sexta-feira, 5 de outubro de 2012

"Textos são formas de cognição social" (Ingedore Koch)


                          Revisitando Sobre moluscos e homens
                                               
                                                            Parte 1
                                    
                                                     O estudo da paragrafação


  

Você acorda de manhã e diz:
- Mãe, estou com fome!

Você enuncia uma sequência de vocábulos que estão organizados segundo regras das quais você não está consciente, mas que você domina como parte de seu conhecimento linguístico intuitivo, resultado das experiências de aquisição de sua língua materna entre os 3 e 7 anos de vida.
Você também sabe que, ao proferir aquele enunciado, provocará, tendo em conta um contexto adequado, uma reação no seu interlocutor. Se sua mãe está na cozinha, é provável que ela, após ouvir o seu pedido (porque se trata de um pedido, produzido de modo indireto), convide você a sentar-se à mesa. Ela poderia dizer algo como:

- Está na mesa. Tem pão quentinho e suco de laranja.

Ao produzir esse enunciado, sua mãe realiza um ato de convidar – ela convida você a se alimentar e saciar sua fome. Produzindo-o, ela causa uma reação em você. Você se sentará à mesa sem hesitar.
Esse exemplo patenteia o fato de que “todo dizer é um fazer”, de que a língua é uma forma de ação social, é uma atividade intersubjetiva, um lugar de interação onde os participantes, produzindo enunciados, atuam uns sobre os outros e se constituem reciprocamente, não sem o reconhecimento de regras sociointeracionais, não sem a mobilização de estratégias variadas, não sem a manutenção de um contrato comunicativo, etc.. Todo dizer produz um efeito verbal ou não-verbal no outro. E você, que é um ser de linguagem, que é um sujeito social participante de uma comunidade cultural e que vive imerso em sua língua materna o tempo todo, “sabe”, por exemplo, que, se, por ventura, ofender alguém, poderá atrair para si a agressividade dessa pessoa ofendida. Ela pode desferir-lhe um tapa. A ofensa realiza-se, na maioria das vezes, como um ato linguístico. Ofendemos usando a língua. Você sabe disso, mas, provavelmente, nunca refletiu seriamente sobre isso. Porque está imerso na linguagem. Toda reflexão sobre um objeto demanda um distanciamento do sujeito em relação a este objeto. A reflexão só é possível quando nos permitimos olhar a distância o objeto de nosso interesse intelectual.
Nessa concepção de língua/ linguagem como forma de ação social, cada enunciado produzido constitui um ato de fala. Assim, atos de fala são formas de ação social que se realizam na língua e pelo uso da língua. Não vou descer a pormenores, porque o tema deste texto é outro, muito embora seja a concepção de língua aqui apresentada que orientará as reflexões que, doravante, levarei a efeito.
Acreditando ter sido insuficiente a leitura que propus sobre o texto de Rubem Alves – Sobre moluscos e homens – volto a considerá-lo, com vistas a oferecer uma análise mais acurada de aspectos linguístico-discursivos, cuja compreensão é fundamental para o processamento textual ou construção de sentido para o texto. A análise considerará fenômenos discursivos que desbordam os limites do texto, tais como a polifonia e a intertextualidade. O método de que me valerei consiste em ir dos aspectos gerais aos particulares. Cada qual desses aspectos será considerado em seções distintas, a fim de que a atenção do leitor não se dissipe no decorrer da leitura. Espero assim favorecer a concentração da atenção do leitor em cada aspecto considerado. Com isso, não suponho esgotar os fenômenos textuais-discursivos que podem ser analisados no texto. Muito haverá ainda por considerar, evidentemente, mas não tenho a pretensão de dar conta da totalidade discursiva do objeto linguístico em análise.
São, basicamente, dois os meus propósitos:

propósito  patentear ao leitor que toda interpretação está calcada sobre a superfície textual, de modo que a construção do sentido é dependente, em parte, do reconhecimento das pistas textuais fornecidas pelo autor;

propósito tornar claros ao leitor os mecanismos linguístico-discursivos envolvidos no processo de produção/ interpretação textual.

Abaixo, segue o texto de Rubem Alves com as unidades linguísticas envolvidas nos fenômenos, de cuja análise me ocuparei, em negrito. Cabe salientar, contudo, que, aqui, só me ocuparei de um fenômeno linguístico apenas: a estruturação do parágrafo.

Sobre moluscos e homens
Rubem Alves

Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.
O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os ditos “programas” escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais que estão acontecendo no momento ( insisto nessa expressão “no momento” – a vida só acontece “no momento” ) da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas. Explicaria também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa recusa em aprender. Explicaria sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar... Recordo a denúncia de Bruno Bettelheim contra a escola: “Fui forçado (!) a estudar o que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender – e aprender à sua maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um conhecimento morto. Somente os necrófilos se excitam diante de cadáveres.
Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca. Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o util e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais ( inclusive os vestibulares ) que se fazem para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito o seu trabalho. O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor de português se saia bem em matemática, física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência que se faz sobre os estudantes?
Ah! Piaget! Que fizeram com o seu saber? Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores voltem a aprender com os moluscos...


1. Paragrafação e tópico discursivo        

Como eu disse anteriormente, começarei por considerar aspectos mais gerais. Em face de um texto escrito, o plano mais imediatamente acessível ao leitor é a organização do texto em blocos de sentido, ou seja, em parágrafos. Para os meus propósitos aqui, estou considerando o texto como a unidade de comunicação hierarquicamente superior á frase. Essa delimitação conceitual é necessária porque um único enunciado é um texto, desde que, num contexto determinado, cumpra uma função comunicativa. Esse enunciado pode, inclusive, ser constituído de uma única palavra (ex. fogo! – produzido por alguém que vê um prédio em chamas, alertando pessoas sobre o perigo ou sobre a necessidade de acionar as autoridades competentes). Escusa dizer que o texto está sendo considerado apenas na modalidade escrita, muito embora nós falemos por meio de textos.
Textos escritos longos são, via de regra, organizados em parágrafos (com exceção do gênero textual códice, que não apresenta espaçamento entre um bloco de sentido e outro). Em geral, os parágrafos compõem-se de sucessivos encadeamentos de frases, muito embora possa aparecer, eventualmente, uma única frase como parágrafo.
Importa-nos, contudo, a definição do parágrafo-padrão (Garcia, 2006: 219). O parágrafo-padrão é um todo ou um bloco dotado de sentido, constituído por encadeamentos lógicos de frases, através dos quais se desenvolvem várias ideias, uma das quais constitui a ideia central, à qual se subordinam outras. Essas outras ideias se dizem secundárias e estão associadas à ideia central de modo lógico e coerente.
A importância do parágrafo deve ser considerada a partir de duas perspectivas: a do produtor do texto e do leitor. Do ponto de vista do produtor, a divisão em parágrafos permite ao produtor distribuir suas ideias, estruturando-as de acordo com seus propósitos, segundo relações lógico-semânticas e discursivas estabelecidas à medida que faz avançar o texto. O parágrafo, assim, constitui um todo coeso, no qual a uma ideia principal agrega-se outras ideias secundárias. O parágrafo reflete a estruturação sintático-semântica e discursiva do texto. Do ponto de vista do leitor, o parágrafo facilita a leitura, já que permite ao leitor acompanhar o desenvolvimento do texto em diferentes etapas, conforme previsto pelo planejamento comunicativo (entenda-se interacional-argumentativo) do produtor.
Até aqui disse que todo parágrafo organiza-se em torno de uma ideia central e que a essa ideia se ligam outras ideias de status secundário. Avancemos, então.


1.2. Tópico Discursivo

O tópico discursivo é o assunto principal do texto. É o tema ao qual se prendem as informações do texto. É desejável que ele apareça no limiar do primeiro parágrafo, sendo, com frequência, sinalizado pelo título. Falamos em tópico sentencial (ou frasal) para designar o elemento da frase sobre o qual se informa alguma coisa. Trata-se do elemento que funciona como ponto de partida da informação. O tópico é uma função comunicativa e não sintática; por isso nem sempre coincidirá com o sujeito da frase. O sujeito é uma função sintática. Assim, se por um lado, em (a) sujeito e tópico coincidem, em (b) não há coincidência entre os dois:

(a) Ana enterrou o passarinho no quintal.
(b) o passarinho Ana enterrou no quintal.

Em (a), o constituinte “Ana” é, do ponto de vista sintático, o sujeito da frase (o termo com o qual o verbo concorda); do ponto de vista comunicativo, é o tópico frasal, ou seja, o elemento sobre o qual se informa alguma coisa. Em (b), sucede diferente. O constituinte “o passarinho” é o objeto direto do verbo “enterrar”, que foi deslocado para a posição de tópico frasal.
Disso se depreende que a correlação entre “ser tópico” e “ocupar a primeira posição”. Segundo Liberato et.alii. (2007: 57),

“Essa correlação parece natural: sendo o tópico o ponto de partida cognitivo, isto é, a entidade que o falante tem em mente e sobre a qual dirá alguma coisa, ele deve coincidir com o ponto de partida comunicativo”.


Topicalizar é, portanto, deslocar um constituinte oracional de sua posição canônica para a posição inicial, colocando-o em foco, ou seja, dando-lhe o status de elemento sobre o qual recai a informação da frase.
Voltemos à questão do tópico discursivo.

Devemos entender, portanto, o tópico discursivo como o tema geral ou principal do texto como um todo. Disso não se segue que esse tema não nos aparece subdividido. Ou seja, além do tópico discursivo, há subtópicos. Compreendamos a complexidade da estruturação do parágrafo em tópicos.
Postula-se que todo texto apresenta um tópico discursivo, que corresponde ao assunto do texto. Esse assunto ou tópico discursivo se divide em subtópicos que constituem tópicos de unidades menores – os parágrafos. Cada um dos subtópicos do parágrafo pode ser dividido em tópicos ainda menores. Assim, a arquitetura em tópicos pode ser ilustrada como se segue:
                                                  
                                                    TEXTO

                                              Tópico discursivo

1º parágrafo                                    subtópico 1
                                                      { tópico a
                                                      { tópico b
                                                       { tópico c

Ao contrário do que sugere a ilustração, cada parágrafo pode apresentar mais de um subtópico relacionado ao tópico discursivo. Esses subtópicos se dividem em tópicos menores (passarei a chamá-los de segmentos tópicos, quando da análise dos dados). A importância da compreensão da organização do parágrafo em tópicos pode ser compreendida nas seguintes palavras de Liberato et.alii:

“(...) a compreensão da estrutura de tópicos (...) é um componente essencial da compreensão de um texto. Pode-se dizer que um leitor que não apreendeu o tópico de um texto simplesmente não entendeu o texto. Ele não consegue, por exemplo, responder a pergunta “Sobre o que é esse texto?”.

(p. 56)


O exercício de análise tópica dos parágrafos, para o reconhecimento da estruturação do tema, é profícuo não só aos estudantes-leitores menos experientes, mas também àqueles para os quais ler é uma atividade corriqueira. Nos dois casos, busca-se desenvolver habilidades de reconhecimento do tema do texto, bem como sensibilizá-los para o modo como o escritor esquadrinhou a complexidade do tema ao longo do texto. Ora, um tema complexo demanda um tratamento por estágios, cada qual destinado à consideração de um aspecto do fenômeno abordado. Daí a importância de, primeiramente, delimitar o tema, de fazer um recorte sobre seu domínio de referência, para, posteriormente, abordá-lo discriminando e analisando os diversos aspectos nele implicados.
O leitor, quiçá, tenha percebido que o texto de Rubem Alves encerra um primeiro parágrafo bastante extenso. Talvez, o leitor tenha ficado com a sensação de que seria necessário fazer vários cortes nesse parágrafo. Talvez, devêssemos dividi-lo em dois ou mais. Decerto, podemos dividi-lo, como se verá. De que critérios nos valemos para determinar em que ponto ou momento é necessário abrir um novo parágrafo? Antes de apresentar os três fatores que correspondem às expectativas do leitor no tocante a segmentação do texto em parágrafos, vou trazer à baila o seguinte trecho de Rehfeld (1984. apud. Liberato et.alii. 2007: 68):

“[...] a paragrafação constitui um dos aspectos importantes da estruturação dos textos e, nesse sentido, relaciona-se com o problema da compreensão em leitura: o parágrafo pode servir de pista para a montagem da “paisagem mental” que o leitor constrói do texto. Um leitor pode desenvolver estratégias que o levem a esperar nos limites de parágrafo a ocorrência de certas transições de traços [...] relevantes para a compreensão do texto”.
(p. 1)


Experimentos demonstram que leitores experientes, em face de um texto sem paragrafação, fazem indicação dos pontos em que esperavam haver divisão em parágrafos. Rehfeld conclui que “o parágrafo é uma unidade psicologicamente real” (Liberato et.alii. p. 69).
Há, portanto, três fatores que condicionam a divisão de um texto em parágrafos:

1º fator: mudança de parâmetros;
2º grau de detalhamento das informações
3º tamanho do parágrafo.

O primeiro fator – mudança de parâmetros – consiste na marcação de um parágrafo em virtude de mudanças em traços semânticos, tais como personagem, tempo e lugar na narrativa. Uma quebra de continuidade da narrativa, tendo como eixo um desses parâmetros, implicaria a marcação de novo parágrafo. Assim, um novo personagem que entra em cena teria o potencial de sinalizar a abertura de um novo parágrafo. O mesmo se aplica à mudança de tempo e lugar na narrativa.
O segundo fator – grau de detalhamento das informações – é, particularmente, relevante nos textos argumentativos. Por razões didáticas, o escritor pode distribuir em parágrafos distintos informações detalhadas sobre um dado tópico. Aliás, é o que eu faço aqui. Apresentei os tipos de fatores que condicionam a paragrafação e estou definindo cada qual em parágrafos distintos. Por outro lado, ele pode reunir pormenores diretamente relacionados ao tópico discursivo num mesmo parágrafo. Liberato (2007) observa que ainda não há estudos para determinar a validade das hipóteses levantadas nesse domínio. Pelo menos, àquela altura. Desconheço estudos que desse fenômeno se ocupem. Isso não nos impede de exercitar nossa capacidade de segmentação do texto em parágrafos, um exercício que levaremos a efeito logo.
Finalmente, o terceiro fator – tamanho do parágrafo – relaciona-se à tentativa de o produtor evitar parágrafos excessivamente longos (embora não tenha sido o caso de Rubem Alves). Do mesmo modo, ele tende a evitar parágrafos muito curtos (constituídos de uma ou duas frases apenas). O parágrafo não sendo nem muito extenso nem muito curto deve exibir uma unidade de parâmetros, deve articular adequadamente subtópicos e tópicos hierarquicamente inferiores, de sorte que fiquem coesos e facilitem a construção da coerência, ao menos, local do texto.

1.3. A estruturação em tópicos do primeiro parágrafo do texto de Rubem Alves.

Empreendamos a análise do primeiro parágrafo apenas do texto de Rubem Alves, a fim de compreender sua organização tópica. Estou particularmente interessado na possibilidade de depreensão do tópico discursivo, cujo aparecimento é esperado no primeiro parágrafo.
Precisei reler, com atenção, esse parágrafo, buscando aplicar, em minha análise, os conceitos teóricos que vim apresentando até aqui. De imediato, precisei lançar mão de outros dois conceitos ligados à organização temática do texto, a fim de apreender adequadamente como os subtópicos e seus tópicos estão relacionados. Precisei, então, lançar mão dos conceitos de tema e rema, cuja apreensão se dá no nível da frase. Desde já, informo o leitor de que tema é o equivalente nocional de tópico frasal. Rema, a seu turno, é o que sobra na frase após a identificação do tema. Portanto, o rema é a parte da frase que encerra a informação propriamente dita. Na frase (a), anteriormente citada, “Ana” é o tema; e “enterrou o passarinho no quintal”, o rema. O meu objetivo foi mapear a progressão temática do parágrafo, ou seja, a recorrência dos temas ao longo do texto. Evidentemente, há progressão com tema constante, caso em que o tema, uma vez introduzido, é mantido em enunciados sucessivos do texto. Há progressão linear, caso em que o rema de um enunciado anterior torna-se tema do enunciado seguinte. Há progressão com divisão de tema, caso em que o tema é subdividido em vários temas subsequentes. E, finalmente, há progressão com rema subdividido, caso em que o rema se fragmenta, de modo que cada uma de suas partes torna-se tema de enunciados posteriores. Vejam-se os exemplos abaixo, cada qual representativo de um tipo de progressão  tema-rema:


(c) O cachorro é muito estimado por muitas pessoas. Ele é considerado amigo e companheiro para todas as horas. Sempre disposto a agradar ao seu dono, não economiza na manifestação de alegria. (progressão com tema constante – cachorro).

(d) João beijou Ana. Ana correu para contar para Luíza. Luíza, sabendo do caso, telefonou para Júlia. Júlia espalhou a notícia para toda a vizinhança. O namoro não era mais segredo. (progressão linear – Ana (rema) - Ana (tema) - Luíza (rema) -  Luíza (tema) – Júlia (rema) – Júlia (tema))

(e) A cultura pode ser subdividida em dois tipos: cultura subjetiva e cultura objetiva. A cultura subjetiva encerra o conjunto de conhecimentos, valores, crenças adquiridos pelos membros de uma sociedade em virtude de compartilharem um mesmo código cultural. A cultura objetiva é aquela que se manifesta em forma de artes, música, cinema, teatro, livros, etc.  (progressão com divisão de tema – cultura: cultura subjetiva e cultura objetiva)

(f) Hoje, fui ao shopping e comprei muita coisa pra vestir. Os sapatos ficaram ótimos. Já as calças não serviram. (progressão com rema subdividido – muita coisa: sapatos e calças).

Além dos conceitos de tema-rema, precisei recorrer a uma forma mais clara de abordar a organização dos tópicos. Koch (2006) nos fornece uma abordagem da estruturação dos tópicos mais adequada e clara. Ela mantém a hierarquização dos tópicos. Assume como unidade de nível mais alto o supertópico, que chamarei tópico discursivo. Mantenho a noção de subtópico, nível imediatamente mais baixo em relação ao tópico discursivo, mas incluo o nível dos segmentos tópicos, que são constituintes do subtópico e, portanto, unidades de nível hierárquico inferior ao subtópico. Diversos subtópicos constituirão um quadro tópico.
Esquematicamente, temos o seguinte:

                                       Tópico discursivo

                                              Quadro tópico
     
              Subtópico                    subtópico                    subtópico

           Segmento tópico         segmento tópico           segmento tópico

Vou propor um modo de segmentar o extenso parágrafo primeiro do texto, sem pretender que essa segmentação seja a forma de segmentação (mais) correta. O leitor poderá divergir de mim, nesse tocante, operando outra segmentação. Hesitei, algumas vezes, nesse processo de marcação de parágrafos. Atribuo ao autor um pouco de responsabilidade sobre minha dificuldade inicial, já que ele vai reunindo temas sucessivamente, sem se preocupar com a estruturação em parágrafos dos subtópicos e tópicos. 
Apresento, abaixo, o primeiro parágrafo do texto, com os temas e remas destacados. Os temas aparecem em negrito e os remas sublinhados. É na base do reconhecimento dos temas e remas que proponho determinarmos o tópico discursivo, os quadros tópicos, subtópicos e segmentos tópicos.


Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, [eles] seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. [Eu] Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, [Eu] . E foi imaginando que [Eu] pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse.  [Piaget] Continuou interessado nos moluscos. Só que [Piaget] passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, [Eu] digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E [Eu] digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.

Apesar de eu ter sugerido que o tópico discursivo pode ser depreendido no limiar do primeiro parágrafo, não sucede assim no texto de Rubem Alves. O tópico discursivo, ou seja, o tema do texto não é imediatamente apreendido. O fato de o autor começar seu texto falando do interesse de Piaget pelo comportamento dos moluscos nos mostra que não há interesse de facilitar o caminho do leitor na busca por determinar o Tema (com maiúscula para diferenciá-lo do tema, elemento da frase) do texto. O autor incorpora um pouco de erudição em seu texto, ao lembrar o interesse de Piaget por moluscos. Pode tratar-se de uma informação nova para o leitor, que, talvez, ignorasse o fato de Piaget ter-se ocupado com o estudo dos moluscos. Definitivamente, não é Piaget o tópico discursivo. Mas é tema em vários momentos no texto.
O leitor deve ter observado que há mudanças constantes de tema. Inicia-se com “Piaget”, depois insere-se “moluscos”, que é retomado (eles). Posteriormente, introduz-se “inteligência”, relacionando-a a moluscos e, depois, uma quebra, com a introdução de “Eu ignoro”. Neste trecho, o autor retoma Piaget. Essas rupturas servem-nos de caminhos para que operemos a divisão desse parágrafo em cinco. Proponho que esse parágrafo seja dividido em cinco partes, que darão origem a cinco parágrafos. Vejamos:

1º parágrafo
Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, [eles] seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores.

2º parágrafo
[Eu] Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, [Eu]. E foi imaginando que [Eu] pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse[Piaget] Continuou interessado nos moluscos. Só que [Piaget] passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”.

3º parágrafo
Se é que você não sabe, [Eu] digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta.

4º parágrafo
A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E [Eu] digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento.

5º parágrafo
Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.

Essa divisão tem a vantagem de marcar as rupturas temáticas. A determinação da estrutura tópica de cada um dos parágrafos será ilustrada como se segue:
                                             

                                                1º parágrafo
                                               
                                                  Subtópico 1
                                         O interesse de Piaget por molusco

                                                     Subtópico 2
                                                        Moluscos
      Segmentos tópicos – a condição de molusco; a inteligência dos moluscos

                                                     
                                                   2º parágrafo

                                                            Subtópico
                                        O interesse de Piaget pelo estudo
                                             do comportamento humano

Segmentos tópicos – a ignorância do autor sobre detalhes da biografia de Piaget;
a sugestão do autor sobre a razão por que Piaget abandonou seu interesse pelos moluscos

                                                     
                                                      3º parágrafo
                                                       
                                                        Subtópico 1
                                                    Condição humana
Segmento tópico - inadequação de nossos corpos à luta pela sobrevivência
                                                       
                                                       Subtópico 2
                                                 Condição dos animais
  Segmento tópico  - a suficiência do corpo dos animais; a adequação do corpo dos animais à luta pela sobrevivência

                                                       4º parágrafo
                                                       
                                                       Subtópico
                                        O legado da natureza ao homem
       Segmentos tópicos – a necessidade de pensar; surgimento do pensamento


                                                     5º parágrafo
                                                    
                                                      Subtópico 1
                                             A conclusão de Piaget
                       Segmento tópico – a finalidade do conhecimento
                                                    
                                                    Subtópico 2
                                      O desenvolvimento do pensamento
                    Segmento tópico – a finalidade do pensamento
                                               

Falta ainda inserir nessa análise da configuração dos subtópicos e segmentos tópicos dos parágrafos a noção de quadro tópico. Como articulá-la à análise? A inserção dessa noção não é obrigatória. Ela só se demonstra necessária, particularmente na interação face-a-face, quando se verifica uma grande quantidade de subtópicos numa prática discursiva. Na interação face-a-face, isso é muito comum.  Numa mesma conversa, podemos falar sobre vários assuntos, cada qual deles constituiria um subtópico. Um quadro tópico, por definição, deve abranger um conjunto de subtópicos. Sua aplicação na análise que empreendi não é necessária, ainda que possível; mas apenas nos casos em que se verificam dois subtópicos.
Ainda não conseguimos determinar o tópico discursivo, ou seja, o assunto do texto. Após o percurso analítico empreendido aqui sobre a configuração tópica dos parágrafos, como determinar o tópico discursivo? Vimos que ele não figura explicitamente em nenhum dos parágrafos. O título não dá indicação alguma sobre o Tema do texto. Claro é que moluscos e seres humanos, enquanto seres naturais, vão constituir subtópicos do Tema, mas não são propriamente o Tema.  Quando prosseguimos na leitura, percebemos que o autor se preocupa com uma questão recorrente, a saber, a do conhecimento. Mais precisamente, com o modo como nós, seres humanos, adquirimos ou construímos conhecimento. Seu olhar sobre a questão é pedagógico, pois que ele está interessado também em discutir o modo como, tradicionalmente, as autoridades e profissionais envolvidos na Educação avaliam o conhecimento dos estudantes.
Creio ser o tema deste texto – seu tópico discursivo – a construção do conhecimento como resposta aos desafios da vida. Note-se que o tema não se confunde com a tese do autor. O autor busca defender seu ponto de vista (tese) sobre um tema. Ele produziu seu texto para enfocar o problema da construção do conhecimento que seja útil à vida dos seres humanos e esforçou-se por nos mostrar que essa construção, essa elaboração depende da excitação do pensamento. Assim, os homens, pelo pensamento, produzem conhecimentos para responder às suas necessidades de sobrevivência. O autor, então, se preocupa em defender a tese de que a prática pedagógica, na escola, deve favorecer a construção pelo estudante do conhecimento que seja útil à vida, que responda aos desafios que ela lhe coloca.
A dificuldade de determinar o tópico discursivo poderia explicar a provável diversidade de respostas dos alunos quando lhes perguntássemos qual é o tema do texto. Não deveríamos, nós professores, ficar surpresos se os alunos divergissem quando tentassem explicitar o assunto do texto. Alguns poderiam dizer que o texto trata do interesse de Piaget pelo estudo dos moluscos; outros que o texto enfoca o interesse de Piaget pelos homens; outros mais poderiam dizer que trata das dificuldades de sobrevivência humana; outros ainda que trata da natureza ou dos animais, etc. Eles, certamente, não estariam errados, porque, afinal, o texto realmente aborda todos esses temas. É como se os estudantes tivessem oferecidos apenas os pedaços de vidro que compõem o vitral, que é o tópico discursivo ou assunto do texto.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

"Deus é tão-somente objeto de discurso"




           
                        Desembaraçando a lógica da fé      

Já tive a oportunidade de comentar este diálogo quando deparei com ele pela primeira vez no facebook. Mas eu não pude dispensar sobre ele um exame detido. Pretendo fazê-lo agora. Uma leitura atenta mostra-nos uma série de inconsistências lógico-semânticas e argumentativas.
Assumo o pressuposto de que todo ato de linguagem é, essencialmente, argumentativo. E este diálogo de autoria anônima, que circula naquela rede social, foi produzido com o propósito de fazer apologia à fé cristã. O seu autor, recorrendo a certas sofisticações argumentativas (como o recurso a analogias e ilustrações), tentará mostrar que Deus existe pelo simples fato de o cristão poder senti-lo. O autor tentará nos convencer de que se pode provar a existência de Deus pelo simples fato de o sentirmos.
Comecemos, pois, a desembaraçar os liames argumentativos, a fim de que notemos as fragilidades do raciocínio.
O ateu é categórico e inicia asseverando a inexistência de Deus (Eu digo [que Deus não existe]), ao que o cristão responde asseverando o contrário (Eu digo [que Deus existe]). Produz-se, então, o conflito.. É interessante notar que a participação do ateu é, no entanto, discreta; ele foi reduzido a mero coadjuvante. A ele é atribuído uma conclusão logicamente inaceitável (“Então, Deus não existe”), tendo em conta a resposta do cristão, após ser instando a provar a existência de Deus. Nas duas últimas contribuições do ateu, ele se limita apenas a responder: à sugestão de uma imagem, através da qual ele é levado a imaginar uma situação comum da experiência humana (a de saborear uma laranja), ele responde “sim” (ou seja, “compreendo, prossiga...”); ao que faria caso o cristão negasse uma evidência, ou seja, a de que a laranja está doce (nesse caso, o ateu diz que sugeriria ao cristão que experimentasse a laranja para certificar-se de que ela está doce).
Vê-se que o ateu não atua argumentativamente. Apenas o cristão ocupa a posição de assenhorear a argumentação. Prossigamos...
O ateu solicita a prova. Duas palavrinhas são, particularmente, importantes para que compreendamos como a tentativa de sobrepujar a descrença do ateu é falha: “prova” e “experimentar” (que evoca sua derivada “experiência”). Vamos refletir um pouco sobre o significado científico-filosófico destas três palavras “prova”, “experimentar” e “experiência”.
O cristão nega que possa provar a existência de Deus. Mas o que significa provar, nesse caso? Ou melhor, o que é prova, num sentido epistemológico? Vamos distinguir dois domínios semânticos nos quais podemos situar o conceito de ‘prova’. O primeiro domínio é o lógico-argumentativo. Aí a prova é a demonstração da validade de uma proposição. Ela demanda o desenvolvimento de uma argumentação que nos leve a reconhecer ou aceitar a verdade de uma proposição. O segundo domínio é o experimental. Aí prova-se quando uma hipótese se demonstra verdadeira pela observação dos fatos. Nesse caso, testamos uma hipótese fazendo experimentos; se os resultados confirmarem a verdade da hipótese, diremos que dispomos de uma prova. Se alguém duvida da verdade da proposição “A água ferve quando atinge 100 graus de temperatura”, pode-se provar medindo-se a temperatura da água (estou ignorando variáveis como estar acima do nível do mar). Creio que tenha ficado claro que, no segundo sentido, prova se prende ao domínio da experiência e da observação (empirismo). Para provar a validade de minhas crenças sobre estados-de-coisas do mundo, faço experimentos, testo hipóteses, vou até a realidade para, na relação com ela, buscar as respostas, as provas.
Abro um parêntese para falar, com brevidade, de outro conceito importante: o da evidência. Temos muitas crenças, em nossa vida cotidiana, que não se apóiam em evidências, ou se sustentam em evidências insuficientes. Uma evidência é a revelação da realidade. A verdade resulta da evidência, ou seja, do desencultamento da realidade. A evidência é o critério para a verdade. Uma coisa será verdadeira se tivermos acesso a evidências que lhes garanta essa qualidade. Enquanto as evidências nos levam à certeza ou à verdade, os indícios só nos levam a inferir uma certeza relativa, porque exprimem apenas possibilidade ou probabilidade.
Que dizer da experiência? O que significa dizer que alguém tem experiência de alguma coisa? Significa que ela tem um conhecimento espontâneo, vivido, em virtude de suas inúmeras relações com o mundo e com os outros. Ter experiência envolve um relacionamento de um sujeito cognoscente com um mundo e com outros sujeitos. No domínio da ciência, a experiência é uma forma de ação, através da qual se observa ou se experimenta a fim de, ou elaborar hipóteses, ou de corroborá-las. Partindo de determinadas condições, busca-se, na experiência, conhecer a natureza de um fenômeno. O fenômeno é aquilo que se mostra, que se dá aos sentidos (visão, audição, olfato, tato e paladar). Assim, por exemplo, se pretendemos demonstrar a verdade da proposição “o álcool é um líquido inflamável”, basta termos um pedaço de papel e uma caixa de fósforos. Ateando fogo num papel, embebido em álcool, veremos o papel ser consumido em pouco tempo. É claro que é desejável repetir a experiência com outros objetos, para, a partir daí, raciocinando por indução, chegar à certeza. Ou podemos estudar os componentes químicos do álcool, analisando-os, na sua relação com o ambiente externo (p. ex. temperatura ambiente), para verificar seu potencial inflamável. Sabe-se que o álcool compõe-se de hidrogênio, que reage com o oxigênio do ar, formando água. A união dos dois elementos químicos é que alimenta as chamas. A facilidade com que ele faz um objeto pegar fogo se explica pela facilidade com que ele evapora. A evaporação torna a união com o ar mais efetiva.

Voltemos ao diálogo.
Note-se que o ateu tem uma experiência sensorial da doçura da laranja. Ele sabe que a laranja está doce, porque ele a experimenta, a degusta e pode, pelo paladar, sentir sua doçura. A afirmação do cristão de que ela não está doce é facilmente falsificável. Basta que ele ponha à prova esta afirmação, verificando, por si mesmo, a doçura da laranja. O importante é reter que o saber, nesse caso, provém da experiência. Assim, tanto um quanto outro podem saber que a laranja está doce, experimentando-a.
O último turno da fala do cristão é problemático, por várias razões. Deve-se notar, em princípio, o uso do operador argumentativo “então”. Ele não só fecha o raciocínio anterior, como também conduz o interlocutor a assentir na argumentação conclusiva cujo desenvolvimento se inicia. O primeiro grande problema se verifica na construção da frase comparativa, que reproduzo abaixo:

“Assim como você sabe que a laranja é doce, porque [sic.] está sentindo que ela é doce, assim eu sei que Deus existe, pois eu o sinto”.

Creio não ser difícil a um leitor experiente perceber que a proposição “Deus existe” que integra a oração completiva do verbo “saber” (sei que Deus existe) não encerra como pressuposto um fato. Verbos de valor epistêmico como o verbo “saber” tem a função permitir ao falante a pressuposição de que a oração completiva é factual. Em outras palavras, se eu digo “Eu sei que você não foi à escola”, assumo como fato pressuposto o estado-de-coisas “você não foi à escola”. Ora, a proposição “Deus existe” não pode ser provada, não pode ser tomada como fato. Daí a impropriedade no uso de verbo “saber” para exprimir conhecimento sobre a existência de um ser imaterial como Deus. Por outro lado, é, logicamente, aceitável usar o verbo “saber” para expressar o conhecimento sobre a doçura da laranja, que é um ser do mundo material, que se nos impõe à experiência sensível. Se eu digo “Eu sei que essa laranja é doce”, assumo como fato pressuposto o conteúdo “a laranja é doce”.
Notemos como se justifica o conhecimento num e noutro caso. No caso do ateu, ele sabe que a laranja está doce, “porque está sentindo” (está tendo uma experiência sensível da qualidade ‘doçura’). Nesse caso, justifica-se o conhecimento pela experiência sensível (empirismo). Tal não ocorre, quando se justifica do mesmo modo a suposta certeza da existência de Deus, já que não é da mesma natureza a experiência de sentir a doçura da laranja e “sentir” (seja lá qual for o significado do verbo, nesse caso) a Deus. Passamos do plano da experiência sensível para um tipo de experiência psicológica extraordinária, da qual nos fala, com propriedade, Sam Harris (2009). O fato de admitirmos ser ela incomum, em algum sentido, “elevada” não implica haver um objeto transcendente envolvido nela. Em A morte da fé (2009), o filósofo e neurocientista, Sam Harris, dedica um capítulo para tratar da consciência. Lá, ele observa:

“Embora vivamos em geral dentro dos limites impostos pelo nosso uso normal da atenção – nós acordamos, trabalhamos, comemos, assistimos televisão, conversamos com os outros, dormimos, sonhamos – a maioria de nós sabe, mesmo que vagamente, que é possível ter experiências extraordinárias”.
(p. 237)

Mais adiante, reconhece ainda o autor:

“Nenhuma palavra capta a sensatez e a profundidade da possibilidade que devemos considerar agora: que existe uma forma de bem-estar que supera todas as outras que, na verdade, transcende os caprichos da própria experiência”.
(p. 239)

Harris lança mão dos termos “espiritualidade” ou “misticismo” indiferenciadamente, a fim de designar essa forma de experiências extraordinárias da consciência. Se formos buscar compreender a vasta significação do conceito de misticismo ou experiência mística, encontraremos, nessa busca, a ideia de que o místico é aquele que tem uma experiência de pertencimento a um Todo (o Universo, Deus, o Espírito universal, o Vazio absoluto, ou qualquer outra). Não raro, se ouve um místico, dizer que, num instante de êxtase, teve uma experiência de esvaziamento do eu, de desprendimento dos sentidos. Ele se sente como se vivesse fora da temporalidade, para além das quatro dimensões que caracterizam a existência mundana.
Que o cristão de nosso diálogo revele, sinceramente, poder ter uma experimentação de consciência incomum e extasiante e que devemos legitimar essa experiência como uma das inúmeras possibilidades de experiências humanas não redunda que devemos aceitar como incontestável a existência de Deus ou mesmo a possibilidade de experienciar essa existência, como quer o cristão.
É notável como o discurso religioso está impregnado de figuras de linguagem, entre as quais alegorias e metáforas. Notemos o uso que se faz da palavra “presença”, no sintagma “a presença de Deus”. Toda presença envolve uma revelação, envolve a possibilidade de que algo seja encontrado em algum lugar. A presença implica um estar aqui e agora. Os mortos não estão mais presentes entre nós, também a pessoa distante não está presente onde eu me encontro. Se fôssemos tentar analisar os semas da palavra “presença” (semas são os mínimos componentes de significado de uma palavra), certamente não poderíamos deixar de incluir na lista traços semânticos como ‘existência’, ‘concretude’, ‘tempo atual’, ‘animado’. No núcleo de seu sentido, há a referência a seres concretos e animados (pessoas ou animais), imediatamente acessíveis num aqui e agora e, portanto, existentes. Claro é que podemos estender seu uso a fim de que sua semântica abrigue noções abstratas como a de “amor”. Podemos dizer “Sinto a presença do amor nesta casa”.  Concretizamos o amor, conferimos-lhe a qualidade de um ser existente entre outros. Sabemos, contudo, o que queremos dizer com essa frase. Dizemos algo como “as pessoas que vivem nesta casa se amam umas as outras, vivem em harmonia”.
Se é possível falar na presença do amor, da felicidade, da tristeza ou de qualquer que seja a noção abstrata, qual é o problema ao enunciar “a presença de Deus”? O problema é que, ao contrário do que sucede nos casos anteriores, a presença de Deus é tida como uma presença verdadeira de um ser existente no aqui e agora do mundo. Interessante é que Deus “existe” no mundo, embora, ao mesmo tempo, seja transcendente ao mundo (ou seja, é concebido como um ser superior, supranatural e exterior ao próprio universo, cuja existência é inteiramente dependente desse Ser). Mas não basta que se assuma como verdadeira a presença desse ser, é preciso dogmatizá-la e defendê-la como uma verdade incontestável. É preciso cuidar-se detentor de uma “verdade” que deve estar a salvo das suspeitas dos céticos e contestadores.  O problema, a meu ver, é, na verdade, transformar as metáforas em verdades que devem ser impostas ad nauseam.
 Se eu falo na presença de Deus, falo na presença de um ser atravessado pela temporalidade cujo eixo é o presente. Mas, ao mesmo tempo, diz-se que Deus é intemporal, é eterno, vive para além de toda temporalidade. Deus é um ser que existiria fora do tempo, mas, de forma misteriosa, ele consegue se fazer presente, ou seja, existir no tempo. Sempre que nos damos ao trabalho de pensar sobre a linguagem construída para se falar de Deus, somos levados a perceber a construção linguística de um ser que é fantástico (no sentido de “quimérico”, próprio da imaginação). E percebemos mais: percebemos que as formas como se constroem os discursos sobre Deus, as formas como se elaboram os pensamentos sobre Deus entram em conflito lógico-semântico. Como vimos, se Deus é um ser intemporal, ou seja, que escapa ao tempo, que existiria fora do tempo, que é eterno, como poderia fazer-se presente para a existência humana que é, por definição, atravessada pela temporalidade? Não conhecemos outra forma de existir senão no tempo e no espaço. Kant ensinava que tempo e espaço só existem dentro de nós, como condições do conhecimento, como formas puras de nossa sensibilidade (o conceito de sensibilidade em Kant diz respeito à capacidade humana de formarmos representações de objetos, em virtude dos modos como eles nos afetam). Como nós, seres temporais, podemos experienciar um Ser intemporal?
Finalmente, quero acrescentar alguns comentários sobre outro trecho do diálogo, antes de concluir. No último turno de fala do cristão, lê-se:

“... o único modo de você acreditar é se você experimentar e por si mesmo sentir a presença de Deus”.

Já falei do problema envolvido no uso do verbo sentir. Chamo agora a atenção dos meus leitores para o uso do adjetivo “único”.  Quando usamos adjetivos como “único” deixamos ao interlocutor a possibilidade de pressuposição de outro conteúdo, qual seja, ‘não há outro modo de acreditar’.  Veja-se outro exemplo: “A única maneira de você ser feliz é cansando-se com ela”. Admite-se que não há outra maneira de a pessoa ser feliz senão casando-se com a pretendente. Claro está que, para o cristão, não há outro caminho que leve à crença senão o da experiência da presença de Deus. Podemos ou devemos discordar dele? Decerto. Seja lá o que se entende por “experiência de Deus”, creio ser ela, por si só, incapaz de angariar as pessoas para a fé ou a crença em Deus. Se assim pensássemos, seríamos forçados a ignorar a importância de todo o trabalho laborioso de doutrinação empreendido por milênios pela Igreja cristã. Uma pessoa crê em Deus – num Deus do mundo ocidental, que tem raízes na cultura judaico-cristã, num Deus moldado no imaginário hebraico-cristão – porque ela foi exposta a experiências de doutrinação, de catequização que começou, de modo informal, no seio de sua família, formalizando-se em suas experiências como paroquiana na Igreja. É nelas que a consciência religiosa se molda, se engessa. É somente depois de se submeter a longos períodos de ensinamentos da doutrina da Igreja, apoiados, em grande parte, na Bíblia (digo em grande parte, porque, no caso da Igreja Católica, por exemplo, o dogma da Santíssima Trindade não tem respaldo nos ensinamentos dos evangelistas, tendo sido uma criação de Atanásio,  um jovem diácono da igreja de Alexandria, à época, confirmada pelo Concílio de Nicéia em 325 d.C.) que uma pessoa poderá dizer ser possível experimentar a Deus. O  poder experimentar  a Deus é consequência da incessante martelação doutrinária a que se submete, àquela altura, o neófito. Os que se recusam a submeter sua capacidade de autonomia intelectual, sua liberdade de exercício do pensamento crítico às demandas da fé dificilmente creem poder experimentar a presença de Deus, já que colocam a possibilidade da presença de tal ser sob o crivo da razão. Os que se recusam tenderiam a lançar sobre essa suposta presença as luzes intensas dos holofotes racionais, de modo que da presença não restaria senão a consciência da força da imaginação; a presença se dispersaria, deixando para trás apenas a presença do mundo, que, mesmo não sendo o bastante para nos acalentar, é a única presença com que nós temos de nos haver.
Se o leitor chegou até aqui, deve ter-se dado conta de que é necessário esforçar-se por não aceitar de antemão como verdades as manifestações discursivas, não importa a que domínio pertençam. No domínio do discurso religioso, em que prevalece o autoritarismo e o dogmatismo, é norma que as “verdades” sejam impostas, sejam disseminadas, sem que seja permitido contestá-las. Expressões do tipo “Deus é a luz do mundo” são esteticamente apreciáveis, se fossem parte de um gênero literário. O problema é que se pretende que essa proposição encerre uma verdade, um fato, sobre o qual não se pode sequer lançar uma sombra de dúvida.
No início deste texto, sugeri que a conclusão atribuída ao ateu – “Então, Deus não existe” – como resposta à impossibilidade de o cristão provar a existência de Deus era imprópria, porquanto, logicamente, do fato de eu não conseguir provar que algo existe não posso concluir pela sua inexistência. Do fato de que nunca se tenha registrado qualquer sinal de vida inteligente fora da Terra (por exemplo, de seres conscientes e complexos como nós) não implica a impossibilidade de esses seres existirem, já que vasto é o Universo e vasta a nossa ignorância dele (a nossa via láctea tem aproximadamente 300 bilhões de estrelas, a metade, provavelmente, inclui planetas). É certo, porém, que cientistas como Marcelo Gleiser, embora admitam a possibilidade da existência de vida inteligente fora da Terra, acreditam que é muito improvável que tenhamos algum contato com ela, dada a vastidão do universo. (o leitor pode assistir a este vídeo em que Marcelo Gleiser nos fala sobre a possibilidade de existir vida extraterrestre (http://youtu.be/dQj0UtI0M5s).
Está claro que, quando se trata da impossibilidade de provar a existência de Deus ou de qualquer forma de divindade, não devemos concluir da ausência de prova a inexistência. Isso é um erro lógico. Mas podemos falar em probabilidade, já que a experiência que podemos ter das divindades são mediadas pela linguagem. Só temos contato com representações linguísticas de Deus. Deus não fala, não se mostra; são homens que falam a respeito de Deus, que definem Deus, que supõem que, ao falar dele e defini-lo, tornam-no existente. Portanto, nossa experiência de Deus é mera experiência com as palavras a respeito de Deus, com as representações discursivas sobre Deus, que se torna, assim, objeto de discurso. Feuerbach tinha razão ao nos ensinar que a consciência de Deus é autoconsciência humana. Ao tomar consciência de Deus, o homem toma consciência de sua própria essência, ou seja, de sua própria consciência. A linguagem de Deus é a linguagem do homem.
Se admitirmos que tudo que sabemos de Deus nos chega através do que disseram, dizem, escreveram e escrevem seres humanos que viveram e vivem em determinada comunidade cultural, numa determinada época, num dado contexto sócio-histórico, político e ideológico; se, enfim, admitirmos que é pelas boca e mãos humanas que nos é acessível o que sabemos sobre Deus, podemos pôr em confronto tais representações de Deus com as ocorrências do mundo, com o modo como o mundo funciona, com os saberes que temos a respeito do mundo, para, daí, nos assegurar da improbabilidade da existência desse ser. É esse o desafio intelectual a que se esquivam as pessoas religiosas em geral. Elas se negam a pôr em confronto aquilo que sabem a respeito de Deus pelos anos em que se submeteram a alguma forma de doutrinação com aquilo que sabem a respeito de fatos sobre o mundo. O medo de pôr suas crenças à prova é que explica   por que muitas pessoas podem assistir pela televisão a uma cidade devastada por um furacão, com milhares de desabrigados e mortos e, embora assombradas com a tragédia, possam, à noite, orar a Deus pelas vítimas ou para agradecer por mais um dia de vida, pela saúde, ou pelo o que quer que seja. Na oração, elas experimentam a onipresença de seu ego e a necessidade de mascarar sua indiferença ao sofrimento em escala mundial, um sofrimento cuja verdade salta aos seus olhos, desde que acordam e as acompanha até a hora de dormir. Esse sofrimento, que se manifesta de modos vários, neste planeta de (sem) Deus, não é sequer cogitado como evidência para pôr a nu a mentira da qual sua crença é um reflexo. Elas não podem, como seres humanos, evitar a inconsistência entre a observação das ocorrências do sofrimento no mundo e sua crença na existência de um Ser superior, providente, amoroso e bom. Sua razão as ameaça no silêncio de sua negação a abrir os olhos do espírito e, como forma de defesa, elas preferem evitar estar a sós com seus pensamentos. Se confrontada a suposta presença de Deus com a verdadeira presença do sofrimento no mundo e a hostilidade da natureza à vida dos seres que dela provieram e nela vivem, pouco ou nada sobrará daquela presença. Onde o silêncio da reflexão predomina, a presença de Deus vai fazendo seu trabalho, confinando bilhões de seres humanos num sentimento de dependência infantil insuperável.