quarta-feira, 22 de outubro de 2014

"Sofri uma fratura da qual jamais me recuperei" (BAR)

                   


                             Um instante radiográfico


Que me conta a radiografia de minha vida nestes últimos dez anos? Abalos, explosões, êxodos, sismos, cataclismos. Sofri uma fratura da qual jamais me recuperei. Na alma, carrego cicatrizes que me doem mais porque não se pode tocá-las, porque não se estampam. Por vezes – muitas vezes -, ao acordar, fico imobilizado por um debilitante sentimento de abismo. Tantos pensamentos embaraçados e indiscerníveis me assaltam o espírito. Quedo na cama. Fico a sentir as explosões de minhas guerras – as guerras que hospedo em minha alma, em meu corpo. Delas um dia fui prisioneiro; hoje, tornei-me um comandante suspeito, suspeitoso.
A poesia de outrora, que tantas noites embalavam, caducou. A filosofia promitente é mal compreendida; e ensiná-la parece-me uma desnecessidade. O público se ausenta com frequência. Não se é filósofo com frases feitas, de efeito. Acho graça de quem supõe que é assim que se fazem os filósofos. Aliás, filósofos não se fazem; eles acontecem. Também os poetas não se formam; eles nascem. A filosofia não é democrática; tampouco o é a arte. A poesia é um privilégio; a filosofia, ou é uma necessidade, para a qual a vida nos lança (por isso, ninguém escolhe ser filósofo), ou não é nada mais que uma dimensão da cultura, que se reúne a outras tantas formas de sua manifestação (a música, a pintura, a literatura, o cinema..), numa nota de rodapé.
Toda a humanidade pode se dividir em dois grupos, e apenas nestes: o grupo dos que marcham em direção à morte inevitável; e o grupo dos que marcham em direção à morte inevitável com alguma inquietude intelectual a respeito do SER. Para os que compõem este último grupo, o fato de haver mundo é extremamente espantoso. O fato de sermos-no-mundo com os outros é causa de profunda inquietação. No mais, os integrantes de ambos os grupos não se distinguem fundamentalmente. O cotidiano os homogeneíza na engrenagem do viver segundo hábitos fixados por uma ordem que os transcende. No cotidiano, o viver é banal, é medíocre. É o cotidiano o habitat do homem medíocre. Nesse domínio, todos são como todos, e ninguém é em si mesmo.
O que, no homem, é causa de comiseração não é tanto a facilidade com que se ilude. Não se vive sem ilusões. O mal do homem está em iludir-se sobre suas ilusões. Este homem é suscetível de nossa comiseração. Há, portanto, os que sabem que alimentam ilusões e os que, iludidos, têm ilusões sobre suas ilusões. Se não é possível viver sem ilusões, é possível pensar sem mistificações. Ora, desmitificar-se não é livrar-se das ilusões, mas reconhecê-las como tais, como ilusões.

Desmitificar-se tem sido para mim o inequívoco grandioso projeto a que me tenho lançado. Por isso, a obstinação nos livros; por isso, a dedicação à filosofia. Não se segue daí que a filosofia seja, para mim, apenas um meio de desmitificação. Ela é um exercício de existência, um exercício de ultrapassamento, um trabalho de preparação para a morte. É preciso aprender a viver e é preciso aprender a morrer. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

"Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, é o ponto de vista que cria o objeto" (Saussure)

                  
                                    
                                    
      Ferdinand de Saussure
                          O homem dos fundamentos


Convencionou-se datar o nascimento da Linguística moderna a partir da publicação do Cours de linguistique Générale, de Ferdinand de Saussure, em 1916. As ideias de Saussure influenciaram toda uma geração de especialistas, em diversos domínios do saber humano e delas encontramos eco, ainda hoje, nos centros acadêmicos de nosso país, nas conferências em que se divulgam estudos sobre a linguagem.
Da publicação do Cours dependeu a afirmação do estruturalismo linguístico na Europa. Mesmo a Escola Linguística de Praga, que se desenvolveu entre as duas guerras mundiais, sustentando Teses que enfatizavam o componente funcional da linguagem e que forte influência exerceram sobre a mudança de paradigma na Linguística, ocorrida a partir dos anos de 1970, bebeu da fonte saussuriana. Escusa aqui traçar um panorama histórico da influência das ideias de Saussure, empreendimento este que o leitor encontrará em manuais devotados à história do desenvolvimento do pensamento linguístico. Necessário, contudo, é assinalar que a) embora Saussure nunca tenha empregado o termo estrutura em seu Cours, sua contribuição ao desenvolvimento do pensamento linguístico fez surgir uma abordagem revolucionária da língua, a qual ficou conhecida como estruturalismo; b) dois autores se destacam por ter contribuído decisivamente para consagrar as ideias saussurrianas: nos Estados Unidos, Leonard Bloomfield (1933); na Europa, Louis Hjelmslev (1935). O estruturalismo, a partir de Saussure, viria a se tornar um método que grande influência exerceu na análise da língua, da cultura, da sociedade, etc. na segunda metade do século XX.


1. A língua como sistema de signos

Saussure é considerado o pai da linguística moderna. Coube a ele lançar os fundamentos do edifício de uma nova ciência: a Linguística. É bem verdade que, no século XIX, com os trabalhos dos gramáticos comparativistas, já se buscava abordar o fenômeno linguístico com base num modelo científico calcado sobre hipóteses e orientado por um método que visava a explicar a mudança das línguas e a estabelecer relações genealógicas entre elas. No entanto, a visão sistêmica da língua, segundo a qual os elementos constitutivos do sistema devem ser estudados em suas relações de interdependência recíproca, estava ausente das preocupações desses estudiosos. Pelo menos da perspectiva de Saussure, ainda não havia uma ciência linguística estabelecida, porque faltava àqueles estudos um objeto, do qual toda a variação deveria estar excluída,  e um método próprios e bem delimitados.
Para Saussure, esse objeto é a langue (língua), tomada em si e por si mesma. A langue é um sistema. Para definir a língua como sistema, Saussure lançou mão de uma primeira dicotomia: langue/parole (língua/fala). Para o mestre genebrino, língua opõe-se a fala, na medida em que a língua é coletiva, isto é, um produto social; a fala, a seu turno, é individual, uma realidade particular “de que o indivíduo é o senhor”. Ademais, a língua é sistemática (nela só há oposições recíprocas); a fala, assistemática. A fala é heterogênea, multifacetada; a língua, homogênea. Interessado em estabelecer uma ciência, que ele chamou de Linguística, Saussure precisava, como se vê, determinar a natureza desse objeto. Saussure assumiu o pressuposto segundo o qual não há ciência sem um objeto bem definido, sem um objeto que seja homogêneo. Pessoas que falam a mesma língua conseguem comunicar-se, porque, apesar de utilizar configurações linguísticas específicas (as quais caracterizam a sua fala particular), fazem uso de um mesmo sistema de signos (e de regras gramaticais). Em última análise, a língua é uma realidade de natureza sui generis, de modo que uma pessoa privada da fala não deixa de dominar a língua, desde que seja capaz de reconhecer os sinais dessa língua.
Não obstante a distinção rigorosa, estabelecida por Saussure, entre língua e fala, ele não deixa de reconhecer a inter-relação entre os dois domínios, já que, nas palavras de Roland Barthes, “não há língua sem fala e não há fala fora da língua”: a fala é a realização da língua, no sentido de que a toma como um dado real, manifesto (devemos lembrar que a língua é virtualidade; está depositada na mente de cada falante); e, por outro lado, a ideia de fala pressupõe a existência de uma língua. A língua é, pois, produto e instrumento da fala.
Os fatos de fala, a seu turno, não são recorrentes e referem-se ao uso do sistema. Por exemplo, em certas regiões do país ou mesmo entre falantes de estratos sociais estigmatizados, algumas palavras com /lh/ não são palatizadas. Pronuncia-se “mulé” em vez de “mulher” (no sudeste, na modalidade oral, ocorre a apócope do /r/, do que resulta a pronúncia normal “mulhé”). Observe-se, a despeito da variação fonética, o som /lh/ não desaparece do sistema da língua portuguesa. As mudanças no sistema são oriundas da fala. Para Saussure, quando essas mudanças deixam o âmbito individual para figurar no domínio social – ou seja, quando passa da fala para a língua – elas são estudadas sincronicamente nos limites da língua.
Essa dicotomia entre língua e fala, tal como fora desenvolvida por Saussure, sofreu inúmeras críticas no desenvolvimento posterior da Linguística. Mas, afinal, o que se quer dizer com “a língua é um sistema”. Primeiramente, é preciso definir o que é um sistema. Sistema é um conjunto organizado de elementos em que um elemento se define pelo outro, isto é, a função de um se define em relação aos demais. Trata-se de conceber o sistema de um ponto de vista dualista: fala-se em singular porque existe o plural. O valor das unidades linguísticas se define pela oposição umas às outras. Por exemplo, sabemos que casa está no singular, porque existe a contraparte pluralizada casas. Só podemos falar em morfema-zero (ausência de marca) em casa, porque podemos verificar o morfema pluralizador –s na forma casas.
A langue saussuriana é um sistema de signos abstrato. É abstrato porque pensado isoladamente, em si e por si mesmo, do contexto social, em que é usado. Do domínio da langue devem-se excluir todos os fatores que lhe são externos e que dizem respeito às condições sócio-históricas e culturais do uso da língua. Falta, no entanto, explicar o signo.
O signo, no sentido estritamente linguístico, é qualquer unidade formada pela união de um significado (ideia, conceito) a uma imagem acústica (que Saussure chamará, posteriormente, no texto do Cours, de significante). Para ilustrar o signo, Saussure toma a palavra; a palavra lobo, por exemplo, é um signo, porque reúne o significado mamífero carnívoro da família canidae’ ao significante /lobo/. É preciso frisar, no entanto, que o significante não é o som em si, fenômeno material e físico, mas “a impressão psíquica do som”. Portanto, significante e significado são ambos faces do signo definidas a partir do domínio psíquico. O significante não é a sequência sonora em si, mas a impressão psíquica que ela evoca no falante.
Disse que a palavra foi tomada por Saussure como exemplo de signo; mas o signo não deve ser limitado ao estrato da palavra. Em língua, o signo é qualquer unidade constituída de significante e significado. Portanto, morfemas, mínimas unidades sonoras dotadas de significado nas quais se dividem as palavras, são também signos. Frases e textos, tomados como unidades sintático-semânticas maiores, também são signos. Uma unidade linguística só pode ser considerada signo, quando apresentar as duas faces articuladas: significante e significado. Assim, por exemplo, o –va, de cantava, é um signo. Trata-se da desinência modo-temporal correspondente ao pretérito imperfeito do indicativo. Trata-se, portanto, de um morfema. Enquanto signo, “-va” encerra um significado gramatical: faz distinção quanto ao modo e ao tempo em que está empregado o verbo “cantar”. A forma “cantava” opõem-se, por força da presença de “-va”, a formas como “cantou”, “canto”, “cantarei”, etc. Nas formas “cantou” e “canto”, a desinência modo-temporal é representada por um morfema-zero; na forma “cantarei”, pelo morfema “-re”.
Por outro lado, o /r/ de “rato” é um fonema no radical rat- e, portanto, não é um signo. Os fonemas são unidades linguísticas desprovidas de significado; falta-lhes, portanto, a contraparte significativa que caracteriza todo signo.
Não se pode esquecer-se de que “signo”, em semiologia, designa também “gestos”, “imagens”, “sons que não são linguísticos”, tais como o apito de um trem, o tilintar de uma campainha, as cores, etc. Assim, pode-se afirmar que “o signo, ou seu representamem, é algo que, sob certo aspecto e de algum modo representa alguma coisa para alguém” (Pierce,1975:94 apud. Castelar, 2003: 30).
Sumariando o que se expôs, cumpre notar o seguinte:

1. A langue (língua) constitui um objeto homogêneo: um sistema abstrato de signos que se relacionam reciprocamente. A língua é forma, não substância. Ela deve ser estudada em si e por si mesma, sem qualquer relação com o contexto de uso social. Ela apresenta as seguintes características:

a) é social;
b) é homogênea;
c) é sistemática;
d) é abstrata;
e) é supra-individual;
f) é psíquica;
g) é forma;
h) é unidade;
i) é instituição;
j) é potencialidade ativa de produzir a fala;
l) é essencial.


2. A parole (fala) é a realização individual da língua. Compreende atos linguísticos individuais. É múltipla, imprevisível, irredutível a uma pauta sistemática. Ela apresenta as seguintes características:

a) é individual;
b) é heterogênea;
c) assistemática;
d) concreta;
e) variável;
f) momentânea;
g) inovadora;
h) substância;
i) o indivíduo é o “senhor”;
j) práxis (ação).
l) é acidental.


3. “O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito a uma imagem acústica”.

4. Conceito = significado. / imagem acústica = significante. Tanto o significado quanto o significante são de natureza mental. A imagem acústica não é o som material; não se identifica com a materialidade sonora, mas é “a impressão psíquica do som”.



Será forçoso protelar para outra oportunidade a exposição sobre a noção de valor linguístico, que cumpre um papel fundamental na concepção sistêmica saussuriana de língua. A compreensão dessa concepção é extremamente dependente da compreensão daquela noção. Por ora, basta dizer que a noção de valor é sempre relacional: o valor de uma unidade linguística se define na relação que essa unidade estabelece com outra unidade na cadeia sintagmática. Assim, o fonema /l/ só tem valor dentro do sistema quando posto em relação com  /p/, cujo valor só se apreende em oposição a /l/, uma vez considerados o par mínimo /lata/ e /pata/.
A fim de que o leitor perceba a influência de Saussure no desenvolvimento do pensamento de  pensadores posteriores e a fim de que se esclareça um fundamento básico em que se esteia a prática de análise linguística, na próxima e última seção deste texto, dou a saber o princípio da Dupla Articulação da Linguagem.


  
2. A dupla articulação da linguagem

O francês André Martinet, expoente da Lingüística Funcionalista da Escola Lingüística de Praga1, interessou-se pelos estudos da fonologia descritiva, da fonologia diacrônica e da Lingüística Geral. Uma de suas mais importantes contribuições é, decerto, a teoria da Dupla Articulação da Linguagem.
Baseando-se na proposição de Saussure, segundo a qual a língua é constituída pela interdependência entre dois planos (o dos sons e das idéias), o lingüista francês propôs que todo enunciado articula-se em dois planos: o do conteúdo, o qual corresponde à 1ª articulação; e o da expressão, que se refere à 2ª articulação.
O plano do conteúdo compreende as unidades lingüísticas significativas. A menor dentre essas unidades é o monema2. Por outro lado, o plano da expressão encerra as unidades lingüísticas destituídas de significado. A menor unidade desse plano é o fonema; este é definido como a mínima unidade sonora distintiva. O fonema é destituído de significado; mas estabelece distinção significativa entre palavras.
Destarte, se ocorresse ao falante a idéia de ‘refeição noturna com a família’, ele poderia expressar (plano da expressão) seu pensamento (plano do conteúdo) mediante os monemas: “jant-“, “-a”, “-r”, de cuja concatenação resultará o lexema jantar.
Tradicionalmente, entende-se que o plano da expressão refere-se à fonologia, já que nesse plano figuram os fonemas; e o plano do conteúdo reúne as unidades morfológicas (monemas e lexemas) e sintáticas (sintagma e oração). Destarte, o enunciado nós jantamos cedo, pode ser articulado como: nós – jantamos-cedo, caso em que se verificam três vocábulos. A forma “jantamos” pode ser dividida em: “jant-“, “-a”, “-mos”. Essas unidades (vocábulos e monemas) compõem o plano da 1ª articulação. O mesmo enunciado pode ser articulado como: /n/, /ó/, /S/, /j/, /a/, /N/, /t/, /a/, /m/, /o/, /S/, /s/, /ê/, /d/, /o/. Nesse caso, explicitam-se seus fonemas. Essa divisão corresponde à 2ª articulação. Veja-se o quadro na próxima página:

        
                       


Martinet ensinou que o recorte analítico pode explicitar as unidades lingüísticas significativas, dentre as quais a menor é o monema (unidade mínima significativa de análise); e as unidades lingüísticas destituídas de significado (os fonemas). O componente semântico é depreendido das unidades pertencentes à 1ª articulação. Assim como Martinet, que se baseou na dicotomia ‘significado/ significante’, de Ferdinand de Saussure, para desenvolver sua teoria da Dupla Articulação da Linguagem, Hjelmslev, estruturalista dinamarquês que radicalizou as idéias de Saussure, em seu livro Prolegômenos a uma teoria da linguagem (1943), propôs uma subdivisão entre os planos do conteúdo e da expressão, em cada um dos quais inclui as noções de ‘forma’ e ‘substância’ (conceitos saussurianos). Destarte, no plano do conteúdo, há uma forma, que consiste numa relação sêmica e refere-se à própria estruturação das idéias. Em coelha, há a relação entre o significado ‘coelho’ e o ‘gênero feminino (“ela”)’. Outrossim, nesse plano, há uma substância, que se refere ao pensamento amorfo, desestruturado. Corresponde, pois, à idéia que os falantes tem desse animal: “coelha” é a fêmea da espécie “coelho”.
Também, no plano da expressão, verificam-se a forma e a substância. Esta corresponde aos sons desestruturados: representa a massa fônica sem valor funcional. Isso nos lembra a Fonética, estudo que se ocupa dos “fones” (ou seja, de todas as realizações sonoras da fala). Assim, em gato, distinguem-se os fones: [g], [a], [t], [u]. A forma refere-se à estruturação dos sons na cadeia da fala. Os sons são considerados sob o ponto de vista funcional (fonemas). Do binômio forma/ substância, pode-se depreender, portanto, a distinção entre fonologia (estudo da forma dos sons) e fonética (estudo da substância dos sons).
Finalmente, cabe observar que, consoante a proposição de Hjelmslev, a língua é responsável por relacionar os dois níveis. No entanto, como se verá no esquema a seguir, a língua restringe-se à forma, já que, em consonância com Saussure, Hjelmslev também relaciona “substância” a “fala”; afinal, na proposição de Saussure, a fala é uma realidade não-sistemática.

Note-se ainda como o substantivo coelha pode ser segmentado, consoante o ponto de vista de Hjelmslev:





Está claro o refinamento com que o princípio da dupla articulação da linguagem aparece em Hjelmslev. Ao invés de propor um recorte dicotômico apenas, de acordo com o qual o plano das idéias se articularia ao plano material, sem qualquer subdivisão interna, o lingüista entende que, no âmbito das unidades significativas, deve-se distinguir entre o significado “bruto” (substância) e o significado estruturado (forma); e, no âmbito das unidades da expressão, deve-se distinguir entre a natureza físico-articulatória (substância) e a natureza sistêmico-funcional dos sons, atribuindo à língua a função de relacionar a forma do conteúdo à forma da expressão. Segundo a proposição de Hjelmslev, há, pois, um princípio estrutural (formal) quer no plano das idéias, quer no plano da expressão. Hjelmslev, assumindo a articulação da “forma do conteúdo” com a “forma da substância”, reafirma radicalmente a idéia saussurriana de que a língua é forma, e não substância.
Por fim, cumpre mencionar que a dupla articulação da linguagem consiste num princípio assaz relevante aos estudos lingüísticos3.


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NOTAS

          1.  A designação Escola Lingüística de Praga aplica-se a um grupo de estudiosos que participaram do Círculo Lingüístico de Praga (1929). Nessa abordagem, a língua é considerada um sistema funcional, em que o componente estrutural coexiste com o componente funcional. “Funcional”, na perspectiva desses estudiosos, diz respeito à propriedade de a língua servir fundamentalmente à comunicação; a língua é, pois, um sistema de comunicação.

2. O termo monema recobre a noção de morfema do estruturalismo. Martinet denomina de monemas as unidades da primeira articulação, mas distingue, entre estas, os lexemas, monemas que se situam no léxico, dos morfemas, monemas que se situam na gramática.

3. A teoria de André Martinet apresenta uma conclusão fundamental acerca da natureza da linguagem humana: o princípio da economia lingüística. Esse princípio pode ser definido como o fato de que o sistema lingüístico permite ao falante a produção de um número infinito de enunciados mediante um número limitado de unidades. Veja-se que o português, com apenas 28 fonemas (19 consoantes, 7 vogais e 2 semivogais), permite-nos produzir um número, teoricamente, ilimitado de enunciados. Por exemplo, produzimos novas palavras na língua, basicamente, mediante processos derivacionais, os quais consistem na junção de elementos mínimos recorrentes a bases morfológicas; logo, não memorizamos todas as palavras de nossa língua. O princípio de economia lingüística evita, portanto, que nossa memória fique sobrecarregada e assegura a dinamicidade e eficiência do sistema. Note-se, destarte, que, para adquirir uma nova palavra, utilizamos o material já existente no léxico: dispondo de “computar”, formamos “computação”, mediante a junção de “-ção” à base “computa(r)” (já disponível).





domingo, 12 de outubro de 2014

"A morte é a maneira de ser que a realidade humana assume desde que passa a existir. Tão logo um homem começa a viver, já é suficientemente velho para morrer".(Heidegger)



A morte como minha possibilidade própria

A interpretação existencial da morte de Marin Heidegger


Os passos abaixo de Fernando Pessoa, dois dos quais colhidos de seu O Livro do Desassossego, servirão para ancorar o desenvolvimento deste breve e despretensioso estudo sobre como o problema da morte foi abordado na filosofia de Martin Heidegger (1889-1976).
O primeiro enunciado de Pessoa, que se topa logo abaixo, rejeita a separação entre sensibilidade e razão, entre sensação e pensamento. Essa indissociabilidade entre pensar e sentir deve, desde já, ser conectada à noção de compreensão de que se serviu Heidegger, a qual encerra a sensibilidade. Ademais, essa indissociabilidade deve também se articular ao modo como o homem tem acesso ao próprio ser. Heidegger dirá que a existência é, primeiramente, sentida. Não é chegado ainda o momento em que faremos incursão no pensamento de Heidegger; por isso, consideremos, por ora, o segundo passo de Pessoa.


 “O que em mim sente está pensando”.
    

Neste passo a seguir, Pessoa põe o pensamento a serviço do sentir e identifica o pensar com o viver. Sentir e pensar são o mesmo que viver. É importante retermos essa indissociabilidade entre pensar, sentir e viver, em primeiro lugar, porque a própria experiência de leitura é forma de vivência que articula pensar e sentir; em segundo lugar, porque desejo que o leitor, mais do que pense com Heidegger, compreendendo aquilo de que ele deu testemunho, sinta também, a seu modo próprio, evidentemente, o modo como ele procurou dar conta da dimensão existencial da morte.


  “Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar”    (p.101).


Sem tencionar uma análise do excerto abaixo, limito-me a externar sobre ele algumas palavras. Seu tópico textual é a morte, conforme se vê claramente. Chamo atenção para o fato de que Pessoa reconhece o que Heidegger, conforme veremos, já havia reconhecido: mesmo em face de um morto, nós não temos uma experiência de morte. Experimentamos o pesar, o luto, mas jamais o evento existencial da morte. Trata-se, nesses casos, da morte como um fato do qual tomamos consciência imediata, de uma morte alheia. É desse modo que o homem imerso na cotidianidade percebe a morte: a morte é percebida como um acontecimento do mundo, genérico. Certamente, há muito que se por a descoberto no texto de Pessoa; no entanto, deixo ao leitor essa tarefa de escavação de sentidos. Deleite-se!



“Considero então que coisa é esta a que chamamos de morte. Não quero dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver. A humanidade tem medo da morte, mas incertamente, o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribuiu a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Por que o há-de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo, nem sei como alguém pode assemelhar-se a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que comparar. A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira” (p. 71).



1. Martin Heidegger (1889-1976)



       Heidegger é reconhecidamente um dos filósofos alemães mais importantes que atuaram no século XX. Nascido em Messkirch, foi professor na Universidade de Freiburg (1916), onde estudou com Hurssel.
Sua obra mais importante é Ser e Tempo (1927). Esse estudo, inacabado, marca seu distanciamento relativamente à fenomenologia de seu mestre Hurssel e inaugura um modo próprio de encaminhar a reflexão filosófica sobre o sentido profundo da existência humana, bem como sobre a metafísica, e o significado de sua influência no desenvolvimento do pensamento ocidental.
A tradição o situa entre os filósofos da Existência, muito embora ele próprio, Heidegger, recusasse esse rótulo. Os estudiosos de Heidegger concordam, em geral, em que ele é um filósofo cujo pensamento é extremamente difícil de entender, o que torna a tarefa de estudar sua filosofia bastante espinhosa, mormente para aqueles que, sem algum treinamento prévio, entram em contato diretamente com sua obra.
As dificuldades que estorvam a busca pela compreensão de Heidegger são de duas ordens. A primeira das quais diz respeito ao vocabulário de que se serviu o filósofo (sabe-se que Heidegger criou uma terminologia própria, a fim de dar forma às suas concepções). A segunda dificuldade repousa na incompletude de sua obra, o que torna seu discurso reticencioso.
Tais dificuldades não devem constituir razão suficiente para nos desencorajar de experienciar a originalidade de seu pensamento. Heidegger buscou recuperar a importância fundamental da questão do ser, que, na esteira do pensamento moderno, foi relegada em favor de questões atinentes ao conhecimento e à ciência. Seu objetivo consistiu em recuperar o sentido original do ser, não sem antes lançar por terra a ontologia tradicional.


2. O ponto de partida: a morte é constitutiva da essência da existência

Porque se situa no limite da existência, a morte é, por definição, o não-experimentável. Ainda que se postule a possibilidade de uma continuidade do ser, após a morte, a experiência do fim continuaria impossibilitada enquanto evento existencial.
Heidegger tomará como ponto de partida de suas reflexões sobre a morte a concepção da morte como constitutiva da existência mesma. Em Ser e Tempo, seu esforço consistirá em mostrar que a morte é um evento singular, uma possibilidade própria de cada um, e não uma mera negação da existência.



             2.1. O sentido original do Ser

Antes de me deter a considerar como o problema da morte foi desenvolvido por Heidegger, é necessário esclarecer a busca do sentido original do ser, levada a efeito por ele (sentido negligenciado pela metafísica, que remonta a Platão e a Aristóteles).
Heidegger notará que, na metafísica tradicional, a diferença ontológica entre ser e ente se diluiu, de modo que a pergunta pelo sentido do ser se reduziu à pergunta pela essência dos entes. Mas o ser de que nos falava, por exemplo, Parmênides, não é o ente, mas a condição de possibilidade dos entes. Perguntar-se pelo sentido do ser equivale, portanto, a perguntar-se pelo horizonte em que o ser se constitui como possibilidade de compreensão (aqui se deve entender “entrar em relação com”) dos entes. O ser é da ordem da condição que torna possível a existência dos entes, que são os indivíduais. O ser é da ordem do acontecimento inaugural, presença totalizante, do qual os entes, tomando parte, são dados imediatamente acessíveis à experiência sensível. Daí a trivialidade que Heidegger redescobrirá: todo ente é no ser. É aí que reside o espanto para os gregos. O ente recolhido no ser tornou-se para os gregos o mais espantoso, nota Heidegger.



            2.2. O Dasein e o mundo

O ser humano, para Heidegger, é existência. Heidegger pensará o ser humano como ser-no-mundo. Em primeiro lugar, cumpre notar, com Heidegger, que, desde o nascimento, antes mesmo de desenvolver qualquer reflexão teorética sobre o mundo, o ser humano está envolvido com o mundo, nas diversas atividades de que participa: brincando, estudando, trabalhando, convivendo, etc. O mundo, portanto, não é externo ao homem; não preexiste a ele. Por isso, o homem surge como ser-no-mundo, isto é, envolvido com o mundo; e o mundo é copresente com o homem. O homem é um ente ocupado com o mundo; o mundo e a existência deste ente privilegiado que é o homem, porque é ele que se pergunta pelo sentido do ser – são dados de forma imediata.
Vale frisar esta ideia: não há ser humano sem mundo, nem mundo sem ser humano. Esclareça-se o termo Dasein, agora. O Dasein se costuma traduzir como ser-o-aí. Essa forma de tradução sugere que a condição humana está sempre lançada numa situação ou circunstância no mundo. Acrescente-se que o Dasein é um índice formal da condição humana, que, diferentemente do que sucede com os demais entes, existe na indeterminação de seu ser. O homem ou Dasein é ente indeterminado em seu ser. Basta dizer, por ora, que estamos longe da concepção tradicional de homem como ser racional.
Tome-se, agora, a indeterminação do Dasein, enquanto ser-no-mundo. Como ser-no-mundo, o Dasein está irremediavelmente lançado nesta condição: estar no mundo estrutura fundamentalmente o seu ser. Esse ser é sempre indeterminado, é ser de possibilidades. Somos o que somos em função do que realizamos em dadas circunstâncias; e sempre realizamos com base nas possibilidades que se abrem em contextos previamente fixados. Aqui cabe dizer que a postura teorética é sempre posterior a essa relação primeira e engajada do Dasein com o mundo.
O ser humano não só propõe a questão sobre o sentido do ser, mas já é o ente que compreende implicitamente esse sentido, ente que compreende os demais entes com que se relaciona e o ser que ele é.
Em vista do exposto, cabe reter que Heidegger mostrará que a busca pelo horizonte de compreensão do ser impõe a análise prévia do ser humano, graças à qual se revela a estrutura da compreensibilidade do ser. Compreende-se que se deve buscar o sentido do ser pela análise existencial do Dasein. Essa tarefa recebeu o nome, em Ser e Tempo, de Analítica Existencial.


3. A analítica existencial

Cumpre, nesta etapa, compreender qual é o objetivo a que se destina a analítica existencial. Notemos, desde já, que esse objetivo é revelar o horizonte humano de compreensão do ser. Mas não se trata de procurar uma nova definição do ser humano. O Dasein não pode ser explicado por meio de categorias precisas; ele é pura indeterminação. Urge salientar que, agora, não há mais um fundamento metafísico em que se deve apoiar a existência humana. O ser humano é um projeto; como tal, ele se realiza na existência. Como projeto, o Dasein se faz a si mesmo a partir das possibilidades abertas nos contextos em que se encontra.
Conquanto seja o ser humano um ente que existe no modo de possibilidades, sempre a fazer-se, não se segue daí que as possibilidades de existir no mundo sejam ilimitadas. Somos seres de possibilidades, mas essas possibilidades são limitadas por contextos geográfico, político, econômico, social e cultural. A isso Heidegger chamou de facticidade. A facticidade é o fato de o Dasein estar sempre lançado em possibilidades limitadas pela estrutura do mundo.
A morte terá um lugar de destaque no quadro da analítica existencial, porquanto a morte, em sua imprevisibilidade, indica a indeterminação da essência humana. A importância de pensar a morte nesse quadro de análise repousa no fato de que ela, a morte, introduz o elemento da finitude e torna possível pensar a temporalidade da existência. Pela morte, torna-se possível pensar o Dasein em sua condição existencial.
Portanto, Heidegger não está interessado em examinar a morte como fenômeno biológico ou como um fenômeno genérico de extinção. Devemos antecipar um ponto que trataremos de desenvolver mais adiante. Heidegger não se ocupa de pensar a morte como um fato que atinge a todos os seres humanos, mas como uma possibilidade própria de cada um. Evidentemente, ele reconhecerá que a forma de conceber a morte como fato do mundo é comum ao homem imerso na cotidianidade. Mas veremos, em tempo, que a morte, considerada no quadro da analítica existencial, é uma dentre as possibilidades – a possibilidade suprema, decerto – abertas ao Dasein.



            3.1. A existência decadente

Segundo Heidegger, a experiência comum e cotidiana da morte mascara seu sentido originário. É justamente por sua condição de ser-no-mundo que o homem facilmente acaba por existir na não-verdade, compreendendo a si mesmo e o mundo a partir das representações coletivas, das crenças recorrentes em sua sociedade. Esse modo de existir na não-verdade Heidegger chamará de decadência.
O mundo das ocupações cotidianas é também um mundo compartilhado. Os outros estão dados de modo tão imediato quanto o mundo e a própria existência. Sucede, contudo, que, no cotidiano, o convívio assume a forma de uma absorção no modo de ser dos outros. Pensemos, por ora, na função dos padrões culturais. Os indivíduos que vivem num dado contexto cultural assumem modos de ser, sentir, agir e pensar determinados pelos padrões estabelecidos por sua cultura. Cada um é como o outro é em seu modo de ser. A própria necessidade de identificação com o grupo depende da incorporação de certos hábitos de pensar, agir e sentir fixados pela cultura a que pertence os indivíduos.
É fácil ver como, no cotidiano, o homem é absorvido no impessoal. O impessoal não é ninguém determinado; mas é o modo padronizado de conduzir a existência, que cada um assume, sem disso ter consciência. Heidegger dirá que, no mundo cotidiano, “cada um é igual ao outro e nenhum é ele mesmo”.
Há, portanto, um modo de ser fundamental da cotidianidade, qual seja, o da decadência. O que é esse modo de ser? É o que o ser humano é na cotidianidade: um ente de tal modo ocupado com o mundo, que se deixa absorver por esse mundo, sem disso aperceber-se. Trata-se de uma condição tranqüilizadora, embora inautêntica. Mas a própria inautenticidade é uma possibilidade dentre as possibilidades de ser. Na impessoalidade, o Dasein não se reconhece como ser de possibilidades, tampouco assume sua condição de agente responsável pelo próprio ser. Ele tão-só deixa-se conduzir pelo modismo, pelas opiniões correntes, repisadas, pelos modos de se comportar gerais, os quais são assumidos como “o jeito certo de ser”.
No tangente à morte, na inautenticidade, o Dasein a assume como evento alheio, como um fato do mundo, como ocorrência que arrebanha a todos os outros. Morre-se todos os dias; a morte é um acontecimento conhecido, já dado no mundo. Na cotidianidade, o homem foge da morte na medida em que a trata como um acontecimento que lhe é comum (não só eu morrerei como os outros também), estranho (trata-se da percepção da morte como a morte dos outros), e por vir (situada fora do domínio de sua existência, enquanto ser ocupado com o mundo).



             4. O ser-para-a-morte


A compreensão existencial da morte supõe a admissão de que o Dasein é também um ser-para-a-morte. Mas ainda não atingiu a autenticidade quem não singularizou o ser-para-a-morte.
Inicialmente, deve-se entender que a expressão ser-para-a-morte caracteriza a condição de estar destinado à morte. Mesmo no modo impessoal de existir, as pessoas costumam aceitar que caminham para a morte; elas têm certeza de que morrerão, mas esse caminhar para a morte é ainda generalizado; afinal, todos caminhamos para a morte inevitável.
Heidegger, no entanto, argumentará que, no cotidiano, o homem não consegue perceber a morte em seu sentido pleno, a saber, enquanto fenômeno existencial irrecusavelmente próprio e irremediavelmente indeterminado. Esse ente absorvido no modo do impessoal se acostumou a esquivar-se de considerar a iminente possibilidade da própria morte. Na medida em que o Dasein é um projeto (seu ser é indeterminado), sempre aberto a possibilidades, deve ele assumir a possibilidade da própria morte, sob pena de incorrer numa “inconsistência existencial”. Destarte, ele continua impossibilitado de alcançar uma compreensão autêntica de seu ser.
Percebendo a morte como sempre possível, um sempre aí inscrito na estrutura de sua existência, o ser humano reconhece-se como sempre inacabado, em construção, como projeto a realizar-se em suas possibilidades de existência; por outro lado, a perspectiva da certeza da própria morte e da indeterminação de seu acontecimento, revela aquilo que talvez não se realize.
A interpretação existencial da morte pretende, portanto, revelar a estrutura ontológica da morte como ser-para-o-fim, articulando-a à compreensão fenomenológica do ser humano como projeto lançado no mundo. Como ente lançado no mundo, o homem está constantemente construindo a si mesmo a partir de possibilidades não determinadas. Uma vez sendo no mundo, o Dasein tem em face de si inúmeras possibilidades de ser, donde resulta a constatação ôntica segundo a qual jamais se pode predizer, no momento do nascimento, o que será e como viverá uma pessoa.
Por outro lado, sendo projeto, o ser humano está desde sempre sujeito à possibilidade suprema – que é a morte: “a morte está sempre flertando com as possibilidades do ser humano” (Doro, 2011, p. 138). Evidentemente, ela é da ordem da impossibilidade, do nunca mais das realizações humanas. A morte é a possibilidade da impossibilidade das possibilidades humanas. Até aqui, creio estar claro que a morte é, para o ser humano, como um abismo para o qual se orienta a caminhada. Por isso, “para morrer basta estar vivo”. A morte é interrupção sem deixar nada pendente, uma vez que o ser humano é caminho aberto, nunca completado.
Da libertação da concepção cotidiana da morte depende a compreensão que o homem tem de si como ser-para-o-fim. Ele só pode alcançar essa compreensão quando remover as formas de encobrimentos do mundo público do impessoal. Mas aquela compreensão não se alcança por meio da reflexão; o acesso ao próprio ser só se dá pelos sentimentos. A existência, dirá Heidegger, é primeiramente sentida. Desses estados de humor pelos quais o homem compreende-se verdadeiramente como ser-para-a-morte, destaca-se o papel da angústia.
A angústia, não tendo um objeto próprio, é gerada por nada, ou pelo próprio existir no mundo (condição esta indeterminada). Ao contrário do medo, que tem uma causa que o desencadeia (medo de altura, de barata, etc.), a angústia é desprovida de causa ou objeto. Ela se acompanha do tédio, o qual revela a gratuidade insignificante do mundo das ocupações: as coisas e as tarefas se esvaziam de sentido e a existência se experiencia em sua facticidade. Ou seja, a angústia esfacela a tranquila familiaridade do mundo cotidiano, do que resulta seja a condição de ser lançado sentida profundamente.
Uma vez rompida a tranquilidade do mundo das ocupações, uma vez liberto do modo de ser impessoal, pela angústia, o homem se dá conta do modo como, de fato, está no mundo: entregue à própria responsabilidade. Agora, o homem experiencia-se como o autor da própria vida; por isso, sua responsabilidade sobrecai-lhe como um peso: ele é responsável pelas possibilidades de ser. É nesse instante mesmo em que se percebe responsável pelas possibilidades próprias de ser que a possibilidade mais própria, qual seja, a de ser-para-a-morte, se revela intransigente e insuperável.
O tédio, que acompanha o estar angustiado, é o sentimento de urgência para passar o tempo. Por isso, o homem tende a não hesitar em recorrer aos passa-tempos, como meio de escapar à angústia. Ora, ocupando o tempo, o passa-tempo não permite que o tempo convoque o homem a assumir suas possibilidades existenciais.
O homem só existe para a morte: é um ser-para-o-fim. É essencial e constitutivamente um ser-para-a-morte, o que significa viver angustiado. Advirto o leitor de que não deve interpretar o “para”, em “existe para a morte”, como índice de finalidade; mas de ‘direção’. Essa condição a que o homem está lançado irremediavelmente quando do seu nascimento não deve paralisá-lo. O ser-para-a-morte é ser angustiado, é verdade; mas essa condição é também libertadora. Estar angustiado não se confunde com melancolia ou desânimo. Estar angustiado é o estado existencial de quem assume total responsabilidade pelo próprio existir. Por isso, a angústia, em vez de paralisar o homem, o liberta da alienação – isto é, da inautenticidade determinada pelo impessoal, de tal modo que ele se torna livre para escolher suas próprias possibilidades de ser. “Eu sou minhas possibilidades”, escreve Heidegger..




5. De que modo a compreensão da possibilidade da morte é decisiva para a condução da existência?


Com a questão que dá título a esta seção, levo a cabo este texto. Heidegger sustentará que é tão somente pela consciência da finitude e da gratuidade da vida que o ser humano pode determinar o curso de sua existência, sem o peso das influências do meio social – influências estas que a controlam.
Eis, portanto, o núcleo do conceito existencial da morte, segundo Heidegger: encarada como possibilidade própria e intransferível, a morte torna possível a condução autêntica da existência.
Compreender-se como o ser-para-a-morte significa tomar o indivíduo humano enquanto ente que antecipa a possibilidade da morte. Não se trata, evidentemente, de por-se sob o risco de morrer, tampouco de compreender a morte como um fato. Ser-para-a-morte é perceber, num nível fundamental da existência, a dimensão afetiva da angústia como modo de o homem sentir-se como ser-no-mundo, ser entregue à sua responsabilidade. Não é a reflexão – insisto nisto – que dá ao ser humano o acesso ao seu ser; mas a angústia que o faz de modo originário. Tampouco o medo diante da morte o faz.
Um exame detido da estrutura do Dasein deveria levar em conta, entre outras, a dimensão que, necessariamente ligada à morte, foi, no entanto, desconsiderada: a da temporalidade. O Dasein está entretecido no tempo; seu ser é fundamentalmente futuro. Contente-se o leitor com o fato de que eu não poderia jamais estender-me para além dos limites fixados pelo estágio de minha compreensão da filosofia de Heidegger. Minha contribuição foi bastante modesta: mais do que provocar no leitor um entendimento de Heidegger, gostaria de que  incorporasse o sentido existencial da morte num nível pré-reflexivo; enfim, que ele sentisse o que significa o “tão logo nasce, o homem já é suficientemente velho para morrer” (Heidegger).











sábado, 20 de setembro de 2014

Bem-aventurados os que amam sem medo

                                     
                                       

                                                   Da experiência de sofrer

Há algo no Cristianismo e em alguns cristãos que eu admiro: o reconhecimento de que a experiência do sofrimento e da dor é intrínseca à existência. E meu respeito e admiração são ainda maiores aos que vivem em consonância com esse reconhecimento, sem fugas e com uma força afirmativa da vida, que, com muita frequência, nos expõe à sua fragilidade inerente. Apenas me incomodo quando eles se valem de suas teodiceias para justificar a imensa quantidade de sofrimento gratuito que há no mundo. Mas isso é outra história e ela não vem a propósito neste comentário.
O que me motivou a escrever este pequeno texto foi uma experiência familiar. Há pouco, em vista de uma moléstia – felizmente tratável e sem gravidade – que acomete meu cachorrinho, meu pai disse não querer mais ter cachorro por receio de sofrer. Pode parecer estranho – ou mesmo contraproducente – vindo de uma pessoa que acredita na existência do Deus cristão, que crê na divindade de Jesus Cristo – ainda que isso dispense interesse por elucubrações teológicas -, e de quem se espera  saiba algo sobre a história que nos contam os evangelhos. Mas casos como esse são, não obstante, comuns. Preferir privar-se da experiência do amor por receio do sofrimento é a própria antípoda da experiência cristã. Os cristãos habituados a frequentar as letras da doutrina não me deixam mentir e, provavelmente, me darão razão.
Disse a meu pai que já ouvi dele, outras tantas vezes, a mesma coisa e acrescentei que viver é sofrer (Schopenhauer já o reconhecia, e Buda, que grande influência exerceu sobre seu pensamento, o ensinara), que o sofrimento é uma experiência intrínseca à vida, e que não escapamos a ela, quer nas ocasiões em que adoecem nossos animais de estimação, quer nas circunstâncias em que adoecem nossos entes queridos. Mas ele, relutante, insistiu que o peso do sofrimento é maior do que a recompensa da alegria do amor, da companhia dessas criaturas por cuja vida e bem-estar assumimos responsabilidade. Não quis estender-me numa discussão filosófica (embora ache que a filosofia faz muita falta, em casos como este). Então, preferi me calar.
Meu cachorrinho acaba de ganhar um osso e está feliz... Estou a pensar agora que, se acolhêssemos essa postura covarde em face da vida, então deveríamos não mais ter nossos filhos, pois que dar à luz uma criança é lançá-la às vicissitudes da sorte, é lançá-la num mundo onde ela conhecerá, cedo ou tarde, sofrimento, dor e, necessariamente, a morte. É preciso que se reconheça que fazer nascer  uma criança é condená-la à morte. Os pais, que se alegram com seus filhos, que tanto se orgulham deles, devem estar cientes disso. No momento do nascimento, eles, pais, os condenaram à morte, não sem a possibilidade da experiência de sofrimentos, cuja medida de gravidade está distribuída indiscriminadamente entre os seres humanos (e outras espécies de animais de consciência superior). Mas é preciso ver também o sofrimento como uma dimensão inerente à sua condição de seres biológicos, o que o torna, muitas vezes, inevitável, embora jamais negligenciável.
Respeito nos cristãos a compreensão de que as experiências do amor e do sofrimento são indissociáveis, andam juntas. Vivendo no século I d.C., o filósofo estoico Sêneca, em várias de suas cartas, escritas entre 63 e 65 d.C., se ocupou, com notável e sumária sabedoria, de temas como o da brevidade da vida, o da morte e o da experiência do amor. Em uma de suas cartas, que trata do pesar pelos amigos falecidos, ele nos aconselha, dirigindo-se ao amigo Lucílio, o seguinte:

“Quem amavas morreu, procura outro para amar. É melhor recuperar um amigo do que chorar. Sei que isso que vou acrescentar é dito e repetido, mas não vou omitir porque já foi comentado por todos: o fim à dor – se a vontade não o por -, o tempo porá. Mas é muito torpe para um homem prudente que o remédio da dor seja o cansaço da dor. É melhor que tu abandones a dor do que ela te abandone; desiste disso, porque mesmo que queiras, não poderás fazê-lo por muito tempo”.


É de Sêneca também (se não me engano) outra passagem em que – malgrado meu esforço por encontrá-la, não a encontrei – nos lembra que a mãe que abraça a seu filho com o apego próprio de quem ama profundamente deve saber e aceitar que a quem está abraçando deve, necessariamente, morrer. O que Sêneca nos ensina, a par da necessidade de moderação do amor (o que, para nós que somos tão profundamente marcados pela tradição cristã e romântica, é uma lição difícil de acolher), é que amamos entes perecíveis, amamos entes que devem morrer e nada há que possamos fazer para evitá-lo. O amor não nos salva da morte e nem salva a quem amamos.
É claro que o cristão instruído poderá objetar-me. Se a experiência do amor é indissociável da experiência do sofrimento (quem ama está vulnerável a sofrer, ou melhor, prefere a vulnerabilidade ao sofrimento à privação de amar) e da morte (amamos apesar de saber que a quem amamos deverá morrer), para o cristão sinceramente devoto, aqueles a quem amamos nunca morrerão verdadeiramente. A perda dos entes queridos é temporária. A mensagem dos evangelhos, atribuída a Jesus, pode ser resumida no enunciado: o amor vence a morte. Ao contrário do que ensinava Sêneca (e toda uma tradição com ele), o cristianismo ensinará que podemos nos apegar e amar demasiadamente aos que sabemos que morrerão, na confiança em que os reencontraremos em outro mundo. Cabe, nesse caso, a cada um escolher e adotar uma ou outra visão de mundo. Mas é necessário assumi-la nas vivências ordinárias com fidelidade, o que significa não iludir-se quanto à possibilidade de esquivar-se de sofrer. Não estou a sugerir, portanto, que cristãos não deveriam chorar a morte dos seus (ao contrário, devem chorar porque amam com paixão (digo com sofrimento que há em toda experiência de amor verdadeiro – é isto o que significa a Paixão de Cristo).
Creio em que não alcançou a maturidade do amor quem ainda não compreendeu que temer o sofrimento é privar-se da fruição do amor. O amor é gratuidade; o sofrimento, um custo necessariamente implicado na experiência de existir.


Bem-aventurados os que amam sem medo e se permitem ser amados, alegremente conciliados com a fragilidade e transitoriedade do viver.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

"Devemos deixar de ser homens que rezam para ser homens que bendizem" (Nietzsche)

              
                    


                                  A idade da filosofia

Falta-me uma palavra semanticamente precisa para tornar viva à consciência esta experiência que me é muito familiar. Como eu não a encontre, usarei a palavra fastio para nomeá-la. Corriqueiramente, sinto fastio de tudo e de todos. E o objeto deste fastio deve expressar-se assim mesmo, em forma indefinida, pois a experiência do fastio é a experiência da própria indefinição. “Tudo que atinge a totalidade morre, porque a morte é uma totalidade alcançada, enquanto a vida é a busca da totalidade”. A totalização da vida é a vida negada, a saber, é a própria morte. Como busca da totalidade, como movimento para a totalidade, a vida é, para o homem – ser inacabado – curso pleno de possibilidades. O homem é excesso absurdo em relação à vida. A experiência do fastio é, então, esse vislumbre de possibilidades irrealizáveis. Esse excesso absurdo que é o homem cai, entretanto, sob o peso excessivo da falta que o atravessa: eis o que considero um homem cansado, enfastiado. O homem enfastiado é o homem que sucumbe à falta excessiva que o constitui. É o homem que diante de si já nada discerne.
Para mim – e que seja isto que escreverei muito pessoal -, a filosofia não faz sentido algum como disciplina a ser ensinada, como matéria para a digestão cognitiva. Meu encontro com a filosofia se deu como enfrentamento de minha tragédia, de meu infortúnio. Em Nietzsche – alguns de meus escritos dão disto testemunho -, encontrei a fórmula da fidelidade a si mesmo como caminho para superar os estados decadentes de minha consciência e para alcançar algum nível de grandeza. Na sua VONTADE DE POTÊNCIA, compreendi a necessidade de fazer durar e crescer a vida, em meio à ruína trágica à qual minha juventude parecia condenada. É isto a vontade de potência: necessidade de ultrapassar. Mas a ultrapassagem só poderia dar-se com a condição de que me apossasse completamente da existência e de mim mesmo.
Durante muitos anos, eu fora um decadente – e essa compreensão devo a Nietzsche. Mas não se enganem em depreender daí que eu tenha encontrado paz alguma na filosofia, tampouco “alimento espiritual”. Não há paz em Nietzsche. Com a filosofia, eu armei-me para a guerra, fortaleci-me para a luta (luta do ser contra o não-ser, luta entre o impulso de vida e o impulso de morte), para o enfrentamento de minha miséria, que compartilho, no entanto, com todo o gênero humano.
A filosofia não consola – compreendam bem! Ela até desespera; remove as bengalas que nos sustentam a vida e diz austeramente: caminha; siga, luta, enfrenta! A verdade que nos desvela a filosofia tem uma beleza trágica e dura; é crua, é fria e desola. Não chegou à idade da filosofia quem ainda vive (entenda-se: quem caminha) ancorado nas promessas metafísicas. A filosofia nada promete, nada garante (como poderia, se a própria vida, de que se ocupa toda filosofia, não tem garantias?); a filosofia apenas ensina a viver entre os escombros de uma existência que é guerra sem trégua entre opostos; apenas ajuda o homem a encarar seu próprio absurdo nesta sua existência precária que, embora habituada a toda sorte de ilusões, se sabe finita. Em uma palavra, a filosofia ajuda o homem a viver num mundo que não lhe foi feito sob medidas, ensina-o a mobilizar, para tanto, suas próprias forças; ela o ajuda na construção de sua autonomia; ela o ajuda na experiência de uma vida autêntica, que consiste em realizar-se enquanto ente absurdo. Apenas os fortes filosofam!


Quanto aos fracos – aqui é Nietzsche quem o diz também -, estes inventaram as religiões e as doutrinas metafísicas.