terça-feira, 5 de agosto de 2014

"Pensar sobre Deus é pensá-lo como entidade do discurso" (BAR)

                                                      
                                            


                              A natureza trina de Deus
                               Um retorno às raízes históricas



“No seu trabalho, o historiador não parte dos fatos, mas dos materiais históricos, das fontes, no sentido mais extenso deste termo, com a ajuda dos quais constrói o que chamamos fatos históricos. Constrói-os na medida em que seleciona os materiais disponíveis em função de um certo critério de valor, como na medida em que os articula, conferindo-lhes a forma de acontecimentos históricos. Assim, a despeito das aparências e das convicções correntes, os fatos históricos não são um ponto de partida, mas um fim, um resultado. Por conseguinte, não há nada de espantoso em que os mesmos materiais, semelhantes nisto a uma matéria-prima, a uma substância bruta, serviram para construções diferentes. E é aí que intervém toda a gama das manifestações do fator subjetivo: desde o saber efetivo do sujeito sobre a sociedade até as determinações sociais mais diversas”.

(Adam Schaff)


O texto de Adam Schaff que serve de epígrafe se topa na contracapa do seu livro História e Verdade (1983) e sua apresentação se impõe para chamar a atenção do leitor sobre o que significa servir-se do testemunho histórico na tentativa de edificar alguma construção de verdades. Ainda que o historiador se sirva de materiais históricos disponíveis para atingir, em seu trabalho, algum sentido de verdade, essas fontes, por si mesmas, não lhe dão a verdade. O historiador sempre trabalha sobre esses materiais históricos, construindo uma versão da verdade histórica. Os fatos históricos são sempre produtos do trabalho do historiador sobre esses materiais históricos. Os fatos históricos não são dados de antemão. A subjetividade do historiador está imiscuída nesse trabalho de construção dos fatos históricos. Como os fatos históricos são o resultado desse trabalho de elaboração sobre os materiais históricos acessíveis a um historiador, um mesmo conjunto de materiais históricos pode conduzir outro historiador à construção de fatos históricos distintos. É sempre bom lembrar que a história não é linear: há sempre retrocessos, rupturas e influências mútuas entre os acontecimentos, em diferentes épocas e lugares. As relações de causa e efeito entre os acontecimentos históricos é uma projeção da razão humana. É o homem que atribui aos fatos históricos certa forma lógica, certa ordem e coerência. É razoável dizer que a consciência histórica, enquanto atividade reflexiva sobre a história, é sempre um fenômeno que se constrói num porvir; o sentido da história, enquanto produto do trabalho de reflexão do homem sobre o passado, é construído num olhar retrospectivo, isto é, no espaço de tempo categorizado como futuro. O sentido da história não se faz acessível imediatamente aos homens em cada instante em que se desenrolam suas ações. Eles mesmos quase sempre não se reconhecem como os verdadeiros agentes históricos. Enquanto fazem a história, produzem as condições que lhe turvam a consciência desse fazer: eles creem, assim, que a história se desenvolve por uma força própria, ela mesma depositária de sentido, ou pela atividade de deuses.
Nesse trabalho de elaboração pelo historiador sobre os materiais históricos disponíveis, intervém certo critério de valor e certa forma de articulá-los. A forma de acontecimentos históricos é produto de certo modo de articulação dos materiais históricos disponíveis sobre o qual recai o trabalho do historiador. Em suma, o historiador jamais narra simplesmente os fatos passados, jamais conta o que aconteceu no passado, mas reconstrói o passado, na medida em que confere certa forma (estrutura) aos acontecimentos passados. Se há um trabalho narrativo do historiador, esse trabalho é, em seu desenvolvimento mesmo, uma forma de interpretação (entenda-se reconstrução, ordenação, pela atribuição de sentidos) dos acontecimentos do passado.
Gostaria de que o leitor tivesse em conta o que aqui se disse sobre o trabalho do historiador durante a leitura deste texto. Dois pressupostos estarão a sustentar o edifício das reflexões, a cujo trabalho de construção me lanço:

1º pressuposto: o conceito de Deus é resultado de um trabalho de construção sócio-histórico e ideologicamente determinado, ao longo do qual intervieram inúmeras disputas apaixonadas com vistas a determinar qual das interpretações, então em disputa, era a interpretação correta.

2º pressuposto: as disputas que se desencadeavam na tentativa de determinar a natureza de Deus, embora se pautassem pela suposição de que Deus é dotado de uma realidade transcendente à história, se revelam, à luz de um exame histórico-crítico, disputas sobre qual deveria ser o significado “correto” de um objeto-de-discurso, em cujo processo de significação e ressignificação intervém o domínio do histórico.

No tangente ao pressuposto primeiro, preciso esclarecer que emprego o termo ideológico para caracterizar um sistema de crenças, de ideias e valores que produzem uma falsa consciência da realidade, em virtude da qual os homens acreditam que as ideias existem independentemente das condições sócio-históricas em que elas são produzidas. A própria consciência, no trabalho de falsificação da realidade pela ideologia, não se percebe como produto sócio-histórico, mas como existindo independentemente dessas condições. Assumo, portanto, o que nos ensinou Marx sobre a ideologia. A ideologia é, em suma, o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido) pelo qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Quanto ao segundo pressuposto, convém dizer que um objeto-de-discurso é sempre um referente construído e reconstruído na atividade discursiva, sem que seja necessário que ele tenha um objeto correspondente no mundo extra-mental. Objetos-de-discurso constituem entidades que se originam de uma construção mental, e não de um mundo sensível. É no discurso que esses objetos são postos, delimitados, transformados, desenvolvidos, etc. (Neves, 2006). Por isso, parece-me que Deus pode ser reduzido a um objeto-do-discurso, já que, no quadro de uma hermenêutica da suspeita, “Deus” deve revelar-se tão-só como entidade do discurso, o que não significa negar-lhe a influência sobre a vida prática daqueles que o consideram como fonte última de todo sentido possível. Mesmo, nesse caso, Deus não deixa de ser um objeto manipulado, em práticas discursivas, pela cognição humana, cujo desenvolvimento é sempre da ordem do social.
A fim de ilustrar o conceito de objeto-de-discurso, considerem-se as seguintes frases abaixo:

(1) Esse menino precisa tomar juízo.
(2) Esse moleque precisa tomar juízo.
(3) Esse aborrecente precisa tomar juízo.

Nas três frases, o SN (sintagma nominal) sujeito é categorizado de modos distintos. Há três formas distintas de referenciação. Em (1), a lexicalização “menino” é “neutra”, quando comparada às lexicalizações de (2) (moleque) e (3) aborrecente. Nesses dois últimos casos, as categorizações incluem um traço de pejoratividade. As três expressões descritivas se referem a uma mesma entidade categorizada de modos distintos. O uso do demonstrativo “esse” pressupõe a possibilidade de identificação dessa entidade pelos interlocutores. Para que uma referenciação seja bem-sucedida, é necessário que o conhecimento do referente seja acessível ao interlocutor, quer por ser pressuposto como partilhado com ele, quer por pistas textuais mapeadas no processo de leitura. Nos três casos, a entidade supostamente existe no mundo extralinguístico, mas isso não tem importância quando se considera a referenciação e os objetos-de-discurso. Os usuários da língua, ao produzir um discurso, negociam um universo de discurso do qual falam. O mundo do discurso não espelha o mundo real. Referenciação implica interação e intenção, de modo que, na referenciação, ou seja, no processo pelo qual os interlocutores constroem e reconstroem continuamente uma rede de objetos-de-discurso, importa considerar se eles referiram-se a uma entidade cuja identidade pretenderam ou não definir. O referente é um objeto construído no e pelo discurso. Todos os objetos de conhecimento são objetos de discurso (Marcuschi, 2007).
Quando se diz “Deus é o criador do universo”, a expressão definida “o criador do universo” é uma categoria em que se coloca o referente designado por “Deus”. Trata-se de uma categoria cognitivamente estabelecida. O uso do artigo definido “o” supõe a unicidade desse Deus criador, ou seja, ele é o único Deus responsável pela criação do universo, e não há outro. Se a frase é produzida por uma pessoa que nasceu e se desenvolveu numa sociedade cujos valores, costumes, formas de viver estão calcados sobre a tradição judaico-cristã, as expressões “Deus” e “o criador do universo” ativará  uma série de conhecimentos, produzidos e disseminados nessa cultura da qual depende sua constituição como sujeito histórico -  conhecimentos estes indispensáveis à compreensão do enunciado. Por exemplo, essa pessoa interpretaria “Deus” como um deus pessoal e único, um deus que é pai, de quem se acredita enviou seu único Filho para salvar a humanidade, etc. Se, no entanto, esse mesmo enunciado fosse produzido por um hindu, aquelas expressões ativariam outros conhecimentos como parte de seu background cultural. Nesse caso, por exemplo, Deus referir-se-ia a Brahma, que é o deus criador do universo no hinduísmo, deus que tem uma esposa, chamada Sarasvati, etc. Como os enunciados são sempre produtos sócio-históricos, seus modos de recepção variarão segundo essas condições.
Em suma, a discursivização ou textualização do mundo não se reduz a um processo de elaboração de informações; ela é um processo de (re)construção da própria realidade. A referenciação é uma atividade sócio-interacional-cognitiva através da qual se vão construindo objetos-de-discurso.

Os acontecimentos que se vão impor à meditação, doravante, se estendem entre os séculos I e IV E.C (da Era Cristã)


1. Contextualização: Por volta de 320 E.C.

Considere-se, em princípio, o seguinte passo de Armstrong, colhido de Uma história de Deus (2008). O trecho se reporta ao século IV E.C.

“Por volta de 320, uma ardente paixão teológica tomou conta das igrejas do Egito, Síria e da Ásia Menor. Marinheiros e viajantes cantavam modinhas proclamando que só o Pai era o verdadeiro Deus, inacessível e único, mas o Filho não era nem coeterno nem incriado, pois recebeu a vida e o ser do Pai” (p. 147).



Antes de me ocupar com o desenvolvimento das questões que mais diretamente me interessam, gostaria de retomar o que expus sobre o conceito de referenciação e objetos-de-discurso, tendo em vista a necessidade de ilustrá-los mais uma vez, com base no referido excerto. O texto de Armstrong não deve ser concebido como resultado de encadeamentos de informações objetivas sobre estado-de-coisas num tempo passado determinado, mas como um processo interacional de construção de sentidos e de uma versão da realidade. Compreendamos de que modo a realidade é construída no texto. Tomemos as expressões “uma ardente paixão teológica”, “o Pai”, “o verdadeiro Deus”, o “Filho” (outras poderiam ser consideradas). Essas expressões introduzem objetos-de-discurso, a partir dos quais se constroem predicações (atribuição de relações, propriedades). Assim, por exemplo, de “uma ardente paixão teológica” diz-se que “tomou conta das igrejas do Egito, Síria e da Ásia Menor”. A expressão “uma ardente paixão teológica” categoriza certo modo de ver/interpretar o interesse pela igreja por uma questão teológica determinada. O referente “uma ardente paixão teológica” é introduzido no discurso e fica ativo na consciência do leitor. O enunciado “uma ardente paixão teológica tomou conta das igrejas do Egito, Síria e da Ásia Menor” representa um estado-de-coisas (uma espécie de cena do “mundo” lingüística-cognitivamente construída), no interior do qual duas entidades são predicadas: “uma ardente paixão teológica” (sujeito) e “das igrejas do Egito...” (objeto). As expressões definidas “o Pai” e o “Filho” pressupõem que os referentes são partes do conhecimento de mundo do leitor; elas remetem, respectivamente, a “Deus” e a “Jesus Cristo”. “O Pai” é categorizado como “o verdadeiro Deus”. Essas diferentes formas de categorizar os referentes vão ter efeito sobre a construção da argumentação. Note-se que “o verdadeiro Deus” é qualificado como “inacessível” (incognoscível) e “único”. Ora, o que se fez foi construir uma representação cognitivo-discursiva do referente descrito com a expressão “o Pai”. As expressões descritivas “o Pai” e “o verdadeiro Deus” denotam propriedades que permitem identificar o referente cognitivo que representa o Ser transcendente e criador do universo. Note-se que, quando se trata de explorar a noção de objetos-de-discurso como entidades postas no e pelo discurso, não escapamos de recorrer a contínuas categorizações do referente, cuja existência ou não no mundo extra-mental não tem importância.  
Se pedíssemos a alguém que reescrevesse o texto, o que teríamos como resultado seria mais do que uma nova versão do texto, mas sobretudo uma outra versão do mundo textualmente construída. Quem estivesse selecionando, no processo de reescrita, suas próprias palavras e modos de encadeá-las, estaria construindo seu modo próprio de perceber/compreender/ ordenar o mundo.
As expressões que destaquei ativa uma série de conhecimentos de mundo no leitor. Ao ler o texto, ele reconhece, com base nesse conjunto de conhecimentos, que “o Pai” é uma forma de categorizar o “Deus” judaico-cristão. Ele sabe também que “o Filho” categoriza Jesus Cristo. Com um pouco de atenção, ele infere que “uma ardente paixão teológica” (que já encerra rastros de autoria, pela presença do adjetivo “ardente”) diz respeito a uma questão que envolve a relação entre “o Pai” e “o Filho” e que, em última instância, é o problema de como determinar a natureza desse “Filho”.
Prossigamos, no entanto. Havia quem, naquele tempo, dissesse que o Filho provinha do nada; outro dissertava sobre a distinção entre a ordem criada e o Deus incriado. Havia pessoas que afirmavam ser o Pai maior que o Filho. Consoante observa Armstrong: “As pessoas discutiam essas questões abstrusas com o mesmo entusiasmo com que hoje discutem futebol” (ib.id.).
O presente texto, portanto, versa sobre o processo pelo qual se foi construindo uma representação de Deus que se tornou a compreensão correta da natureza de Deus, pelo menos para os católicos. Esse processo culminou na doutrina da natureza trina de Deus. Mas até que se tenha chegado a desenvolvê-la, sucederam muitas disputas em torno de qual seria a interpretação “correta”. Dois personagens se destacam nesse cenário: o presbítero de Alexandria chamado Ário e seu rival Atanásio, bispo de Alexandria. Outros atores sócio-históricos, cuja influência nesse processo foi significativa, serão trazidos à cena, muito embora o foco de minha atenção recaia sobre a disputa entre Ário e Atanásio cujas visões estavam no centro das calorosas discussões no interior da Igreja cristã primitiva.
O período de tempo a que se reportam as reflexões que serão desenvolvidas se estende entre os séculos I e VI E.C., tempo em que a fé cristã avançava no mundo romano-helenístico.

2. O Desafio de Ário

A controvérsia sobre a natureza de Jesus e sobre sua relação com Deus foi animada ainda mais por Ário, famoso professor cristão de Alexandria, Egito, do século IV. Ário lançou um desafio que os bispos julgaram impossível ignorar. Esse desafio consistia na questão: Como Jesus Cristo poderia ser Deus do mesmo modo que Deus Pai?
Ário não negava a divindade de Cristo, a quem chamava “Deus forte” e “Deus pleno”, mas considerava blasfêmia pensar que ele era divino por natureza. Ário alegava que o próprio Jesus disse que o Pai é maior que ele. A controvérsia se acirrou tanto que exigiu a intervenção do imperador Constantino, o qual convocou um sínodo em Nicéia, na atual Turquia, a fim de que a questão fosse debatida.
Embora hoje o nome de Ário esteja ligado à heresia, naquele tempo era difícil dizer que ele estava errado.
Orígenes, padre e eminente pensador, nascido por volta de 185 em Alexandria, defendia uma doutrina semelhante à de Ário. Segundo Orígenes, o Deus único e uno preexiste à pluralidade das coisas. Retoma-se aqui o problema do uno e do múltiplo no platonismo. Orígenes deu ênfase à unidade que, para ele, precedia toda a multiplicidade. Por isso, também precedente é a unicidade e simplicidade de Deus. Deus é a única e suprema realidade, é puro espírito, o que significa que é inteiramente imaterial. Também Deus é pura razão e origem de toda a razão, eternidade precedente ao tempo e absolutamente transcendente, incognoscível e incomensurável, e eternamente necessário.
A época de Orígenes é marcada, como se sabe, pelo encontro da fé cristã com a filosofia grega e, por consequência, pelas insistentes tentativas de aperfeiçoamento conceitual da fé cristã em Deus. É claro que o clima intelectual da Alexandria já não era o mesmo desde os tempos de Orígenes. As pessoas já não estavam tão seguras de que o Deus de Platão podia conciliar-se com o Deus da Bíblia. É nesse ambiente de efervescência e suspeita teológicas que Ário e Atanásio passariam a sustentar doutrinas surpreendentes para qualquer platônico. Eles consideravam que Deus criara o mundo a partir do nada (ex nihilo), e buscaram basear sua posição nas Escrituras. É preciso acentuar, com Armstrong, a originalidade da visão desses teólogos:

“Na verdade, o Gênesis não diz isso. O autor sacerdotal sugere que Deus criou o mundo a partir do caos primordial, e a ideia de que Deus tirou todo o universo de um vazio absoluto era inteiramente nova (p.148)”.


Essa ideia era estranha não só ao pensamento grego, como também não ocorreu a pensadores como Clemente e Orígenes, aos quais a teoria platônica da emanação agradava.
Compreendamos a visão de Ário. O problema que preocupou os primeiros cristãos e, particularmente, Ário, é o da relação entre o Pai (Deus) e o Filho (Jesus). As discussões que se seguiram daí culminaram no estabelecimento da doutrina da Trindade, conhecida hoje por cristãos católicos (não que todos os fiéis católicos a compreendam ou com ela se importem).
No século IV, Ário propunha uma doutrina que diferia da doutrina aceita pelos cristãos proto-ortodoxos, os quais já haviam logrado êxito na quase completa eliminação de outras heresias, como a dos ebionitas, a dos marcionitas e de outros tantos grupos gnósticos. Era quase unânime, nas esferas da Igreja, a aceitação da doutrina segundo a qual Jesus era, de fato, divino, embora houvesse apenas um Deus. Mas, se só existia um Deus, como poderia também Jesus ser Deus?
A solução dada por Ário fora embasada no Novo Testamento e em pensadores cristãos anteriores. Ela consistia em dizer que Cristo era um ser divino, mas estava subordinado ao Deus Pai em poder e essência. Na origem, havia apenas um Deus único, mas Deus, nos primórdios, criara um segundo ser divino, seu filho Jesus Cristo, por intermédio do qual Deus criou o universo. Cristo (o Lógos) se fez humano na encarnação.
A visão de Ário supõe que, em um tempo passado e distante, Cristo não existia. Ele passou a existir em um dado momento por obra de Deus. No entanto, posto que fosse divino, não era igual a Deus Pai, porquanto era o Filho, condição esta que o subordinava ao Pai.
O Pai e o Filho não eram da mesma substância (ousia), mas eram semelhantes em substância. Vou pormenorizar essa ideia; antes de fazê-lo, porém, preciso dizer que essa visão foi assaz popular na época, ainda que houvesse alguns teólogos cristãos que dela discordassem. Veremos que o oponente mais conhecido foi um jovem diácono da igreja de Alexandria, chamado Atanásio. Ele, juntamente de outros teólogos, argumentara que Cristo tinha a mesma substância de Deus Pai e que eles eram totalmente iguais, e que jamais houve um tempo em que Jesus inexistia.
O Evangelho segundo João afirma que Jesus era o Lógos. O Lógos foi o instrumento de que se serviu Deus para criar todos os seres. Portanto, todos os seres diferiam totalmente de Deus. Ário sustentava, por isso, que Jesus não era Deus por natureza, embora tivesse sido promovido ao status divino pelo próprio Deus. Jesus diferia de todos nós, porque fora criado diretamente por Deus e porque serviu de meio para que Deus criasse todas as outras coisas. É preciso reter a ideia de que a divindade não era inerente a Jesus, segundo acreditava Ário. Ela era uma recompensa de Deus.
Ora, se Deus era Pai, então o Filho era anterior ao Pai e não poderia ser da mesma substância do Pai. Mas Ário estava convencido de que os cristãos foram salvos e divinizados por Jesus. Jesus lhes abriu o caminho. Jesus viveu uma vida humana perfeita; se não tivesse sido humano, concluía Ário, não haveria esperança alguma para nós. Ele tinha de ser humano, ou melhor, perfeitamente humano, para que fosse um modelo a ser imitado. Era na contemplação da vida humana e perfeita do Filho que os cristãos se tornariam divinos. Imitando Jesus, eles se tornariam “perfeitas criaturas em Deus”.
Deve-se sublinhar que, enquanto Ário situava Jesus no mundo criado, Atanásio o situava no mundo divino. Ário se preocupou em enfatizar a diferença essencial entre o Deus único e todas as suas criaturas. Ário era um homem muito versado nas Escrituras e se valeu de uma grande quantidade de seus textos para endossar sua doutrina. Para ele, Cristo, o Verbo, era apenas uma criatura como nós, ou seja, era humano.
Segundo o livro dos Provérbios (8: 22), Deus criou a sabedoria já no início: “O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos, desde então, e antes de suas obras”. A Sabedoria, de acordo com esse texto, foi o agente da criação. Essa mesma ideia se topa em João (1:3) – “Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do foi feito se fez”. Em João, lemos que O Verbo estava com Deus no início.


3. A visão gnóstica no século IV

No século IV, os cristãos comungavam da visão gnóstica do mundo, à luz da qual este mundo era inerentemente imperfeito e frágil. Esse mundo – mundo que habitamos – era separado de Deus por um abismo.. O cosmo era frágil e totalmente dependente de Deus. Isso está no cerne da doutrina da criação ex nihilo. Deus e os homens eram muito diferentes. Deus criara do nada abissal cada um dos seres que habitam o mundo e podia, quando quisesse, abandoná-los.

“Não havia mais uma grande cadeia grande cadeia do ser eternamente emanando de Deus; não havia mais um mundo intermediário de seres espirituais que transmitiam o mana divino ao mundo (Armstrong, p. 148)”.


A ascensão de homens e mulheres na cadeia do ser a Deus não poderia se dar por esforços próprios deles. Apenas Deus, que os criara a partir do nada, poderia garantir sua eterna salvação. Somente Deus que lhes conservava a existência é que podia salvá-los da morte eterna.


4. A figura salvífica de Jesus Cristo

Os cristãos estavam convencidos de que Jesus Cristo os salvou quando de sua morte e ressurreição. Estavam certos de que, graças a Jesus, eles haviam se livrado da extinção e de que, um dia, viriam a tomar parte da existência de Deus, que é o Ser e a Vida. Cristo lhes permitiu ultrapassar o abismo que se interpunha entre eles e Deus. Mas havia um problema: De que modo o fez Jesus?
Cristo, o Verbo, afinal, pertencia ao reino divino ou à frágil ordem criada? Em suma, a questão que perturbava Ário e Atanásio, particularmente, era a de determinar a natureza de Jesus.


5. A visão de Atanásio

Atanásio, bispo de Alexandria e opositor de Ário, era menos otimista no tangente à capacidade humana de conhecer verdadeiramente a Deus (entenda-se: participar da substância de Deus). Ele via a humanidade como inerentemente frágil, já que proviemos do nada e retornamos ao nada quando pecamos.
É tão-somente por meio de seu Lógos que Deus dá ao homem a graça da salvação. É porque  só Deus é o Ser perfeito que o homem se livra da aniquilação. O Lógos não poderia contribuir para salvar o homem, se fosse ele mesmo, Lógos, humano. Segundo Atanásio, o Lógos se fez carne para nos dar vida. Descera ao mundo perecível e corruptível para nos ofertar uma parte da imortalidade de Deus.
Na reunião em Nicéia, em 20 de maio de 325, os bispos, preocupados em resolver a crise, não estavam todos de acordo com Atanásio. A maioria deles preferiu adotar a posição intermediária entre Atanásio e Ário. Não obstante, Atanásio conseguiu impor sua doutrina. Sob a vigilância do imperador, apenas Ário e dois tenazes companheiros se negaram a assinar o credo. Destarte, a doutrina da criação ex nihilo se tornou oficial, não sem a ressalva de que Cristo não era uma simples criatura ou éon (emanação de Deus). O Pai, o Criador; e o Filho, Redentor, eram o mesmo (Armstrong, p.151).
A verdade é que unanimidade fora sempre estranha à história do desenvolvimento dos cristianismos primitivos. Constantino se agradava do acordo, conquanto nada soubesse de questões teológicas. Após o concílio de Nicéia, os bispos persistiam em ensinar o que ensinavam antes, e a crise prolongou-se por mais sessenta anos (Armstrong, p.152).
Atanásio enfrentou dificuldades para tornar seu credo aceitável, não por acaso foi exilado cinco vezes. A que se devia – vale perguntar – a dificuldade para tornar sua doutrina aceitável? Em parte, a dificuldade repousava sobre o termo grego homoousion (“feito da mesma substância”). Tratava-se de um termo que acarretava muita controvérsia, dado que não era atestado nas Escrituras e tinha uma conotação materialista.
Ademais, a doutrina de Atanásio ignorava muitas questões importantes. Por exemplo, conquanto declarasse que Jesus era divino, silenciava sobre como o Lógos poderia ser “da mesma substância” do Pai sem ser um segundo Deus.

5.1. A contribuição de bispo Marcelo

Em 339, coube aos bispo Marcelo, de Ancira – amigo fiel de Atanásio – dar uma solução ao problema, afirmando que o Lógos não podia ser um ente eterno. O que era, pois, o Lógos? Segundo Marcelo, era tão-somente uma qualidade interna de Deus. Em vez do termo problemático homoousion, Marcelo sugeriu o termo homoiousion, que significa “de natureza semelhante”. Muitos cristãos estavam, no entanto, tenazmente convencidos da essencialidade da divindade de Cristo. Tal como Marcelo, eles temiam que se dissolvesse a unidade divina. Marcelo parecia acreditar que o Lógos era apenas uma fase temporária: ele emergira de Deus na criação; fez-se carne em Jesus e, uma vez completando a redenção, tornaria a integrar a natureza divina, de modo que o Deus Uno fosse completo.
Marcelo acabara por convencer Atanásio de que suas visões eram conciliáveis. Os que sustentavam ser o Lógos da mesma substância e os que sustentavam que ele era semelhante em natureza com o Pai eram irmãos, que só discutiam sobre terminologia. Essa saga manobra ideológica de Marcelo visava claramente a consolidar uma aliança de poder no interior da Igreja. Ao delimitar sua posição político-teológica, Marcelo identificava, ao mesmo tempo, um adversário em comum: Ário. Era Ário que devia ser promovido à condição de adversário, pois que era ele quem afirmava que o Filho era completamente distinto do Pai e que tinha uma natureza também diferente. O leitor talvez esteja, a esta altura, convencido de que todos os debates eram infrutíferos, conforme nos assinala Armstrong, “para alguém de fora, essas discussões teológicas são pura perda de tempo: ninguém consegue provar nada em definitivo e a disputa só cria dissensão” (p. 153). De fato, mas, prosseguindo Armstrong, “para os participantes, esse debate nada tinha de árido, mas abordava a natureza da experiência cristã” (ib.id.).
Àrio, Atanásio e Marcelo concordavam, no entanto, na ideia de que Jesus trouxe ao mundo algo novo e não mensuraram esforços para dar conta disso, por recurso a conceitos simbólicos. Somente por meio de símbolos se poderia alcançar realidades inefáveis.
A tendência dogmática, tão profundamente marcante na história cristã, viria a exigir a adoção de símbolos corretos ou ortodoxos.

“Essa obsessão doutrinária, única do cristianismo, podia facilmente levar a uma confusão entre o símbolo humano e a realidade divina. O cristianismo sempre foi uma fé paradoxal: a poderosa experiência religiosa dos primeiros cristãos superava suas objeções ideológicas à infâmia de um Messias crucificado. Agora, em Niceia, a Igreja optaria pelo paradoxo da Encarnação, apesar de sua visível incompatibilidade com o monoteísmo” (ib.id.).


Espero, pois, esteja claro que grande parte da Igreja cristã, à época, estava dividida no tocante à questão de determinar se Jesus era da mesma substância que o Pai ou se era apenas de  “substância similar”. Historiadores posteriores notaram, com alguma ironia, que a Igreja estava dividida apenas pela letra “i”: homoousias ou homoiousias.


5.2. Os teólogos de Capadócia e a Igreja cristã ortodoxa oriental

 A dúvida acossava ainda os cristãos: se só existia um Deus, como o Lógos poderia ser divino?
Três eminentes teólogos da Capadócia, no leste da Turquia, apresentaram uma solução que acabou por satisfazer a Igreja ortodoxa oriental. Eram eles Basílio, bispo de Cesária (329-79), seu irmão Gregório, bispo de Nissa (335-95), e seu amigo Gregório de Nazianzo (329-91).
Os capadócios eram profundamente espirituais e muito se agradavam da especulação filosófica; todavia estavam convencidos de que somente a experiência religiosa poderia solucionar o problema de Deus.
Esses teólogos eram versados em filosofia grega e, portanto, não encontraram dificuldade em constatar uma diferença fundamental entre o conteúdo factual da verdade e seus aspectos mais vagos.
Platão estabelecera uma oposição entre a filosofia, fundada na razão e, por isso, demonstrável, e o ensinamento, não menos importante, irredutível à demonstração científica. Aristóteles, por seu turno, havia notado que as pessoas iam aos cultos dos mistérios não para aprender (mathein), mas para experimentar (pathein). Inspirado em Aristóteles, Basílio fez a mesma distinção num sentido cristão. Para Basílio, havia dois tipos de ensinamentos: dogma e kerygma. Trata-se de ensinamentos essenciais à religião. Kerygma é o ensinamento ministrado pela Igreja ao público. Ele se baseia nas Escrituras. Dogma, a seu turno, representa a verdade bíblica em seu sentido mais profundo, somente apreensível pela experiência religiosa e exprimível pela forma simbólica.
Destarte, foi gestada a crença de que, a par da clara mensagem dos Evangelhos, havia um ensinamento secreto ou esotérico transmitido pelos apóstolos. Os símbolos litúrgicos e os ensinamentos de Jesus ocultavam um dogma que expressava uma compreensão mais elaborada da fé. Logo, a distinção entre esotérico e exotérico seria indispensável à história de Deus. Judeus e muçulmanos – não só cristãos – também desenvolveriam uma tradição esotérica.
O que Basílio queria mostrar é que nem toda verdade religiosa podia ser expressa e definida pelos cânones lógicos. A ideia de doutrina “secreta” significava irredutibilidade à explicação lógica, e não conhecimento privado de iniciados. Como todas as religiões se ocupam de uma realidade inefável, que transcende os conceitos e as categorias do entendimento humano, é de se esperar que o discurso produzido sobre ela seja confuso.
Portanto, segundo Basílio, as Escrituras encerram um significado espiritual nem sempre explicável. É preciso frisar o que separava fundamentalmente a Igreja cristã ocidental da Igreja cristã oriental. No ocidente, a Igreja cristão construiu sua teologia com base no kerygma; na Igreja ortodoxa grega, por outro lado, toda considerável teologia era silenciosa ou apofática. Segundo o entendimento de Gregório de Nissa, o conceito de Deus é um mero simulacro, uma falsa imagem, um ídolo. Jamais revela Deus. Deus em sua essência é incognoscível. Portanto, os cristãos deviam eliminar de sua fé quaisquer conceitos.
Quando nos debruçamos sobre a história dos estudos dos primórdios do cristianismo, encontramos a oposição entre a ortodoxia (a crença certa) e a heterodoxia (crença diferente). A heterodoxia, quando em confronto com a ortodoxia, era vista como heresia. Evidentemente, todos se consideravam ortodoxos, ou seja, todos achavam que estavam certos. Quando as pessoas supõem que suas crenças estão erradas, em geral, se apressam a abandoná-las pelas crenças corretas.
O desenvolvimento do cristianismo fez proliferar as tentativas de elucidar a natureza de Jesus. O problema – vale reiterar – que preocupava os pensadores cristãos consistia em explicar como Jesus podia ser divino, se havia um único Deus. Grande parte dessas tentativas, em que pese sua aceitação periódica, acabou por ser rejeitada. Para alguns cristãos proto-ortodoxos, elas eram plenamente aceitáveis; para outros, no entanto, eram heréticas (Ehrman, 2010, p. 275)
Retomando a posição de Atanásio, após muitas disputas que se estenderam durante o século IV e, mesmo parecendo certa a vitória de Ário, foi a visão de Atanásio que atraiu a unanimidade entre os  Pais da Igreja. A posição de Atanásio viria a se tornar, portanto, a posição ortodoxa.
No que consistia a visão de Atanásio sobre o problema atinente à natureza de Deus? Ela consistia na afirmação de que há três pessoas em Deus. Elas não são diferentes entre si. No entanto, cada uma delas é igualmente Deus. Todas as três são seres eternos.Todas são feitas da mesma substância de Deus. Eis o que se consagrou chamar a doutrina da Trindade.
No texto do Catecismo da Igreja Católica (2000), registra-se o seguinte no tocante à doutrina da Santíssima Trindade:

A Trindade é Uma. Não professamos três deuses, mas um só Deus em três pessoas (...) As pessoas divinas não dividem entre si a única divindade, mas cada uma delas é Deus por inteiro: “O Pai é aquilo que é o Filho, o Filho é aquilo que é o Pai, o Espírito Santo é aquilo que são o Pai e o Filho, isto é, um só Deus por natureza (p. 76 – ênfase no original).


Faz-se mister salientar que essa doutrina não se encontra explicitamente no Novo Testamento. Nem mesmo no Evangelho segundo João, no qual Jesus é retratado como divino. Aí é discutível a ideia de que três pessoas formariam uma única substância. Escribas posteriores ficaram atônitos com tal lacuna, o que os levou a inserir, em pelo menos um ponto, uma referência explícita à Trindade (1 João 5: 7-8).
Como se vê, a Trindade é uma invenção cristã posterior, que se assenta, segundo Atanásio e outros pensadores cristãos que com ele concordavam, em passagens das Escrituras, muito embora, na verdade, não apareça em nenhum dos livros que compõem o Novo Testamento. Em seu Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010), Ehrman nota que:

“Em três séculos Jesus deixou de ser um profeta apocalíptico judeu para se tornar o próprio Deus, um membro da Trindade. O cristianismo inicial é decididamente impressionante” (Ehrman, p. 280).



Doravante, concentremos nossa atenção nos capadócios, a fim de, esclarecendo a relação deles com Atanásio, mais clara se torne a posição deste último.
Os capadócios estavam muito interessados – diria até, ansiosos – por explorar a ideia de Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade.
Os fiéis estavam embaraçosos com relação ao Espírito Santo. Eles não sabiam o que era, afinal, o Espírito Santo. Seria Deus ou algo mais?
Paulo afirmou que o Espírito Santo renova, cria e significa; todavia, todas essas atividades competem exclusivamente a Deus. Segue-se daí que o Espírito Santo tem de ser divino, e não um ente ou criatura.
É então que os capadócios buscam em Atanásio uma fórmula que lhe aproveitou na disputa com Àrio. Com essa fórmula, postula-se que Deus possui uma essência única (ousia), inacessível ao nosso conhecimento, e três expressões (hypostases) pelas quais ele se torna conhecido.
Por ousia, entende-se, desde os gregos (especialmente, em Platão e Aristóteles), “substância” ou “essência”. Por hypostases, as formas exteriores do objeto. A hypostasis significa expressão exterior da natureza interior a alguém. Assim, Deus só é acessível à experiência humana na forma de hypostases e permanece incognoscível como ousia. Em outras palavras, os homens só conseguem conhecer a Deus por meio de suas manifestações na forma do Pai, do Filho e Espírito, mas não são capazes de conhecer a essência de Deus.
Os capadócios viam uma diferença importante entre ousia e hypostasis. A ousia de um objeto é o que o faz ser o que ele é (sua essência); por seu turno, a hypostasis, é o objeto visto de fora. Por vezes, os capadócios usaram o termo prosopon para designar o que designava hypostasis. Originalmente, prosopon significava “força”, mas logo agregou vários significados. Por exemplo, por prosopon podia-se entender a expressão facial indicativa de um estado de espírito, ou ainda um papel ou personagem que o indivíduo assume conscientemente.
Hypostasis e prosopon passaram a significar também o eu individual tal como aparece ao observador. Por conseguinte, ao sustentarem que Deus é uma ousia em três hypostases, os capadócios queriam dizer que Deus em si mesmo é Uno, porque há apenas uma autoconsciência divina. No entanto, no momento em que dão aos homens uma pálida experiência de si, Deus o faz na forma de três pessoas. O si mesmo de Deus permanece inacessível aos homens.
Destarte, segundo Gregório de Nissa, as hypostases Pai, Filho e Espírito não devem ser identificadas com o próprio Deus, uma vez que são apenas três termos que se usam para falarmos das energeias (atos) pelas quais ele se deu a conhecer. Esses termos têm valor simbólico, já que servem para a expressão, em imagens, do inefável. Cabe, então, atentar para a lição de Armstrong, abaixo:

“Os homens têm experimentado Deus como transcendente (o Pai, oculto em luz inacessível), como criativo (o Logos) e como imanente (o Espírito Santo). Mas essas três hypostases são apenas vislumbres da Natureza Divina, que está muito além da imagística e da conceitualização. A Trindade, portanto, não deve ser vista como um fato literal, e sim como um paradigma que corresponde a fatos reais na vida oculta de Deus” (p. 158).



6. Considerações finais


Um estudo de Deus que o tome como objeto-de-discurso, como objeto cognitivo, à luz de uma hermenêutica da suspeita, ajuda-nos a compreender que Deus não se revela ao homem como Ser, porque não é senão um conceito/referente construído pela produção de textos que são formas de cognição social. O conceito de Deus é produto de elaborações da cognição humana, sócio-historicamente determinadas. É a própria instituição religiosa que dispõem de todo um aparelho ideológico-simbólico e de agentes especializados (teólogos e bispos) aos quais delega o poder de, servindo-se desse aparelho, fabricar, não sem dissensões e disputas, o conceito de Deus.
Dizer que Deus é Pai, que Deus é o Ser Único é produzir formas de categorizá-lo, a saber, é produzir operações pelas quais damos formas cognitivas a um referente que não existe fora do discurso. Essa categorização é uma operação cognitivo-discursiva e não se assenta, de modo algum, na posse do conhecimento de Deus como ser em si, origem de tudo, realidade transcendente. O único conhecimento de Deus possível, se considerarmos os pressupostos aqui adotados, é o conhecimento de Deus como objeto-de-discurso que enfeixa e expressa uma tradição sócio-histórica determinada, estruturada em valores, práticas discursivas e outras produções culturais, como as artísticas.
Na qualidade de referente, a saber, na qualidade de entidade do discurso, Deus é hipostasiado na fala dos homens, isto é, os homens falam dele como se falassem de uma substância que, embora oculta, necessariamente existe para além de toda história e antes da emergência de qualquer discurso sobre ela. Nesse caso, sem se darem conta disto, eles já estão transitando pelo terreno da ideologia, caso em que a consciência não se reconhece como produto de condições sócio-históricas.



quarta-feira, 30 de julho de 2014

"Muita poesia nos convence do amor; um pouco de filosofia nos faz suspeitar dele"




Desilusionado

As pessoas vêm e vão... e se vão
não me perguntem para onde
elas vão assim como os amores
que vêm e vão para lugar algum

Amor? Palavra feia para se dizer
Na liquidez de nossos tempos...
Nesses tempos escorregadios...
Moeda cara para dar a qualquer um
desses transeuntes que vêm e vão
e se vão com pressa, sem deter-se por um instante
Tanto mais que de nada se aproximam
senão do túmulo

Essa pressa, essa urgência sempiterna
do ir-se me parece demasiado absurda
Que todo amor é uma invenção estou convencido
Mas o amor esquálido desses tempos de urgência
É a obra-prima de nossa condição miserável
É o signo que mimetiza a vacuidade do desejo de sentido
Para uma existência contingente e precária

A quem amei intensamente outrora
Já se casou e outra que eu dizia amar
engravidou...
"O amor excede as medidas da alma"
Isso me soa tão pueril,tão démodé
Embora tenha agradado alguns espíritos iludidos
Pobres mulheres que só sabem do amor
pelas palavras aveludadas, fagueiras
Do poeta que mente, que finge sentir dor
A dor que deveras não sente

Muita poesia nos convence do amor
Um pouco de filosofia nos faz suspeitar dele.

(BAR)

segunda-feira, 28 de julho de 2014

"Você é genuíno? ou apenas um ator? Um representante? ou o que é representado? - Enfim, não passa da imitação de um ator" (Friedrich Nietzsche)

                           



                            Viver como Nietzsche

Fala o desiludido – eu buscava grandes homens, e sempre achei os macacos de seu ideal”.
(Crepúsculo dos Ídolos)

Comecemos, pois. Em princípio, preciso esclarecer o significado pretendido com o título deste texto, dado que esse título autoriza mais de um sentido (possivelmente, muitos). Viver como Nietzsche é viver como uma pessoa conciliada com o real, com a vida. É esse o sentido que pretendo fique, desde já, realçado com a escolha linguística que fiz. Há outro sentido que ilumina o realce do primeiro e que me parece também pertinente. Viver como Nietzsche é viver e perceber o mundo sob o olhar da suspeita. Não suponho que todos sejam capazes de tal experiência contínua e decisiva; pois que, nas sociedades ocidentais, muitos são ainda os decadentes. Cesso de talhar as palavras, pois que não quero torná-las pontiagudas demais. Não quero parecer que me encontro em alguma condição privilegiada, inacessível aos que se interessam por ler-me.
Se o leitor me consentir, inicialmente, que um tal viver, se não é inacessível, ao menos demanda certo labor de um corpo que não se pensa mais como distinto do espírito, de um corpo, aliás, que nega que exista uma tal substância, então posso eu prosseguir com o curso de minhas reflexões.
A produção deste texto é motivada pela necessidade de retornar a Nietzsche, a fim de lhe fixar o lugar de excelência que lhe cabe na incisiva transmutação em meu olhar-sentir o mundo, a existência e a mim mesmo como Dasein (para usar um conceito apropriado de Heidegger).
Em algum lugar, escrevi que a filosofia – e, por consequência, o ateísmo – fez reconciliar-me com o mundo. A leitura de Nietzsche é que me sugeriu essa forma de compreender-me como um renascido dos fracos e decadentes. Quem, em algum momento, leu Nietzsche ou a respeito de sua filosofia sabe alguma coisa concordará na afirmação de que Nietzsche procurou reconciliar o homem com o real. Sua filosofia é seu esforço de tornar o homem reconciliado com a vida e suas forças (dela) no aqui e agora do mundo.
Com vistas a ilustrar o que se deu comigo, depois que passei pela leitura cirúrgica de Nietzsche, tome-se o seguinte passo de um texto meu, escrito há 4 ou 5 anos. O título que encabeça esse texto é A Aurora do Renascimento em Deus. Escusa dizer que, àquela altura, ainda estava aferrado à crença em Deus. Uma nota sobre as condições de produção desse texto é necessária. Ele se reúne a outros tantos textos que compõem uma coletânea de escritos vazados numa linguagem efusivamente místico-religiosa que me acalentou durante um longo período em que vivi entrevado numa liricamente produtiva depressão.

 “Muitas vezes, sinto-me sufocado pelo mundo. Certo dia, quando imerso num profundo desespero, vociferei a irreprimível insatisfação de estar encarnado e irremediavelmente contido nesse mundo. Não aceitava a insensibilidade alheia, a indiferença das pessoas, especialmente das jovens moças a que entregava os filhos líricos de meu coração. Muitos foram rejeitados, abandonados, ignorados pela estreiteza e a vacuidade do coração delas.
Meus poemas eram sopros de anelo cálido e efervescente que minha alma lançava aos Céus, para que Deus me desse beber do cálice do Amor Bendito. E meus poemas não cessavam de nascer, embebidos num pessimismo nefasto.
Algumas tempestades foram necessárias, para que minha alma gozasse da beleza dos dias de um céu azul cristalino e ensolarado. Sempre neguei a matéria, o corpo passível de corrosão, que será consumido pela terra faminta de protoplasmas e citoplasmas. Sou homem, decerto, mas não sou um corpo com alma, mas uma alma com corpo. Esse invólucro é temporário; há de extirpar-se como extinguíveis são as pragas que assolam o milharal.
Como seja eu pura alma em ebulição lírica, desejo incessantemente transcender; busco, mediante a palavra, alcançar universos supra-sensíveis, aos quais o acesso só é possível pela reflexão e introspecção.
Pasme-se, leitor, como também fiquei atônito, ao ler este passo de Huberto Rodhen, em Em Comunhão com Deus, à página 43:
“Para que o homem possa ingressar nesse mundo grandioso do “espírito”, é necessário que transcenda as fronteiras dos “sentidos” e do “intelecto” “.

Há milhares de anos, a vida do homem se estabeleceu no céu dos sentidos e do intelecto. Libertar-se dessa atmosfera de racionalidade e imediatismo é necessário para que o homem logre alcançar as regiões supra-sensíveis e supra-intelectivas. O prelúdio para a experiência real do mundo invisível aos olhos do corpo, mas visível aos olhos da alma, é a fé.”
(BAR)

Como não pretendo me deter na análise deste excerto, porquanto sua leitura é suficiente para tornar possível a apreensão pelo leitor da representação de um ethos que contrasta claramente com o ethos de que é expressão o próximo excerto que vou referir. Ethos, desde Aristóteles, ainda que nele encerre também um sentido moral, significa “imagem de si”. E é o lógos ou o discurso o lugar que engendra o ethos. Com base no conceito de ethos, poder-se-ia ver, pela análise, que a imagem de si construída pelo sujeito do texto acima é a de um indivíduo em claro conflito com o mundo e aprisionado nas ilusões de uma tradição judaico-cristã e platônica à luz da qual ele experiencia a si mesmo e sua relação com o mundo. Mas a tarefa de interpretação deixo ao encargo do leitor. Considere-se, agora, este outro texto, escrito mais recentemente, do qual se depreende um outro ethos- um ethos cirurgicamente modificado pela leitura de Nietzsche e, de modo geral, pela imersão aturada na literatura filosófica.

“A filosofia operou uma cirurgia em meu espírito. Lendo Nietzsche, descubro o poder de sua crítica ao romantismo que impregnava o seu tempo de negação à vida. Nietzsche me ensinou a afirmá-la, em que pese as suas intempéries. E como não lembrar aqui Epicuro e sua escola que lhe ostenta o nome. São quatro os pilares que sustentam sua doutrina: 1) não temer os deuses; 2) não temer a morte; 3) buscar prazeres moderados; 4) evitar a dor. O Deus, eu o rejeitei, porquanto absurdo; a morte, já há muito acolhi em meus pensamentos e contra ela se debate a força de meu espírito, especialmente nas noites em que a lua não me visita antes do sono; os prazeres estiveram limitados ao ventre da alma (a poesia, a leitura, a escrita, o amor). Só muito tardiamente conheci o prazer do enlace dos corpos, ao qual veio presa uma cadeia de frustrações. Nada mais natural para um idealista. A par deste espírito niilista que me sabe à existência, trago comigo o pendor estóico para a indiferença ao sofrimento. A vida é uma luta. Disso soube desde que nasci. Nascer é resistir à morte prematura, à inclinação de toda vida, que é frágil, para o abandono à morte (descanso desejado pelos falidos).”

(BAR)


Esse fragmento foi colhido do texto, publicado neste blog, em 11 de março de 2013, cujo título é reencontrando-me. O referido fragmento já inicia com a declaração da transformação cirúrgica empreendida pela filosofia no sujeito que se constrói no curso do discurso. Em seguida, evoca o legado de Nietzsche, cuja filosofia foi determinante do salto de reconciliação com o mundo dado por esse eu então afetado ou renascido. No texto, esse eu afetado se reencontra com a imagem-de-eu de outrora, ciente,  no entanto, de que sua condição atual é tão imagética quanto o fora no tempo para o qual se reporta.  Esse “eu” já não se crê como substância; sabe-se como um sintoma de um corpo, ou um feixe de representações, sensações, sentimentos de um cérebro. Sabe que, outrora, era um ídolo em cuja centralidade concentrava todas as fraquezas da vida. Que o leitor ausente tire as conclusões que lhe forem mais coerentes, eu consinto, contanto que não se convença delas apressadamente. Já tarda o momento de me ocupar com a exposição da contribuição do pensamento de Nietzsche. Retomo suas demolidoras marteladas filosofantes, com o propósito de elucidar de que modo se nos aproveita o viver como Nietzsche.

1. Nietzsche e a filosofia do martelo

Nietzsche inaugurou a época do que viria a ser chamado de desconstrução da metafísica e da religião. Se assumirmos que o materialismo é a filosofia que sustenta serem ilusórias todas as formas de transcendência, serem ilusórios todos os nossos ideais e serem nossos valores produtos inconscientes de certas realidades materiais, deveremos aceitar, forçosamente, que Nietzsche fora o verdadeiro fundador do materialismo contemporâneo (Ferry, 2008).
Nietzsche desenvolveu uma crítica radical do que ele chamou de ídolos’, a saber, todos os ideais que puseram em movimento a atividade filosófica, religiosa e política durante séculos. Nietzsche foi o desconstrutor, aquele que, nas suas próprias palavras, “filosofava a marteladas” (Ferry, 2008).
Embora se tenha reconhecido como um herdeiro das Luzes, sua crítica ácida continuou o que as Luzes não levou adiante. O espírito crítico das Luzes insurgiu-se contra a religião e a metafísica, denunciando suas ilusões. Todavia, não levou adiante sua empresa; e passou a exigir e a adotar novos ídolos, quais sejam: a Razão, a Verdade, a Democracia, a República, a Liberdade, etc. Esses ídolos ocuparam o lugar deixado pelo mundo inteligível de Platão e pelo paraíso dos cristãos. Posteriormente, àqueles ídolos se reuniram outros como o Socialismo, o Anarquismo, o Comunismo, o Cientificismo, o Patriotismo, etc.
Nietzsche tão logo se apercebeu de que esses ídolos laicos ainda mantinham intacta a estrutura do além em detrimento do mundo real do aqui em baixo. Em Vencer os medos (2008), o filósofo Luc Ferry dá-nos a saber no que consistia o trabalho do espírito crítico para Nietzsche.

“O espírito crítico tem, portanto, de voltar a trabalhar e continuar criticando o que as próprias Luzes, por uma espécie de inconseqüência, por falta de radicalidade, deixaram subsistir das antigas formas religiosas” (p. 73).


Quando Nietzsche declarou “Deus está morto”, não reconheceu tão-somente a morte dos ídolos que o homem fabricou, mas também a do Homem do humanismo. Todos os seus ídolos, ou seja, todos os seus ideais mantinham a estrutura fundamental da religião e, por isso, deviam ser demolidos.
Nietzsche fez “tabula rasa” da tradição ocidental (mais especificamente, dos valores dessa tradição), levando a termo uma empresa que Descartes e as Luzes, antes dele, tinham já iniciado. Sucedeu, contudo, que tanto Descartes quanto as Luzes deixaram inacabado o trabalho.


2. Nietzsche – o contrário de um niilista

Não pretendo fazer incursão na discussão sobre se Nietzsche desenvolveu ou não um pensamento que poderia ser filiado à esteira do pensamento niilista. O que me ocupará é a tarefa de mostrar o que Nietzsche entendia por niilismo, para, assim, situá-lo como o contrário de um niilista, tal como nós o entendemos hoje.

Comecemos por notar o seguinte: na medida em que Nietzsche insurgiu-se contra todos os ídolos da cultura ocidental, Nietzsche dispensou uma crítica severa ao niilismo que constitui o cerne dessa cultura. 
À luz do nosso entendimento atual do termo niilismo, Nietzsche pode parecer-nos um partidário do niilismo, visto que se dedicou a demolir todo um universo de valores sobre os quais o homem ocidental ancorou até então sua vida. A pós-modernidade, que, àquela altura, Nietzsche viria a inaugurar, pode ser caracterizada como o período profundamente marcado pela perda do universo de referência axiológico que orientava a vida do homem. No entanto, o niilismo, para Nietzsche, significava algo totalmente contrário ao que significa para o senso comum hoje. Para nós, um niilista é aquele que não defende nenhum valor, que não tem ideal. Para Nietzsche, ao contrário, niilista é justamente aquele homem que vive aferrado a “convicções empedernidas” e excessivamente morais. Niilista, segundo Nietzsche, seria aquele que tem ideais, sejam eles religiosos, metafísicos ou laicos, humanistas ou materialistas. Cabe, aqui, frisar que Nietzsche não rejeitava apenas os ideias metafísico-religiosos, mas todos os tipos de ideais, inclusive os gestados pela mentalidade laica e cientificista.
Ora, segundo a perspectiva nietzschiana, os ideais – os ídolos – são não só irreais, como também mantenedores da estrutura metafísico-religiosa do além. Essa estrutura aniquila o real. Esses ideais foram inventados pelos seres humanos a fim de revestir de sentido a sua vida, e também a fim de consolá-los na experiência de sua finitude; sob muitos aspectos, por isso, esses ideais negam a vida como ela é.
O idealismo é, portanto, para Nietzsche, um niilismo, se entendermos por idealismo uma atitude de negação do real em nome do ideal. Toda tentativa de melhorar o que existe em nome de um futuro próspero, em que se dará a realização do homem, ou em nome de um sentido velado, de um projeto superior, é um niilismo. É contra esse niilismo que se erige a crítica de Nietzsche. É esse niilismo que tem de ser negado, se intentamos resgatar o real do peso da moral do ressentimento à qual ele sucumbiu. Trata-se – evocando as palavras de Sponville – de lamentar um pouco menos, de esperar um pouco menos para amar um pouco mais. O desespero de Nietzsche, o desespero de Sponville não é o desespero do qual tenta incessantemente fugir o homem decadente; é um desespero afirmativo do real, porque é a própria ausência de qualquer esperança. Para amar o real, o presente, é preciso livrar-se das esperanças que nos põem sob o domínio da tirania do futuro. Amar o real, dirá Nietzsche, é amá-lo como presença tal como nos é dada. É o que ele chama de amor fati, que é o amor pelo que existe, que é a “inocência do devir”, uma inocência que se conquista no momento em que nos libertamos do peso das paixões tristes que nos mantêm atados ao passado e das nostalgias e das culpas (Ferry, p. 80). Nietzsche retoma aqui a sabedoria dos antigos e anuncia a necessidade de nos libertarmos da tirania do futuro e das ilusões da esperança (ib.id.).
Nietzsche se apresentava como um imoralista, ou mesmo como o Anticristo. Se isso repugna às sensibilidades forjadas em nossa tradição moral de base judaico-cristã, é que essa repugnância é sintoma de uma enviesada compreensão de Nietzsche. Não era Jesus o alvo da corrosiva crítica nietzschiana, mas a Igreja, o sacerdote, o cristianismo.

O filósofo de Röcken procurou afastar os perigos do niilismo, situando-se “além do bem e do mal”. Em sua própria vida, não deixou de distinguir entre formas de vida doentias, nocivas, atrofiadas, astênicas, em suma, “ruins”, e formas de vida mais vivas, mais generosas, mais afirmativas e alegres (Ferry, p. 75).


3. O homem dionisíaco


O conceito de dionisíaco constitui o pilar que sustenta o pensamento de Nietzsche em O nascimento da tragédia (1872). O dionisíaco reúne o conhecimento da dimensão trágica da vida à fruição alegre e robusta dela (vida). Com esse conceito, Nietzsche se opôs ao pessimismo shcopenhauriano. Ao contrário de Schopenhauer, Nietzsche buscou uma justificação da vida, uma afirmação da vida sem concessão, em que pese seus aspectos mais terríveis e pungentes. O amor fati é uma espécie de convocação de Nietzsche a que amemos a vida mesmo naquilo que ela tem de mais doloroso. É neste momento em que atingimos o ápice do viver como Nietzsche. Seria possível continuar amando a vida mesmo depois das mais incisivas e pungentes cicatrizes? É possível amá-la mesmo quando ela é sentida como uma doença que contraímos sem qualquer responsabilidade no contágio? Precisemos bem o ‘lugar’ donde essas questões se enunciam, pois que Nietzsche não está sugerindo que amemos a vida por um decreto de uma autoridade heteronômica (de Deus, por exemplo). O homem de Nietzsche, ou melhor, o homem dionisíaco, é um homem desesperado, no sentido de que ele não nutre esperanças, ilusões, não espera viver a eternidade num além-mundo.
O dionisíaco não é apenas o conceito que orienta a filosofia de Nietzsche; é, provavelmente, o único conceito que atravessa toda a sua obra. No seu O nascimento da tragédia, Nietzsche objetivou, fundamentalmente, construir uma filosofia trágica da existência. Essa filosofia se apresenta como uma alternativa ao cristianismo que culpa o mundo desde o surgimento do primeiro homem.
Na figura do deus grego de origem oriental Dionísio, Nietzsche viu o contraponto ao cristianismo que tanto influenciou a sua infância. Sem pretender deslindar toda a temática dionisíaca, quero, no entanto, frisar a seguinte ideia fulcral, e a partir dela precisar quem é o homem dionisíaco: o trágico é apresentado em Nietzsche, sob a perspectiva de uma filosofia pessimista e estética. Todavia, trata-se do pessimismo dos fortes, como tal, de um pessimismo que não nega a vida. Esse pessimismo trágico aceita a existência e a sua dolorosa verdade dionisíaca: a morte e o sofrimento.
A alegria, de acordo com essa perspectiva, deve ser encontrada não na harmonia; mas na dissonância. O mundo trágico é um mundo sem redenção. Nietzsche teve a coragem de ligar o pessimismo ao instinto de vida. Longe de significar fraqueza, seu pessimismo afirma a força da vida, a robustez da vida. Segundo Nietzsche, o pessimismo é fonte de alegria.
Em suma, o homem dionisíaco é sinônimo de homem trágico. Ele é uma resposta ao pessimismo de Schopenhauer, que enfraquece a vida. O trágico, em Nietzsche, é o que nos permite viver. O homem trágico vê a vida cheia de alegria e de poder, a despeito – o que não nos deixa de impressionar – da mutabilidade fenomênica de suas formas. É devido ao sofrimento inerente à vida que o homem dionisíaco a afirma. Numa passagem que me parece suficientemente elucidativa, em O nascimento da tragédia (2007) Nietzsche anuncia a que se opõe a sua (contra)doutrina dionisíaca:

“A moral não seria uma “vontade de negação da vida”, um instinto secreto de aniquilamento, um princípio de decadência, apequenamento, difamação, um começo do fim? E, em consequência, o perigo dos perigos?... Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro problemático, o meu instinto, como um instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma contra-doutrina e uma contra-valoração da vida, puramente artística, anticristã. Como denominá-la? Na qualidade de filólogo e homem das palavras eu a batizei, não sem alguma liberdade – pois quem conheceria o verdadeiro nome do Anticristo? – com o nome de um deus grego: eu a chamei dionisíaca (ênfase no original, p. 18)”.


Compreende-se, quando se atenta para o excerto acima, pois, que homem dionisíaco é o oposto do homem cristão; é o próprio anticristo, porque não busca um além que nega a vida.  Esse homem dionisíaco não encara o sofrimento como a via crúcis para ir ao encontro da eternidade no colo acolhedor de Deus. O sofrimento não é, para ele, um pedágio que se paga no aqui para permanecer fiéis à travessia para a eternidade.
Na concepção trágica de Nietzsche, a vida se estrutura pela dissonância prazer/dor. A vida se apresenta como vida sem redenção, que não oferece escapatória, e da qual também não se espera escapar. É esta a vida eterna, o eterno retorno da vida, de que fala Nietzsche em seu Crepúsculo dos Ídolos. Nessa obra, encontramos a definição do pensamento dionisíaco, com cuja apresentação ponho termo a este texto, com a certeza de que o que se silencio fala mais (produz mais sentidos) do que aquilo a que dei uma materialidade verbal.


“Aquiescência à vida, até em seus problemas mais afastados e mais árduos; o querer-viver sacrificando alegremente os seus tipos mais realizados para a sua própria e inesgotável fecundidade – é tudo isto o que chamei dionisíaco”.