segunda-feira, 20 de maio de 2013

"O verdadeiro amor é aquele que supõe um trabalho contínuo para mantê-lo" (BAR)




O mal-estar no amor
Ou o excesso do amor

É do Amor que me ocuparei nesta nova oportunidade em que me sirvo das palavras para expressar e sustentar a tese segundo a qual vivemos um mal-estar erótico na modernidade atual. Em que consiste esse mal-estar e qual é a sua origem são as duas questões que procurarei, aqui, desenvolver e responder. Para a realização desse intento, convidarei o leitor a passear comigo pelos jardins de ideais cultivados pelo pensamento platônico sobre o amor. Vamos revisitar a concepção de Platão sobre o amor. Sabemos que as ideias de Platão ecoam pela voz de Sócrates, de modo que, ao falarmos do entendimento socrático, estamos falando da compreensão platônica.
Não me cingirei a abordar a visão platônica de amor, evidentemente. A ela reunirei outras perspectivas conflitantes e divergentes, uma das quais – e a primeira que mencionarei – é a do filósofo moderno Simon May, exposta e desenvolvida em seu livro Amor – uma história (2012).
Comecemos, portanto, pela contribuição de May. De início, é preciso frisar que, para ele, o amor é um enlevo. O amor é, portanto, um êxtase que sentimos; amar é sentir-se encantado, absorvido pela presença do outro que é objeto de nosso amor. Mas o amor, enquanto enlevo, causa em nós outro sentimento. Acompanhemos as palavras de May a seguir:

“O amor (...) é enlevo que sentimos por pessoas e coisas que inspiram em nós a esperança de uma fundação indestrutível para a nossa vida. É um enlevo que nos faz empreender – e sustenta – a longa busca de uma relação segura entre nosso ser e os delas.”
(p. 19)


Destaquei em negrito alguns trechos que cuidei fundamentais para que compreendamos a perspectiva do autor. É verdade, como podemos notar, relendo o trecho, que May não restringe a natureza do objeto de amor à pessoa; podemos amar coisas (por exemplo, o dinheiro, o poder, nossa casa, nosso carro, etc.). No entanto, eu vou ignorar essas outras formas de objeto de amor e me limitarei a pensar o amor destinado a pessoas.
Vimos que May considera o amor um enlevo, o que nos sugere tratar-se de um sentimento que nos provoca certo arrebatamento. O amor, enquanto êxtase (enlevo), liberta o eu do corpo; amando é como se pudéssemos nos libertar de nós mesmos. Experimentamos uma plenitude de ser. Poderíamos dizer que o amor, enquanto enlevo, é potência de existir. É íntima alegria de existir mais. Se, por um lado, poderíamos ficar tentados a ver na concepção de May alguma espécie de elevação espiritual consequente da experiência amorosa; por outro lado, devemos reconhecer que o enlevo inspirado pelo amor funda-nos, de modo indestrutível, a existência neste mundo. O amor estabelece uma fundação para a nossa vida. Graças ao amor, sentimo-nos em casa no mundo. O amor enraíza nossa vida neste mundo, que passa a ser considerado como um lar (lugar de aconchego, de acolhida).
Não menos importante é a ideia suscitada pelo verbo empreender, também destacado em negrito. Esse verbo sugere que o amor é um trabalho. Ou melhor, é o que nos impulsiona a buscar uma relação sólida, segura. Essa relação se estabelece entre dois seres. E, aqui, convém reavivar a ideia de que “amar é fazer do ser de um participante do ser do outro” (BAR).
Creio que é importante entender que, segundo May, o amor não nos distancia do mundo, não nos eleva sobre ele; não nos encarcera em alguma realidade espiritual transcendente. Ao contrário, o amor, enquanto enlevo, produz em nós um sentimento de pertencimento à realidade mundana, onde experienciamos profundos bem-estar e bem-viver. O trecho a seguir parece confirmar essa interpretação:


“Se todos nós temos necessidade de amor, é porque todos precisamos nos sentir em casa no mundo: enraizar nossa vida no aqui e agora; dar à nossa existência solidez e validade; aprofundar a sensação de ser; capacitar-nos para experimentar a realidade de nossa vida como indestrutível (ainda que aceitemos também que ela é temporária e terminará na morte)”.
(ib.id.)


A esse sentimento de estar em casa no mundo; à percepção de que nossa existência ganhou solidez no aqui e agora, de que nossa vida fincou raízes na realidade, May chama enraizamento ontológico. Ontológico nos remete à ideia de Ser. Enraizamento de nosso ser na realidade; fundação inabalável de nossa existência no aqui e agora – é o sentimento que nos provoca o amor. O amor ancora nossa existência e ser no mundo. O amado encarna a promessa, para nós, de sustentação de nossa vida no mundo, de modo que o sintamos como um lar. O amor torna o mundo um lugar acolhedor para nós.
Antes de trazer à baila a concepção platônica de amor, faz-se mister distinguir entre uma visão sobre o amor fundada no imaginário e um visão sobre o amor fundada na observação e na experiência empírica. Essa distinção nos ajuda a entender que muito do que se diz do amor pode estribar-se em representações imaginárias. A palavra imaginário designa o conjunto de representações, crenças, desejos e sentimentos na base dos quais um indivíduo ou grupo entende a realidade e a si mesmo. Parece-me que a visão de May sobre o amor está muito mais próxima de uma visão baseada no imaginário ocidental do que na observação das relações amorosas na contemporaneidade. Uma visão sobre o amor calcada na experiência empírica não poderia escusar a observação de que as relações amorosas têm se mostrado frágeis e descartáveis. Essa visão fundada empiricamente deve levar em conta, por exemplo, as formas de amor líquido, a que se refere Bauman. Também não pode ignorar que o amor, enquanto relação, implica tensões, conflitos e poder. Toda relação amorosa é uma relação de negociação do poder.
May externa sua convicção de que o amor é uma experiência que dá significado à nossa existência. Nesse tocante, ele faz repercutir o imaginário coletivo. São nossos desejos, nossas crenças, nossas representações que são mobilizados na compreensão do amor como “enlevo que produz um enraizamento ontológico”. Para mim, erra quem supõe que May esteja enganado ou iludido a respeito do amor ou do valor do amor; na verdade, ele faz ecoar o sentimento que a grande maioria de nós experimenta quando amamos e somos amados. Quem negaria que o amante e o amado, insuflados de amor, não encontram no mundo um lugar acolhedor e aprazível? Quem negaria que esse sentimento de enraizamento ontológico inunde seus espíritos e corações? Tem razão May ao sugerir que o valor que atribuímos ao amor é o de nos fazer existir mais, ser mais, sentir mais nossa vida em harmonia com o mundo. Amar é sentir-se em casa no mundo. Amar, diríamos com May, é quando um mora no outro. O amante e o amado estão conciliados com a vida e com o mundo quando imersos no amor recíproco.
É chegado o momento de revisitar o pensamento de Platão sobre o amor. Desde já, o amor platônico, tal como representado em O banquete, nada tem que ver com a ideia de amor irrealizável, impossível. Amor platônico não está dissociado da relação sexual, tampouco se confunde com o culto ao amado. Compreendamos melhor esse ponto.
Quando Alcibíades faz sua preleção no final de O banquete, demonstra não ter entendido Sócrates. Confessa não ter alcançado o grau mais alto na experiência do amor na pederastia, ou seja, não conseguiu atingir o Belo ou a essência (disso tratarei adiante). Além disso, Alcibíades demonstra-se frustrado pelo fato de Sócrates não tê-lo desejado sexualmente, ainda que lhe tenha dado sinais de disponibilidade sexual. Esse episódio, em que Alcibíades demonstra sua frustração dada a irrealização do desejo amoroso levou a alguns comentadores a ver o amor platônico como um amor idealizado, irrealizável ou distante. Essa interpretação prevaleceu no senso-comum. Popularmente, quando se diz que uma pessoa nutre um amor platônico por outra quer-se dizer que alimenta um sentimento que jamais será correspondido e que se conservará no plano da ideia, sem qualquer relação com a experiência sexual com o amado. É o caso, por exemplo, de uma jovem mulher que sinta amor pelo seu ídolo. Diz-se, vulgarmente, que ela nutre por ele um “amor platônico”, visto que se trata de uma amor que jamais será correspondido e vivenciado sexualmente.
Todavia, o amor platônico é impulsionado por Eros e não está dissociado da experiência sexual, muito embora o sexo seja um meio, não o fim desse amor. Vamos, então, compreender melhor a concepção platônica de amor.
Para uma adequada compreensão da visão de Platão sobre o amor, necessário se faz entender como Platão concebe o Belo e o Bem, visto que o amor, em Platão, está intimamente relacionado ao Belo e ao Bem.
Para Platão, o belo é o que faz com que as coisas sejam belas. O belo é uma essência e é independente da aparência do belo. Quando se diz “Fulana é bela”, está-se associando a ideia de belo a um sujeito (Fulana). Nesse caso, o belo é aquilo que está na aparência; é uma experiência estética, é um prazer desinteressado suscitado pela contemplação de um ser. Platão não entende o belo como relativo a um ser, como situado na aparência ou dado numa experiência estética. Em Platão, o belo é uma ideia análoga às ideias de ser, verdade e bem (ou bondade). O belo, para Platão, é uma realidade absoluta; é quase uma espécie de bem ou perfeição. As coisas de que dizemos serem belas participam, em Platão, do Belo, enquanto essência.
Intimamente associada ao belo está a ideia de bem ou bondade. O bem equivale ao belo de modo abstrato. Em Platão, o Bem é uma Ideia absoluta ou Ideia das Ideias; é uma ideia elevada e magnífica; está além do ser. As coisas boas somente são boas enquanto participantes do único Bem absoluto.
Contrariamente à visão de Platão, para Aristóteles, embora o Bem seja uma realidade metafísica, há que se distinguir entre o Bem em si mesmo e o Bem relativo a outra coisa. O primeiro corresponde ao Bem puro e simples; o segundo, ao Bem para algo ou alguém. Segundo Aristóteles, embora devamos preferir o primeiro ao segundo, o Bem puro não se identifica necessariamente com o Bem absoluto (Platão). Trata-se, decerto, de um Bem mais independente do que o Bem relativo. Todavia, Aristóteles rechaça a doutrina platônica. Ao contrário de seu mestre, o estagirita nega que o Bem seja exclusivamente uma realidade absoluta ou uma substância. Para Aristóteles, cada coisa pode ter seu próprio bem. Vimos que Platão pensava diferente: cada coisa só é boa por participar do Bem, enquanto essência.
Finalmente, vale mencionar a concepção de Agostinho, para quem o Bem em si mesmo pode equivaler-se ao Bem metafísico. Nesse caso, o Bem e o Ser são a mesma e única coisa. O Bem, em Agostinho, é Deus. Mas pode também, num sentido menos estrito, suceder que as coisas criadas, incluindo o homem, participem do Bem, especialmente quando aquele alcança um estado de fruição de Deus.
O amor platônico, embora não despreze a experiência sexual, supõe um trabalho de ascensão à beleza espiritual ou intelectual e à essência mesma do belo. O amor platônico busca o Belo. Mas não se limita à beleza física. É um amor que aspira à Beleza perene e, portanto, aspira à imortalidade.
O amor, em Platão, busca unir-se com a beleza, a bondade e a verdade em si. Unir-se ao Belo significa unir-se a uma realidade absoluta, imortal e imutável. O amor platônico precisa transcender ao amor físico. Atentemos para o trecho em May nos ensina sobre as pretensões do amor, em Platão:

“Dominados por essa visão de divina beleza, contamos com o amor para nos levar de um mundo imperfeito, transitório, para um reino de perfeição e eternidade. Esperamos que ele culmine numa experiência de absoluta beleza e bondade – e que nosso bem-amado inspire em nós tal experiência. Sua função, relata Sócrates, é “interpretar e transmitir mensagens dos homens para os deuses e dos deuses para os homens”. De fato, o amor permite a nós seres humanos encontrar uma completude divina; ter “o privilégio de ser amado por Deus, e tornar-se, se algum dia um homem o poder ser, ele próprio imortal”.
(p. 74)


Parece-me lícito dizer que o amor, em Platão, aspira à transcendência, à eternidade, à perfeição. Pelo amor, instaura-se uma intercomunicação entre o universo humano e o universo divino. É uma forma de amor que busca a beleza e a bondade absolutas. É uma forma de amor que eleva o homem a Deus, alimentando naquele o desejo de completude com este. O amor platônico é o caminho pelo qual o homem aspira ao puro e ao eterno. Novamente, vale ler o seguinte excerto de May, no qual nos ensina sobre a influência que a concepção platônica de amor exerceu na história do amor ocidental:

“ESSE QUADRO DA ASCENSÃO do amor do físico ao divino moldou a história do amor ocidental de maneiras tão imensas e variadas que não posso fazer mais que escolher algumas de suas influências, embora muitas outras irão se manifestar à medida que consideramos outras concepções de amor que, a despeito de toda sua aparente diferença, dependem decisivamente do pensamento de Platão (seja adotando-o ou opondo-se a ele).”
(p. 73)


A primeira influência a que se refere o autor diz respeito à transformação do amor em um valor supremo. Na verdade, Platão assentou o terreno para que o amor, com o advento do cristianismo, tornasse-se o valor supremo do mundo. Isso porque, com Platão, o amor é desejo pela beleza e pela bondade mais elevada; é também o caminho para a verdadeira virtude e para o eterno e o imutável. Na concepção platônica, amamos o que é belo e o que é bom. Não é possível, a seu ver, amar o que é feio e mau. Com o advento do cristianismo, que incorporou em sua teologia os mandamentos básicos das Escrituras hebraicas, quais sejam, amar a Deus sobre todas as coisas e amar o próximo como a si mesmo, o amor torna-se valor supremo do mundo ocidental e significado mais elevado da vida. A crença de que o sentido da vida é amar ou de que só o amor dá verdadeiro sentido à existência do homem é uma crença calcada sobre a concepção cristã do amor – uma herança deixada ao mundo ocidental.
A segunda influência consiste em inseminar na cultura ocidental a crença segundo a qual a relação sexual constitui apenas o limiar do caminho para o amor elevado. Ela é o meio, mas não o fim do amor. Observa, com propriedade, May que “surpreendentemente, nenhuma medida de liberação sexual afugentou esta visão (p. 74)”. Para May, a grande maioria dentre nós, ainda hoje, não pensa o amor como experiência sexual; ao contrário, tendemos a associar o amor a coisas mais elevadas, tais como ideais ou valores que compartilhamos com o parceiro. Acredita uma grande maioria que o amor deve concentrar-se na alma ou no ser do outro mais do que no seu corpo.
Não se pode tirar a razão de May; no entanto, creio necessário acrescentar que a nossa sociedade é muito mais sexualizada, ao mesmo tempo em que se caracteriza por uma profunda deserotização (Ghiraldelli, 2011). Segundo Ghiraldelli (p. 14), a razão para que se dê esse excesso de sexualização de nossa sociedade está em que as pessoas, sentindo-se embotadas mentalmente, entediadas e cansadas no processo de trabalho, buscam preencher seu vazio com “imagens sexuais”, a fim de estimular a sensibilidade, então arrefecida. Convém insistir que a experiência de amor na contemporaneidade é muito distante da visão platônica de amor. O amor de Platão é amor-Eros. É amor que aspira ao bem, ao belo; é alegre e vivo, sem deixar de ser sexuado; no entanto, é amor que transcende o domínio físico-sexual. No mundo contemporâneo, amor e sexo situam-se em esferas ideológicas diferentes e dissociáveis. A título de exemplificação, lembre-se a canção de Rita Lee Amor e sexo (“amor é divino; sexo é animal” – numa clara evocação da visão platônica). A canção congrega várias representações do amor que configuram o imaginário amoroso do homem ocidental. Na canção, por exemplo, se diz que “amor é um”, o que nos leva à visão, também presente em O banquete, no discurso de Aristófanes, do amor como desejo de fusão. Mas deixemos a canção de Rita Lee para nos concentrar nas seguintes palavras de Ghiraldelli, em Como a filosofia pode explicar o amor (2011), com as quais nos dá testemunho do modo como se dá a deserotização da sociedade moderna:

“Não raro, falamos do amor de maneira muito abstrata, e o temos no dia a dia desse modo, de forma a fazê-lo se perder em seu caminho, sem nenhum objeto, isto é, sem nenhum lugar de chegada. Em outras palavras, geramos o amor sem o amado! Esse equívoco também é resultado da deserotização”.
(p. 17)


Percebe-se, sem muita dificuldade, que, em nossa época, homens e mulheres falam de amor de modo muito abstrato e indefinível; não raro, se demonstram desacreditados do amor, porque incapazes de percebê-lo (interpretá-lo). O amor é amor interpretado, é uma interpretação que chamamos amor (Precht, 2012). No momento em que nós não sabemos bem o que é Eros, tendemos a pensar que ele orbita esferas muito distantes, ou representa um ideal irrealizável para a condição humana.
Volto rapidamente ao mito de Aristófanes, no qual nos conta de seres humanos divididos por Zeus em busca da metade perdida. Esse mito nos ensina algo importante: o amor não é capaz de restituir aos seres humanos divididos ao meio a sua integridade original. A possibilidade mesma de que nunca venhamos a encontrar a nossa metade é algo que a maturidade nos ensina (voltarei a esse ponto). É bem verdade que o amor pode até acalentar em nós o sentimento de restituição da metade perdida, mas ele não chega a no-la permitir completamente. Apenas os deuses podem fazê-lo. Somente um deus poderia unir o que outro deus um dia separou.
Convém ficar claro que, para Sócrates/Diotima, o amor se origina na falta; para Aristófanes, na perda. O homem não mais enfeitiçado pelo amor platônico reconhece que o amor é fonte de demandas, mas as necessidades pressupostas no amor nunca são plenamente satisfeitas. Sabemos disso por experiência própria.
A terceira influência da ideia de amor platônico no mundo ocidental deve ser compreendida considerando-se as seguintes ideias. Em primeiro lugar, o amor platônico se vincula à imortalidade. O amor mais elevado, aquele que transcende a mera relação sexual, deve permite-nos não só contemplar as coisas elevadas, como também nos tornar imortais. Destarte, o amor é um caminho que conduz à essência imutável da beleza e da bondade. Ele nos conduz a um mundo onde as propriedades que nos humanizam, tais como a transitoriedade, a perda, o sofrimento, o acaso, a dor, o mal já não nos definem como tais. Nesse mundo, estamos delas livres. Essa concepção do amor como um caminho de ascensão a um mundo de libertação de condições que nos tornam humanos exerceu grande influência sobre a imaginação do homem ocidental. Ele passou a alimentar a esperança de que o amor tem em si mesmo uma função salvífica e um valor supremo.
Não podemos ignorar as consequências que disso é possível extrair. Em primeiro lugar, pensar o amor de modo tão majestoso, pensá-lo como um caminho que nos conduzirá a contemplar a essência atemporal da beleza lança por terra de modo drástico o valor do amor entre as pessoas. Em segundo lugar, o amar as pessoas pela sua transitoriedade torna-se vicioso. As coisas transitórias, entre as quais incluímos as pessoas, tornam-se menos dignas de amor, simplesmente por serem impermanentes. Só a imortalidade, em cotejo com a transitoriedade, é um valor para o amor platônico. Em terceiro lugar, não é difícil depreender daí a possibilidade de podermos trocar a pessoa amada por outra, desde que esta encarne ao menos o mesmo grau de beleza. Nessa visão, o ser amado torna-se um meio para alcançar um bem maior, quais sejam, nossa imortalidade, a contemplação da beleza imutável e eterna. Não está em mira o aprofundamento da relação com o amado. Segundo May,

“(...) no interesse do florescimento do próprio amante, acaba arrastando o amor mais verdadeiro do pessoal para o impessoal, do individual para o geral e do humano para o, literalmente, desumano”.
(p. 74)


Poderia apenas a beleza ser necessária para nos despertar o amor? Será mesmo que só porque uma pessoa é bela devemos amá-la? Por outro lado, não é verdadeiro que muitas pessoas amam coisas que não são eticamente boas? Para nós, a ideia segundo a qual o amor à beleza implica necessariamente um compromisso com o agir de modo moralmente correto não se sustenta. Nós, modernos, não vemos uma relação necessária entre amor à beleza e compromisso com uma retidão moral, ou seja, com o bem.
Voltemos aos dois mitos do Banquete e consideremos a influência preponderante deles na sensibilidade do mundo ocidental.
Já comentei que Aristófanes propõe um “retorno” a um estado original de integridade e imutabilidade. Trata-se da busca pela metade perdida. O amor é, então, representado como desejo de fusão, desejo de completude. Em Sócrates (Diotima), o amor pressupõe um movimento de ascensão a uma essência divina. Ambas as visões contribuíram decisivamente para moldar a sensibilidade dos homens e mulheres do mundo ocidental: tanto Aristófanes quanto Sócrates deram ao amor o papel de assegurar o imutável e o eterno. Algumas consequências se nos impõem ao espírito.
Nesse momento, o terreno para Eros foi preparado. Eros é o maior dos impulsos de vida; no entanto, o caminho que trilhará, doravante, é o caminho onde o impulso de morte se enraizará. Eros deseja uma satisfação que, a rigor, envolve a superação da vida humana, enquanto indivíduos que existem em limites temporais e que são marcados pela transitoriedade, pela possibilidade de solidão, de perda, de incompletude, de sofrimento e de dor. São os próprios ideias elevados do amor platônico que o dota de uma força destrutiva, ruinosa e mortal. É, possivelmente, no Romantismo alemão do século XVIII ao século XIX que essa força destrutiva do amor se faz claramente marcante. Nesse período, as relações interpessoais passaram a sobrecarregar-se de expectativas irrealizáveis. Em tais condições, não é de surpreender que o suicídio viceje. A esse propósito, nos ensina May:

“A elas [às relações humanas] é atribuída a tarefa de permitir aos amantes entrar em contato com o divino e até tornarem-se divinos; esforçar-se, através de seu amor, para alcançar a imortalidade, e, por fim, aniquilar sua existência como indivíduos encarnados”.
(p. 77)



Claramente aí o excesso do amor implode o ser do homem. Esse excesso é sobrecarga de ideais cuja realização é impossível nos limites da natureza humana. O amor não sabe bem o que quer. Interessante ver que as ideias de contemplação da essência do belo, completude, bem eterno e imutável não passam de representações de uma experiência mística. Nenhuma definição pode compreendê-las.
Eis que, finalmente, uma ideia precisa enraizar-se no espírito do leitor arguto e não mais deslumbrado e inocente: o amor é condicional. E essa proposição vale tanto para as representações míticas do amor em O Banquete quanto para as experiências de amor na vida real. Também o amor, enquanto forma de relação, é relação com o poder. É possível que amor nos conduza a atenuar as tensões nessa relação com o poder, mas ele é incapaz de suprimi-las. Não raro, ele pode, ao contrário, servir de combustível para robustecê-las.
É chegada a idade da maturidade. E com ela aprendemos que o amor é um trabalho arriscado. Há riscos em todo amor. A dura verdade que se nos revela ao coração é que podemos nunca encontrar a nossa outra metade. E, ainda que, por ventura, a encontremos, nem sempre seremos capazes de harmonizar nossa vida com a dela. Os riscos envolvidos no amor é também a vulnerabilidade à perda, à dor, ao sofrimento, ao acaso. Mas não neguemos que a dura verdade é também sinal de maior lucidez.

“Em nossa juventude ainda não descobrimos tampouco que o amor é um empreendimento arriscado em que podemos nunca encontrar nossa outra metade verdadeira (...)”.
(p. 79)



Longe de desprezar o legado das reflexões platônicas sobre o amor, homens e mulheres modernos, certamente, caminharão com mais firmeza no desnivelado terreno amoroso, se souberem aproveitar as lições de autores como José Luiz Furtado e Richard David Precht. Este último, por exemplo, nos chama atenção para o espaço destinado à excitação na experiência amorosa. Para ele, nosso desejo de amor não se confunde, acima de tudo, com um desejo por companheirismo e compreensão, ou por vínculo e acolhimento. Desejamos na mesma medida excitação. Nossas expectativas em relação ao outro fazem apelo a que ele nos entenda e nos torne mais interessante a vida (Precht,  2012, p. 178). Ainda segundo Precht, a experiência da vida real nos ensina que não escolhemos as pessoas mais amorosas para amar. Já Furtado (2008, p. 28) nos faz ver, entre outras coisas, que o gozo não é a realização do amor. Com ele, aprendemos que o amor é uma dificuldade, uma tarefa; e eu acrescentaria – uma prática, um trabalho que envolve tensões, negociações, uma dinâmica que pode, facilmente, produzir as condições para o predomínio do ódio. Também observa Furtado que o amor é a crença de que de dois se possa fazer um. Mas é apenas uma crença; o real basta para pulverizá-la. Segundo Furtado,

“(...) o sexo desfaz essa crença através da certeza, sempre refeita em cada ato sexual, por melhor que ele seja, de que onde há dois, há sempre e reiteradamente, dois”.
(p. 32)

"Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção." (Paulo Freire)


                          


                          Interpretar e compreender
                 Um quadro representativo da leitura

Este texto é minha contribuição para a compreensão do que está em jogo em todo processo de leitura. Ler é uma atividade linguístico-cognitiva de produção de sentidos. Este texto consiste num ensaio sobre as duas macroatividades pressupostas em toda atividade de leitura, quais sejam, a interpretação e a compreensão. Como seja um ensaio, este texto não pretende, evidentemente, dar conta da complexidade do processo de leitura. Um dos meus objetivos é antes suscitar questões do que resolvê-las; no entanto, estou interessado em fornecer um quadro representativo de como o leitor opera ou pode operar quando, no momento mesmo em que lê o texto, busca interpretá-lo e compreender. A leitura é um trabalho sociocognitivo e linguístico de interpretação/compreensão, no qual está envolvido um conjunto de atividades e estratégias de ordem cognitiva e metacognitiva, bem como competências e habilidades diversas. Não tenciono dar conta de todo esse aparato de recursos cognitivos, é claro; mas mencionarei alguns deles.
Embora eu vá definir e desenvolver, adiante, as atividades de interpretação e compreensão separadamente, não suponho que essas atividades sejam estanques ou que uma preceda à outra. Na verdade, quero que o leitor tenha em mente que a compreensão acompanha, ou melhor, está implicada no próprio processo de interpretação, de modo que interpretar é pôr em curso a compreensão, é desenvolver a compreensão. Durante o processo de interpretação, o leitor está operando sucessivas etapas compreensivas. Uma imagem pode nos ajudar a compreender como se relacionam interpretação e compreensão. As etapas compreensivas equivaleriam a cada ponto dado num tecido durante a atividade de costura. Cada vez que uma parte do tecido danificado é restaurada com o traspassar da agulha e da linha a ela presa constitui uma etapa de compreensão. Essa imagem sugere a necessidade de supormos uma compreensão global do texto, mas nunca uma compreensão cabal. Tendo em vista o exposto, considero que interpretar é analisar; e compreender é operar sínteses.

Algumas palavras sobre leitura

Os estudos linguísticos que se ocupam das questões sobre leitura nos ensinam que a leitura é uma atividade complexa durante a qual o leitor mobiliza uma série vasta de competências e estratégias, na busca por construir um sentido (dentre os muitos possíveis) para o texto. Há especialistas que sustentam que o ato de leitura é um ato individual, no qual estão envolvidos os objetivos, os sentimentos e as expectativas do indivíduo leitor. No entanto, esse leitor é um sujeito social que lê, de sorte que, ao interagir com o texto durante a prática da leitura, está interagindo com toda uma comunidade de fala ou uma comunidade sociodiscursiva imaginária e representada no texto. Compreendamos melhor esta noção. É consenso entre os estudiosos de Linguística Textual que, no processo de produção de sentidos (leitura), o leitor interage com o texto e com o autor. A leitura pressupõe, assim, essa interação entre leitor, texto e autor. No entanto, tanto o leitor quanto o autor são sujeitos sociais que pertencem a uma comunidade sociodiscursiva, que é evocada e representada tanto no momento em que o autor produz seu texto (a uma comunidade que fala através dele) quanto no momento em que o leitor “lê” o texto (há uma comunidade que lê com ele). Não estou interessado aqui em evocar a problemática em torno da noção de autor. Essa questão já foi tangenciada em outros textos meus. Para os meus propósitos, apelo para o senso comum e entendo o autor como o ser responsável pela produção do texto escrito, pela garantia de sua coerência; é ele quem responde por seus escritos; é ele que é alvo de censura e a quem deve assinar suas obras. Note-se, de passagem, que Barthes (1968) declarou “a morte do autor”. O autor não é uma pessoa, é uma função-autor (Foucault). Disse, no entanto, que não me deterei nessa problemática.
Reformulando a noção de leitura, por ela entendo um processo sociocognitivo-interacional de produção de sentidos. Emprego o termo leitura pressupondo como objeto dessa atividade o texto escrito; no entanto, é possível ler outras coisas que não textos (gestos, obras de arte, uma situação, a mão, etc.). Recuperando aqui a voz de Paulo Freire, antes de ler um texto, lemos o mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra escrita. 
Antes de prosseguir, gostaria de definir o conceito de cognição. Por cognição entendo um conjunto de processos e atividades mentais (que envolvem atenção, memória, raciocínio, sentimentos, imaginação) assentado numa base de linguagem, que são mobilizados na busca da aquisição, transformação e aplicação do conhecimento. Todo texto é forma de cognição social (Koch, 2004).
Disse, anteriormente, que, no processo de leitura, que pressupõe interpretação e compreensão, estão envolvidos conhecimentos, habilidades, estratégias de ordem vária. Também aí se deve incluir os objetivos, os interesses e sentimentos do leitor. Alguns dos conhecimentos envolvidos são o conhecimento linguístico, o conhecimento prévio sobre o assunto do texto, conhecimento de mundo, conhecimento sobre outros textos com que o texto que é objeto de leitura mantém relações (intertextualidade), conhecimento sobre tipos e/ou gêneros textuais, etc. É importante dizer que cada gênero textual (poema, artigo de opinião, crônica, romance, artigo científico, carta pessoal, carta oficial, etc.) demandará habilidades e estratégias diferentes de leitura. Não lemos um poema do mesmo modo como lemos um artigo de jornal, por exemplo. Também as expectativas do leitor serão diferentes num e noutro caso. Diante de um poema, o leitor busca entendimento e fruição estética, ao passo que, diante de um artigo jornalístico, o leitor busca basicamente conhecer a opinião do jornalista sobre um tema de relevância sociocultural, política ou econômica, embora o entendimento esteja, é claro, aí envolvido. No entanto, um artigo jornalístico não cumpre a função de provocar uma emoção estética no leitor. E o leitor reconhece e espera isso.
Dois tipos de estratégias devem ser consideradas no processo de produção de leitura: estratégias cognitivas e estratégias metacognitivas. As estratégias cognitivas orientam os comportamentos automatizados, quase inconscientes do leitor no processo de leitura e servem à construção da coerência local do texto. As estratégias metacognitivas, a seu turno, dizem respeito ao estabelecimento de objetivos na leitura. É a capacidade pela qual o leitor controla e regula o próprio conhecimento. As estratégias metacognitivas recobrem o estabelecimento de objetivos e a formulação de hipóteses, visto que são atividades em que está implicada a reflexão e o controle consciente sobre o próprio conhecimento, sobre o próprio trabalho interpretativo e sobre a própria capacidade de estabelecer objetivos e formular hipóteses. Por exemplo, um médico que lê artigos científicos especializados em sua área de atuação o faz segundo objetivos previamente determinados. Se ele é um cardiologista, pode estar interessado em conhecer novas formas de tratar doenças cardiovasculares, para o que ele buscará artigos que tratem do assunto.
A formulação de hipóteses está na base do processo de interpretação/compreensão de todo ato de linguagem. Charaudeau (2010) observa que toda interpretação é uma suposição de intenção. Em toda e qualquer atividade linguística, os interactantes estão a cada instante elaborando hipóteses sobre os saberes uns dos outros. Situada na prática de leitura, a elaboração de hipóteses pelo leitor supõe uma atividade durante a qual ele vai elaborando e testando hipóteses à proporção que faz avançar a leitura do texto.
Há outras estratégias envolvidas no processo de produção de sentidos; mas delas não me ocuparei aqui.
Cumpre notar, por fim, que, basicamente, o leitor, no momento mesmo da leitura, opera com seu conhecimento de mundo, o qual envolve saberes sobre o mundo, quer adquiridos em processos de educação formal, quer adquiridos nas experiências vividas cotidianamente em sociedade. Seu conhecimento de mundo, como seja de ordem geral, inclui também saberes de ordem intertextual, de modo que suas experiências de leitura prévias, estruturadas em sua memória em forma de conhecimento, são ativadas por ocasião do processo de interpretação e compreensão textual. Por conseguinte, quanto mais leituras prévias acumulamos sobre um dado tema mais fácil se torna o processo de compreensão do texto. Quanto mais se lê melhor se lê. A leitura é, portanto, um trabalho orientado para o texto que, não se limitando ao texto, mobiliza uma série de conhecimentos, crenças, ideologias e valores exteriores ao texto. O movimento de leitura vai do texto para o exterior do texto. O exterior compreende o que se pode chamar de contexto sociocognitivo, o qual compreende diversas formas de conhecimentos armazenados na memória do leitor e que são ativados por ocasião do processo de leitura. Entre essas formas de conhecimento estão o conhecimento de mundo (ou enciclopédico), o conhecimento linguístico, o conhecimento sociointeracional (relativo a tipos de atos de fala, aos propósitos visados pelo produtor do texto, à variedade linguística empregada, a normas socioculturais de interação linguística, etc), o conhecimento procedural (que compreende os procedimentos pelos quais as demais formas de conhecimento são ativadas pelo leitor no momento da leitura), etc.
No tocante ao conhecimento de mundo, é importante reter que ele é suposto como partilhado entre leitor e produtor do texto. O sucesso do leitor no processo de interpretação e compreensão textual depende de que uma grande parcela desse conhecimento de mundo seja partilhada com o autor. Embora os conhecimentos de mundo do leitor e do autor nunca correspondam totalmente, o sucesso do leitor depende de que uma grande quantidade desse conhecimento seja partilhada com aquele. O produtor do texto, por ocasião da atividade de escrita (para ficar nesse domínio estrito), supõe partilhada com o leitor uma série de conhecimentos sobre o mundo; o produtor constrói, assim, uma imagem-leitor. Também o leitor constrói uma imagem-autor e será tanto mais bem sucedido quanto mais conhecimento de mundo partilhar com o produtor do texto, no momento da leitura. Portanto, falar em conhecimento de mundo é falar em conhecimento de mundo compartilhado.

Interpretar e compreender: o processo de leitura

No processo de interpretação, estão envolvidos conhecimentos, estratégias e habilidades que são mobilizados nessa circunstância pelo leitor. Uma atividade básica em todo processo de interpretação é a produção de inferências. Por isso, entendo por interpretação o processo de produção de inferências com base em nosso conhecimento de mundo. A interpretação é o processo pelo qual o leitor, mobilizando seu conhecimento de mundo, estabelece relações não explícitas entre trechos do texto ou entre segmentos do texto e os conhecimentos prévios armazenados em sua memória e necessários à compreensão. A interpretação tem como atividade básica, portanto, a inferenciação, ou seja, a produção de inferências. Evidentemente, a elaboração de hipóteses também faz parte da interpretação. Interpretar é operar uma análise complexa, para a qual são mobilizados conhecimentos, crenças, estratégias e habilidades variados.
A compreensão é o ponto final do processo de interpretação. Nesse caso, devemos falar em uma compreensão global. Silva (2011), em O Ato de ler – fundamentos psicológicos para uma nova Pedagogia da Leitura, sustenta que ler é compreender (em primeiro lugar, compreender o mundo), ou seja, a compreensão inclui a interpretação. Em outras palavras, para Silva, na compreensão, está implícita a interpretação. A interpretação é constitutiva da compreensão. A compreensão desvela o que estava oculto; a interpretação supõe a presença diante de nós de algo cuja natureza ou estrutura deve ser compreendida. Refiro as palavras oportunas de Silva sobre como devemos entender o significado:

“(...) aquilo que é compreendido não é o significado, tomado no seu sentido bem estrito (significado de livro, ou de qualquer outro objeto). Significado é aquilo que se mantém oculto e que se desvela apenas pela inteligibilidade. (...) o significado não está nas coisas e nos objetos, nem nas palavras e nas proposições, mas constitui uma possibilidade de desvelamento, de atribuição, que é característico do Ser-do-Homem. O significado é a possibilidade que algo possui de tornar-se visível como algo que é.
(p. 34)



Em negrito, destaquei as ideias que nos ajudam a compreender esta passagem de Silva: a primeira diz respeito ao fato de o significado não estar diretamente acessível, mas oculto; a segundo diz respeito ao fato de ele só ser desvelado pela inteligibilidade; a terceira se refere ao fato de ele não estar localizado nas coisas ou nas palavras; a quarta diz respeito ao fato de ele ser virtualidade de desvelamento, ou seja, de ser ele a possibilidade de ser desvelado, de ser atribuído, de tornar algo visível ao entendimento humano como algo que é. O significado, segundo essa última ideia, é o que torna possível a revelação do ser das coisas.  Mas somente o ser humano é capaz de “adivinhar” o significado, ou seja, de significar. Significar para o ser humano é desvelar o ser das coisas. O significado é a condição necessária para que as coisas se mostrem tal como são. É o leitor que atribui significados ao objeto de leitura.
De minha parte, entendo que a compreensão é constitutiva da interpretação. No processo de interpretação, está envolvida a compreensão. A compreensão consiste numa síntese cognitiva a que chega o leitor ao cabo do processo de interpretação. Enquanto a interpretação é o movimento cognitivo que implica um complexo trabalho de produção de inferências e mobilização de saberes e estratégias, a compreensão é o resultado cognitivo desse complexo trabalho.
No entanto, como mencionei anteriormente, no processo de interpretação, o leitor opera sucessivas etapas de compreensão. Isso me parece claro quando consideramos a extensão do texto. Quanto maior for o texto mais etapas de compreensão ocorrerão ao longo do processo de interpretação. Sugerir que a compreensão se dê por etapas não exclui o atingimento necessário de uma compreensão global. A compreensão global é, portanto, o ponto final do processo de interpretação. Em face da interpretação, a compreensão se coloca como meta a que visa o leitor. Logicamente, quem quer que pretenda interpretar alguma coisa visa a compreender essa coisa. Na interpretação, a compreensão é o objetivo final.

O que é compreender na prática?

Penso que a compreensão pode organizar-se em três etapas fundamentais:

1a etapa – identificar a ideia central do texto;
2a etapa – estabelecer uma hierarquização entre as ideias do texto;
3a etapa – reelaborar (por paráfrase) o significado do texto.

A fim de ilustrar de que modo o leitor pode operar no sentido de compreender um texto, segundo o esquema oferecido, proponho que consideremos os dois trechos que se seguirão, colhidos do livro Existencialismo (2013). O primeiro  trecho que se segue abaixo tem como tópico a fórmula de Sartre “no homem a existência precede a essência” :

“(...) a existência do ente precede a essência (...) simplesmente significa que os entes humanos não têm alma, natureza, eu ou essência que os façam o que são. Nós, simplesmente, somos, sem quaisquer restrições que nos façam existir de qualquer modo particular, e somente mais tarde viemos conferir à nossa existência qualquer essência”.
(p. 83)


Ideia central – primeiro o ser humano existe para depois conferir a si uma essência.

Identificada a ideia central, o leitor poderá elencar, sem, necessariamente, estabelecer, neste momento, uma hierarquização de ideias, as demais ideias que constam do texto. Poderá identificá-las atentando para a sequência em que aparecem no texto. Também poderá parafrasear as partes do texto identificadas.

Ideia 2 – o ser humano não tem uma natureza que o define previamente à existência;
Ideia 3 – Não há restrições que definem quem somos.

A atividade de parafrasear é constitutiva do próprio processo de compreensão. A hierarquização das ideias compreende a sequência: ideia central, ideia 2 e ideia 3. É importante atentar para o fato de que, embora pretenda o autor que o segmento que vem depois de “significa que” explique o significado de “a existência precede a essência”, parece claro que seu significado é mais bem explicado no último enunciado do texto, que reelaboramos como ideia central. Ou seja, com base na ideia central, a fórmula “a existência precede a essência” significa que o homem, primeiramente, existe para depois definir para si uma essência. Tanto a ideia central quanto a segunda ideia encaminham a conclusão de que o ser humano é livre para escolher quem quer ser (já que nada que lhe seja exterior ou prévio à sua existência lhe fixa limites ao seu ser).
Durante o processo de interpretação que visa à compreensão, algumas questões deverão ser formuladas pelo leitor. Por exemplo, Sartre pensa gozar o homem de liberdade absoluta ou irrestrita? Sartre não supervaloriza a liberdade no homem? Será que ele está sugerindo que a essência do homem é a liberdade? Essas são algumas das questões que o leitor pode formular e cujas respostas tentará obter ao longo da leitura (supondo-se a continuação do texto).
Veja-se o próximo trecho:

“A liberdade humana precede a essência do ente humano e a torna possível; a essência do ente humano está suspensa em sua liberdade. O que chamamos de liberdade é impossível de distinguir do ser da “realidade humana”. O ente humano não existe primeiro a fim de ser subsequentemente livre, não existe diferença entre o ser do ente humano e o seu ser livre”.
(p. 86)


Este trecho foi colhido da obra O ser e o Nada do próprio Sartre e oferecido pelo autor de Existencialismo (2013).

Ideia centralA liberdade humana é anterior à essência do ente humano;
Ideia 2 – A liberdade torna possível a essência do ente humano;
Ideia 3 – A liberdade não se distingue da “realidade humana”;
Ideia 4 – A existência não precede à liberdade humana;
Ideia 5 – O ser do ente humano não difere do seu ser livre.


O tópico discursivo é a liberdade humana. Note-se que, na ideia central, Sartre declara que a liberdade, agora, precede à essência humana. Então, primeiro o homem é livre. A liberdade é condição sui generis do homem, graças à qual ele pode escolher a sua essência. É o que nos ensina na segunda ideia. A liberdade do homem permite a ele definir uma essência para si. A terceira ideia sugere que a liberdade e a condição humana são a mesma coisa. Uso o termo “condição humana” como equivalente à realidade humana. No entanto, penso que por realidade humana, Sartre entende o modo de existir que é inerente ao homem. Esse modo consiste em ser livre. Por isso, ser humano e ser livre são uma mesma coisa. A quarta ideia nos diz que o homem não existe primeiro para então ser livre. Logo, existir para o homem é ser livre. Isso é confirmado na última ideia, em que Sartre diz que o ser do ente humano é ser livre, ou seja, não há diferença entre ser humano e ser livre.
Alguns comentadores de Sartre sugerem que a essência humana, em Sartre, é a própria liberdade. No entanto, o próprio Sartre diz que a liberdade “torna possível a essência do ente humano”, do que se conclui que a essência é outra coisa que não a liberdade. Por outro lado, ele mesmo diz não ser possível traçar uma distinção entre a liberdade e o ser da realidade humana. Se Sartre entende por “ser” a essência e por “realidade humana” o modo de existir próprio do homem, a interpretação segundo a qual “a essência do homem é a liberdade” se torna lícita, não obstante Sartre dizer que a liberdade precede à essência. Nesse caso, não se deve responsabilizar o leitor, mas o próprio Sartre que não parece ter-se esforçado por buscar a clareza na exposição de suas ideias.
Seja como for, uma ideia é clara: segundo Sartre, não há existência para o homem que não suponha sua liberdade. Existir para o homem é ser livre. Creio que esse último enunciado sintetiza bem a compreensão do referido trecho de Sartre. Mas insisto em que a compreensão é sempre um trabalho em cujo desenvolvimento se abrirão lacunas ou caminhos para novos sentidos. Pode-se alcançar – e é necessário que assim se faça – uma compreensão global do texto, mas nunca uma compreensão definitiva que aprisiona o sentido. Vale sempre a lição: os sentidos são múltiplos e tomam direções diversas.
O leitor alcança a compreensão global quando é capaz, ao final, de reelaborar com suas próprias palavras o sentido atribuído ao texto. Evidentemente, esse sentido não pode ser qualquer um; mas tem de estar previsto pelo texto. Tem de estar entre os sentidos potenciais do projeto de dizer do produtor do texto, ainda que de todos os sentidos possíveis o produtor não esteja nem consciente nem sobre o controle.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

"Este texto fora escrito por um estudioso ateu, que se aventura na busca pela verdade" (BAR)


                      


                       Um breve retrato do Senhor Deus
                           O segundo relato do Gênesis


Jack Miles, eminente estudioso bíblico, ex-seminarista jesuíta e autor de Deus – uma biografia (2009), adota como premissa primeira desta sua obra a ideia de que Deus é uma personagem de uma extraordinária obra literária chamada Bíblia. Outra premissa consiste na ideia de que nem a personagem nem a obra são inumanos. Nas palavras do autor, “(...) não se encontra na própria Bíblia nada que nos autorize a ver Deus como um assunto a ser evitado em respeitoso silêncio” (p. 23). Acolho a observação do autor e ponho-me, aqui, então, a escrever sobre Deus, a tomá-lo para assunto a ser perquirido neste texto. Não silencio, visto que, tal como Jack Miles, também entendo que Deus é uma personagem – a principal - forjada por homens que viveram no Antigo Oriente Médio e a quem devemos atribuir a autoria dos textos que, muito tempo depois, reunidos, compuseram o que hoje chamamos de Bíblia. É difícil saber quem foram esses homens (certamente pertenciam a pequena elite letrada), mas o fato é que só a Bíblia hebraica (não incluindo aí a Bíblia cristã, cujos textos foram produzidos na metade do tempo) fora fabricada pelas mãos de muitos homens ao longo de mais de mil anos.
Veremos, neste texto, como Miles entende a participação de Deus no livro do Gênesis. Partirei do momento da narrativa em que Deus cria o homem. Ainda estamos no primeiro livro do Gênesis. E nele somos informados de que o homem foi criado à imagem de Deus. Miles levanta a seguinte questão: “Por que dar à humanidade essa versão do domínio divino?” (p. 40). A resposta oferecida pelo autor é que, dessa forma, a humanidade se torna uma imagem mais adequada de Deus, que comanda a criação. Também Miles se pergunta por que Deus ordena aos seres humanos que criou que se reproduzam e se multipliquem. Miles responde que, ao fazê-lo, Deus lhes confere a imagem de criadores também. Assim, Deus cria outro ser que também é criador.
Uma questão importante aventada por Miles, em sua análise da personagem Deus, na trama narrativa do Gênesis é a que diz respeito à razão por que Deus criou o mundo. Acompanhemos o que nos ensina o autor, nesse tocante:


“(...) Deus faz o mundo porque quer a humanidade e quer a humanidade porque quer uma imagem. Outros motivos podem estar igualmente em jogo. Para citar um relacionado ao Oriente Próximo, ele podia querer um servo. Para escolher outro, posterior em sua própria história, ele podia querer uma amante. Podia querer até um adorador (...)”.

(p. 41)


Miles, contudo, pensa que, neste momento, a Bíblia não permite endossar qualquer um dos motivos sugeridos posteriormente. Ele mantém que Deus quer uma imagem e, por isso, cria o homem.  A essa altura, outra pergunta se nos impõe: Por que Deus ia querer uma imagem de si? O autor reconhece que a narrativa não nos permite chegar a uma resposta exata; ela nos deixa à deriva das especulações. Nota o autor que o texto inclui um “nós” que faz referência ao próprio Deus. Esse “nós” incluiria as noções de macho e fêmea? O texto não poderia ser mais claro: Deus é retratado como um ser masculino e no singular. Miles observa também que nada sabemos da vida privada de Deus. O que ele fazia antes da Criação? Teria ele uma vida social com outros deuses? O que está claro é que faltava à vida de Deus um relacionamento com seres humanos. Estamos muito distante aqui da crença famigerada na autossuficiência de Deus. Se Deus criou os seres humanos, criou porque tinha alguma necessidade de fazê-lo. Quem quer que crie o faz segundo suas necessidades.
Miles nos ensina que no ato de Criação não há nenhum esforço despendido por Deus; no entanto, é notável o fato de que Deus, como um ser humano, descansa no sétimo dia. Atento a isso, Miles lança-nos a pergunta: “Será que custou-lhe mais esforço do que percebemos de momento? (p. 42)”. A essa pergunta, segue-se esta outra: “Será mais fraco do que demonstra?”. O autor observa ainda duas coisas que ao leitor comum passam despercebidas: em primeiro lugar, após criar o macho e a fêmea humanos, Deus lhes ordena que se multipliquem. No texto, aparece o enunciado “E assim se fez”. No entanto, naquele momento, eles ainda não tinham procriado. Em segundo lugar, Deus não diz da criação do homem que é boa, ele o diz em relação à criação como um todo (“Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom”).
Não nos deixemos de nos impressionar com o relato segundo o qual Deus teria descansado no sétimo dia após a Criação. Miles é muito perspicaz em notar que “Deus já é, nesse primeiro momento de sua história, uma mistura de força e fraqueza, de determinação e arrependimento” (p. 42). Espero que o leitor que me acompanha atente para o modo como o autor vai-nos revelando a personalidade e a humanidade de Deus. A ambivalência patente que compreende força e fraqueza é um caso característico da humanização da própria natureza de Deus pelo narrador.
Sabe-se que a Bíblia inclui dois livros do Gênesis. O segundo relato da criação, cuja fonte original é independente, inicia-se com a substituição do termo elohim, traduzido como Deus, pelo termo yahweh elohim, que significa “Senhor Deus”. A expressão “o Senhor”, observa Miles, é usada para traduzir yahweh, mas ela traduz melhor a palavra hebraica edonay, que significa “meu Senhor”. Essas distinções linguísticas na forma como os antigos judeus chamavam a Deus serão importantes, porque permitirão a Miles distinguir num mesmo Deus duas personalidades. A primeira personalidade será denominada de “Deus”; a segunda, de “Senhor Deus”.
Consoante observa Miles, o segundo relato de Gênesis, lido, por vezes, em continuidade com o primeiro, deixa ver claramente uma tensão entre o criador e a criatura humana. Nas palavras do autor:


“A humanidade não é mais situada “na terra”, concebida como um gigantesco paraíso natural no qual deve ser fecundada e multiplicar-se, mas sim em “um jardim no Éden, na banda do Oriente”, que Deus plantou e deu ao “homem”, para que plantasse e cuidasse. E o domínio que a humanidade deveria exercer como imagem de Deus é também restringido”.

(p. 43)


Deus impõe limites à liberdade de ação e dominação humana. É nesse momento que Deus estabelece a primeira proibição: “De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que comeres, certamente morrerás” (Gên., 2: 17). Deveríamos nos pergunta por que Deus plantaria uma árvore cujos frutos estariam proibidos ao homem? Miles ventila a questão em outros termos: “se o homem deve dominar a terra (relembrando o primeiro relato da criação), por que não lhe é permitido o conhecimento do bem e do mal?” (p. 43). Mas ao homem não se lhe oferece qualquer razão. Na verdade, a que é oferecida não faz sentido algum. Para Miles, “o Senhor Deus desta segunda história da criação parece notavelmente mais ansioso no confronto com sua criatura do que parecia o Deus da primeira”.
O Senhor Deus, que é outra personalidade diferente, portanto, da personalidade de Deus no primeiro relato da Criação, não vê bondade no homem. Deus cria a mulher a partir de uma costela do homem. Com o surgimento da mulher na cena narrativa, surge também o papel fundamental da serpente. Miles não vê na serpente um adversário de Deus. Nesse tocante, levanta as questões:


“Será a serpente sua rival? Ou será todo o episódio da tentação, por assim dizer, uma fraude? Será a serpente o agente secreto ou involuntário do Senhor Deus?
(p. 45)


Não se pode negar que a serpente, ao seduzir a mulher a comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, não mente para ela sobre o fato de que, se o fizesse, morreria. A serpente diz a verdade, e a mulher (Eva) e o homem (Adão) não morrem ao desobedecer à ordem do Senhor Deus.
Uma interpretação teológica tradicional, intentando conferir à serpente o papel de enganador, mantém que o casal experimentou uma morte espiritual, conhecida como “A Queda do homem”. Trata-se do famigerado “pecado original”. Miles objeta que “a narrativa que estamos lendo não é muito dada a significados espiritualizados ou puramente simbólicos, sendo-lhe, contudo, extremamente caras as histórias de enganos de todos os tipos” (p. 45). Em outras palavras, a interpretação teológica tradicional que vê na desobediência do homem uma morte espiritual, uma queda no pecado que condena todas as gerações posteriores, não é autorizada pelo texto do Gênesis. Miles propõe, ao contrário, buscar a origem do conflito no próprio Senhor Deus, em cujo caráter conflitam impulsos bons e maus. Para Miles, é o próprio Senhor Deus que causa as dores e as infelicidades da vida de suas criaturas.
O leitor precisa ter em conta, a esta altura, que, neste segundo relato de Gênesis, atua outra personalidade de Deus, chamada “Senhor Deus”. Espero também que não haja qualquer dúvida para o leitor sobre o caráter mítico das narrativas dos Gênesis. Não quero, contudo, sugerir um sentido negativo ao afirmar que o Gênesis é um mito bíblico. É verdade que mitos são histórias constitutivas de todas as religiões. Os mitos versam sobre a criação do mundo, do cosmo, sobre a natureza humana e dos deuses. Mitos contam a verdade sobre nós e, segundo Armstrong (2005: 15), eles servem de um guia, orientando-nos a viver de modo completo. Não obstante sua importância na construção da história e da identidade de um povo, mitos são histórias ficcionais, e não relatos históricos reais. No tocante à narrativa do Dilúvio, que consta do Livro do Gênesis, os especialistas estão de acordo em que a história bíblica é produto de uma releitura ou readaptação do mito babilônico, em que também se relatava uma enchente que destruiu o mundo. Acompanhemos as palavras de Miles, ao nos ensinar que:


“(...) A crítica histórica percebeu há muito a semelhança da história do dilúvio bíblico tanto em sua estrutura geral como numa variedade de detalhes importantes, como o mito equivalente da Babilônia. Naquele mito, como neste, passaram-se dez gerações entre a criação do mundo e sua destruição, a ira divina resulta numa enchente: o herói veda o seu barco com piche; depois a divindade sente o cheiro de uma oferenda, e assim por diante”.
(p. 62)


Ainda notando a influência sofrida pelo texto bíblico, Miles nos ensina que na Antiga Mesopotâmia, a criação era retratada como uma expressão da vitória da divindade sobre o caos. O caos era representado por uma deidade rival (um dragão aquático ou um monstro de enchentes). Miles observa que “existe sem dúvida um eco dessa batalha mítica na punição dada pelo Senhor Deus à serpente por haver tentado a mulher” (p. 46). O autor acrescenta, no entanto, que a versão bíblica tornou a serpente uma espécie de terceira personalidade do Senhor Deus. Para Miles, a serpente não é um oponente de Deus.


“O material mítico antigo foi tão profundamente reescrito que a serpente – a terceira personalidade absorvida na personalidade divina emergente – não é mais um deus rival, mas (remetendo-nos ao primeiro relato da criação) meramente uma criatura de Deus”.
(p. 46)


Caberia perguntar: quem criou a serpente? Ora, o próprio Senhor Deus, logo, com Miles, não é custoso dizer que o Senhor Deus é responsável pelos atos da serpente. É possível ver também na serpente a personificação da razão: a razão que leva ao conhecimento, que induz Eva a provar do fruto do conhecimento do bem e do mal. Aparentemente, não fazia parte do plano de Deus conceder ao homem tal conhecimento e liberdade. O que levanta a questão do livre-arbítrio, conceito desenvolvido por Santo Agostinho muito tempo depois. O Deus criador não estava disposto a dar nenhum livre-arbítrio ao homem, essa questão não se coloca na narrativa. Duas outras questões também ficam irrespondíveis: por que Deus criaria uma árvore de cujos frutos o homem e a mulher não podiam comer? O Senhor Deus do segundo livro do Gênesis não dá sinal de que é onisciente. Se o fosse, ele saberia tanto que a serpente tentaria Eva a comer do fruto proibido quanto que Eva assim o faria. Deus não só repreende a serpente, mas a si mesmo. Consoante nota Miles,


“(...) Aquilo que no politeísmo poderia ser dirigido para o exterior, contra uma divindade rival, no monoteísmo – mesmo um monoteísmo que fala ocasionalmente na primeira pessoa do plural – tem de se transformar num arrependimento voltado para o interior do Senhor Deus”.

(p. 46)


O criador se arrepende e seu arrependimento constitui o aparecimento do criador como uma personagem literária. É interessante ver que o Senhor Deus descobre a desobediência do homem e da mulher. E ainda pergunta ao homem: “Onde estás?”. Se pergunta, é porque não sabia. Miles observa ainda que a forma como Deus se dirige ao homem e a mulher, repreendendo-os, é a forma como qualquer ser humano faria ao se dirigir a outro ser humano. A linguagem do Senhor Deus não tem nada de majestosa, se comparada com a linguagem do Deus do primeiro relato do Gênesis. Todavia, na vingança, a linguagem do Senhor Deus assume uma forma mais poética e majestosa:


“Então o Senhor Deus disse à serpente:
“Visto que isso fizeste,
maldita és entre todos os animais domésticos
e o és entre todos os animais selváticos:
rastejarás sobre o teu ventre
e comerás o pó
todos os dias da tua vida
Porei inimizade entre ti e a mulher,
Entre a tua descendência e o seu descendente
(...)”


Miles reforça a ideia de que a serpente não é um oponente de Deus. No que se segue, ele é bem claro a esse respeito:


“(...) qualquer ideia de conflito cósmico é frustrada pelo fato de a serpente ter falado a verdade a respeito da árvore sobre a qual o Senhor Deus mentiu. A serpente parece ser o bobo de Deus mais do que o seu grande inimigo, e o castigo imposto pelo Senhor Deus ao casal humano parece, consequentemente, quase um ato arbitrário”.

(p. 48)



Até aqui, o perfil da personalidade do Senhor Deus pode ser traçado considerando seu modo de agir vingativo, brutal e arbitrário. O Senhor Deus é quem estabelece uma proibição e que pune pela desobediência ao seu mandamento. O Senhor Deus, ao contrário do Deus da primeira narrativa do Gênesis, não é tão generoso. Não só ele deu às suas criaturas humanas apenas uma porção de terra, mas também as privou dela. Miles nos lança duas perguntas importantes, a essa altura:


“Por que o Senhor Deus, que pacientemente organizou para o homem um cortejo de todos os animais numa tentativa de achar uma companheira para ele, tem de reagir com uma impaciência tão brutal diante da desobediência de uma mulher e do erro aparentemente inocente do homem? Nesses primeiros momentos tão cruciais, que tipo de relacionamento entre o Senhor Deus e a humanidade podemos ver?

(p. 49)


No segundo relato do Gênesis, o Senhor Deus não cria o homem à sua imagem; cria-o do pó. Ademais, a nudez do casal torna-se uma questão de interesse, o que não sucedia no primeiro relato. Mas Miles entende que o segundo relato continua o primeiro relato, de sorte que o pó, o desejo e a vergonha dizem muito sobre o caráter da divindade, o modelo a partir do qual o homem foi criado e do qual é uma imagem. “E na longa e emocional explosão – escreverá Miles – que acabamos de citar o Senhor Deus age de fato como o original de uma criatura humana feita de pó e paixão (p. 49)”.
Comparado ao Deus do primeiro relato, o Senhor Deus é menos poderoso e generoso, e, certamente, é mais vingativo. Sua ira não tem razão de ser. Segundo Miles, “para o Senhor Deus, tudo depende da obediência ao seu enganoso mandamento (p. 50)”. A obediência não é uma questão no primeiro relato. É importante insistir na aproximação do Senhor Deus de suas criaturas humanas. Há uma aproximação física, decerto. Deus as toca e, por isso, torna-se mais assustador para elas. Novamente, as palavras de Miles lançam alguma luz sobre este ponto:


“Como personagem, o Senhor Deus é tão perturbador quanto alguém que detém um imenso poder e parece não saber o que fazer com ele. Até esse ponto, o poder do Senhor Deus parece menor do que o poder de Deus. Mas, da forma como se manifesta, esse poder nos perturba. As motivações para o exercício desse poder estão em conflito, e esse conflito ocorre num relacionamento incomodamente íntimo”.

(p. 50)


Preciso esclarecer um ponto importante. O Deus do primeiro relato criou a humanidade à sua imagem. Ele queria criar um ser que fosse a imagem de si mesmo. Diferentemente, o Senhor Deus do segundo relato cria o homem para que ele o faça companhia.
Não pretendo ser exaustivo na apresentação da compreensão de Miles da natureza e personalidade de Deus no segundo relato do Gênesis. Muito ainda haveria para ser dito. Por limites de tempo e espaço, abreviarei este texto, não sem, antes, dar a saber a perplexidade do autor diante do fato de o temperamento de Deus oscilar rápida e facilmente entre a ira explosiva e a doçura, com que cura a ferida que ele mesmo infligiu. Assim se expressa Miles:


“Note-se que o Senhor Deus não se limita a fornecer as roupas de peles para as suas criaturas envergonhadas, punidas e humilhadas, ele próprio veste seus corpos nus com essas roupas. Súbito e íntimo, esse gesto quase paternal é, como teremos ocasião de ver depois, característico do Senhor Deus”.

(p. 52)


Não obstante, isso não o torna amável e adorado pelas criaturas humanas. Uma última questão é ventilada por Miles: “Se a única motivação de Deus ao fazer a humanidade era que a humanidade fosse imagem de Deus, e se Deus vive para sempre, então por que não permitir que a humanidade viva para sempre? (pp. 52-53)”. Miles sugere que a imortalidade poderia assegurar a obediência do homem e da mulher ao único mandamento explicito por Deus: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a”.
Por fim, gostaria de referir este trecho em que Miles reforça a afinidade entre o Senhor Deus e a serpente:


“A preocupação expressa pelo Senhor Deus nos leva [ a de que, uma vez que comam do fruto da árvore do conhecimento, o homem e a mulher tornar-se-iam conhecedores do bem e do mal] de volta à nossa observação anterior de que seus propósitos ameaçadores compreendem também os propósitos supostamente hostis da serpente. O Senhor Deus, semiconscientemente como é, parece estar jogando um jogo duplo. Ele não formula para os primeiros humanos a explicação, a determinação de que a humanidade não se torne um de nós [Deus]”

(p. 53)


Deixo a cargo do leitor as implicações desencadeadas por este texto.