sexta-feira, 5 de outubro de 2012

"Textos são formas de cognição social" (Ingedore Koch)


                          Revisitando Sobre moluscos e homens
                                               
                                                            Parte 1
                                    
                                                     O estudo da paragrafação


  

Você acorda de manhã e diz:
- Mãe, estou com fome!

Você enuncia uma sequência de vocábulos que estão organizados segundo regras das quais você não está consciente, mas que você domina como parte de seu conhecimento linguístico intuitivo, resultado das experiências de aquisição de sua língua materna entre os 3 e 7 anos de vida.
Você também sabe que, ao proferir aquele enunciado, provocará, tendo em conta um contexto adequado, uma reação no seu interlocutor. Se sua mãe está na cozinha, é provável que ela, após ouvir o seu pedido (porque se trata de um pedido, produzido de modo indireto), convide você a sentar-se à mesa. Ela poderia dizer algo como:

- Está na mesa. Tem pão quentinho e suco de laranja.

Ao produzir esse enunciado, sua mãe realiza um ato de convidar – ela convida você a se alimentar e saciar sua fome. Produzindo-o, ela causa uma reação em você. Você se sentará à mesa sem hesitar.
Esse exemplo patenteia o fato de que “todo dizer é um fazer”, de que a língua é uma forma de ação social, é uma atividade intersubjetiva, um lugar de interação onde os participantes, produzindo enunciados, atuam uns sobre os outros e se constituem reciprocamente, não sem o reconhecimento de regras sociointeracionais, não sem a mobilização de estratégias variadas, não sem a manutenção de um contrato comunicativo, etc.. Todo dizer produz um efeito verbal ou não-verbal no outro. E você, que é um ser de linguagem, que é um sujeito social participante de uma comunidade cultural e que vive imerso em sua língua materna o tempo todo, “sabe”, por exemplo, que, se, por ventura, ofender alguém, poderá atrair para si a agressividade dessa pessoa ofendida. Ela pode desferir-lhe um tapa. A ofensa realiza-se, na maioria das vezes, como um ato linguístico. Ofendemos usando a língua. Você sabe disso, mas, provavelmente, nunca refletiu seriamente sobre isso. Porque está imerso na linguagem. Toda reflexão sobre um objeto demanda um distanciamento do sujeito em relação a este objeto. A reflexão só é possível quando nos permitimos olhar a distância o objeto de nosso interesse intelectual.
Nessa concepção de língua/ linguagem como forma de ação social, cada enunciado produzido constitui um ato de fala. Assim, atos de fala são formas de ação social que se realizam na língua e pelo uso da língua. Não vou descer a pormenores, porque o tema deste texto é outro, muito embora seja a concepção de língua aqui apresentada que orientará as reflexões que, doravante, levarei a efeito.
Acreditando ter sido insuficiente a leitura que propus sobre o texto de Rubem Alves – Sobre moluscos e homens – volto a considerá-lo, com vistas a oferecer uma análise mais acurada de aspectos linguístico-discursivos, cuja compreensão é fundamental para o processamento textual ou construção de sentido para o texto. A análise considerará fenômenos discursivos que desbordam os limites do texto, tais como a polifonia e a intertextualidade. O método de que me valerei consiste em ir dos aspectos gerais aos particulares. Cada qual desses aspectos será considerado em seções distintas, a fim de que a atenção do leitor não se dissipe no decorrer da leitura. Espero assim favorecer a concentração da atenção do leitor em cada aspecto considerado. Com isso, não suponho esgotar os fenômenos textuais-discursivos que podem ser analisados no texto. Muito haverá ainda por considerar, evidentemente, mas não tenho a pretensão de dar conta da totalidade discursiva do objeto linguístico em análise.
São, basicamente, dois os meus propósitos:

propósito  patentear ao leitor que toda interpretação está calcada sobre a superfície textual, de modo que a construção do sentido é dependente, em parte, do reconhecimento das pistas textuais fornecidas pelo autor;

propósito tornar claros ao leitor os mecanismos linguístico-discursivos envolvidos no processo de produção/ interpretação textual.

Abaixo, segue o texto de Rubem Alves com as unidades linguísticas envolvidas nos fenômenos, de cuja análise me ocuparei, em negrito. Cabe salientar, contudo, que, aqui, só me ocuparei de um fenômeno linguístico apenas: a estruturação do parágrafo.

Sobre moluscos e homens
Rubem Alves

Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.
O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os ditos “programas” escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais que estão acontecendo no momento ( insisto nessa expressão “no momento” – a vida só acontece “no momento” ) da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas. Explicaria também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa recusa em aprender. Explicaria sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar... Recordo a denúncia de Bruno Bettelheim contra a escola: “Fui forçado (!) a estudar o que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender – e aprender à sua maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um conhecimento morto. Somente os necrófilos se excitam diante de cadáveres.
Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca. Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o util e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais ( inclusive os vestibulares ) que se fazem para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito o seu trabalho. O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor de português se saia bem em matemática, física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência que se faz sobre os estudantes?
Ah! Piaget! Que fizeram com o seu saber? Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores voltem a aprender com os moluscos...


1. Paragrafação e tópico discursivo        

Como eu disse anteriormente, começarei por considerar aspectos mais gerais. Em face de um texto escrito, o plano mais imediatamente acessível ao leitor é a organização do texto em blocos de sentido, ou seja, em parágrafos. Para os meus propósitos aqui, estou considerando o texto como a unidade de comunicação hierarquicamente superior á frase. Essa delimitação conceitual é necessária porque um único enunciado é um texto, desde que, num contexto determinado, cumpra uma função comunicativa. Esse enunciado pode, inclusive, ser constituído de uma única palavra (ex. fogo! – produzido por alguém que vê um prédio em chamas, alertando pessoas sobre o perigo ou sobre a necessidade de acionar as autoridades competentes). Escusa dizer que o texto está sendo considerado apenas na modalidade escrita, muito embora nós falemos por meio de textos.
Textos escritos longos são, via de regra, organizados em parágrafos (com exceção do gênero textual códice, que não apresenta espaçamento entre um bloco de sentido e outro). Em geral, os parágrafos compõem-se de sucessivos encadeamentos de frases, muito embora possa aparecer, eventualmente, uma única frase como parágrafo.
Importa-nos, contudo, a definição do parágrafo-padrão (Garcia, 2006: 219). O parágrafo-padrão é um todo ou um bloco dotado de sentido, constituído por encadeamentos lógicos de frases, através dos quais se desenvolvem várias ideias, uma das quais constitui a ideia central, à qual se subordinam outras. Essas outras ideias se dizem secundárias e estão associadas à ideia central de modo lógico e coerente.
A importância do parágrafo deve ser considerada a partir de duas perspectivas: a do produtor do texto e do leitor. Do ponto de vista do produtor, a divisão em parágrafos permite ao produtor distribuir suas ideias, estruturando-as de acordo com seus propósitos, segundo relações lógico-semânticas e discursivas estabelecidas à medida que faz avançar o texto. O parágrafo, assim, constitui um todo coeso, no qual a uma ideia principal agrega-se outras ideias secundárias. O parágrafo reflete a estruturação sintático-semântica e discursiva do texto. Do ponto de vista do leitor, o parágrafo facilita a leitura, já que permite ao leitor acompanhar o desenvolvimento do texto em diferentes etapas, conforme previsto pelo planejamento comunicativo (entenda-se interacional-argumentativo) do produtor.
Até aqui disse que todo parágrafo organiza-se em torno de uma ideia central e que a essa ideia se ligam outras ideias de status secundário. Avancemos, então.


1.2. Tópico Discursivo

O tópico discursivo é o assunto principal do texto. É o tema ao qual se prendem as informações do texto. É desejável que ele apareça no limiar do primeiro parágrafo, sendo, com frequência, sinalizado pelo título. Falamos em tópico sentencial (ou frasal) para designar o elemento da frase sobre o qual se informa alguma coisa. Trata-se do elemento que funciona como ponto de partida da informação. O tópico é uma função comunicativa e não sintática; por isso nem sempre coincidirá com o sujeito da frase. O sujeito é uma função sintática. Assim, se por um lado, em (a) sujeito e tópico coincidem, em (b) não há coincidência entre os dois:

(a) Ana enterrou o passarinho no quintal.
(b) o passarinho Ana enterrou no quintal.

Em (a), o constituinte “Ana” é, do ponto de vista sintático, o sujeito da frase (o termo com o qual o verbo concorda); do ponto de vista comunicativo, é o tópico frasal, ou seja, o elemento sobre o qual se informa alguma coisa. Em (b), sucede diferente. O constituinte “o passarinho” é o objeto direto do verbo “enterrar”, que foi deslocado para a posição de tópico frasal.
Disso se depreende que a correlação entre “ser tópico” e “ocupar a primeira posição”. Segundo Liberato et.alii. (2007: 57),

“Essa correlação parece natural: sendo o tópico o ponto de partida cognitivo, isto é, a entidade que o falante tem em mente e sobre a qual dirá alguma coisa, ele deve coincidir com o ponto de partida comunicativo”.


Topicalizar é, portanto, deslocar um constituinte oracional de sua posição canônica para a posição inicial, colocando-o em foco, ou seja, dando-lhe o status de elemento sobre o qual recai a informação da frase.
Voltemos à questão do tópico discursivo.

Devemos entender, portanto, o tópico discursivo como o tema geral ou principal do texto como um todo. Disso não se segue que esse tema não nos aparece subdividido. Ou seja, além do tópico discursivo, há subtópicos. Compreendamos a complexidade da estruturação do parágrafo em tópicos.
Postula-se que todo texto apresenta um tópico discursivo, que corresponde ao assunto do texto. Esse assunto ou tópico discursivo se divide em subtópicos que constituem tópicos de unidades menores – os parágrafos. Cada um dos subtópicos do parágrafo pode ser dividido em tópicos ainda menores. Assim, a arquitetura em tópicos pode ser ilustrada como se segue:
                                                  
                                                    TEXTO

                                              Tópico discursivo

1º parágrafo                                    subtópico 1
                                                      { tópico a
                                                      { tópico b
                                                       { tópico c

Ao contrário do que sugere a ilustração, cada parágrafo pode apresentar mais de um subtópico relacionado ao tópico discursivo. Esses subtópicos se dividem em tópicos menores (passarei a chamá-los de segmentos tópicos, quando da análise dos dados). A importância da compreensão da organização do parágrafo em tópicos pode ser compreendida nas seguintes palavras de Liberato et.alii:

“(...) a compreensão da estrutura de tópicos (...) é um componente essencial da compreensão de um texto. Pode-se dizer que um leitor que não apreendeu o tópico de um texto simplesmente não entendeu o texto. Ele não consegue, por exemplo, responder a pergunta “Sobre o que é esse texto?”.

(p. 56)


O exercício de análise tópica dos parágrafos, para o reconhecimento da estruturação do tema, é profícuo não só aos estudantes-leitores menos experientes, mas também àqueles para os quais ler é uma atividade corriqueira. Nos dois casos, busca-se desenvolver habilidades de reconhecimento do tema do texto, bem como sensibilizá-los para o modo como o escritor esquadrinhou a complexidade do tema ao longo do texto. Ora, um tema complexo demanda um tratamento por estágios, cada qual destinado à consideração de um aspecto do fenômeno abordado. Daí a importância de, primeiramente, delimitar o tema, de fazer um recorte sobre seu domínio de referência, para, posteriormente, abordá-lo discriminando e analisando os diversos aspectos nele implicados.
O leitor, quiçá, tenha percebido que o texto de Rubem Alves encerra um primeiro parágrafo bastante extenso. Talvez, o leitor tenha ficado com a sensação de que seria necessário fazer vários cortes nesse parágrafo. Talvez, devêssemos dividi-lo em dois ou mais. Decerto, podemos dividi-lo, como se verá. De que critérios nos valemos para determinar em que ponto ou momento é necessário abrir um novo parágrafo? Antes de apresentar os três fatores que correspondem às expectativas do leitor no tocante a segmentação do texto em parágrafos, vou trazer à baila o seguinte trecho de Rehfeld (1984. apud. Liberato et.alii. 2007: 68):

“[...] a paragrafação constitui um dos aspectos importantes da estruturação dos textos e, nesse sentido, relaciona-se com o problema da compreensão em leitura: o parágrafo pode servir de pista para a montagem da “paisagem mental” que o leitor constrói do texto. Um leitor pode desenvolver estratégias que o levem a esperar nos limites de parágrafo a ocorrência de certas transições de traços [...] relevantes para a compreensão do texto”.
(p. 1)


Experimentos demonstram que leitores experientes, em face de um texto sem paragrafação, fazem indicação dos pontos em que esperavam haver divisão em parágrafos. Rehfeld conclui que “o parágrafo é uma unidade psicologicamente real” (Liberato et.alii. p. 69).
Há, portanto, três fatores que condicionam a divisão de um texto em parágrafos:

1º fator: mudança de parâmetros;
2º grau de detalhamento das informações
3º tamanho do parágrafo.

O primeiro fator – mudança de parâmetros – consiste na marcação de um parágrafo em virtude de mudanças em traços semânticos, tais como personagem, tempo e lugar na narrativa. Uma quebra de continuidade da narrativa, tendo como eixo um desses parâmetros, implicaria a marcação de novo parágrafo. Assim, um novo personagem que entra em cena teria o potencial de sinalizar a abertura de um novo parágrafo. O mesmo se aplica à mudança de tempo e lugar na narrativa.
O segundo fator – grau de detalhamento das informações – é, particularmente, relevante nos textos argumentativos. Por razões didáticas, o escritor pode distribuir em parágrafos distintos informações detalhadas sobre um dado tópico. Aliás, é o que eu faço aqui. Apresentei os tipos de fatores que condicionam a paragrafação e estou definindo cada qual em parágrafos distintos. Por outro lado, ele pode reunir pormenores diretamente relacionados ao tópico discursivo num mesmo parágrafo. Liberato (2007) observa que ainda não há estudos para determinar a validade das hipóteses levantadas nesse domínio. Pelo menos, àquela altura. Desconheço estudos que desse fenômeno se ocupem. Isso não nos impede de exercitar nossa capacidade de segmentação do texto em parágrafos, um exercício que levaremos a efeito logo.
Finalmente, o terceiro fator – tamanho do parágrafo – relaciona-se à tentativa de o produtor evitar parágrafos excessivamente longos (embora não tenha sido o caso de Rubem Alves). Do mesmo modo, ele tende a evitar parágrafos muito curtos (constituídos de uma ou duas frases apenas). O parágrafo não sendo nem muito extenso nem muito curto deve exibir uma unidade de parâmetros, deve articular adequadamente subtópicos e tópicos hierarquicamente inferiores, de sorte que fiquem coesos e facilitem a construção da coerência, ao menos, local do texto.

1.3. A estruturação em tópicos do primeiro parágrafo do texto de Rubem Alves.

Empreendamos a análise do primeiro parágrafo apenas do texto de Rubem Alves, a fim de compreender sua organização tópica. Estou particularmente interessado na possibilidade de depreensão do tópico discursivo, cujo aparecimento é esperado no primeiro parágrafo.
Precisei reler, com atenção, esse parágrafo, buscando aplicar, em minha análise, os conceitos teóricos que vim apresentando até aqui. De imediato, precisei lançar mão de outros dois conceitos ligados à organização temática do texto, a fim de apreender adequadamente como os subtópicos e seus tópicos estão relacionados. Precisei, então, lançar mão dos conceitos de tema e rema, cuja apreensão se dá no nível da frase. Desde já, informo o leitor de que tema é o equivalente nocional de tópico frasal. Rema, a seu turno, é o que sobra na frase após a identificação do tema. Portanto, o rema é a parte da frase que encerra a informação propriamente dita. Na frase (a), anteriormente citada, “Ana” é o tema; e “enterrou o passarinho no quintal”, o rema. O meu objetivo foi mapear a progressão temática do parágrafo, ou seja, a recorrência dos temas ao longo do texto. Evidentemente, há progressão com tema constante, caso em que o tema, uma vez introduzido, é mantido em enunciados sucessivos do texto. Há progressão linear, caso em que o rema de um enunciado anterior torna-se tema do enunciado seguinte. Há progressão com divisão de tema, caso em que o tema é subdividido em vários temas subsequentes. E, finalmente, há progressão com rema subdividido, caso em que o rema se fragmenta, de modo que cada uma de suas partes torna-se tema de enunciados posteriores. Vejam-se os exemplos abaixo, cada qual representativo de um tipo de progressão  tema-rema:


(c) O cachorro é muito estimado por muitas pessoas. Ele é considerado amigo e companheiro para todas as horas. Sempre disposto a agradar ao seu dono, não economiza na manifestação de alegria. (progressão com tema constante – cachorro).

(d) João beijou Ana. Ana correu para contar para Luíza. Luíza, sabendo do caso, telefonou para Júlia. Júlia espalhou a notícia para toda a vizinhança. O namoro não era mais segredo. (progressão linear – Ana (rema) - Ana (tema) - Luíza (rema) -  Luíza (tema) – Júlia (rema) – Júlia (tema))

(e) A cultura pode ser subdividida em dois tipos: cultura subjetiva e cultura objetiva. A cultura subjetiva encerra o conjunto de conhecimentos, valores, crenças adquiridos pelos membros de uma sociedade em virtude de compartilharem um mesmo código cultural. A cultura objetiva é aquela que se manifesta em forma de artes, música, cinema, teatro, livros, etc.  (progressão com divisão de tema – cultura: cultura subjetiva e cultura objetiva)

(f) Hoje, fui ao shopping e comprei muita coisa pra vestir. Os sapatos ficaram ótimos. Já as calças não serviram. (progressão com rema subdividido – muita coisa: sapatos e calças).

Além dos conceitos de tema-rema, precisei recorrer a uma forma mais clara de abordar a organização dos tópicos. Koch (2006) nos fornece uma abordagem da estruturação dos tópicos mais adequada e clara. Ela mantém a hierarquização dos tópicos. Assume como unidade de nível mais alto o supertópico, que chamarei tópico discursivo. Mantenho a noção de subtópico, nível imediatamente mais baixo em relação ao tópico discursivo, mas incluo o nível dos segmentos tópicos, que são constituintes do subtópico e, portanto, unidades de nível hierárquico inferior ao subtópico. Diversos subtópicos constituirão um quadro tópico.
Esquematicamente, temos o seguinte:

                                       Tópico discursivo

                                              Quadro tópico
     
              Subtópico                    subtópico                    subtópico

           Segmento tópico         segmento tópico           segmento tópico

Vou propor um modo de segmentar o extenso parágrafo primeiro do texto, sem pretender que essa segmentação seja a forma de segmentação (mais) correta. O leitor poderá divergir de mim, nesse tocante, operando outra segmentação. Hesitei, algumas vezes, nesse processo de marcação de parágrafos. Atribuo ao autor um pouco de responsabilidade sobre minha dificuldade inicial, já que ele vai reunindo temas sucessivamente, sem se preocupar com a estruturação em parágrafos dos subtópicos e tópicos. 
Apresento, abaixo, o primeiro parágrafo do texto, com os temas e remas destacados. Os temas aparecem em negrito e os remas sublinhados. É na base do reconhecimento dos temas e remas que proponho determinarmos o tópico discursivo, os quadros tópicos, subtópicos e segmentos tópicos.


Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, [eles] seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. [Eu] Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, [Eu] . E foi imaginando que [Eu] pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse.  [Piaget] Continuou interessado nos moluscos. Só que [Piaget] passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, [Eu] digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E [Eu] digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.

Apesar de eu ter sugerido que o tópico discursivo pode ser depreendido no limiar do primeiro parágrafo, não sucede assim no texto de Rubem Alves. O tópico discursivo, ou seja, o tema do texto não é imediatamente apreendido. O fato de o autor começar seu texto falando do interesse de Piaget pelo comportamento dos moluscos nos mostra que não há interesse de facilitar o caminho do leitor na busca por determinar o Tema (com maiúscula para diferenciá-lo do tema, elemento da frase) do texto. O autor incorpora um pouco de erudição em seu texto, ao lembrar o interesse de Piaget por moluscos. Pode tratar-se de uma informação nova para o leitor, que, talvez, ignorasse o fato de Piaget ter-se ocupado com o estudo dos moluscos. Definitivamente, não é Piaget o tópico discursivo. Mas é tema em vários momentos no texto.
O leitor deve ter observado que há mudanças constantes de tema. Inicia-se com “Piaget”, depois insere-se “moluscos”, que é retomado (eles). Posteriormente, introduz-se “inteligência”, relacionando-a a moluscos e, depois, uma quebra, com a introdução de “Eu ignoro”. Neste trecho, o autor retoma Piaget. Essas rupturas servem-nos de caminhos para que operemos a divisão desse parágrafo em cinco. Proponho que esse parágrafo seja dividido em cinco partes, que darão origem a cinco parágrafos. Vejamos:

1º parágrafo
Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, [eles] seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores.

2º parágrafo
[Eu] Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, [Eu]. E foi imaginando que [Eu] pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse[Piaget] Continuou interessado nos moluscos. Só que [Piaget] passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”.

3º parágrafo
Se é que você não sabe, [Eu] digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta.

4º parágrafo
A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E [Eu] digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento.

5º parágrafo
Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.

Essa divisão tem a vantagem de marcar as rupturas temáticas. A determinação da estrutura tópica de cada um dos parágrafos será ilustrada como se segue:
                                             

                                                1º parágrafo
                                               
                                                  Subtópico 1
                                         O interesse de Piaget por molusco

                                                     Subtópico 2
                                                        Moluscos
      Segmentos tópicos – a condição de molusco; a inteligência dos moluscos

                                                     
                                                   2º parágrafo

                                                            Subtópico
                                        O interesse de Piaget pelo estudo
                                             do comportamento humano

Segmentos tópicos – a ignorância do autor sobre detalhes da biografia de Piaget;
a sugestão do autor sobre a razão por que Piaget abandonou seu interesse pelos moluscos

                                                     
                                                      3º parágrafo
                                                       
                                                        Subtópico 1
                                                    Condição humana
Segmento tópico - inadequação de nossos corpos à luta pela sobrevivência
                                                       
                                                       Subtópico 2
                                                 Condição dos animais
  Segmento tópico  - a suficiência do corpo dos animais; a adequação do corpo dos animais à luta pela sobrevivência

                                                       4º parágrafo
                                                       
                                                       Subtópico
                                        O legado da natureza ao homem
       Segmentos tópicos – a necessidade de pensar; surgimento do pensamento


                                                     5º parágrafo
                                                    
                                                      Subtópico 1
                                             A conclusão de Piaget
                       Segmento tópico – a finalidade do conhecimento
                                                    
                                                    Subtópico 2
                                      O desenvolvimento do pensamento
                    Segmento tópico – a finalidade do pensamento
                                               

Falta ainda inserir nessa análise da configuração dos subtópicos e segmentos tópicos dos parágrafos a noção de quadro tópico. Como articulá-la à análise? A inserção dessa noção não é obrigatória. Ela só se demonstra necessária, particularmente na interação face-a-face, quando se verifica uma grande quantidade de subtópicos numa prática discursiva. Na interação face-a-face, isso é muito comum.  Numa mesma conversa, podemos falar sobre vários assuntos, cada qual deles constituiria um subtópico. Um quadro tópico, por definição, deve abranger um conjunto de subtópicos. Sua aplicação na análise que empreendi não é necessária, ainda que possível; mas apenas nos casos em que se verificam dois subtópicos.
Ainda não conseguimos determinar o tópico discursivo, ou seja, o assunto do texto. Após o percurso analítico empreendido aqui sobre a configuração tópica dos parágrafos, como determinar o tópico discursivo? Vimos que ele não figura explicitamente em nenhum dos parágrafos. O título não dá indicação alguma sobre o Tema do texto. Claro é que moluscos e seres humanos, enquanto seres naturais, vão constituir subtópicos do Tema, mas não são propriamente o Tema.  Quando prosseguimos na leitura, percebemos que o autor se preocupa com uma questão recorrente, a saber, a do conhecimento. Mais precisamente, com o modo como nós, seres humanos, adquirimos ou construímos conhecimento. Seu olhar sobre a questão é pedagógico, pois que ele está interessado também em discutir o modo como, tradicionalmente, as autoridades e profissionais envolvidos na Educação avaliam o conhecimento dos estudantes.
Creio ser o tema deste texto – seu tópico discursivo – a construção do conhecimento como resposta aos desafios da vida. Note-se que o tema não se confunde com a tese do autor. O autor busca defender seu ponto de vista (tese) sobre um tema. Ele produziu seu texto para enfocar o problema da construção do conhecimento que seja útil à vida dos seres humanos e esforçou-se por nos mostrar que essa construção, essa elaboração depende da excitação do pensamento. Assim, os homens, pelo pensamento, produzem conhecimentos para responder às suas necessidades de sobrevivência. O autor, então, se preocupa em defender a tese de que a prática pedagógica, na escola, deve favorecer a construção pelo estudante do conhecimento que seja útil à vida, que responda aos desafios que ela lhe coloca.
A dificuldade de determinar o tópico discursivo poderia explicar a provável diversidade de respostas dos alunos quando lhes perguntássemos qual é o tema do texto. Não deveríamos, nós professores, ficar surpresos se os alunos divergissem quando tentassem explicitar o assunto do texto. Alguns poderiam dizer que o texto trata do interesse de Piaget pelo estudo dos moluscos; outros que o texto enfoca o interesse de Piaget pelos homens; outros mais poderiam dizer que trata das dificuldades de sobrevivência humana; outros ainda que trata da natureza ou dos animais, etc. Eles, certamente, não estariam errados, porque, afinal, o texto realmente aborda todos esses temas. É como se os estudantes tivessem oferecidos apenas os pedaços de vidro que compõem o vitral, que é o tópico discursivo ou assunto do texto.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

"Deus é tão-somente objeto de discurso"




           
                        Desembaraçando a lógica da fé      

Já tive a oportunidade de comentar este diálogo quando deparei com ele pela primeira vez no facebook. Mas eu não pude dispensar sobre ele um exame detido. Pretendo fazê-lo agora. Uma leitura atenta mostra-nos uma série de inconsistências lógico-semânticas e argumentativas.
Assumo o pressuposto de que todo ato de linguagem é, essencialmente, argumentativo. E este diálogo de autoria anônima, que circula naquela rede social, foi produzido com o propósito de fazer apologia à fé cristã. O seu autor, recorrendo a certas sofisticações argumentativas (como o recurso a analogias e ilustrações), tentará mostrar que Deus existe pelo simples fato de o cristão poder senti-lo. O autor tentará nos convencer de que se pode provar a existência de Deus pelo simples fato de o sentirmos.
Comecemos, pois, a desembaraçar os liames argumentativos, a fim de que notemos as fragilidades do raciocínio.
O ateu é categórico e inicia asseverando a inexistência de Deus (Eu digo [que Deus não existe]), ao que o cristão responde asseverando o contrário (Eu digo [que Deus existe]). Produz-se, então, o conflito.. É interessante notar que a participação do ateu é, no entanto, discreta; ele foi reduzido a mero coadjuvante. A ele é atribuído uma conclusão logicamente inaceitável (“Então, Deus não existe”), tendo em conta a resposta do cristão, após ser instando a provar a existência de Deus. Nas duas últimas contribuições do ateu, ele se limita apenas a responder: à sugestão de uma imagem, através da qual ele é levado a imaginar uma situação comum da experiência humana (a de saborear uma laranja), ele responde “sim” (ou seja, “compreendo, prossiga...”); ao que faria caso o cristão negasse uma evidência, ou seja, a de que a laranja está doce (nesse caso, o ateu diz que sugeriria ao cristão que experimentasse a laranja para certificar-se de que ela está doce).
Vê-se que o ateu não atua argumentativamente. Apenas o cristão ocupa a posição de assenhorear a argumentação. Prossigamos...
O ateu solicita a prova. Duas palavrinhas são, particularmente, importantes para que compreendamos como a tentativa de sobrepujar a descrença do ateu é falha: “prova” e “experimentar” (que evoca sua derivada “experiência”). Vamos refletir um pouco sobre o significado científico-filosófico destas três palavras “prova”, “experimentar” e “experiência”.
O cristão nega que possa provar a existência de Deus. Mas o que significa provar, nesse caso? Ou melhor, o que é prova, num sentido epistemológico? Vamos distinguir dois domínios semânticos nos quais podemos situar o conceito de ‘prova’. O primeiro domínio é o lógico-argumentativo. Aí a prova é a demonstração da validade de uma proposição. Ela demanda o desenvolvimento de uma argumentação que nos leve a reconhecer ou aceitar a verdade de uma proposição. O segundo domínio é o experimental. Aí prova-se quando uma hipótese se demonstra verdadeira pela observação dos fatos. Nesse caso, testamos uma hipótese fazendo experimentos; se os resultados confirmarem a verdade da hipótese, diremos que dispomos de uma prova. Se alguém duvida da verdade da proposição “A água ferve quando atinge 100 graus de temperatura”, pode-se provar medindo-se a temperatura da água (estou ignorando variáveis como estar acima do nível do mar). Creio que tenha ficado claro que, no segundo sentido, prova se prende ao domínio da experiência e da observação (empirismo). Para provar a validade de minhas crenças sobre estados-de-coisas do mundo, faço experimentos, testo hipóteses, vou até a realidade para, na relação com ela, buscar as respostas, as provas.
Abro um parêntese para falar, com brevidade, de outro conceito importante: o da evidência. Temos muitas crenças, em nossa vida cotidiana, que não se apóiam em evidências, ou se sustentam em evidências insuficientes. Uma evidência é a revelação da realidade. A verdade resulta da evidência, ou seja, do desencultamento da realidade. A evidência é o critério para a verdade. Uma coisa será verdadeira se tivermos acesso a evidências que lhes garanta essa qualidade. Enquanto as evidências nos levam à certeza ou à verdade, os indícios só nos levam a inferir uma certeza relativa, porque exprimem apenas possibilidade ou probabilidade.
Que dizer da experiência? O que significa dizer que alguém tem experiência de alguma coisa? Significa que ela tem um conhecimento espontâneo, vivido, em virtude de suas inúmeras relações com o mundo e com os outros. Ter experiência envolve um relacionamento de um sujeito cognoscente com um mundo e com outros sujeitos. No domínio da ciência, a experiência é uma forma de ação, através da qual se observa ou se experimenta a fim de, ou elaborar hipóteses, ou de corroborá-las. Partindo de determinadas condições, busca-se, na experiência, conhecer a natureza de um fenômeno. O fenômeno é aquilo que se mostra, que se dá aos sentidos (visão, audição, olfato, tato e paladar). Assim, por exemplo, se pretendemos demonstrar a verdade da proposição “o álcool é um líquido inflamável”, basta termos um pedaço de papel e uma caixa de fósforos. Ateando fogo num papel, embebido em álcool, veremos o papel ser consumido em pouco tempo. É claro que é desejável repetir a experiência com outros objetos, para, a partir daí, raciocinando por indução, chegar à certeza. Ou podemos estudar os componentes químicos do álcool, analisando-os, na sua relação com o ambiente externo (p. ex. temperatura ambiente), para verificar seu potencial inflamável. Sabe-se que o álcool compõe-se de hidrogênio, que reage com o oxigênio do ar, formando água. A união dos dois elementos químicos é que alimenta as chamas. A facilidade com que ele faz um objeto pegar fogo se explica pela facilidade com que ele evapora. A evaporação torna a união com o ar mais efetiva.

Voltemos ao diálogo.
Note-se que o ateu tem uma experiência sensorial da doçura da laranja. Ele sabe que a laranja está doce, porque ele a experimenta, a degusta e pode, pelo paladar, sentir sua doçura. A afirmação do cristão de que ela não está doce é facilmente falsificável. Basta que ele ponha à prova esta afirmação, verificando, por si mesmo, a doçura da laranja. O importante é reter que o saber, nesse caso, provém da experiência. Assim, tanto um quanto outro podem saber que a laranja está doce, experimentando-a.
O último turno da fala do cristão é problemático, por várias razões. Deve-se notar, em princípio, o uso do operador argumentativo “então”. Ele não só fecha o raciocínio anterior, como também conduz o interlocutor a assentir na argumentação conclusiva cujo desenvolvimento se inicia. O primeiro grande problema se verifica na construção da frase comparativa, que reproduzo abaixo:

“Assim como você sabe que a laranja é doce, porque [sic.] está sentindo que ela é doce, assim eu sei que Deus existe, pois eu o sinto”.

Creio não ser difícil a um leitor experiente perceber que a proposição “Deus existe” que integra a oração completiva do verbo “saber” (sei que Deus existe) não encerra como pressuposto um fato. Verbos de valor epistêmico como o verbo “saber” tem a função permitir ao falante a pressuposição de que a oração completiva é factual. Em outras palavras, se eu digo “Eu sei que você não foi à escola”, assumo como fato pressuposto o estado-de-coisas “você não foi à escola”. Ora, a proposição “Deus existe” não pode ser provada, não pode ser tomada como fato. Daí a impropriedade no uso de verbo “saber” para exprimir conhecimento sobre a existência de um ser imaterial como Deus. Por outro lado, é, logicamente, aceitável usar o verbo “saber” para expressar o conhecimento sobre a doçura da laranja, que é um ser do mundo material, que se nos impõe à experiência sensível. Se eu digo “Eu sei que essa laranja é doce”, assumo como fato pressuposto o conteúdo “a laranja é doce”.
Notemos como se justifica o conhecimento num e noutro caso. No caso do ateu, ele sabe que a laranja está doce, “porque está sentindo” (está tendo uma experiência sensível da qualidade ‘doçura’). Nesse caso, justifica-se o conhecimento pela experiência sensível (empirismo). Tal não ocorre, quando se justifica do mesmo modo a suposta certeza da existência de Deus, já que não é da mesma natureza a experiência de sentir a doçura da laranja e “sentir” (seja lá qual for o significado do verbo, nesse caso) a Deus. Passamos do plano da experiência sensível para um tipo de experiência psicológica extraordinária, da qual nos fala, com propriedade, Sam Harris (2009). O fato de admitirmos ser ela incomum, em algum sentido, “elevada” não implica haver um objeto transcendente envolvido nela. Em A morte da fé (2009), o filósofo e neurocientista, Sam Harris, dedica um capítulo para tratar da consciência. Lá, ele observa:

“Embora vivamos em geral dentro dos limites impostos pelo nosso uso normal da atenção – nós acordamos, trabalhamos, comemos, assistimos televisão, conversamos com os outros, dormimos, sonhamos – a maioria de nós sabe, mesmo que vagamente, que é possível ter experiências extraordinárias”.
(p. 237)

Mais adiante, reconhece ainda o autor:

“Nenhuma palavra capta a sensatez e a profundidade da possibilidade que devemos considerar agora: que existe uma forma de bem-estar que supera todas as outras que, na verdade, transcende os caprichos da própria experiência”.
(p. 239)

Harris lança mão dos termos “espiritualidade” ou “misticismo” indiferenciadamente, a fim de designar essa forma de experiências extraordinárias da consciência. Se formos buscar compreender a vasta significação do conceito de misticismo ou experiência mística, encontraremos, nessa busca, a ideia de que o místico é aquele que tem uma experiência de pertencimento a um Todo (o Universo, Deus, o Espírito universal, o Vazio absoluto, ou qualquer outra). Não raro, se ouve um místico, dizer que, num instante de êxtase, teve uma experiência de esvaziamento do eu, de desprendimento dos sentidos. Ele se sente como se vivesse fora da temporalidade, para além das quatro dimensões que caracterizam a existência mundana.
Que o cristão de nosso diálogo revele, sinceramente, poder ter uma experimentação de consciência incomum e extasiante e que devemos legitimar essa experiência como uma das inúmeras possibilidades de experiências humanas não redunda que devemos aceitar como incontestável a existência de Deus ou mesmo a possibilidade de experienciar essa existência, como quer o cristão.
É notável como o discurso religioso está impregnado de figuras de linguagem, entre as quais alegorias e metáforas. Notemos o uso que se faz da palavra “presença”, no sintagma “a presença de Deus”. Toda presença envolve uma revelação, envolve a possibilidade de que algo seja encontrado em algum lugar. A presença implica um estar aqui e agora. Os mortos não estão mais presentes entre nós, também a pessoa distante não está presente onde eu me encontro. Se fôssemos tentar analisar os semas da palavra “presença” (semas são os mínimos componentes de significado de uma palavra), certamente não poderíamos deixar de incluir na lista traços semânticos como ‘existência’, ‘concretude’, ‘tempo atual’, ‘animado’. No núcleo de seu sentido, há a referência a seres concretos e animados (pessoas ou animais), imediatamente acessíveis num aqui e agora e, portanto, existentes. Claro é que podemos estender seu uso a fim de que sua semântica abrigue noções abstratas como a de “amor”. Podemos dizer “Sinto a presença do amor nesta casa”.  Concretizamos o amor, conferimos-lhe a qualidade de um ser existente entre outros. Sabemos, contudo, o que queremos dizer com essa frase. Dizemos algo como “as pessoas que vivem nesta casa se amam umas as outras, vivem em harmonia”.
Se é possível falar na presença do amor, da felicidade, da tristeza ou de qualquer que seja a noção abstrata, qual é o problema ao enunciar “a presença de Deus”? O problema é que, ao contrário do que sucede nos casos anteriores, a presença de Deus é tida como uma presença verdadeira de um ser existente no aqui e agora do mundo. Interessante é que Deus “existe” no mundo, embora, ao mesmo tempo, seja transcendente ao mundo (ou seja, é concebido como um ser superior, supranatural e exterior ao próprio universo, cuja existência é inteiramente dependente desse Ser). Mas não basta que se assuma como verdadeira a presença desse ser, é preciso dogmatizá-la e defendê-la como uma verdade incontestável. É preciso cuidar-se detentor de uma “verdade” que deve estar a salvo das suspeitas dos céticos e contestadores.  O problema, a meu ver, é, na verdade, transformar as metáforas em verdades que devem ser impostas ad nauseam.
 Se eu falo na presença de Deus, falo na presença de um ser atravessado pela temporalidade cujo eixo é o presente. Mas, ao mesmo tempo, diz-se que Deus é intemporal, é eterno, vive para além de toda temporalidade. Deus é um ser que existiria fora do tempo, mas, de forma misteriosa, ele consegue se fazer presente, ou seja, existir no tempo. Sempre que nos damos ao trabalho de pensar sobre a linguagem construída para se falar de Deus, somos levados a perceber a construção linguística de um ser que é fantástico (no sentido de “quimérico”, próprio da imaginação). E percebemos mais: percebemos que as formas como se constroem os discursos sobre Deus, as formas como se elaboram os pensamentos sobre Deus entram em conflito lógico-semântico. Como vimos, se Deus é um ser intemporal, ou seja, que escapa ao tempo, que existiria fora do tempo, que é eterno, como poderia fazer-se presente para a existência humana que é, por definição, atravessada pela temporalidade? Não conhecemos outra forma de existir senão no tempo e no espaço. Kant ensinava que tempo e espaço só existem dentro de nós, como condições do conhecimento, como formas puras de nossa sensibilidade (o conceito de sensibilidade em Kant diz respeito à capacidade humana de formarmos representações de objetos, em virtude dos modos como eles nos afetam). Como nós, seres temporais, podemos experienciar um Ser intemporal?
Finalmente, quero acrescentar alguns comentários sobre outro trecho do diálogo, antes de concluir. No último turno de fala do cristão, lê-se:

“... o único modo de você acreditar é se você experimentar e por si mesmo sentir a presença de Deus”.

Já falei do problema envolvido no uso do verbo sentir. Chamo agora a atenção dos meus leitores para o uso do adjetivo “único”.  Quando usamos adjetivos como “único” deixamos ao interlocutor a possibilidade de pressuposição de outro conteúdo, qual seja, ‘não há outro modo de acreditar’.  Veja-se outro exemplo: “A única maneira de você ser feliz é cansando-se com ela”. Admite-se que não há outra maneira de a pessoa ser feliz senão casando-se com a pretendente. Claro está que, para o cristão, não há outro caminho que leve à crença senão o da experiência da presença de Deus. Podemos ou devemos discordar dele? Decerto. Seja lá o que se entende por “experiência de Deus”, creio ser ela, por si só, incapaz de angariar as pessoas para a fé ou a crença em Deus. Se assim pensássemos, seríamos forçados a ignorar a importância de todo o trabalho laborioso de doutrinação empreendido por milênios pela Igreja cristã. Uma pessoa crê em Deus – num Deus do mundo ocidental, que tem raízes na cultura judaico-cristã, num Deus moldado no imaginário hebraico-cristão – porque ela foi exposta a experiências de doutrinação, de catequização que começou, de modo informal, no seio de sua família, formalizando-se em suas experiências como paroquiana na Igreja. É nelas que a consciência religiosa se molda, se engessa. É somente depois de se submeter a longos períodos de ensinamentos da doutrina da Igreja, apoiados, em grande parte, na Bíblia (digo em grande parte, porque, no caso da Igreja Católica, por exemplo, o dogma da Santíssima Trindade não tem respaldo nos ensinamentos dos evangelistas, tendo sido uma criação de Atanásio,  um jovem diácono da igreja de Alexandria, à época, confirmada pelo Concílio de Nicéia em 325 d.C.) que uma pessoa poderá dizer ser possível experimentar a Deus. O  poder experimentar  a Deus é consequência da incessante martelação doutrinária a que se submete, àquela altura, o neófito. Os que se recusam a submeter sua capacidade de autonomia intelectual, sua liberdade de exercício do pensamento crítico às demandas da fé dificilmente creem poder experimentar a presença de Deus, já que colocam a possibilidade da presença de tal ser sob o crivo da razão. Os que se recusam tenderiam a lançar sobre essa suposta presença as luzes intensas dos holofotes racionais, de modo que da presença não restaria senão a consciência da força da imaginação; a presença se dispersaria, deixando para trás apenas a presença do mundo, que, mesmo não sendo o bastante para nos acalentar, é a única presença com que nós temos de nos haver.
Se o leitor chegou até aqui, deve ter-se dado conta de que é necessário esforçar-se por não aceitar de antemão como verdades as manifestações discursivas, não importa a que domínio pertençam. No domínio do discurso religioso, em que prevalece o autoritarismo e o dogmatismo, é norma que as “verdades” sejam impostas, sejam disseminadas, sem que seja permitido contestá-las. Expressões do tipo “Deus é a luz do mundo” são esteticamente apreciáveis, se fossem parte de um gênero literário. O problema é que se pretende que essa proposição encerre uma verdade, um fato, sobre o qual não se pode sequer lançar uma sombra de dúvida.
No início deste texto, sugeri que a conclusão atribuída ao ateu – “Então, Deus não existe” – como resposta à impossibilidade de o cristão provar a existência de Deus era imprópria, porquanto, logicamente, do fato de eu não conseguir provar que algo existe não posso concluir pela sua inexistência. Do fato de que nunca se tenha registrado qualquer sinal de vida inteligente fora da Terra (por exemplo, de seres conscientes e complexos como nós) não implica a impossibilidade de esses seres existirem, já que vasto é o Universo e vasta a nossa ignorância dele (a nossa via láctea tem aproximadamente 300 bilhões de estrelas, a metade, provavelmente, inclui planetas). É certo, porém, que cientistas como Marcelo Gleiser, embora admitam a possibilidade da existência de vida inteligente fora da Terra, acreditam que é muito improvável que tenhamos algum contato com ela, dada a vastidão do universo. (o leitor pode assistir a este vídeo em que Marcelo Gleiser nos fala sobre a possibilidade de existir vida extraterrestre (http://youtu.be/dQj0UtI0M5s).
Está claro que, quando se trata da impossibilidade de provar a existência de Deus ou de qualquer forma de divindade, não devemos concluir da ausência de prova a inexistência. Isso é um erro lógico. Mas podemos falar em probabilidade, já que a experiência que podemos ter das divindades são mediadas pela linguagem. Só temos contato com representações linguísticas de Deus. Deus não fala, não se mostra; são homens que falam a respeito de Deus, que definem Deus, que supõem que, ao falar dele e defini-lo, tornam-no existente. Portanto, nossa experiência de Deus é mera experiência com as palavras a respeito de Deus, com as representações discursivas sobre Deus, que se torna, assim, objeto de discurso. Feuerbach tinha razão ao nos ensinar que a consciência de Deus é autoconsciência humana. Ao tomar consciência de Deus, o homem toma consciência de sua própria essência, ou seja, de sua própria consciência. A linguagem de Deus é a linguagem do homem.
Se admitirmos que tudo que sabemos de Deus nos chega através do que disseram, dizem, escreveram e escrevem seres humanos que viveram e vivem em determinada comunidade cultural, numa determinada época, num dado contexto sócio-histórico, político e ideológico; se, enfim, admitirmos que é pelas boca e mãos humanas que nos é acessível o que sabemos sobre Deus, podemos pôr em confronto tais representações de Deus com as ocorrências do mundo, com o modo como o mundo funciona, com os saberes que temos a respeito do mundo, para, daí, nos assegurar da improbabilidade da existência desse ser. É esse o desafio intelectual a que se esquivam as pessoas religiosas em geral. Elas se negam a pôr em confronto aquilo que sabem a respeito de Deus pelos anos em que se submeteram a alguma forma de doutrinação com aquilo que sabem a respeito de fatos sobre o mundo. O medo de pôr suas crenças à prova é que explica   por que muitas pessoas podem assistir pela televisão a uma cidade devastada por um furacão, com milhares de desabrigados e mortos e, embora assombradas com a tragédia, possam, à noite, orar a Deus pelas vítimas ou para agradecer por mais um dia de vida, pela saúde, ou pelo o que quer que seja. Na oração, elas experimentam a onipresença de seu ego e a necessidade de mascarar sua indiferença ao sofrimento em escala mundial, um sofrimento cuja verdade salta aos seus olhos, desde que acordam e as acompanha até a hora de dormir. Esse sofrimento, que se manifesta de modos vários, neste planeta de (sem) Deus, não é sequer cogitado como evidência para pôr a nu a mentira da qual sua crença é um reflexo. Elas não podem, como seres humanos, evitar a inconsistência entre a observação das ocorrências do sofrimento no mundo e sua crença na existência de um Ser superior, providente, amoroso e bom. Sua razão as ameaça no silêncio de sua negação a abrir os olhos do espírito e, como forma de defesa, elas preferem evitar estar a sós com seus pensamentos. Se confrontada a suposta presença de Deus com a verdadeira presença do sofrimento no mundo e a hostilidade da natureza à vida dos seres que dela provieram e nela vivem, pouco ou nada sobrará daquela presença. Onde o silêncio da reflexão predomina, a presença de Deus vai fazendo seu trabalho, confinando bilhões de seres humanos num sentimento de dependência infantil insuperável.








         

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

ler é produzir sentido


                                   

                                      Uma proposta de leitura
            
                      Ensinar português é desenvolver o letramento





                       Sobre moluscos e homens

            Rubem Alves

Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.
O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os ditos “programas” escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais que estão acontecendo no momento ( insisto nessa expressão “no momento” – a vida só acontece “no momento” ) da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas. Explicaria também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa recusa em aprender. Explicaria sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar... Recordo a denúncia de Bruno Bettelheim contra a escola: “Fui forçado (!) a estudar o que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender – e aprender à sua maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um conhecimento morto. Sòmente os necrófilos se excitam diante de cadáveres.
Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca. Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o util e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais ( inclusive os vestibulares ) que se fazem para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito o seu trabalho. O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor de português se saia bem em matemática, física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência que se faz sobre os estudantes?
Ah! Piaget! Que fizeram com o seu saber? Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores voltem a aprender com os moluscos...



                                   



Proposta de leitura




Em seu mais recente e monumental trabalho que ostenta o título de Gramática Pedagógica do Português Brasileiro (2011), o linguista Marcos Bagno reitera sumariamente o que tem sido consenso entre os especialistas, no tangente aos objetivos das aulas de português na escola. À página 29, lemos:

“Ler, escrever e refletir sobre a língua. Essas três tarefas – que no fundo são uma só: desenvolver o letramento – constituem toda a missão da escola no que diz respeito à educação em língua materna. Não há tempo a perder com outras práticas que já se comprovaram absolutamente irrelevantes e inúteis para se cumprir essa missão”.

(grifo no original)


Essas “outras práticas irrelevantes” a que se refere o autor dizem respeito à forma como o português vem sendo tradicionalmente ensinado e estudado nas salas de aula de nossas escolas, a saber, como um objeto de estudo cujas partes constitutivas devem ser reconhecidas e classificadas. Exemplos dessas práticas são a elaboração de atividades em que se solicita ao aluno o reconhecimento do complemento verbal e de sua classificação em objeto direto, objeto indireto, complemento relativo, complemento circunstancial, etc. O material linguístico oferecido aos alunos e sobre o qual eles se debruçam em sua tarefa enfadonha e despropositada de dissecação da língua e taxionomia de suas unidades constitutivas consiste em um conjunto de frases ou criadas pelo próprio professor, ou extraídas de textos, ou colhidas de coletâneas de exercícios de gramática; em qualquer caso, trata-se de frases descontextualizadas, e não de unidades de comunicação. Trata-se de fragmentos de linguagem – eu diria, de cadáveres linguísticos – exauridos de sua funcionalidade, porque desvinculados do todo linguístico a que se integravam (texto) e dos contextos (socio-ideológicos, político, cultural, cognitivo) na base dos quais funcionavam.
Já há muito, os estudiosos da linguagem (os linguistas) advogam a necessidade de se desenvolver um ensino de português focado na leitura e produção de textos, bem como na reflexão sobre o funcionamento da língua em textos. Evidentemente, a mudança de foco exigirá do professor também uma mudança de pressupostos, quer no que diz respeito ao que significa ensinar língua materna a falantes nativos dessa língua, quer no que diz respeito a um conjunto de conceitos teóricos, dentre os quais destaco o de gramática (essa mudança no olhar sobre a língua/ linguagem, a gramática, o texto redunda numa mudança de metodologia, evidentemente). O professor deverá fazer-se a pergunta: o que é saber gramática? Para responder à questão de modo adequado à sua proposta de ensino, deverá romper com a visão tradicional e vulgar de gramática e reconhecer nesse termo a designação de um conhecimento inato e intuitivo que habilita todo ser humano normal a falar uma língua.
Novamente, vale notar a lição de Bagno, ao considerar o conhecimento gramatical do falante nativo:

“Saber gramática é muito mais que rotular. Saber gramática é algo tão entranhado em cada pessoa que é simplesmente impossível falar, ouvir, ler, escrever ou refletir sobre a lingua sem ativar esse conhecimento gramatical intuitivo e poderoso (...)”.

(p. 30)

Note-se que o autor refere-se à gramática como “um conhecimento intuitivo e poderoso”. A gramática é, assim, esse sistema de regras e unidades que, inscrito em nossa mente/cérebro na forma de conhecimento, nos habilita a fazer uso normal de nossa língua. É claro que o saber usar uma língua, seja nossa língua materna, seja uma língua estrangeira, envolve muito mais do que saber operar com sua gramática. Mais do que deter uma competência linguística o falante nativo é possuidor de uma competência comunicativa, a qual se relaciona a outras formas de competência que são ‘ativadas’ quando ele se envolve nas mais diversas práticas discursivas ao longo da vida. Uma discussão sobre essa inter-relação de competências extrapola os limites deste texto. É forçoso que eu apresente, então, o objetivo a que destino esta nova composição verbal.
Proporei uma leitura do texto Sobre moluscos e homens, de Rubem Alves, que faz eco (polifonia e intertextualidade) a outro texto do mesmo autor, chamado de Quando as mãos perguntam, a cabeça pensa. Este último se acha em http://www.rubemalves.com.br/quandoasmaosperguntamacabecapensa.htm.

O leitor não iniciado nos estudos da linguística (talvez, a maioria de meus leitores) pode ter encontrado certa dificuldade na compreensão do que vim dizendo até aqui, já que iniciei este texto tendo em conta um público-alvo familiarizado com as questões que apresentei. Todo autor constrói uma hipótese sobre o leitor, bem como este o faz em relação ao autor. Quando participamos de qualquer evento interacional pela linguagem, contamos com uma série de conhecimentos que supomos partilhados, em alguma medida (embora nunca totalmente), com nosso(s) interlocutor(es).  

Situando a discussão na modalidade escrita – e considerando-se a relação entre autor-texto-leitor -, muitos saberes e crenças que possuímos não serão codificados linguisticamente, ou seja, não serão explicitados na superfície de nossos textos, mas assumirão o status de informações implícitas, que devem ser recuperadas por meio de um complexo trabalho de inferenciação pelo leitor. Quer nas atividades linguajeiras no domínio da oralidade, quer no domínio da escrita, estamos sempre interpretando, ou seja, produzindo uma “suposição de intenção” (Charaudeau, 2010: 31). Estamos, assim, a todo momento, formulando hipóteses sobre o conhecimento de nosso interlocutor; sobre seus pontos de vistas em relação aos seus próprios enunciados. Assim também procederá nosso interlocutor em relação a nós.
No momento em que se dá o processamento textual ( termo que recobre ‘o processo linguístico-cognitivo durante o qual representações mentais são construídas na memória com base no texto’), o leitor lança mão de várias estratégias. Segundo Koch (2002: 50), estratégia “é uma instrução global para cada escolha a ser feita no curso da ação”. Destarte, o processamento textual é estratégico, porque, durante a atividade de interpretação, os leitores “realizam simultaneamente vários passos interpretativos finalisticamente orientados, efetivos, eficientes, flexíveis e extremamente rápidos” (Koch: 2006: 39).
Para o processamento textual, o leitor recorre a três grandes sistemas de conhecimento armazenados em sua memória, que serão acessados por ocasião da produção de sentido. São eles:  o conhecimento linguístico, o enciclopédico e o interacional.
O conhecimento linguístico recobre o saber sobre o léxico e a gramática da língua. A compreensão de um texto depende, parcialmente, de que o leitor seja capaz de compreender o significado das palavras e sua adequação ao tema ou aos modelos cognitivos ativados;  e de reconhecer as relações lógico-semânticas e discursivas estabelecidas entre os componentes da superfície textual (coesão).
O conhecimento enciclopédico (ou conhecimento de mundo) compreende todos os saberes adquiridos pelo leitor ao longo da vida, quer informalmente, que formalmente por concurso de sua escolarização. O conhecimento de mundo inclui também saberes relacionados a práticas e valores de nossa sociedade ou grupo, bem como saberes propriamente individuais, como o de preparar um bolo com base na receita da vovó.
O conhecimento sociointeracional inclui os saberes sobre as formas de interação por meio da linguagem. Trata-se de saber, por exemplo, com base nos atos de fala verbalizados, quais os objetivos ou propósitos de um falante/ autor. O conhecimento sociointeracional se desdobra em conhecimento comunicacional, conhecimento metacomunicativo e conhecimento superestrutural. Todos esses subtipos são controlados por outro conhecimento denominado de procedural. O conhecimento procedural (de proceder) encerra procedimentos ou rotinas na base dos quais aqueles sistemas de conhecimentos são ativados quando do processamento textual. A cada um dos sistemas corresponde um conhecimento procedural.
Não poderei aqui deslindar as questões envolvidas neste aglomerado de conceitos teóricos. Basta ao leitor reconhecer a complexidade envolvida no processo de compreensão textual.
Diversas são as concepções de texto, já que diversas são as perspectivas teóricas  à luz das quais ele foi considerado. Para os meus propósitos, adoto a perspectiva sociocognitivo-interacional, segundo a qual o texto é um lugar de interação e de constituição de sujeitos sociais (os interlocutores). Há no texto uma grande variedade de implícitos, que são recuperados pelo leitor quando este ativa seus modelos cognitivos (que constituem blocos de conhecimentos estruturados em sua memória).
Trago à cena as palavras da linguista Ingedore Koch, em Ler e compreender os sentidos do texto (2006), que nos elucida sobre a concepção sociocognitivo-interacional de língua:

“Fundamentamo-nos, pois, em uma concepção sociocognitivo-interacional de língua que privilegia os sujeitos e seus conhecimentos em processos de interação. O lugar mesmo de interação (...) é o texto cujo sentido “não está lá”, mas é construído, considerando-se, para tanto, as “sinalizações” textuais dadas pelo autor e os conhecimentos do leitor, que, durante todo o processo de leitura, deve assumir uma atitude “responsiva ativa”. Em outras palavras, espera-se que o leitor, concorde ou não com as ideias do autor, complete-as, adapte-as, etc., uma vez que “toda compreensão é prenhe de respostas e, de uma forma ou de outra, forçosamente, as produz”. (BAKHTIN, 1992: 290)”

(p. 12)
(grifo no original)

Vejamos como se vai desenvolvendo o processo de interação entre autor-texto-leitor. Vou ignorar a discussão sobre o status do autor, ou seja, sobre ser ele ou não um constructo teórico relevante. O fato é que, na perspectiva do leitor, o autor é aquele que garante a possibilidade de reconhecimento de uma unidade de sentido para o texto.
O texto em que repousa minha análise, já apresentado ao leitor, é de autoria do filósofo, educador, psicanalista, teólogo e escritor Rubem Alves. Saber um pouco sobre o percurso acadêmico do autor é fundamental para o reconhecimento das perspectivas que ele assume ao desenvolver o tema de seu texto.
Cumpre notar que nenhum texto espelha o mundo, mas o reconstrói. Isso significa dizer que o texto constrói um modelo de mundo, um mundo que é textualizado (um mundo textual), segundo a perspectiva do autor. O autor, ao produzir seu texto, não diz o mundo tal como é, mas tal como ele, autor, o pensa, o entende, o representa. O autor é um feixe de olhares sobre o mundo; a ele compete estruturar esses olhares de modo a constituir seu projeto de sentido. Importa, para efeito de compreensão da relação entre texto e mundo, perceber como o autor se relaciona com o mundo que ele trata de textualizar. Isso ficará bastante claro durante a leitura que realizarei do texto.
Mãos à obra.

Começando do começo.

Os estudos em Linguística Textual tendem a alertar para o fato de que o título de um texto é um elemento importante no processo de construção de sentido. É o título que desencadeará expectativas no leitor a respeito do tema a ser tratado. Apoiando-se no título, o leitor poderá formular hipóteses sobre o conteúdo do texto. Claro é que nem sempre o título o permite, dada a sua vagueza. Títulos metafóricos são menos transparentes e tendem a dificultar a tarefa de antecipação temática pelo leitor. Quando o título é pouco ou nada explicito em relação ao tema, resta ao leitor deduzi-lo no limiar da leitura. Em geral, os primeiros parágrafos são suficientes para esclarecê-lo sobre o tema.
Parece que o título do texto de Rubem Alves está entre aqueles que não nos fornecem pistas sobre o tema inicialmente. O título - sobre moluscos e homens - nos suscita, na verdade, muitas questões sobre a relação entre molusco e homem, sobre o porquê do interesse do autor por essas duas espécies de seres vivos que não parecem guardar qualquer relação relevante. Considerando-se o que sabemos sobre Rubem Alves, entre outras coisas, que não é especialista em biologia, o tema nos parece, inicialmente, insólito. Há uma razão para que moluscos e homens sejam temas de interesse para o autor, a despeito das notáveis diferenças entre eles. Decerto, homens e moluscos diferem muito, quer em aparência, quer nas formas como se relacionam com o mundo. Será mesmo? Senão vejamos.
Um dos subtipos encerrados no conhecimento interacional é o conhecimento superestrutural. De que se trata essa forma de conhecimento? Basicamente, o conhecimento superestrutural é aquele que permite ao leitor identificar um texto como pertencente a um gênero, mas também é aquele que permite ao leitor reconhecer vários tipos de texto (narrativo, descritivo, argumentativo, expositivo e injuntivo).
Os gêneros textuais são constituídos de sequências tipológicas de texto, ou tipos textuais. Os gêneros podem apresentar, geralmente, dois ou mais tipos de textos. Quando se verifica vários tipos de texto, tem-se uma heterogeneidade tipológica.
Os tipos textuais são sequências linguísticas que sinalizam a atitude que toma o enunciador no próprio trabalho com a língua. Intimamente ligados à intenção do enunciador, os tipos textuais são reconhecidos na observação de seus aspectos formais. Por exemplo, o tipo argumentativo se caracteriza, do ponto de vista propriamente linguístico, por vasto uso de articuladores discursivos (conjunções subordinativas, coordenativas, adverbiais textuais, etc.); do ponto de vista lógico-discursivo, por inserção de uma tese, articulação de argumentos e conclusão.
O texto de Rubem Alves é um exemplar do gênero artigo de opinião, que pode ser definido considerando-se seu plano de composição - no interior do qual distinguimos um conteúdo e um estilo -,  bem como a função a que serve. Do ponto de vista de sua composição, um artigo de opinião versa sobre um tema de relevância social, cultural ou política; apresenta um estilo de linguagem mais ou menos formal, dependendo do grau de escolarização do público-alvo. Além disso, compreende um número maior de sequências do tipo argumentativo (largo uso de operadores argumentativos, explicações, justificações, asserções, etc.). No que tange à funcionalidade, o artigo de opinião apresenta o ponto de vista do enunciador sobre um dado assunto. Ao produzir seu artigo, o autor procurará defender seu ponto de vista pelo encadeamento de argumentos e justificações, visando a influenciar seu leitor, ou seja,  a causar a adesão dele ao seu ponto de vista.
Há que se notar que o artigo encerra, inicialmente, uma longa sequência do tipo narrativo. O autor nos conta sobre o interesse intelectual de Piaget por moluscos, antes de o estudioso empreender suas pesquisas em psicologia. Não sejamos, contudo, ingênuos na suposição de que o autor se limita  apenas a narrar o interesse de Piaget por moluscos. Também não podemos acreditar  que o autor tão-só descreve o comportamento dos moluscos. Subjacente à prática de relatar/descrever, há uma intenção argumentativa, já que a argumentatividade é intrínseca ao uso da linguagem. Mesmo um autor de romance, ao instaurar um narrador, faz com que este revele sua perspectiva dos fatos, dos valores, das ideologias de sua época. Ainda que não explicitamente, o narrador, narrando os acontecimentos, buscará influenciar o leitor de alguma maneira, buscará convencê-lo de suas opiniões, pontos de vista sobre um fato social, político ou cultural. Veja-se o famoso romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, em que o autor instaurando o narrador-personagem Bentinho, supostamente, vítima da infidelidade amorosa de Capitu, expõe seu ponto de vista acerca do tema socialmente polêmico traição. Deixando a traição de Capitu em suspeita, delegando ao leitor a decisão por culpá-la ou inocentá-la de ato escandaloso para os padrões morais à época, Machado pretendeu nos convencer de que o sentimento de traição pode aflorar como pura e simplesmente consequência do desejo amoroso, que é desejo de possuir o outro, de torná-lo jurisdição do coração. A traição não precisa se consumar, necessariamente, para nos causar perturbação. Basta a suspeita para que a dúvida e o remorso (porque Bentinho rompe com a amada sem ter provas de sua traição) façam seu trabalho na alma. Machado também nos quer convencer de que a verdade nunca pode ser plenamente alcançada e de que o que chamamos de realidade é apenas aquilo que nos revela o ponto de vista de um sujeito. Claro é que a argumentação – vale insistir – não se nos demonstra superficialmente. Machado constrói uma narrativa e não um tratado de algum tipo, mas isso não o impede de defender sua visão de mundo através de suas personagens.
Sendo um artigo de opinião e servindo a uma função eminentemente argumentativa, o leitor pode esperar certa forma de organização de suas unidades. Essa organização inclui uma tese ou proposição que se pretende sustentar por meio do encadeamento de argumentos, justificações, explicações, provas, fatos, etc. A tese não foi explicitamente enunciada e precisa ser deduzida.
Poderíamos dar-lhe a seguinte forma: é preciso que se faça ver na escola uma pedagogia que estimule o pensamento dos alunos e o desejo de aprender aquilo que tem utilidade vital. Creio que essa é uma proposição que o autor assumiria. A fim de que se desenvolvam práticas pedagógicas em que se ensine aquilo que excita o pensamento, é preciso reconhecer certas características do ser humano.
O autor procede então a uma comparação entre os moluscos e os seres humanos. Chega a considerar os seres humanos como um “tipo específico de molusco”. Reconhece que tanto os homens quanto os moluscos são seres provenientes da natureza. No entanto, a natureza, se, por um lado, programou os animais para todos os atos de sobrevivência, dando-lhes um corpo que constitui uma extensão do meio natural; por outro lado, deu aos homens um corpo frágil e não capacitado para a sobrevivência. O homem se distancia da natureza, quando do desenvolvimento do pensamento. Na verdade, o grande salto do ser humano foi o desenvolvimento da linguagem, que lhes permitiu pensar. Seja como for, o pensamento é a força humana em benefício da sobrevivência. Lembre-se que aos animais é o corpo que serve de uma ferramenta para a sobrevivência; os homens se valem de outra ferramenta, chamada “pensamento”.
Veja-se que, ao categorizar o homem como um tipo de molusco, ao representar o corpo como ferramenta de sobrevivência do animal e o pensamento como ferramenta de sobrevivência dos seres humanos; ao assumir que a natureza habilitou o animal para ser bem-sucedido em suas experiências, dando-lhe um corpo adequadamente construído para este fim, legando aos seres humanos, em contrapartida, um corpo ineficiente para a sobrevivência, o autor constrói um modelo de mundo textualmente fundado. Nesse mundo textual, a natureza é provedora; o corpo é uma ferramenta; o conhecimento, uma concha; o pensamento assemelhado a um pênis; o ato sexual categorizado como conhecimento, etc.
 A natureza proveu tanto os animais quanto os seres humanos daquilo que é indispensável à sobrevivência. A carência de um corpo geneticamente programado para ser bem-sucedido na árdua tarefa de sobreviver foi compensada com a formação de um cérebro com dimensão e propriedades tais que permitiu, no homem, o desenvolvimento do pensamento.
Penso ser necessário, de agora em diante, lançar olhares sobre a forma do texto, de modo a fazer ver como as unidades linguísticas presentes na superfície textual servirão de pistas para que o leitor produza um sentido para o texto. Toda escolha linguística cumpre uma função. Também o autor, ao compor seu texto, produz sentido. Evidentemente, o autor espera que o sentido pretendido por ele seja reconstruído ou recuperado pelo leitor. No entanto, o autor é incapaz, evidentemente, de controlar os sentidos possíveis que o leitor poderá produzir. Também é certo que o leitor não pode produzir qualquer sentido. Na verdade, seu trabalho interpretativo será limitado ao plano de sentidos proposto pelo texto. O texto, insisto, prevê alguns sentidos, mas exclui outros. Muitos sentidos são possíveis, mas nem todos
Veja-se, por exemplo, o uso de adjetivos valorativos. O autor usa vários deles. Seguem-se algumas ocorrências abaixo:
“Os moluscos são animais fascinantes
“... constroem conchas duras – e lindas! – (...)”
“Seus corpos são ferramentas maravilhosas”.

Sabemos que o autor instaura um Eu-enunciador, que se encarrega de construir a argumentação a fim de sustentar seus pontos de vista. Esse enunciador aprecia, deprecia, rejeita, expõe, contrapõe, etc., e o faz por meio de marcas linguísticas que servem a essas funções. Os adjetivos em negrito sinalizam para a atitude de valoração do enunciador sobre os referentes “moluscos”, “conchas” e “ferramentas”. Essas e outras ocorrências similares ou análogas nos permitem dizer que o referente (objeto de discurso) ‘corpo’, quando ligado ao animal, é valorado positivamente; quando ligado ao homem, é valorado negativamente. Note-se que o enunciador se refere ao corpo dos seres humanos como um “corpo molengão e inadequado”.
Quando se chama atenção do aluno sobre o uso dos adjetivos, especialmente os de função valorativa, faz-se um exercício de reflexão sobre o funcionamento da língua, sobre a gramática em uso. Veja-se outro exemplo em que uma forma linguística, uma vez considerada em seu funcionamento no texto, pode suscitar reflexões sobre o funcionamento da língua, deixando de servir como um mero objeto para identificação e classificação. Veja-se o trecho abaixo:

Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. (...)”.

Destaco a ocorrência do pronome indefinido ‘alguns’. Ao invés de solicitar ao aluno que dê nome a essa palavra segundo o modelo de classificação tradicional das palavras, mais vale chamar-lhe a atenção para a função discursiva que essa forma linguística cumpre nesse ponto do texto. Em primeiro lugar, o aluno deveria ser levado a pensar sobre o referente desse “alguns”, ou seja, quem são as pessoas referidas por “alguns”? O aluno-leitor não teria dificuldades para ventilar hipóteses sobre os potenciais referentes. Assim, “alguns” poderia compreender ‘professores’, ‘pedagogos’, ‘pais’, ‘psicólogos’, ‘colegas de turma’, etc. Todas essas expressões são candidatos possíveis a referentes da forma “alguns”; talvez, umas mais do que outras. A segunda questão é pensar no porquê de o autor ter escolhido usar ‘alguns’, ao invés de uma dessas expressões ou todas elas. Com que finalidade o autor escolheu usar “alguns” e não “professores” ou “muitos professores”, ou “alguns professores”, por exemplo? Uma resposta possível é sugerir que o autor preferiu não comprometer seu ethos (imagem de si) na identificação de segmentos que tendem a avaliar pejorativamente um aluno desestimulado. Ele se resguarda da contestação de sua denúncia, ele prefere não expor sua "face" (imagem de si socialmente delineada para a qual uma pessoa, durante uma interação face-a-face, reclama aprovação), deixando a cargo do leitor imaginar a que segmentos ou grupos de pessoas ele se refere. “Alguns”, ao contrário de “professor” ou “pedagogo”, não nomeia, não permite identificação de grupos, classes, indivíduos. Em suma, usando "alguns", o autor não se compromete em responsabilizar categorias ou indivíduos determinados pela prática de rotulação discente.
Voltemos aos adjetivos. Precedendo o enunciado encetado por “alguns”, há outro enunciado no qual figura uma sequência de adjetivos. Reproduzo-o abaixo:
“... Sem excitação a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente”.

De passagem, gostaria de lembrar que a riqueza da linguagem é tal, que há muios fatos linguísticos que podemos considerar. No enunciado anteriormente referido, em que se acha a forma “alguns”, também valeria avaliar o uso da palavra “burrinho”, forma de valor pejorativo (muito embora o sufixo atenue a carga de pejoratividade - cf. burro e burrinho, em “Ele é burro” / “Ele é burrinho”.).
O  enunciado referido acima se acha num parágrafo do texto em que o autor enfoca a noção de pensamento e inteligência no domínio da sexualidade. O autor faz uma leitura sexualizada da função do pensamento e da inteligência. Assim, o pensamento precisa ser excitado para se desenvolver e produzir conhecimento. Também a inteligência precisa receber excitação, para que se envolva na aprendizagem. Os adjetivos “pendente”, “flácida” e “impotente” são representativos do campo semântico ‘ato sexual’. Todos, contudo, são passíveis de caracterizar o ‘pênis’.
A focalização do tema aqui é psicanalítica. O recurso à imagem da sexualidade masculina, a referência à disfunção erétil, à inutilidade do pênis, quando da denúncia da ineficácia de um ensino que não estimula a inteligência, têm o propósito de fazer ver a impossibilidade de usufruir o prazer. Transferindo esse plano de leitura para o domínio da pedagogia - e nele considerando o papel da inteligência no processo de ensino-aprendizagem-, ficará claro que, sem possibilidade de experimentar o prazer, a inteligência não se mostra disposta a progredir (ela, como o pênis, torna-se impotente). Ela não deixa, contudo, de se fazer presente, porque “recusa [sic.] a ficar excitada por algo que não é vital”. Ora, concluiremos que da mesma forma que fazer  sexo é uma atividade vital e prazerosa,  deve sê-lo também o processo de ensino-aprendizagem, não sem antes haver a excitação do pensamento e da inteligência.
O autor sugere que a frustração experimentada por um homem que não consegue consumar uma relação sexual é até certo ponto comparável à frustração experimentada pelo aluno cuja inteligência não é estimulada. Embora não tenha explicitado esta ideia, ele permite-nos entrever que a aprendizagem deve ser uma atividade prazerosa. A busca pelo conhecimento tem de nos oferecer prazer. Isso é um pressuposto, que se insinua quando chegamos ao penúltimo parágrafo.
Não posso levar adiante este texto. Claro está a complexidade envolvida na compreensão integral de um texto. Há muitos níveis de análise a ser considerados. Há muito para explorar. Pense-se em fenômenos como dialogismo, polifonia, intertextualidade, que constituem fatos discursivos que excedem os limites do texto. Pense-se na configuração da rede referencial por meio da anáfora e catáfora. Pense-se nos diversos procedimentos de coesão seqüencial. Pense-se nas funções dos operadores argumentativos que, encadeando os enunciados entre si, sinalizam a orientação argumentativa do discurso (mas, então, assim...).
Certamente, este texto de Rubem Alves teria de ser trabalhado em muitas aulas, a fim de que se conseguisse analisá-lo mais satisfatoriamente, a fim de que ao aluno fosse dada a possibilidade de tornar-se um leitor mais eficiente na tarefa de interpretação e compreensão textual.