber que eles dominam intuitivamente.
Já de início, como eu pretenda situar a problemática sobre a qual me debruçarei, buscarei aporte em um exemplar de gramáticas tradicionais do português, chamadas também de gramáticas normativas, as quais, embora encerrem uma porção de descrição, são orientadas fundamentalmente por uma preocupação prescritivista. As gramáticas normativas, que se identificam com nossas gramáticas escolares, isto é, que, tradicionalmente, fornecem insumo ao ensino de língua portuguesa na escola, são manuais que reúnem certo número de regras pelas quais se estabelece “o bom uso” da língua. Assim,  acredita-se que os falantes que pretendem ser socialmente bem avaliados, quando do uso de sua língua materna, deverão pautar seu comportamento linguístico pelas regras prescritas por essa gramática.
É suficiente dizer – já que o território em que se desenvolve esta discussão não carece aqui de ser inspecionado – que os critérios pelos quais esse “bom uso” é estabelecido são não só variados, como também determinados e sustentados por uma argumentação atravessada por pressupostos elitistas ou aristocráticos quase sempre silenciados ou quase nunca acessíveis aos não-especialistas. O “bom uso” é um valor normativo, sociolinguisticamente determinado, inspirado num ideal de correção idiomática que se busca estabelecer, por seleção arbitrária dos usos feitos pelos assim considerados “grandes escritores” da literatura.

1.2. Formas nominais do verbo

Chamam-se formas nominais do verbo às formas que cumulam a função verbal com a de nomes. Significa isso dizer que tais formas preenchem funções sintáticas típicas de substantivo e adjetivo. Essas formas nominais apresentam as desinências –r, -do e –ndo. Dividem-se em infinitivo, que se comporta como um substantivo (cf. Recordar é viver); em particípio, que assume a função típica do adjetivo (cf. homem sabido/ empresa falida); em gerúndio, que assume a função típica de adjetivo (cf. Despeje a água fervendo na vasilha = água fervente) e também de advérbio, muito embora, atualmente, a classe dos nomes recubra apenas o adjetivo e o substantivo, em virtude do fato reconhecido de que eles são praticamente indistintos do ponto de vista morfossintático (cf. Amanhecendo, sairemos = assim que amanhecer, sairemos/ cedo sairemos). Note-se que, nesse último caso, a forma de gerúndio “amanhecendo” ocupa a posição suscetível de ser ocupada por uma oração adverbial ou por um advérbio simples.

1.3. Significado lexical e significado gramatical

O significado lexical recobre o modo como as línguas segmentam nossas experiências de mundo. Trata-se do significado que corresponde à organização do mundo extralinguístico. Por exemplo, o vocábulo “casa” comporta significado lexical, porque descreve um elemento, uma coisa do mundo exterior à língua.  Estou ciente de que simplifico demais a explicação; mas essa simplificação é indispensável para que não percamos de vista o que é necessário reter na distinção que ora procuro apresentar.
Por seu turno, o significado gramatical compreende o conjunto de distinções significativas que pertencem ao domínio estrito da gramática. Tomando-se a forma “casas”, o elemento “-s” marca a noção de pluralidade que está na base da distinção entre os pares “casa/casas”. A distinção singular x plural é marcada pela oposição ‘presença de marca –s’ e ‘ausência de marca -s’. A presença da marca ‘-s’ indica o plural, ou seja, expressa a quantidade ‘mais de um elemento’ relativamente ao ao referente ‘casa’; a ausência dessa marca indica a ausência da noção 'mais de um'. Nos substantivos, a distinção singular/plural é referencialmente motivada: o singular serve à expressão da ideia de unicidade; o plural, à ideia de pluralidade.  Ademais, essa distinção é determinada por condições gramaticais. A forma assumida pelo determinante (artigo, por exemplo) fixará a forma que deverá ser assumida pelo substantivo subsequente. Assim, em “as casas”, a ocorrência da desinência “-s” em “a” determina a ocorrência da desinência “-s” no substantivo “casa”. Por outro lado, a ausência de marca no primeiro elemento do sintagma implica a ausência de marca no segundo elemento (cf. a casa). Naturalmente, essa regra vale para a variedade de prestígio da língua. Em outras variedades, muito estigmatizadas, basta acrescentar o “s” no artigo para indicar que todo o grupo sintagmático foi pluralizado (cf. as casa).
A distinção entre significado lexical e significado gramatical pode ser estabelecida também em termos da distinção entre lexemas e gramemas. Assim, distinguem-se os lexemas, que são morfemas lexicais que comportam um significado de base extralinguística, o qual representa parcelas de nossa experiência de mundo, dos gramemas, os quais comportam significado estritamente gramatical, responsável pelas distinções operadas no interior da gramática. Por exemplo, se os nomes “Alexandre” e “Márcia” identificam entidades do mundo extralinguístico, os pronomes “ele” e “ela” apenas indicam as entidades do discurso, seja essas entidades designadas por substantivos [+ animado], seja por entidades [- animado]. As formas “ele” e “ela” não designam referentes no discurso, mas nos instruem para que os recuperemos no domínio discursivo. A distinção entre “ele” e “ela” repousa no fato de que a primeira forma remete a um referente designado por um substantivo masculino no singular; a segunda, a um referente designado por um substantivo feminino no singular.
Os lexemas pertencem a um inventário aberto, ilimitado de formas; ao contrário, os gramemas pertencem a um universo fechado ou limitado de formas. Verbos, adjetivos, substantivos e advérbios em –mente (felizmente, alegremente, etc.) são exemplos de lexemas. Artigos, preposições, conjunções, numerais e pronomes são exemplos de gramemas.
Essa distinção, conquanto suscite críticas e sem reivindicar qualquer rigor teórico-metodológico, será importante, todavia, para que se compreendam os verbos auxiliares como formas gramaticalizadas, formas que perderam o significado lexical (mas não todo e qualquer significado, conforme veremos) e com ele sua natureza valencial, no ambiente sintático em que se encontram.

1.4. Locução verbal

Por locução, entende-se um grupo constituído por dois ou mais elementos em vias de cristalização, que pode ser totalmente invariável ou pode admitir a pluralização de um de seus elementos constituintes, desde que não seja o último. Essa definição, deveras, abrangente reúne num mesmo elenco construções como “atrás de” e “cesta básica”, “merenda escolar”. Também aí devemos incluir os substantivos e adjetivos compostos, tais como “navio-escola” e “verde-garrafa”, entre outros tantos.
A definição que apresento não pretende dar conta da complexidade envolvida nessa questão. É extremamente difícil determinar a natureza locucional de um grupo de palavras. Essa definição deve ser encarada apenas como um guia para a compreensão do conceito de locução verbal, que é o conceito que convém elucidar para efeitos de discussão.
A locução verbal é uma unidade semântico-sintática formada pela combinação de dois ou mais verbos, um dos quais preserva sua natureza semântico-sintática. Cumpre, então, esclarecer o seguinte. A locução verbal é um complexo constituído por pelo menos dois verbos, o primeiro dos quais perde significado lexical e assume o papel de suporte para a expressão das categorias gramaticais de tempo, número, pessoa, modo e aspecto. O segundo verbo, no entanto, conserva seu comportamento valencial; é ele o predicador, o responsável por determinar a estrutura relacional da oração.
As noções de número e pessoa são reflexos da pessoa e número do sujeito. Destarte, o verbo se flexiona para expressar as categorias de número e pessoa inerentes ao sujeito. Na locução verbal, é ao verbo auxiliar que cumpre manifestar as flexões de tempo, número, pessoa, modo e aspecto.
A categoria de aspecto diz respeito à duração do processo verbal independentemente da instanciação do tempo. O aspecto indica ou não a estrutura temporal interna de um fato (Costa, 1997, p.38). Assim, por exemplo, na oração “O garoto começou a correr”, o aspecto incoativo, ou seja, a expressão da fase inicial do processo de “correr”, é marcado pelo verbo “começar”, que também atualiza as categorias de tempo, número, pessoa e modo.

1.5. Valência

Entendo por valência a propriedade que tem o verbo, por excelência, na condição de predicador, de determinar certo número de lugares vazios passíveis de ser preenchidos pelos seus actantes. A valência é um fenômeno de base semântica que exibe, no entanto, uma dimensão sintática. Além do número de lugares vazios, o verbo determina também as propriedades morfossintáticas e semânticas dos actantes. A valência é uma propriedade semântica também extensiva a certos substantivos e adjetivos, mas é o verbo a forma que mais sistematicamente a manifesta.
Por actante, entendo cada um dos constituintes sintáticos que preenchem os lugares vazios determinados pela valência do verbo. O fenômeno de valência verbal se sustenta pelo princípio da previsibilidade valencial, por mim demonstrado em minha dissertação de mestrado, o qual se define como o fato de o significado do verbo prever certo número de lugares vazios e tipos morfossintáticos e semânticos de actantes.
Cada um dos lugares vazios é representado por uma das variáveis x, y, z, que são marcadores de posição. A variável x corresponde à posição típica do actante sujeito; a variável y, à posição do complemento direto (objeto direto), outro actante; e a variável z , à posição do complemento indireto (objeto indireto), outro actante.
Assim, tomando-se os verbos “construir” e “dar”, temos as seguintes estruturas relacionais formalizadas abaixo:

(b) X  construir Y
(c) X dar  Y  a  Z

Essas estruturas servem de modelos para a produção de um sem-número de frases das quais “construir” e “dar” são predicadores. Vejam-se os dois exemplos abaixo:


(b1) O rapaz construiu a maquete em uma hora.
           X            v              Y

(c1) O pai    deu   a mesada   ao garoto.
           X       v          Y             Z

Acrescente-se que, além de determinar o número de actantes, o verbo “construir” faz restrição de seleção quanto aos traços semânticos que devem comportam seus actantes. Assim, o actante sujeito deve ser preenchido por um substantivo [+ humano], na função semântica de AGENTE (entidade dotada dos traços [+ animação] e [+ intencionalidade]). O verbo “construir” não autoriza a ocorrência de um substantivo como “cachorro”, por exemplo, para ocupar a posição de sujeito. Ora, claro está que “construir” codifica uma experiência complexa que supõe um agente inteligente, dotado de capacidades cognitivas e motoras que lhe permitam praticar a ação de “construir”.
Por seu turno, o verbo “dar”, na acepção com que foi empregado em (c), a saber, na acepção de ‘transferir ou doar o que se possui a outrem’, tem uma seleção menos restritiva, já que autoriza a ocorrência de um sujeito [+ animado], como “cachorro”, desde que o segundo actante designe um elemento que possa integrar a experiência de um cachorro. Naturalmente, “cachorros” não dão mesadas, mas podem ser treinados para “dar” um molho de chaves ao seu dono.
Há que considerar verbos que fazem ainda restrições quanto à forma do sujeito. Um exemplo desse tipo de verbo é o verbo “convir”, que seleciona uma oração  reduzida de infinitivo para ocupar a posição de sujeito.

(d) Convém dizer sempre a verdade.
                         actante-sujeito

Não menos importante é que esse verbo exige que o sujeito lhe seja, sistematicamente, posposto.  Relativamente aos seus actantes, o verbo determina suas (1) propriedades morfossintáticas; (2) propriedades sintáticas; (3) propriedades semântico-categoriais; (4) propriedades semântico-relacionais.
As propriedades do tipo (1) – morfossintáticas -, recobrem a presença ou ausência de marcas preposicionais introduzindo os actantes. Por exemplo, o verbo gostar exige um actante introduzido de preposição “de” (cf. Gosto de sorvete). As propriedades do tipo (2) – sintáticas – recobrem, por sua vez, as diferentes possibilidades de pronominalização dos actantes. Por exemplo, os verbos obedecer e recorrer exigem diferentes formas de pronominalização de seu actante imediatamente posposto. Para uma frase como “Ele obedece ao pai”, temos a correspondente com pronominalização do actante “ao pai” “Ele lhe obedece”. Mas o verbo “recorrer” recusa a forma “lhe” para substituir seu actante lhe posto à direita. Nesse caso, devemos usar a forma “a ele/a ela”: “Pedro recorreu ao pai”/ Pedro recorreu a ele.
Também é uma propriedade sintática a forma assumida pelo  actante por exigência do verbo predicador. Assim, o verbo “alegrar” pode selecionar para acantante sujeito um SN cujo núcleo é um substantivo, como em “Alegra-me a sua vinda”, ou um SN na forma de oração desenvolvida, como em “Alegra-me que você venha”. É possível também construir o verbo “alegrar” com um actante na forma reduzida de infinitivo, como em “Alegra-me cumprimentá-lo”.
As propriedades do tipo (3) – semântico-categoriais – dizem respeito a restrições de seleção dos semas constitutivos do significado do núcleo dos actantes. Por exemplo, o verbo “espantar” exige que o actante correspondente à função de sujeito seja ocupado por um substantivo [+ animado], como em “O garoto se espantou com a atitude do colega”. Esse verbo recusa a ocorrência de um substantivo nessa mesma posição desprovido desse traço, como em “* A cadeira se espantou com o mau tempo”.
Finalmente, as propriedades do tipo (4) – semântico-relacionais – recobrem as funções semânticas que os actantes devem assumir no estado-de-coisas designado. Novamente, é o verbo que determinará essas funções para seus actantes. O verbo “ouvir” fixa a função semântica de “EXPERENCIADOR” para o actante x (sujeito), ao passo que o verbo “arremessar” fixa a função semântica de AGENTE para esse mesmo actante (cf. João ouviu o barulho que vinha da cozinha/ Paulo arremessou a pedra na vidraça).

1.6. Verbos ergativos

O conceito de verbos ergativos também será importante num momento de minha análise. Verbos ergativos são verbos cuja estrutura valencial encerra um sujeito que cumpre a função semântica de PACIENTE.
Cada uma das construções em que se especificam os actantes do verbo e seus respectivos papéis semânticos é uma diástese. Vejamos um exemplo de verbo ergativo:

(e) O tanque encheu.

O verbo “encher” pode assumir uma forma ergativa. Em (e), ele determina a ocorrência de um substantivo no papel semântico de paciente. Coteje-se (e) com (e1):

(e1) O frentista encheu o tanque.

Agora, o verbo “encher” assume um comportamento transitivo. Seleciona um actante sujeito AGENTE e um actante complemento PACIENTE.
Verbos como “encher” são transitivos-ergativos, porque se comportam como transitivos ou ergativos. A esse grupo deve-se acrescentar o verbo “abrir”, que ocorrerá em um dos próximos exemplos que tratarei de examinar neste estudo. A construção ergativa também é determinada pela valência do verbo.


2. Situando a problemática

Em sua Moderna Gramática Portuguesa (2002), o gramático Evanildo Bechara aduz sua definição de locução verbal nos seguintes termos:

“Chama-se locução verbal a combinação das diversas formas de um verbo auxiliar com o infinitivo, o gerúndio ou particípio de outro verbo que se chama principal (...) Muitas vezes o auxiliar empresta um matiz semântico ao verbo principal dando origem aos chamados verbos aspectuais (p. 203)”.

Deve-se notar que a definição de locução verbal de Bechara assenta apenas no domínio formal do fenômeno, ou seja, sua definição descreve a estrutura de uma locução verbal, e nada nos diz sobre o que faz com que um verbo seja considerado verbo auxiliar, questão principal deste trabalho. Tampouco nos dá a razão por que o outro verbo constituinte da locução é chamado de principal.
Bechara ajunta que, entre o verbo auxiliar e o principal na forma de infinitivo, pode ocorrer ou não uma preposição, entre as mais comuns refere as preposições de, em, por, a e para (cf. Tenho de sair/ Estou para conseguir um emprego). Prossegue o autor observando que, na locução verbal, é somente o auxiliar que manifesta as flexões de pessoa, número, tempo e modo (cf. Haveremos de fazer, iam trabalhando).
Veja-se o elenco de verbos auxiliares apresentado por Bechara a seguir:


1) ter, haver e ser

Os verbos ter e haver constituem os chamados tempos compostos, caso em que se combinam com a forma de particípio do verbo principal. Assim, temos “tenho cantado” e “havia vendido”.

O verbo ser se combina com o particípio-adjetivo (porque variável em gênero e número) para a formação da voz passiva, equivocadamente chamada pela tradição passiva de ação. Não nego que, em muitos casos, o verbo ser entra a fazer parte da formação de uma voz passiva de ação, mas isso se dá apenas quando o particípio deriva de um verbo que indica ação ou processo. Por exemplo, em “O carro foi comprado ontem”, há uma voz passiva de ação, já que o verbo “comprar” denota ação. No entanto, em “João é amado por todos”, não há voz passiva de ação, pois que a forma participial “amado” é formada a partir do verbo “amar” que não denota ação, mas uma experiência de ordem psico-física. É lícito dizer – me parece – que “ser amado” encerra um significado estativo, no sentido em que a entidade amada encontra-se no estado de objeto do amor.

2) estar e ficar

Os verbos estar e ficar também formam a voz passiva; estar integra a construção passiva de estado; e ficar, a construção passiva de mudança de estado. Assim, temos “Estou acordado” e “Depois de tanto caminhar, ficou cansado”.
Os verbos estar e ficar também podem-se combinar com gerúndio, como se vê nas frases “Estamos andando o dia todo” e “Ficava conversando sem parar”.

3) auxiliares aspectuais que se combinam com infinitivo ou gerúndio para determinar as fases da duração do fato expresso pelo verbo. Nesse grupo, Bechara inclui os verbos: começar a, por-se a, continuar, estar para, estar (a), andar, vir, ir, tornar a, costumar, acabar, cessar de, deixar de, parar de.
Notemos, de passagem, que os verbos estar e ficar, quando combinados com gerúndio, indicam o aspecto cursivo, ou seja, marcam a ação em seu desenvolvimento, em seu curso, como em “Estou escrevendo este texto agora”.

4) auxiliares modais, que se combinam com o infinitivo ou o gerúndio do verbo principal para marcar as atitudes que o locutor projeta sobre seu enunciado. Na esteira da tradição lógica aristotélica, tais marcas expressam as modalidades fundamentais do possível e do necessário e, por negação, os seus respectivos contrários, o impossível e o contingente. A despeito de sua herança lógica, a modalidade é tratada em Linguística como modalização, que não é pura e simplesmente um novo termo para um já reconhecido fenômeno linguístico, mas uma nova maneira de encará-lo. Basicamente, o que a Linguística fez ver foi a importância de considerar o envolvimento dos interlocutores na tentativa de compreender o fenômeno da modalização. As línguas naturais não conservam as definições estabelecidas pela Lógica, justamente porque o envolvimento de interlocutores, numa dada situação de interação, implica a existência de um contrato epistêmico que redefine as modalidades sentenciais propostas pela Lógica tradicional.
Constituem exemplos de verbos auxiliares modais ter de, dever, precisar, poder. Os três primeiros expressam a modalidade.  deôntica (do dever, do ser necessário); o último a do possível. É claro, no entanto, que a determinação da função modalizadora desses verbos, ou melhor, do seu conteúdo modal depende sempre das condições contextuais. O verbo “poder”, por exemplo, expressa possibilidade e/ou permissão em “Ele pode faltar à aula hoje”, mas ‘capacidade’ em “Ele já pode caminhar sozinho”. O verbo “dever” expressa ‘obrigatoriedade, necessidade’ em “Você deve ajudar os mais velhos”, mas ‘dúvida’, ‘incerteza’, em “Amanhã, devo ir à escola (não sei)”.
Outro verbo que serve para modalizar o enunciado é o verbo “parecer” combinado com infinitivo, como em “Ele parece estar sozinho agora” (expressão de dúvida, incerteza). É preciso entender que é o enunciador que, ao fazer uso de uma forma como “parecer”, projeta sobre o enunciado uma atitude de dúvida ou incerteza sobre o conteúdo comunicado. O fenômeno da modalização já foi objeto de exame em outros textos neste blog, por isso não vou me estender sobre ele. Mas cumpre dizer que a modalização deve ser entendida em termos de mais ou menos adesão do enunciador ao seu enunciado. Quem diz “Ele parece estar sozinho” não se compromete totalmente com o valor de verdade do seu enunciado, não adere totalmente ao conteúdo proposicional. A modalização, nesse sentido, é uma das estratégias de que dispõem os enunciadores para preservar a sua face. Ademais, o fato de o enunciador marcar mais ou menos adesão aos seus enunciados tem claras implicações na orientação argumentativa por ele tomada. O fenômeno da modalização é, portanto, um dentre os recursos de que dispõem os usuários da língua para fazer uso eficaz dela argumentativamente. Por exemplo, se estou insatisfeito com a insistência de minha namorada ou esposa para que vamos à praia amanhã, posso demonstrar meu desinteresse por ir, enunciando que “Parece que amanhã vai chover” (as razões de meu desinteresse podem ser outras, é claro; e isso certamente pode ensejar uma discussão, mas vamos desconsiderar essa possibilidade). O “parece que amanhã vai chover” constitui não só uma estratégia de recusa de um pedido indiretamente, mas, por força da ocorrência de “parecer”, também uma estratégia pela qual não me comprometo, ou melhor, afrouxo minha responsabilidade pela confiabilidade da informação. Manifesto dúvida sobre a possibilidade de chover (ouvi dizer, trata-se de uma previsão meteorológica da qual tomei conhecimento), mas não se me podem imputar a responsabilidade por enunciar uma falsidade caso “amanhã” faça um sol escaldante. O “parece que amanhã vai chover” também dá certa margem de liberdade de escolha a minha interlocutora, que pode se “arriscar” ou não a ir à praia, na esperança de que a previsão falhe. Assim, ao mesmo tempo em que lhe dou uma margem de escolha, busco mascarar qualquer atitude autoritária em minha fala, comunicando-lhe, no entanto e ao mesmo tempo implicitamente, que não estou disposto a me “arriscar”.
Retomando o elenco proposto por Bechara, cabe ainda referir outros conjuntos de verbos considerados por ele como auxiliares. Trata-se de casos, deveras, problemáticos. Vejamos quais são esses conjuntos.

5) Verbos que expressam tentativa ou esforço, em alguns casos seguido de decepção.

Busco escrever
Pretendo viajar
Tento ficar
Ouso reclamar
Procuro examinar


6) Verbos que indicam volição ou desejo:

Quero escrever
Desejo escrever
Odeio estudar

7) Verbos que exprimem consecução:

Consegui terminar
Logrei fazer


8) Verbos auxiliares causativos e sensitivos:

a) causativos: deixar, mandar e fazer;
b) sensitivos: ver, ouvir e sentir.

Todos esses casos merecem uma avaliação crítica, mas vou circunscrevê-la a dois casos que, uma vez se demonstrem incorretos à luz da crítica, os outros dois também estarão. Ater-me-ei aos casos 6) e 8).
Segundo Bechara, verbos como querer, desejar e odiar podem ou não se comportar como auxiliares. Em nota, ele nos dá a conhecer o que é necessário considerar para que estes verbos sejam considerados ou não auxiliares:

“Por exemplo, na frase: queríamos colher rosas, os verbos queríamos e colher constituirão expressão verbal se pretendo dizer que queríamos colher rosas e não outra flor, sendo rosas objeto da declaração. Se, porém, pretendo dizer que o que nós queríamos era colher rosa e não fazer outra coisa, o objeto da declaração é colher rosas e a declaração principal se contém incompletamente em queríamos” (p.233).



Bechara cita aí José Oiticica. Esclareça-se o que nos ensina o gramático. O que está dizendo Bechara é que é a intenção do falante que determinará se, em “queríamos colher rosas”, há uma locução verbal “queríamos colher” ou, ao contrário, uma oração principal “queríamos” a que se articula uma oração de infinitivo “colher rosas”. O problema patente dessa proposta é o total abandono da descrição à arbitrariedade em que se baseia o recurso à “intenção do falante”. É claro que a intenção do falante é um dos elementos importantes a ser considerados quando se descreve a língua em uso, mas a intenção é sempre pensada como um elemento constitutivo da troca verbal, o qual deve, para ter valor epistemológico, ser passível de apreensão pela materialidade linguística. Na esteira da Pragmática, em Linguística, a intenção é realizada por meio de textos; dito de outro modo, os textos realizam a intenção dos falantes e permitem recuperá-la. O que Bechara fez, a meu ver, foi simplesmente renunciar a se decidir sobre a questão. Ele se negou a lançar mão de um critério seguro, tangível ou operancional para determinar se em “queríamos colher rosas”, o verbo “querer” é um verbo auxiliar ou não.
A razão por que a análise mais adequada é a que fixa o caráter não-auxiliar para verbos como “querer” é que esse verbo conserva seu significado lexical e, por consequência, a sua natureza valencial ou predicadora. Substituamos “colher rosas” por “casar com você”, e ajustemos a oração, para vermos que o verbo “querer” seleciona para actante à direita toda a oração “casar com você” (cf. Quero casar com você). Ora, o sintagma preposicional “com você” não está sob a dependência do conjunto “quero casar”, mas apenas de  “casar”. Ele integra a oração de “casar”. O verbo “querer” conserva seu estatuto valencial, selecionando um complemento direto na forma oracional. Mais adiante, veremos se os critérios sintáticos se aplicam satisfatoriamente a esse caso.
Detendo-me doravante no caso dos auxiliares causativos e sensitivos, convém notar que Bechara (p.430), aduzindo os exemplos abaixo,

Vejo abrir a porta
Ouço soprar o vento
Vejo crescer as árvores

mantém que, em “Vejo abrir a porta”, “a porta” é objeto direto de “abrir”, interpretação equivocada, porque, nessas construções, o SN é, sistematicamente, deslocado para a posição posterior à combinatória verbal. Essa possibilidade de deslocamento é garantida pela natureza semântico-sintática do infinitivo. Os verbos “soprar” e “crescer” são verbos que recusam objeto direto; e o verbo “abrir” é um verbo do tipo ergativo-transitivo. Quando ergativo, o verbo “abrir” seleciona um actante sujeito-PACIENTE. Por exemplo, “A porta abriu”. Na construção “Vejo a abrir a porta”, “a porta” é sujeito de “abrir”, que está apenas deslocado de sua posição canônica (cf. Vejo a porta abrir). O verbo “abrir” admite uma diátese transitiva, caso em que se construiria com um sujeito-AGENTE – objeto-PACIENTE, como em “Pedro abriu a porta”.
Apesar do equivoco da análise de Bechara, ele entende que o conjunto formado pelo infinitivo e o SN que o acompanha é uma unidade sintática dependente do verbo “vejo”, do que resulta a admissão de que o verbo “ver” não é um auxiliar.
Um expediente extremamente eficaz para determinar o caráter não-auxiliar dos chamados verbos sensitivos é o desenvolvimento do conjunto formado pelo infinitivo numa oração encetada de “que”. Assim, para “Vejo abrir a porta”, temos “Vejo que abriu a porta (ou que a porta abriu)”. Esse expediente formal é extensivo ao conjunto dos verbos causativos também. Assim, para “Mandei o garoto ir ao mercado”, temos “Mandei que o garoto fosse ao mercado”. A transformação da oração reduzida de infinitivo em uma oração desenvolvida patenteia que ela é um constituinte selecionado pela valência do verbo que a precede (respectivamente, “ver” e “mandar”).


3. Critérios sintáticos para a determinação da auxiliaridade dos verbos

Finalmente, cumpre atentar para os critérios de base formal que podem ajudar-nos na busca por determinar se há, numa dada combinatória de verbos, um verbo auxiliar.

1º critério: existência de um único sujeito para o grupo verbal.

Segundo esse critério, há locução verbal e, portanto, um verbo auxiliar sempre que houver um único sujeito que está em dependência de todo o conjunto verbal. Nesse caso, o sujeito é selecionado pelo verbo principal, o verbo que comporta a função de predicação no conjunto. Seguem-se os exemplos abaixo:

(f) Eu vou correr na Lagoa amanhã.
(g) Ele ficou caminhando o dia todo.

Em (f) e (g), são os verbos “correr” e “caminhar” que selecionam, respectivamente, os sujeitos “Eu” e “Ele”. São esses verbos que conservam significado lexical e, portanto, sua natureza valencial. Comparem-se esses casos como o caso (h), abaixo:

(h) Vejo o menino subindo às escadas.

Em (h), o sujeito de “vejo” é diferente do sujeito de “subindo”. Podemos transformar o conjunto “subindo as escadas” na forma desenvolvida: Vejo que o menino sobe às escadas. Claro está que os sujeitos são diferentes e que, por isso, não há locução verbal.

2º critério: impossibilidade de transformação do verbo pleno numa oração desenvolvida

Só há locução verbal, quando não conseguimos transformar o verbo pleno numa oração desenvolvida, à semelhança do que fizemos acima. No exemplo abaixo, é impossível tal procedimento:

(i) Eu tive de sair cedo.
(i1) * Eu tive de que saí cedo.

3º critério: inserção da negação na tentativa de romper com a unidade do conjunto verbal

Se for possível a inserção da negação no conjunto verbal, sem perturbar sua unidade semântica, não há locução verbal; do contrário, há locução verbal. No exemplo abaixo, a impossibilidade de usar a negação entre os dois verbos indica que se trata de uma locução verbal e que o primeiro verbo é um auxiliar.

(l) A criança está brincando.
(l1) * A criança está não brincando.

Ora, a partícula de negação só pode orbitar o conjunto “está brincado”, donde se segue que seu escopo é todo o conjunto (cf. A criança não está brincando).
Esse critério me parece ser o menos eficiente, já que ele pode não valer para os casos aos quais os outros critérios se demonstraram aplicáveis. Assim é que, em “Deixa o menino brincar”, a inserção da negativa entre “deixa” e “brincar” torna o enunciado inaceitável - “* Deixa o menino não brincar” - ou muito pouco aceitável “ (?) Deixa não brincar o menino”. Não obstante, vimos que construções com verbos como “deixar” seguido de infinitivo não encerram locução verbal. Os critérios 1 e 2 garantem ser este o caso.



                    4º critério: pronominalização

Se o verbo que ocupa a segunda posição na construção supostamente perifrástica for pronominalizável, segue-se daí que esse verbo comporta-se como um actante do primeiro verbo. Assim, não há locução verbal, e o primeiro verbo é também um verbo pleno. Veja-se o seguinte exemplo:

(m) Você sabe agradar ao seu marido.
- Eu o sei.  (o = agradar ao seu marido)

Não há dúvida de que o verbo “saber” não se comporta como verbo auxiliar, não só porque ele conserva seu significado lexical, quando combinado com um infinitivo, mas também porque pode construir-se com uma oração desenvolvida encetada por “que” (ou, se na negativa, com “se”). Por exemplo, temos “Eu sei que o professor dará prova amanhã”. Ademais, em “Você sabe agradar ao seu marido”, “ao seu marido” não é um actante do conjunto “sabe agradar”, mas apenas de “agradar”.


Os critérios aqui elencados, longe de resolver a complexidade do problema de que me ocupei aqui, lança algumas luzes sobre o estudo da locução verbal e das condições que conferem a propriedade de auxiliaridade a um verbo. Creio, no entanto, que a adoção desses critérios não pode levar o estudioso a desconsiderar a raiz semântica do problema, qual seja, a conservação ou não do significado lexical do primeiro verbo do conjunto e de sua natureza valencial. Isso é importante quando queremos determinar, por exemplo, se o verbo “conseguir”, em “Eu consegui namorá-la por dois anos”, é um verbo auxiliar ou um verbo pleno; se há uma locução verbal ou uma oração principal de que depende outra oração dita, por isso, subordinada.