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quarta-feira, 8 de abril de 2020

"As instituições não se reduzem ao simbólico, mas elas só podem existir no simbólico". (Castoriadis)


                                   Jornalista E Fotógrafo Dos Desenhos Animados Elementos, Notícias ...

                                    Discurso e poder
                         Uma abordagem sociocognitiva


A relação entre discurso e poder quase nunca é evidente para os usuários da língua em geral. Isso se deve, em parte, ao fato de que discursos veiculam relações de poder, muitas vezes, veladas.  De que modo o discurso constitui, legitima e reforça relações de poder? Essa é a questão basilar do presente texto. Pretendo responder a ela a partir da abordagem sociocognitiva do discurso proposta por Van Dijk. A fim de que a tarefa, a cuja realização me dedicarei, logre sucesso, cuido indispensável a definição prévia dos conceitos de discurso, cognição, contexto, e poder.
No tocante à compreensão do discurso, Dijk observa que o discurso é um fenômeno multidimensional. Assim, o discurso pode ser, segundo o autor:
a) uma totalidade formada de sequências significativas, ou seja, palavras ou sentenças (nesse caso, o discurso se identifica com o texto);
b) um ato de linguagem (asserção, ameaça, etc.);
c) uma forma de interação social (gêneros discursivos tais como conversa, telefonema, etc.);
d) uma prática social (palestra, por exemplo);
e) uma representação mental (um modelo mental, uma opinião, conhecimentos);
f) um produto cultural (uma telenovela).

Não obstante as múltiplas formas pelas quais o discurso se realiza, Dijk admite ser possível uma definição operacionalmente razoável de discurso.  Na esteira da abordagem sociocognitiva proposta por Dijk, o discurso é forma de ação  e interação social  situada em situações sociais das quais os participantes não são apenas falantes, escritores, ouvintes ou leitores, mas sobretudo atores sociais pertencentes a grupos e comunidades culturais. Destarte, o discurso não é um objeto autônomo. Não basta, portanto, analisá-lo tendo como escopo apenas a sua materialidade linguística (frases, textos, palavras). O discurso é resultado de uma interação social, histórica, cultural e politicamente situada. Por conseguinte, é necessário, para fins de análise, levar em conta as relações entre a materialidade linguística do discurso e as estruturas sociais,  tais como, por exemplo, a família, a escola, as corporações midiáticas, posições de poder, movimentos sociais, instituições governamentais, etc.
Uma vez que os participantes do discurso são atores sociais que pertencem a grupos específicos numa mesma cultura geral, o discurso jamais é neutro, mas é sempre cultural e politicamente marcado. Ora, do fato de que são social, cultural, histórico e politicamente situados os atores sociais, segue-se que eles não são completamente livres para usarem as construções discursivas como quiserem. As estruturas sociais condicionam a produção dos discursos produzidos pelos usuários da língua, mas não de modo direto. Em outros termos, as condições sociais, culturais, políticas e situacionais não influenciam diretamente a produção do discurso. A abordagem sociocognitiva do discurso proposta por Van Dijk esteia-se na tese segundo a qual as estruturas societárias ou situacionais só podem influenciar o discurso pela mediação das representações mentais dos sujeitos sociais. Vale insistir: os elementos da situação comunicativa não afetam diretamente a produção do discurso; na verdade, a relação entre a situação social (entendida como fragmento “demarcado espaço-temporalmente de mundos sociais possíveis” (Dijk, 2012, p. 45)) e o discurso só pode ser estabelecida pela intervenção da interface sociocognitiva. Portanto, é a definição, a interpretação, a representação ou a construção cognitiva da situação social, feitas pelos participantes do discurso, por meio de seus contextos sociocognitivos, que influenciam o modo como eles falam, escrevem, leem e compreendem. Antes de compreendermos como opera a interface sociocognitiva a partir da definição de contexto, cumpre esclarecer o que devemos entender por cognição, nos limites estritos da abordagem sociocognitiva proposta por Dijk.
Em consonância com a abordagem sociocognitiva do discurso, tal como proposta por Dijk, pode-se definir a cognição como o conjunto de várias formas de conhecimento que, não sendo totalizado pela linguagem, é de sua responsabilidade. A cognição recobre as atividades mentais associadas ao pensamento, ao conhecimento, à memória e à linguagem. Os processos cognitivos como a linguagem e/ou a significação não são tomados à margem das rotinas significativas da vida em sociedade.  Portanto, a cognição é resultado das nossas ações e de nossas capacidades sensório-motoras. A cognição é um fenômeno situado, o que significa dizer que não há limite claro entre o que acontece dentro e o que acontece fora da mente. A cognição é um efeito da relação complexa entre ações sociais e atividades mentais. As tarefas que realizamos conjuntamente com os outros constituem rotinas culturalmente determinadas que organizam os processos cognitivos dos indivíduos em conformidade com demandas sociais.
A interface sociocognitiva esteia-se na visão de que sãos os modelos de contexto que permitem explicar que o que controla o modo como falamos não é um ambiente social objetivo, mas nosso modo de compreender ou construir subjetivamente a situação social. Modelos de contexto são, portanto, a interface entre a sociedade, a situação social imediata (por exemplo, profiro uma palestra no auditório de uma universidade) e o discurso. Os modelos de contexto são modelos mentais. Embora formados a partir de experiências pessoais, os modelos de contexto baseiam-se em conhecimentos socioculturais e outras crenças socialmente compartilhadas. Os modelos de contexto encerram as propriedades sociais e cognitivas dos eventos comunicativos, tais como os papéis sociais dos participantes, suas intenções e conhecimentos.
Para Dijk, contextos são tipos especiais de modelos mentais. E modelos mentais são representações cognitivas de nossas experiências. Em certo sentido, os modelos mentais são nossas experiências, se entendermos que experiências são interpretações pessoais daquilo que acontece conosco. Tais experiências pessoais ou modelos mentais armazenam-se na Memória Episódica, a qual faz parte da Memória de Longo Prazo. Dijk evita, portanto, o contextualismo ingênuo característico das teorias sociolinguísticas. Elementos situacionais como gênero, classe social, etnia, idade, posição e poder não operam objetivamente nem deterministicamente sobre o discurso, ou seja, tais restrições situacionais não determinam diretamente o que um sujeito diz em dada situação. As estruturas sociais não se relacionam com o discurso de modo direto. Elas se relacionam com o discurso pela mediação (interface) do contexto sociocognitivo. Chama-se, pois, contexto sociocognitivo ao conjunto de conhecimentos, propósitos, expectativas, opiniões, crenças, bem como ao conjunto de todos os sistemas de conhecimento (enciclopédico, linguístico, comunicacional, etc.) armazenados na memória dos interactantes e que precisam ser mobilizados por ocasião da interação verbal. A ativação desse contexto será indispensável para que o curso interacional se desenvolva, se mantenha e atinja um bom termo.
O contexto, para Dijk, é um constructo cognitivo, é uma representação mental que os participantes do discurso fazem das propriedades relevantes da situação social na qual interagem e na qual compreendem textos falados e escritos. O contexto media as relações entre a estrutura social e o discurso. A concepção sociocognitiva de contexto não é determinista. Destarte, indivíduos diferentes podem falar de maneiras diferentes mesmo quando se encontram e uma situação social semelhante.  Isso é possível porque os participantes do evento discursivo têm representações mentais subjetivas das estruturas sociais. São as distintas representações mentais que eles têm que lhes conferem certa liberdade para fazerem suas escolhas temáticas, lexicais e sintáticas por ocasião da produção de seus discursos. Mas devemos atender no fato de que essa liberdade é relativa. Por outro lado, são essas representações mentais que permitem aos analistas do discurso reconhecer a relativa liberdade de que gozam os sujeitos e os condicionamentos sócio-históricos e linguísticos que regulam o comportamento discursivo deles.


Contexto é um modelo mental de uma determinada situação comunicativa


O contexto, à luz da abordagem sociocognitiva de discurso, é a representação social que os participantes do discurso fazem da situação comunicativa com base em seus esquemas mentais. Portanto, contexto não é o conjunto de elementos sociais extralinguísticos (ambiente social, papel social, idade, gênero, etc.) aos quais se relaciona o discurso, mas a representação mental que os participantes do discurso fazem desses elementos. Cumpre, doravante, elucidar o que são esquemas mentais.
O processamento do armazenamento da Memória Episódica e da Memória de Longo Prazo (ou memória semântica) se dá por meio de esquemas mentais. Os esquemas mentais são estruturas de conhecimentos preexistentes na memória. Assim, quando os interactantes produzem ou interpretam um texto, eles já trazem um conjunto de crenças e conhecimentos prévios (background) estruturados mentalmente. São esses esquemas mentais que funcionam como interface entre a estrutura social e o discurso. Dois tipos de esquemas mentais são relevantes para a produção e interpretação dos textos:

a) frames: constituem conjuntos de conhecimentos armazenados sob certo “rótulo”, sem que seja necessário ordenação entre eles. Recobrem um padrão de conhecimentos fixos, estabilizados na memória. São estruturas de conhecimentos mais gerais numa comunidade ou sociedade.
 Por exemplo, o frame Carnaval ativa em nossa memória uma série de conhecimentos. Se somos brasileiros, especialmente cariocas, pensamos em blocos de rua, Cordão do Bola Preta, Desfiles das Escolas de Samba, alegorias, fantasias, Marquês de Sapucaí, etc. Nós possuímos uma série de conhecimentos sobre esse frame. Assim também, o frame Show ativa uma série de saberes a respeito da experiência relativa a show em geral. Sabemos que há uma banda ou cantor, normalmente, que se apresenta; há o palco onde eles tocam; há um lugar próprio para a realização do espetáculo. Para participar do show como espectadores, precisamos comprar ingressos, etc.

b) scripts: recobrem conjuntos de conhecimentos sobre modos de agir estereotipados em uma dada cultura, incluindo-se aí modos de comportar-se  linguísticamente. São um tipo de esquema mental mais dinâmico, como, por exemplo, saber fazer um pronunciamento.

A língua dispõe de várias fórmulas de cortesia. Pensemos também nos rituais religiosos, como batismo. Quando vamos a um enterro, assumimos determinados comportamentos previstos culturalmente para essa situação. Dizemos “meus pêsames pelo falecimento de seu marido”, ou algo parecido; mas não “sinto muito por seu marido ter batido as botas”.
Se, por exemplo, o Presidente da República vai à Câmara dos Deputados fazer um pronunciamento, os frames ‘’Presidente da República’  e ‘Câmara dos Deputados’ e o script ‘fazer um pronunciamento’ são ativados na mente dos participantes do evento discursivo, de modo que eles vão buscar em sua memória os conhecimentos e as crenças que julgam relevantes para a escolha de estratégias de produção e interpretação textual para aquele evento em particular. Frames e scripts permitem aos sujeitos sociais a produção de inferências sobre as propriedades do episódio que não são imediatamente acessíveis. A inferenciação é uma atividade linguístico-cognitiva básica no processo de compreensão textual. Ao interagirmos socialmente por meio de textos, não nos limitamos a apreender os conteúdos proposicionais dos enunciados a que somos expostos, mas, a todo momento, estamos derivando deles, com base no diversificado conjunto de saberes de que dispomos, conteúdos implícitos. 
Os elementos que fazem parte de um esquema mental são armazenados na memória do indivíduo ao longo da vida e são prototípicos. Assim, temos uma ideia prototípica do que é um mamífero: um animal de sangue quente, com pelos, que amamenta. É devido a essa prototipicidade que ficamos confusos quando descobrimos que um mamífero como o ornitorrinco põe ovos e um mamífero como o morcego voa.
Os frames variam de acordo com a diversidade das comunidades socioculturais. Assim, pessoas que vivem em comunidades socioculturais diferentes terão esquemas mentais diferentes. As representações mentais são controladas pelos esquemas mentais, os quais são constituídos de conhecimentos e crenças arquivados na Memória de Longo Prazo. Conquanto as representações mentais feitas pelos participantes do discurso sejam subjetivas e únicas, elas também se constituem de grandes quantidades de conhecimentos e outras crenças socialmente compartilhadas. O conhecimento cultural, portanto, é a base de todas as crenças avaliativas, incluindo as opiniões, atitudes e ideologias socialmente partilhadas. Pessoas diferentes, que possuem posicionamentos ideológicos, muitas vezes, conflitantes, precisam compartilhar um conhecimento cultural geral no qual se baseiam tais posicionamentos. A existência de esquemas mentais diferentes explica por que as pessoas fazem diferentes representações cognitivas de um mesmo fenômeno social que, por isso, não é o mesmo fenômeno para pessoas diferentes.
Em suma, para Dijk, contexto é definido como constructo mental, que constituirá a ponte entre os elementos da estrutura social e o discurso, ou entre a situação social imediata e o discurso.

Poder e ideologia

Para Dijk, poder é controle social de um grupo (ou seus membros) sobre outros grupos (ou seus membros). Assim, discursos expressam relações de poder. O discurso produz e reproduz a dominação social, ou seja, o abuso de poder de um grupo em relação a outros grupos, mas também serve para realizar movimentos de resistência a tal abuso de poder. A maneira como os discursos expressam e sustentam relações de poder é através da veiculação de posições ideológicas. Por isso, é extremamente importante compreender o que são ideologias e como elas funcionam discursivamente.
Para Dijk, ideologias são crenças sociais gerais e abstratas que são compartilhadas por um grupo e que controlam e organizam as opiniões, as atitudes e os conhecimentos específicos desse grupo. A ideologia, segundo Dijk, é uma forma de cognição social, ou seja, a ideologia “é uma estrutura cognitiva complexa que controla a formação, transformação e aplicação de outros tipos de cognição social, tais como o conhecimento, as opiniões e as posturas, e de representações sociais como preconceitos sociais”. (Dijk, 2008, p. 48). Ideologias consistem em estruturas de normas, valores, metas e princípios socialmente relevantes que são selecionados e empregados de modo tal a favorecer a percepção, a interpretação e a ação nas práticas sociais que atendem aos interesses de um grupo como um todo. A ideologia dota de coerência as atitudes sociais, as quais, por sua vez, determinam as práticas sociais. É extremamente importante salientar que “todas as ideologias (incluindo as científicas) englobam uma (re)construção da realidade social dependente de interesses”. (ibid.).
O discurso desempenha um papel fundamental tanto na formação quanto na transformação das estruturas ideológicas. Por isso, o analista do discurso está interessado em examinar quem e mediante quais tipos de processos controla os meios ou as instituições de (re)produção ideológica, tais como os meios de comunicação e as instituições de ensino. As ideologias, enquanto cognição social, influenciam a construção social da realidade, as práticas sociais e a (trans)formação das estruturas sociais. Cada um dos elementos estruturais da ideologia (filiação, atividades, metas, valores, normas, posição, relações de grupo e recursos sociais) pode servir de base para a delimitação de um grupo. Assim, um grupo social é um conjunto de sujeitos que compartilham determinadas características que lhes dão o sentimento de pertencimento. Por exemplo, o elemento “valores e normas” mostra como as ideologias são sempre avaliativas. Segundo a orientação valorativa da ideologia, nosso grupo sempre está correto e é normal, ao passo que os outros sempre estão errados ou são anormais. Discriminam-se os elementos da estrutura ideológica, como se segue:

a) filiação: quem somos nós? De onde viemos? Como nós somos? Quem pode se tornar um membro de nosso grupo?

b) atividades: o que nós fazemos? O que se espera de nós? Por que estamos aqui?

c) metas: por que fazemos isso? O que nós queremos realizar?

d) valores e normas: quais são os nossos valores fundamentais? Como nós avaliamos a nós mesmos e aos outros? O que deve e não deve ser feito?

e) posição e relações de grupo: qual é a nossa posição social? Quem são nossos inimigos, nossos adversários? Quem é igual a nós e quem é diferente de nós?

f) Recursos: quais são os recursos essenciais de que nosso grupo dispõe ou precisa dispor? (poder econômico, poder político, cor de pele, civilização ocidental, etc.).

Nunca é demais lembrar que os discursos, sendo produzidos por sujeitos social, cultural, histórica e politicamente situados, jamais são neutros, mas sempre ideologicamente condicionados. Todavia, nem todos os sujeitos têm consciência desse fato, o que torna mais fácil o trabalho de manipulação das opiniões e das ações das outras pessoas.
Acresça-se que as ideologias vão sendo constituídas ao longo da vida das pessoas à proporção que elas se deixam afetar pelos discursos de seus pais, mães, professores, líderes religiosos, escritores, músicos, políticos, jornalistas, colegas, etc. A exposição a esses discursos vai influenciar a maneira como os indivíduos representam e/ou constroem os fenômenos sociais. A influência que esses discursos exercem está diretamente relacionada às posições de poder ocupadas pelos atores sociais que (re)produzem esses discursos, fato, aliás, óbvio quando se consideram mães, pais e professores, cuja autoridade é vista como natural por filhos e alunos. Destarte, os discursos formadores de ideologias são mais diretivos e explícitos em casa e na escola. Por outro lado, quando consideramos os discursos de jornalistas e escritores, a influência ideológica tende a exercer-se de modo mais sutil e velada, o que não significa dizer que tais discursos não sejam formadores de ideologias.
Importa, por fim, enfatizar que ter ou não consciência da orientação ideológica de um discurso é resultado dos esquemas mentais que as pessoas têm e que, integrados em um contexto sociocognitivo, mediam as relações que os atores sociais – participantes do evento discursivo - estabelecem entre o discurso e a estrutura social. O trabalho dos analistas do discurso contribui para tornar patentes as orientações ideológicas materializadas/veiculadas nos textos que circulam nas diversas esferas sociais de uso da língua. Tais orientações ideológicas, muitas vezes, não sendo óbvias para os leitores e ouvintes, podem ser decisivas para a manutenção da desigualdade e das injustiças sociais. As escolhas lexicais e sintáticas feitas pelos produtores de textos são sempre controlados pelos seus modelos mentais. Nem sempre essas escolhas são conscientes, mas, quando feitas pelas elites simbólicas (jornalistas, políticos, líderes religiosos, publicitários, escritores) -, elas são sempre conscientes.
Quando pensamos a relação entre poder e discurso, devemos, pois, assumir que poder é controle social do discurso dos outros. As pessoas não são livres para falar ou escrever quando, onde, para quem, sobre o que ou como elas querem; mas são parcial ou totalmente controladas por outras pessoas, grupos ou instâncias que gozam do poder de exercer controle, tais como o Estado, a polícia, a mídia ou uma empresa interessada na supressão da liberdade da escrita e da fala. O poder, como controle social do discurso dos outros, obriga também as pessoas a falar ou escrever como um grupo ou instância quer que elas falem ou escrevam.


Uma amostra de análise

Convém oferecer, doravante, um recorte de análise que vise a demonstrar como o discurso pode exercer controle sobre os modelos mentais de ouvintes e leitores. Van Dijk sugere que a análise comece levando em consideração as macroestruturas semânticas, ou significados globais, que são o tema ou tópicos discursivos. Essas macroestruturas semânticas são importantes porque elas são conscientemente escolhidas pelo produtor do texto. Elas expressam as informações subjetivamente mais importantes do discurso e marcam o conteúdo geral dos modelos mentais dos eventos. Tópicos ou temas são informações mais facilmente memorizadas pelos leitores. São caracteristicamente tópicos ou temas os títulos, os resumos e sumários.
Terminada a análise das macroestruturas semânticas, Dijk recomenda que o analista do discurso concentre sua atenção nas microestruturas semânticas ou significados locais, atualizadas pelas escolhas lexicais e sintáticas feitas pelo produtor do texto e também pelas relações entre conteúdos explícitos e implícitos, tais como as pressuposições, e por outros recursos imagéticos, tais como metáforas e metonímias. Os significados locais são o resultado da seleção feita pelos falantes/escritores de conhecimentos, crenças, ideologias constitutivas de seus modelos mentais. Ademais, tais significados influenciam diretamente os modelos mentais e, portanto, as opiniões e atitudes dos leitores e ouvintes.
Considere-se, para fins de análise, o seguinte texto, sem autoria específica, publicado pelo jornal Correio da Bahia, em 19 de abril de 2011.

Fernando Henrique comete erro de português em artigo

DESLIZE – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso cometeu um erro de português num artigo sobre o PSDB, distribuído a sites e blogs e publicado no endereço eletrônico do partido. O erro foi revelado ontem pela colunista Mônica Bergamo, do Jornal Folha de S. Paulo. No texto, FHC diz que “existe ou existiu até a pouco certa carga fiscal”. O correto é “existiu até há pouco”. O ex-presidente Lula cometia diversos erros de português em seus pronunciamentos. O que chama a atenção no caso de FHC é que ele é extremamente culto e estudado. O ex-presidente é sociólogo formado pela USP, já lecionou na Universidade de Paris e fala fluentemente diversos idiomas, como o francês e o inglês, além do português.


A fim de que fiquem claras as orientações ideológicas que atravessam o texto, é importante saber que o Correio da Bahia pertence à família do ex-senador Antonio Carlos Magalhães, falecido em julho de 2007. Esse jornal é um meio de comunicação à disposição de um grupo político de direita, afinado com grupos ruralistas e com outros grupos conservadores da sociedade brasileira. Um dia antes da publicação desse texto, FHC desafiara Lula para disputar uma eleição presidencial. Essas informações são relevantes porque fornecem pistas sobre que estruturas ideológicas são compartilhadas pelos editores do jornal.
Levando em conta, em primeiro lugar, as macroestruturas semânticas, é notável a preocupação do autor do texto com a correção linguística, o que revela a orientação linguística normativista do jornal. Essa preocupação do autor é a mesma que se expressa no patrulhamento linguístico das elites brasileiras. Após relatar o suposto “erro” linguístico cometido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o autor introduz, sem nenhuma razão aparente, uma informação sobre o ex-presidente Lula: “O ex-presidente Lula cometia diversos erros de português em seus pronunciamentos”. Sem deixar de ser curiosa, a menção aos erros de português cometidos pelo ex-presidente Lula não é por acaso. Ao lembrar que Lula “cometia diversos erros” em seus pronunciamentos quando era presidente, o autor do texto simplesmente aproveita a ocasião para desqualificar Lula. Como sabemos que o jornal Correio de Bahia é controlado por grupos de direita, conservadores, alinhados ideologicamente com as elites brasileiras, e que politicamente fazem oposição a Lula, o autor do texto reproduz essa oposição que é tanto política quanto de origem sociocultural. A expressão do compromisso do autor com o  posicionamento político-ideológico do jornal se torna inegável quando consideramos que, não fazendo mais qualquer referência a Lula, o autor passa a fazer valorações positivas de FHC.
Quando, num segundo momento, consideramos os significados locais, não podemos deixar de notar o uso de expressões valorativas como “extremamente culto e estudado” para caracterizar Fernando Henrique Cardoso. Expressões como estas não só assinalam avaliação positiva, podem, como acontece no texto, orientar o leitor a anuir às seguintes conclusões:

1. Se o erro de português cometido por FHC causa surpresa, os “diversos erros de português”  que Lula, supostamente, cometeu não surpreendem devido à falta de sua formação acadêmica;
2. Fernando Henrique Cardoso é um político mais competente que Lula.

Como se vê, o objetivo do Correio da Bahia é criar uma imagem negativa de Lula e uma imagem positiva de FHC, a despeito de este ter cometido também um suposto “erro de português”, que, aliás, é categorizado como “DESLIZE” (uma forma linguística que conota ‘atenuação, suavização’), o que reforça a ideia de que o que se considera “erro linguístico” depende da origem sociocultural do falante. A avaliação positiva de FHC, que se identifica com grupos de elite, e a construção de uma imagem negativa de Lula, que se identifica com as camadas populares, encenam, no âmbito ideológico, o velho embate etnocêntrico entre NÓS e os OUTROS.


O controle do discurso público: o discurso jornalístico

Hegemonia, conceito-chave do pensamento de Gramsci, designa o modo como um poder governante conquista o consentimento dos governados ao seu domínio. A noção de hegemonia recobre as ideias de ‘consentimento’ e ‘coerção’. Uma poderosa fonte de hegemonia política é a suposta neutralidade do Estado. A hegemonia caracteriza o fato de o poder de grupos dominantes integrar-se a leis, regras, normas, hábitos e a um consenso geral. Os grupos podem exercer maior ou menor controle sobre outros grupos, ou podem controlar certos grupos em situações específicas. Por seu turno, grupos dominados podem, em maior ou menor grau, aceitar, consentir, legitimar esse poder – até mesmo achá-lo “natural”-,  ou podem resistir a ele.
A Análise Crítica do Discurso (ACD) cumpre, como uma de suas preocupações, a tarefa de explicitar e explicar como os grupos que gozam de maior poder controlam o discurso público e como o discurso público passa a controlar a consciência de indivíduos e a ação de grupos (menos poderosos) e quais são as consequências sociais desse controle (por exemplo, desigualdade social, exclusão de minorias, etc.). O acesso à comunicação e ao discurso público, ou o controle exercido sobre essas instâncias, representa um importante recurso simbólico que define a base do poder de um grupo ou instituição.
A maioria das pessoas tem um controle ativo tão somente sobre as conversas cotidianas com membros de sua família, amigos ou colegas. A maioria delas tem controle passivo sobre, por exemplo, os discursos da mídia. Em muitas situações, as pessoas comuns são simplesmente receptoras passivas, em menor ou maior grau, de textos orais e escritos, produzidos, por exemplo, por seus chefes, professores e autoridades como oficiais de polícia, juízes, burocratas da previdência social ou auditores fiscais. Todas essas autoridades dizem em que a maioria de nós deve acreditar (ou não acreditar)  e o que podemos (ou não) fazer.
Por outro lado, membros de grupos e instituições sociais que gozam de maior poder – mormente as elites – detêm o privilégio do acesso mais ou menos exclusivo a um ou mais gêneros de discurso público, exercendo controle sobre esses gêneros. Destarte, os professores universitários controlam o discurso acadêmico; os professores de escola, o discurso educacional; os jornalistas, o discurso midiático; os advogados, o discurso jurídico; os políticos, o discurso da política e de outros assuntos públicos. Quanto maior for o controle dos agentes sociais sobre a maior quantidade de discursos, sobretudo os mais influentes, tanto maior será o poder exercido por esses agentes.
No que se seguirá, serão apresentadas algumas considerações sobre o poder da mídia, com especial destaque ao discurso jornalístico.
Não resta dúvida de que a mídia é um instrumento ou espaço de poder no mundo contemporâneo. Não resta dúvida de que ela desempenha um papel sobremaneira relevante na disputa pela hegemonia, na promoção de ideias identitários, na regulação e normatização de comportamentos, na administração da memória, na constituição da chamada opinião pública e na formulação de agenciamentos democráticos. Sim, a mídia é um poderoso dispositivo simbólico capaz de influenciar significativamente, de formas variadas, a vida cotidiana e a atuação política dos indivíduos – isto é, a maneira como eles agem, sentem, desejam, lembram, convivem e resistem. Entretanto, a mídia não é apenas um instrumento de dominação burguesa; é também uma instância de luta político-cultural, na qual se confrontam diferentes discursos, ideologias e forças sociais. Destarte, ao mesmo tempo que a mídia legitima e sustenta a ação coercitiva do Estado, moldando a vontade política da sociedade, ela oferece também um espaço dinâmico e dialógico de manifestações contra-hegemônicas, de expressão e encenação de vozes dissonantes de atores sociais interessados na criação de novas formas culturais de viver e na criação de uma nova ordem social.
Quando pensamos na influência da mídia na formação da opinião pública, devemos ter em conta que o que se chama de “opinião pública” é sempre um ponto de contato entre o consenso e a força. Os chamados órgãos formadores da opinião buscam captar e expressam o consenso da maioria, consenso este que justifica, legitima e dá sustentação ao poder e à ação coercitiva do Estado. O Estado, quando pretende tomar medidas impopulares, cria preventivamente a opinião pública que lhe é adequada, a fim de obter o consenso geral. Se é verdade que a Rede Globo e um jornal de grande circulação nacional como a Folha de São Paulo cumprem inegavelmente uma função de direção político-cultural, não se deve daí concluir que sejam meros porta-vozes dos interesses das classes dominantes. A Rede Globo, a Folha, o Estado de São Paulo, a Veja constituem um coletivo intelectual que se ocupa da formulação e da elaboração sistemática da ideologia indispensável à dominação do grande capital financeiro. Todas essas instâncias midiáticas modelam a opinião pública e criam o clima cultural favorável e indispensável às reformas liberais de um Governo, como por exemplo, às privatizações do Governo de Fernando Henrique Cardoso.
A mídia, como partido, “captura” as “paixões elementares” das massas, organiza-as e acomoda, com bastante eficiência, a visão de mundo da sociedade às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e aos interesses dos grupos de poder.
A maneira mais elementar e provavelmente mais fácil de o discurso jornalístico formar a opinião pública e expressar o consenso da maioria é reforçando a crença na objetividade do próprio discurso jornalístico. Como o homem comum acredita que usamos a língua para nos referir a um mundo externo de objetos que existem previamente e independentemente da linguagem e da percepção-cognição humanas, não surpreende que ele imagine que, diante de uma notícia que está lendo, ele está diante do que realmente aconteceu. Por acreditar numa relação especular entre a linguagem e o real, o homem comum crê que usamos a língua para falar de um mundo de objetos discretos previamente existente e que a função da língua é apenas fornecer descrições fiéis de estados-de-coisas no mundo. É preciso, no entanto, quebrar o encanto!
O homem, enquanto ser social, é construtor do mundo; e o homem é construtor do mundo porque ele é aberto para o mundo. Consoante ensinam Berger & Luckmann (2007, p. 142), “a experiência humana, ab initio, é uma exteriorização contínua”. Ao se exteriorizar, o homem constrói o mundo em que se exterioriza. No processo de exteriorização, o homem projeta na realidade seus próprios significados. O homem é produtor de significados, e estes significados não existiam antes do advento do homem. Para que fique clara a importância da linguagem no modo como experienciamos a realidade, devemos atentar para como Berger & Luckmann definem o que chamam de universo simbólico:

“O universo simbólico é a matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais. A sociedade histórica inteira e toda a biografia do indivíduo são vistas como acontecimentos que se passam dentro deste universo.” (ibid., p. 132).


Note que os autores ensinam que todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente experienciados como reais são produzidos por essa matriz criadora chamada “universo simbólico”. Ainda segundo os autores, “toda a realidade social é precária” e “todas as sociedades são construções em face do caos”. (ibid., p. 141). Os universos simbólicos, sendo sempre construções linguístico-cognitiva-sociais, recobrindo e totalizando a realidade humanamente dotada de sentido e o cosmo inteiro, proclamam o valor da existência humana – valor, no entanto, que inexiste fora desses universos simbólicos. Os universos simbólicos são as extensões máximas da projeção humana de significados na realidade. Quando eles são questionados e abalados quer por movimentos sociais contestatórios ou revolucionários, quer quando são ameaçados por epidemias e pandemias, a fragilidade da realidade social que eles sustentam é exposta. É o universo simbólico que integrará e unificará todos os processos institucionais. Graças a essa integração e unificação realizadas pelo universo simbólico, a sociedade inteira ganha sentido. Instituição e papéis particulares são legitimados por sua localização em um mundo compreensivelmente dotado de sentido. O universo simbólico ordena a história, o que significa dizer que ele localiza os acontecimentos coletivos numa unidade coerente que abriga o passado, o presente e o futuro. No que diz respeito à sua relação com o passado, o universo simbólico estabelece uma “memória” que é compartilhada por todos os indivíduos socializados na coletividade. O universo simbólico também constrói um quadro de referência comum para a projeção de ações individuais. Assim, o universo simbólico cumpre a função de ligar os homens com seus predecessores e seus sucessores numa totalidade dotada de sentido, possibilitando a eles transcender a finitude da existência individual e conferindo significado à morte individual. Finalmente, o universo simbólico permite que todos os membros de uma sociedade possam conceber-se como partes integrantes de um universo dotado de sentido, que existia antes de terem nascido e que continuará a existir depois de morrerem. É toda a comunidade empírica de seres humanos que é transportada para um plano cósmico e tornada majestática e ficcionalmente independente das vicissitudes da existência individual. Novamente é Berger & Luckmann que assinalam o papel fundamental da linguagem na fabricação social da realidade:

“A linguagem é capaz não somente de construir símbolos altamente abstraídos da experiência diária, mas também de “fazer retornar” estes símbolos, apresentando-os como elementos objetivamente reais na vida cotidiana. Desta maneira, o simbolismo e a linguagem simbólica tornam-se componentes essenciais da realidade da vida cotidiana e da apreensão pelo senso comum desta realidade. Vivo em um mundo de sinais e símbolos todos os dias.” (ibid., p. 61).


A linguagem constrói esquemas de classificação ou categorização para diferenciar objetos em gênero e número. A linguagem constrói campos semânticos ou zonas de significação linguisticamente circunscritas. Por exemplo, a soma das objetivações linguísticas referentes ao meu trabalho constitui um campo semântico que ordena de maneira significativa todos os acontecimentos da rotina que encontro em meu trabalho diário. Nos campos semânticos assim construídos, a experiência, tanto biográfica quanto histórica, pode ser objetivada, conservada e acumulada.
Contrariamente ao realismo ingênuo, o homem não se relaciona com um mundo povoado de coisas independentemente da linguagem e as quais seriam nomeadas pelas palavras, que funcionariam como espécie de “etiquetas” para essas coisas. O referente é um evento cognitivo, produto de nossa percepção moldada discursivamente. A práxis, definida como conjunto das atividades humanas que engendram não só as condições de produção, mas, sobretudo, as condições da existência de uma sociedade, modela a percepção/cognição e gera a significação do mundo. O indivíduo percebe o mundo e o capta intelectivamente através de “óculos sociais”. São através dos estereótipos da percepção, isto é, dos padrões ou modelos perceptivos que vemos a realidade e que fabricamos o referente. A língua une de modo indissociável percepção e cognição, impedindo o indivíduo de ver a realidade de um modo ainda não programado pelos corredores de estereotipação. Assim, nossa cognição está submetida a um processo de estereotipação contínuo, de sorte de que consideramos real e natural todo um universo de referentes e realidades fabricadas.
Todos os significados produzidos pelos universos simbólicos são socialmente construídos. Há uma íntima relação entre percepção, cognição, linguagem e cultura. São os sujeitos que constroem, mediante práticas discursivas e cognitivas, social e culturalmente situadas, as versões públicas do mundo. Segue-se daí que as categorias e objetos de discurso (os referentes) não preexistem às práticas discursivas e cognitivas, mas são elaborados nessas práticas e transformados segundo contextos.
Interpretar é necessariamente uma operação sociocognitiva por meio da qual o sujeito nunca constrói o sentido em si, mas sempre para outro sujeito. Destarte, toda experiência social é semiotizada: atua-se numa situação social investida de sentido e reconstruída pelos esquemas mentais dos interactantes.
As categorias cognitivas ou linguísticas não existem a priori como entidades ontológicas (coisas no mundo). Elas são construídas no processo de referenciação, por meio do qual objetos cognitivos e discursivos são construídos nas práticas intersubjetivas das negociações, das modificações, das ratificações de concepções individuais e públicas do mundo.
Tendo em vista o exposto, urge reconhecer que o discurso jornalístico não produz senão uma ilusão de objetividade. O mundo que nos é representado nas notícias ou nas reportagens é um mundo que passou por processos de edição, ou seja, um mundo redesenhado, redefinido num trajeto atravessado por milhares de filtros até aparecer no rádio, na televisão ou no jornal. A notícia, embora seja um produto real que pode ser lida ou vista, é sempre um símbolo, já que se põe no lugar de outra coisa. Não obstante, a famigerada objetividade do discurso jornalístico é alardeada por especialistas como um princípio ético que torna os gêneros jornalísticos práticas discursivas comprometidas com a “verdade”. Acontece que a crença na objetividade apaga a existência de um sujeito interpretante. Evidentemente, a objetividade do jornalismo é difundida pelos próprios meios de comunicação como garantia de credibilidade e como forma de manter a confiança de seu público, que espera saber o que é e o que não é verdade sobre o mundo. A suposta imparcialidade e neutralidade das informações veiculadas e a afirmada independência do repórter visam a assegurar que o produto midiático é um espelho da realidade. O jornalista seria, assim, responsável por produzir cópias fiéis da realidade.
O leitor, imaginando que está diante do que realmente aconteceu, ignora todo o processo de criação e seleção existente no ato de reportar um fato. Sem embargo, uma vez estejamos convencidos de que há uma complexa interação entre cognição-percepção, linguagem e práticas culturais na fabricação da realidade, o que chamamos de “fatos” são constructos sociocognitivos, em cuja base estão teorias, conceitos, sensações, sistemas, contextos, conhecimentos, linguagem. O discurso jornalístico não descreve ou retrata o mundo objetivo, o mundo aparente e externo à nossa consciência, mas fornece uma versão imagética do mundo, constrói a realidade segundo uma série de processos que culminam na fabricação do fato jornalístico. O jornalismo opera um tratamento simbólico da realidade, mas jamais um retrato do mundo.
Ao pretender relatar os acontecimentos do mundo, o discurso jornalístico discrimina objetos (fatos) já previamente selecionados e nomeados por uma pauta escrita (lista), uma teoria subjacente ou esquemas mentais. Depois de apurada, ou seja, depois que se ouvem possíveis testemunhas do ocorrido e que fontes tenham sido checadas, esta lista e todos os dados são usados para a redação de um texto – a notícia ou a reportagem -, que não sendo um retrato fiel da realidade, é um modelo, uma versão pública do real, cuja construção depende da interface linguístico-cognitiva. Não se trata de negar que exista um mundo externo à mente, mas de fazer compreender que as formas como experienciamos/percebemos o mundo são estruturadas pela linguagem. Vemos e distinguimos as “coisas” como são percebidas e categorizadas pela linguagem.
O discurso jornalístico trabalha tanto com fatos sociais quanto com fatos institucionais. Os fatos sociais dizem respeito a tudo que ocorre na vida em sociedade, a estruturas e contextos, a ambientes onde a atividade social humana acontece. Os fatos institucionais, por sua vez, pressupõem o consenso humano. Exigem uma instituição humana para existir. Por exemplo, para que um pedaço de papel seja considerado um dinheiro, é necessário que seres humanos concordem entre si em atribuir a ele a função de representar sistematicamente o valor de outras coisas em suas relações comerciais. Fatos institucionais não são naturais, mas criações, ficções humanas.
Do repórter que noticia determinado acontecimento até o telespectador/leitor que sobre esse acontecimento se informa, a “realidade” é submetida a vários processos de reconstrução, seleção, adaptação e edição, que tornam o produto final algo diferente e estranho à realidade “objetiva”. A objetividade aparente da informação é, por si só, um instrumento de legitimação de todo o processo de codificação. O leitor de um jornal, por exemplo, acredita estar recebendo um “retrato” da realidade sem distorções ou manipulações. Sob a aparência de se fazer um trabalho objetivo, ao noticiar apenas um fato tal como aconteceu, vela-se um poderoso aparelho ficcional (de invenção, de criação), mediante o qual a realidade é fragmentada, reunida, editada, adaptada e interpretada segundo a ideologia da instituição jornalística. Em suma, a notícia ou a reportagem não é a “realidade”, mas uma representação ou construção ficcional da realidade. Habitando os porões da vida cotidiana, o homem comum ignora que “a linguagem constrói (...) imensos edifícios de representação simbólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana como gigantescas presenças de um outro mundo”. (ibid.). Quando se trata de pensar em que medida a existência humana é dependente de uma rede simbólica tecida e mantida pela linguagem, convém sempre atentar para a lição de Castoriadis:

“Tudo o que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele. Os atos reais, individuais ou coletivos – o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a natalidade – os inumeráveis produtos materiais sem os quais nenhuma sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre não diretamente) símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica”. (Castoriadis, 1982, p. 142).




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A fabricação social da realidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
DIJK, van Teun A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.
____________. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2008.
OLIVEIRA, Luciano A. Van Dijk. In: OLIVEIRA, Luciano Amaral. Estudos do discurso: perspectivas teóricas. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Coerência e Coesão textuais - Processos de produção de sentido

                     
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                             Coerência e coesão
                Por um ensino de língua portuguesa baseado em textos



 A despeito de os primeiros escritos em Linguística Textual datarem do final da década de 1970, no Brasil, eles só ganharam fôlego na década de 1980. Nestes mais de trinta anos de pesquisa em Linguística Textual no Brasil, nossos estudiosos do texto, sempre interessados em contribuir para a discussão sobre quais devem ser os objetivos perseguidos por uma pedagogia linguística interessada em desenvolver verdadeiramente a competência comunicativa dos aprendizes, precisam, ainda hoje infelizmente, enfrentar a resistência das práticas formalista-prescritivistas de ensino de gramática que reduzem o estudo do português à análise de sua estrutura sem qualquer preocupação com a dimensão funcional de suas unidades. Em Lutar com as palavras: coesão e coerência (2005), Antunes patenteia-nos a persistência daquelas práticas na escola:

(...) ainda persistem os exercícios de formar frases, cada uma solta da precedente ou da seguinte, o que contraria nossa própria experiência de usuários da língua, que nunca nos comunicamos formando frases soltas, ou juntando palavras (...). (p. 30)


Ora, nós nos comunicamos através de textos. A interação por meio da língua se realiza através da produção de textos, nas mais variadas situações sociais das quais participamos. Textos, independentemente de sua extensão, são as reais unidades de comunicação. Se aceitamos, portanto, que o ensino de língua só faz sentido se for pautado pelo objetivo de desenvolver a competência comunicativa dos nossos alunos, não se pode mais admitir que se continue insistindo na prática habitual de estudo gramatical que reúne descrição, prescrição e classificação à crença (enganosa) de que se poderá conseguir, assim, com que nossos alunos “falem e escrevam melhor”. Segundo a autora, ainda são muito frequentes, em sala de aula, as atividades que tomam o texto como pretexto para o estudo de análise gramatical da língua (análise basicamente morfossintática), sem qualquer preocupação com a funcionalidade de suas unidades. O texto, quase sempre, é usado como um ‘corpo’ donde se extraem fragmentos que se prestam à análise morfossintática e à classificação gramatical. Consoante Antunes,

O pior é que, com isso, ficamos com a ilusão de que estamos estudando o texto. Na verdade, o texto não chega a ser objeto de estudo, pois, como disse, as tarefas continuam as mesmas: as de circular dígrafos, as de grifar substantivos, as de distinguir com cruzes orações substantivas de adverbiais e outras semelhantes. Ainda não se deu, portanto, o salto qualitativo esperado pelas propostas da linguística do texto. (p. 31).


De que modo, então, é possível promover um ensino de português que, sem dispensar a preocupação com a gramática, assuma o estudo do texto como o momento fundamental da busca por atingir o que deve ser seu verdadeiro objetivo: o desenvolvimento da competência comunicativa dos aprendizes? Este nosso texto pretende lançar alguma luz sobre o caminho a que essa questão forçosamente lança todos os que nela se interessam.
Devemos ter em conta, em princípio, o fato de que, ao escolhermos trabalhar com textos efetivos, não estamos, de modo algum, abandonando a gramática. É preciso deixar claro que, a rigor, é impossível dispensar a gramática ao ensinar língua. O que muda, quando tomamos os textos como objeto de estudo, é a concepção de gramática e o modo como a enfocamos. Será necessário, então, dar a conhecer como devemos entender a gramática ao nos preocuparmos com o estudo do texto, ou melhor, ao nos preocuparmos com o estudo dos processos de produção de sentidos que se deixam apreender no exame da forma como os textos se constituem e funcionam. A questão, então, que deve nos ocupar, ao tomarmos o texto como objeto de estudo nas aulas de português, é: como um texto produz sentido? Ou ainda: como usamos textos para negociar sentidos? A língua, como já mostramos em outras ocasiões, serve a duas funções básicas: 1) constituir nossas experiências de mundo, transformando-as em conteúdos significativos de nossa consciência; 2) tornar possível a interação social por meio da troca de significados. A produção de textos – as unidades significativas em que a língua se manifesta efetivamente – destina-se a preencher essas duas funções.
Comecemos, pois, por apresentar e definir alguns pressupostos conceituais sobre os quais uma proposta de ensino de língua que tome o texto como objeto de preocupação deverá, necessariamente, encontrar apoio. Será necessário, portanto, esclarecer os conceitos de gramática, língua, linguagem, texto e contexto. Esses conceitos serão apresentados e definidos no quadro da abordagem sociocognitivo-interacionista da linguagem, cujas bases terão de ser também apresentadas. Num segundo momento, darei a conhecer de que modo o estudo dos fenômenos da coerência e da coesão constitui uma atividade necessária ao alcance do objetivo, anteriormente fixado, para o ensino de língua a falantes nativos dessa língua.


1. A abordagem sociocognitivo-interacionista
1.1. Uma revisão histórica da Linguística Textual

A abordagem sociocognitivo-interacionista constitui o estágio culminante de um processo de desenvolvimento dos estudos do texto, cujo início foi marcado pelo interesse na compreensão dos mecanismos interfrásticos tomados como parte do sistema gramatical da língua. Este período, em que os estudiosos estavam interessados na produção de gramáticas do texto, identifica-se com a fase inicial da Linguística Textual.
A fase inicial da Linguística Textual se estende da segunda metade da década de 1960 até meados da década de 1970. Nesse período, predominava o estudo dos mecanismos interfrásticos do texto. Os estudiosos se debruçavam sobre as relações interfrasais e transfrasais que eram responsáveis por fazer de uma construção linguística um texto. O texto era concebido, portanto, como uma “frase complexa”, uma unidade hierarquicamente superior à frase. Entre os fenômenos estudados nesse período, destacam-se a correferência, a pronominalização, a seleção do artigo, a ordem das palavras, a relação tema/rema, a concordância dos tempos verbais, etc.
O enfoque do estudo de textos era ainda predominantemente formalista. Na medida em que os estudiosos reconheceram o texto como uma unidade linguística superior à frase, passaram a se interessar pela construção de modelos de gramáticas textuais. Assim, os estudos desenvolvidos nesse período deveriam permitir a descrição de categorias e regras de combinação de unidades responsável pela textualidade. Segundo Koch (2004, p. 5), as tarefas básicas de uma gramática do texto eram as seguintes:

1) tornar patente o que faz com que um texto seja um texto, ou seja, determinar seus princípios de constituição, os fatores responsáveis pela sua coerência, as condições em que se manifesta a textualidade;

2) estabelecer critérios que possibilitem a delimitação de textos;

3) diferenciar as várias espécies de textos.

Foi também nesse período que se propôs a existência de uma competência textual inspirada no modelo de competência linguística chomskyana. Destarte, passou-se a assumir que todo falante de uma língua tem a capacidade de distinguir um texto coerente de um amontoado de frases incoerentes. A competência textual também habilita o falante para parafrasear, resumir um texto, para reconhecer se um texto está completo ou incompleto, para atribuir-lhe um título, ou ainda para produzir um texto a partir de um título.
O interesse pela construção de gramáticas de texto, que se justificava, sobretudo, pela percepção de que existem propriedades gramaticais que ultrapassam os limites das sentenças, como, por exemplo, as relações semânticas[1], fez-se acompanhar da necessidade de descrever e pôr a descoberto as macroestruturas profundas que se identificam com o componente semântico da gramática. Vários estudiosos passaram a se ocupar com fenômenos semânticos, como as cadeias isotópicas e as relações semânticas entre enunciados do texto não articulados por conectores. O texto passou a ser visto como sequência coerente de enunciados, mas, nessa fase, a coerência, conquanto começasse a se diferençar da coesão, ainda era encarada como coerência sintático-semântica.
Podemos encontrar em um autor como Charolles (1978. apud. Koch, 2004), por exemplo, a especificação de quatro condições ou macrorregras que garantiriam a coerência textual no domínio estritamente sintático-semântico:

1) repetição: a coerência de um texto depende de que, em seu desenvolvimento linear, exista a recorrência de elementos.

No trecho abaixo, ilustro, em negrito, a macrorregra da repetição. A coerência do texto é garantida pela repetição dos elementos “leitura”, “mundo” e “palavra”.

(1) (...) A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.


A palavra “leitura” recorre três vezes no texto. Os termos “mundo” e “palavra” são retomados pelas formas pronominais “esta” (palavra) e “aquele” (mundo).

2) progressão: a coerência só é possível, se no texto houver uma continuidade semântica permanentemente renovada mediante acréscimos de novos conteúdos.
Tomando-se um fragmento maior do mesmo texto (1), podemos verificar a atuação da macrorregra da progressão.

(2) (...) A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensinar a escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado – e até gostosamente – a “reler” momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo.


 A fim de demonstrar como a progressão é indispensável por conferir ao texto coerência, destacamos em negrito o tema de cada enunciado e/ou oração de que se compõe o texto. Os temas - isto é, o componente da frase do qual se diz alguma coisa - permitem-nos acompanhar de que modo o texto vai fazendo sentido à medida que são acrescentadas novas informações semânticas. Assim, ao primeiro tema “leitura do mundo” articula-se “a posterior leitura desta”, que é parte do rema da frase anterior (cf. ...precede a leitura da palavra) e que assume a posição temática na frase posterior (cf. a posterior leitura desta não possa prescindir...). A progressão do texto se faz com a inclusão de outros elementos temáticos, como “a linguagem e a realidade”, que se relacionam, por anáfora indireta[2], com “leitura”, “palavra” e “mundo”. Posteriormente, também por meio de anáfora indireta, introduz-se o tema “compreensão do texto” que é parte do modelo cognitivo ativado por “leitura da palavra”. Depois, fala-se em “ensinar a escrever sobre a importância do ato de ler” que, novamente, se associa à “leitura” e à “palavra”. Posteriormente, introduz-se o “eu” (que instaura no texto o enunciador) que, ao reler suas experiências mais remotas de infância arquivadas em sua memória, permite ao leitor o estabelecimento de uma relação com o referente “Linguagem e realidade”.
Assim, a construção de um texto envolve, necessariamente, dois grandes movimentos: um de retroação e outro de prospecção.  O texto vai-se constituindo num contínuo ir-e-vir,  isto é, pelo uso de recursos linguísticos que o fazem avançar, contribuindo para a sua progressão temática (prospecção) e pelo uso de recursos que retomam conteúdos semânticos anteriormente introduzidos, garantindo sua continuidade temática (retroação).

3) não-contradição: para que um texto seja coerente, não pode haver um elemento semântico que contradiga algum conteúdo posto ou pressuposto num momento anterior;

4) relação: para haver coerência, é necessário que os enunciados do texto – e os fatos do mundo textualizado – estejam relacionados, de algum modo, entre si.

A preocupação com a dimensão semântica na construção de gramáticas do texto levou alguns estudiosos a tomar a semântica como básica. Para esses estudiosos, a semântica é que deve possibilitar a representação da estrutura do significado de um texto, particularmente as relações de sentido que extrapolam o significado das frases consideradas isoladamente.
Assim, entende-se que aquilo que permanece na superfície textual é apenas uma parte do sentido, nunca a sua totalidade, de modo que a própria reconstrução do sentido de um texto depende de que o interlocutor/leitor acesse cognitivamente as estruturas semânticas profundas, isto é, os conteúdos semânticos subjacentes à superfície textual.
A chamada virada pragmática da Linguística Textual foi motivada pela necessidade de não mais circunscrever o estudo do texto ao seu âmbito sintático-semântico. Os estudiosos, porquanto cientes de que o texto é a unidade básica de comunicação, passaram a se dedicar a produzir teorias de orientação comunicativa que integrassem sistematicamente fatores contextuais à descrição do modo como se constituíam os textos.
Com a virada pragmática, o estudo do texto passou a incorporar as relações entre texto e contexto comunicativo-situacional. O texto, no entanto, não deixou de ser o ponto de partida dessas relações. A própria concepção de língua mudaria a partir de então. De sistema autônomo e abstrato, a língua passou a ser contemplada em funcionamento nas situações comunicativas constitutivas da vida em sociedade. Os textos, por seu turno, também deixaram de ser vistos como produtos acabados que se prestam à análise sintática e semântica e passaram a ser considerados como instâncias constitutivas de uma atividade complexa. Os textos serviriam à realização de intenções comunicativas, socialmente fundadas, de falantes socialmente situados.
É, então, na metade da década de 70 que se desenvolveu a compreensão da língua como uma forma específica da comunicação social inter-relacionada com outras atividades não verbais humanas. A virada pragmática, privilegiando o uso social da língua, tomou-o como a dimensão determinante do componente sintático-semântico. Destarte, procurou-se mostrar que a produção de textos envolve um percurso pragmático, no domínio do qual o plano global do texto determina as funções comunicativas que neste aparecem e que ele realiza. Produzimos textos com vistas a satisfazer determinadas necessidades comunicativas que, por sua vez, determinam o modo como se estruturam as unidades linguísticas da superfície textual.
O percurso pragmático consiste numa espécie de quadro das condições da interação verbal. Esse percurso permite-nos compreender que todo texto supõe necessariamente uma relação entre um produtor – o locutor/ escritor – e um receptor (interlocutor/leitor). A forma do texto, a saber, a estruturação dos elementos que o compõem é determinada pela intenção do produtor, pelo plano textual por ele estabelecido. A intenção do produtor é marcada textualmente por meio de pistas ou instruções que permitem ao interlocutor reconstruí-la cognitivamente. É papel do interlocutor, portanto, não mais captar simplesmente o conteúdo referencial do texto (o que se diz), mas reconstruir os propósitos comunicativos que presidem à produção do texto pelo locutor (o para quê do texto). Destarte, o que o percurso pragmático revela-nos é que, por ocasião da produção do texto, um dado falante, numa dada situação comunicativa, tem determinados propósitos comunicativos em vista, e o texto que ele produz visa à satisfação desses propósitos sociocomunicativos. Na medida em que o texto produzido serve à realização dos propósitos sociocomunicativos do produtor, traz em si as pistas, as instruções necessárias à reconstrução desses propósitos. O interlocutor, por sua vez, deverá reconhecer essas pistas ou instruções a fim de compreender quais são os propósitos comunicativos dos quais o texto que torna possível a interação dele com o produtor é a realização.
Para atingir seus objetivos fundamentais, é necessário que o produtor assegure ao interlocutor as condições necessárias para que ele possa reconhecer o objetivo perseguido, circunstância esta que depende da competência do produtor de mobilizar atividades linguístico-cognitivas que permitam a formulação adequada do texto. Ora, quem produz um texto quer ser compreendido, quer que seu texto seja aceito pelo parceiro de comunicação; mas a compreensão e a aceitação não será possível se o produtor não formular adequadamente o seu texto. Como, na visão pragmática, todo texto é forma de realização de atos de linguagem, ao produzir um texto, o falante visa a provocar uma ação ou comportamento no seu interlocutor; mas a ação (verbal ou não verbal) e o comportamento que pretende ver realizado pelo interlocutor dependem de que o texto produzido esteja adequadamente formulado. À luz da perspectiva pragmática, a língua é concebida como forma de ação social. A língua realiza ações. A ação verbal constitui uma atividade social, protagonizada por sujeitos sociais, interessados na realização de funções comunicativas. A ação verbal é também ação social determinada por regras sociais. Os textos são formas de realização de ações verbais; são, também resultantes de ações verbais que se ligam intimamente à estrutura proposicional dos enunciados.
A virada cognitivista, ocorrida na década de 80, acresceu à compreensão do texto como forma de ação social a ideia de que quem age (linguisticamente ou não) dispõe de modelos mentais de operações e tipos de operações. A visão cognitivista mantém que todo fazer, quer verbal, quer não verbal, se acompanha de processos de ordem cognitiva. O texto, à luz dessa perspectiva teórica, é encarado como resultado de processos mentais. Assim, passou-se a entender que os interactantes possuem saberes acumulados, por força de suas experiências sócio-culturais, que dizem respeito aos diversos tipos de atividades da vida social. Ademais, eles têm conhecimentos representados na memória que necessitam ser ativados para que sejam bem-sucedidos nas atividades de que participam. O texto é, então, resultado de uma multiplicidade de operações cognitivas interligadas.
Nessa fase do desenvolvimento da Linguística Textual, foram propostos quatro grandes sistemas de conhecimento que concorrem para possibilitar o processamento textual, isto é, tanto em termos da produção do texto quanto em termos da sua compreensão. Portanto, esses quatro sistemas de conhecimento são mobilizados pelo produtor e pelo receptor por ocasião do evento interacional. Seguem-se os quatro sistemas de conhecimento propostos:

1) conhecimento linguístico

Esse sistema compreende os conhecimentos gramatical e lexical responsáveis pela articulação entre som e significado. O conhecimento linguístico diz respeito à organização formal da superfície textual, ou seja, aos modos como as unidades linguísticas se articulam no texto, ao uso dos recursos de coesão que a língua disponibiliza aos usuários para fins de referenciação ou sequenciação textual. Ademais, o conhecimento linguístico compreende a seleção adequada das palavras relativamente ao tema e aos modelos cognitivos ativados por ocasião da interação verbal.

2) conhecimento de mundo ou enciclopédico

O conhecimento de mundo ou enciclopédico corresponde ao conjunto de saberes armazenados na memória dos sujeitos a respeito dos fatos do mundo. Eles podem ser do tipo declarativo, como, por exemplo, “A capital da Itália é Roma”, ou podem ser episódicos e organizados em “modelos cognitivos” constituídos nas experiências sócio-culturais desses sujeitos. Vamo-nos deter um pouco na noção de modelos cognitivos.
Os conhecimentos que cumulamos ao longo da vida não são armazenados em nossa memória de modo caótico. Eles são organizados em blocos que estabelecem entre si diversos tipos de relações. Esses blocos nos quais se organizam nossos conhecimentos são, portanto, os modelos, os quais representam as experiências que vivemos em sociedade. Nós ativamos e utilizamos esses conhecimentos em nossas vivências sociais, quer para resolver problemas práticos, quer para interpretar eventos, acontecimentos, situações, de modo que possamos atuar continuamente no mundo. Os modelos cognitivos são, portanto, “blocos” de conhecimentos armazenados em nossa memória, extremamente flexíveis e dinâmicos, constantemente atualizáveis, que são constituídos em nossas experiências de mundo. Os modelos cognitivos são construídos culturalmente; eles nos orientam a agir de modo adequado em diferentes situações e a realizar atividades específicas.
Na literatura especializada, encontramos, pelo menos, cinco tipos de modelos cognitivos, muito embora possamos, pedagogicamente, utilizar um único tipo para descrever como os modelos cognitivos influenciam a prática da compreensão de textos. Mas é importante dizer que os modelos cognitivos são indispensáveis tanto na produção quanto na compreensão de textos. O produtor, por ocasião da produção de seu texto, mobiliza esses modelos cognitivos; assim também o receptor, no momento em que precisa construir um sentido para o texto, mobilizará seus modelos cognitivos. Vejamos cinco tipos de modelos cognitivos, entre os tipos propostos na literatura:

a) frames: compreendem uma série de conhecimentos organizados em nossa memória sob um “rótulo”. Esses conhecimentos não se apresentam numa ordem determinada.

Assim, por exemplo, o rótulo Carnaval categoriza um evento sobre o qual possuímos toda uma série de saberes. A palavra “Carnaval”, por força de nossas experiências sócio-culturais, desencadeia em nossa mente uma série de saberes sobre os vários elementos recobertos por essa categoria: serpentina, escolas de samba, blocos, fantasia, passistas, tamborins, etc. Assim também, a categoria Natal ativa saberes sobre essa festa. Quando pensamos em Natal, pensamos em Papai Noel, ceia, presentes, árvore de natal, peru, etc.

b) esquemas: compreendem um conjunto de conhecimentos organizados segundo uma sequência temporal ou causal.

Assim, por exemplo, dispomos de um saber comum sobre como é o cotidiano de uma pessoa que vive numa grande cidade. Também podemos dispor do saber como fazer um aparelho funcionar, o que supõe a realização de uma sequência temporal e causal de operações.

c) planos: compreendem conhecimentos que nos orientam a agir de modo a alcançar determinado objetivo.

Quando jogam xadrez, os jogadores mobilizam conhecimentos com vistas a vencer a partida.

d) scripts: recobrem um conjunto de conhecimentos sobre modos de agir ritualísticos, estereotipados em uma dada cultura. Tais conhecimentos também nos orientam a atuar linguísticamente em consonância com as expectativas  ou normas sociais de uma dada situação.

Assim, por exemplo, nós sabemos como devemos comportar-nos numa cerimônia de casamento, ou num enterro, porque compartilhamos o script, culturalmente constituído, em que se baseia o comportamento das pessoas nessas situações sociais.

e) superestruturas ou esquemas textuais: compreendem um conjunto de saberes sobre tipos de textos. Esses saberes são adquiridos à medida que somos expostos aos diferentes tipos de textos ao longo da vida em sociedade.
Assim, por exemplo, saber identificar um texto como narrativo é deter o conhecimento de uma superestrutura ou esquema textual.

O nosso conhecimento de mundo desempenha papel importante na construção do sentido para o texto. Se o texto versar sobre um assunto do qual não temos conhecimento algum ou do qual temos pouco conhecimento, a construção da coerência pode não ocorrer, ou ser dificultosa. Esse conhecimento constitui a base para a ativação dos modelos cognitivos armazenados em nossa memória; ele inclui crenças a respeito do mundo, conhecimento das regras e costumes de nossa sociedade e cultura, etc.

As inferências e a construção do mundo textual, o qual não coincide, necessariamente, com o mundo real, se tornam possíveis na base do conhecimento de mundo. O conhecimento de mundo permite a construção pelos usuários de um “modelo de mundo” textualizado, ao qual se ligam crenças sobre mundos possíveis de acordo com a concepção deles.  Cumpre dizer que o mundo textual, representação do mundo pelo texto, nunca coincide com o mundo real, porque há sempre uma mediação de conhecimentos de mundo, dos interesses e objetivos de quem produz o texto e de quem o interpreta.
O conhecimento de mundo deve ser compartilhado entre os interlocutores para que haja a inteligibilidade de um texto, ou seja, a sua coerência. Deve haver, portanto, uma correspondência, ao menos parcial, entre os conhecimentos ativados pelo texto e o conhecimento de mundo dos interlocutores arquivado em sua memória.

3) conhecimento sociointeracional

O conhecimento sociointeracional compreende as ações verbais, isto é, as formas de interação por meio da língua. Esse conhecimento subdivide-se em:

3.1.) conhecimento ilocucional, o qual torna possível reconhecer os objetivos e propósitos a que visa um falante, numa dada situação de interação. O conhecimento ilocucional recobre conhecimentos sobre tipos de atos de fala, que podem assumir formas diretas ou indiretas. Assim, por exemplo, comparando-se os enunciados a seguir:

(3a) Pode me passar o sal?
(3b) Você tem um cigarro?
Levando-se em conta os saberes partilhados pelos interactantes, diremos que eles são capazes de reconhecer que tais enunciados realizam atos de pedido. Em (3a), o ato de pedido é marcado pela ocorrência da forma modalizadora “pode”, que sistematicamente é usada como forma de polidez na elaboração de pedidos (cf. Pode me informar onde fica a rua tal?). Mas em (3b), não há qualquer marca linguística que indique ser o enunciado a realização de um pedido. Nesse caso, trata-se de um ato de fala indireto, cuja adequada interpretação depende de que o interlocutor mobilize seu conhecimento ilocucional, com vistas a reconhecer a intenção com que (3b) é produzido. É evidente que o reconhecimento da intenção subjacente ao enunciado (3b) depende da capacidade de o interlocutor construir um modelo de contexto que seja adequado à situação de interação. Por exemplo, se quem produzisse (3b) fosse um estranho transeunte que nos parasse na rua, inferiríamos, normalmente, que ele desejaria que nós lhe déssemos um cigarro.

3.2.) conhecimento comunicacional

Recobre as normas comunicativas, como as máximas conversacionais de Grice (1975); a quantidade de informação necessária, disponível numa situação de interação, para que o interlocutor seja capaz de reconstruir o objetivo pretendido pelo produtor do texto; a seleção da variedade linguística em consonância com cada situação de interação; a adequação dos tipos de textos às situações comunicativas.

3.3.) conhecimento metacomunicativo

Trata-se do conhecimento sobre vários tipos de ações linguísticas destinadas a resolver ou evitar problemas previsíveis no processo de produção do texto. Essa forma de conhecimento orienta o locutor a lançar mão de operações linguísticas no momento mesmo em que vai constituindo seu texto ou a posteriori, com o propósito de tornar mais compreensível um determinado ponto, assunto ou expressão linguística utilizada. Nesse caso, o locutor dispõe de um saber sobre como agir linguisticamente de modo tal, que não só possa garantir a compreensão de seu texto pelo interlocutor, bem como possa assegurar a aceitação dos objetivos perseguidos, monitorando, para tanto, o fluxo verbal.
No trecho abaixo, extraído do corpus Os Normais, constituído por mim para efeito de realização de minha tese de doutorado, a personagem de Malu Mader explica o significado de “indiretas” à personagem de Selton Mello. Trata-se de um exemplo típico de uso do conhecimento metacomunicativo.

S.M – Você tinha que ter me falado que era garota de programa, né.
M.M. – Pensei que você tivesse entendido as indiretas...
S.M. – Que indiretas?
M.M. – Primeira, eu sou linda, você é feio e eu fiquei dando bola para você.
M.M – Segunda, depois de meia hora te olhando sem você tomar uma atitude, eu fui lá puxar papo com você.
S.M. – Eu adorei isso, isso que me deixou louco. Você foi tão impulsiva.


No exemplo abaixo, temos dois recursos que visam a tornar compreensível o texto. De início, ocorre o “poderíamos dizer”, que marca a atenção do locutor sobre a forma como codificará o conteúdo comunicado; em seguida, ocorre a expressão “isto é”, que introduz um segmento cuja função é esclarecer o que foi dito anteriormente.

 Poderíamos dizer, como afirma a autora, que o documento:] é uma representação, um signo, isto é, uma abstração temporária e circunstancial do objeto natural ou acidental, constituído de essência (forma / conteúdo intelectual) , selecionado do universo social para testemunhar uma ação cultural . (Corpus Brasileiro v. 2.3 www. linguateca.com.br).




4) conhecimento sobre estruturas ou modelos textuais globais

Essa forma de conhecimento permite aos falantes reconhecer textos como exemplares de um determinado gênero ou tipo. Ademais, recobre um conjunto de saberes sobre unidades globais que distinguem vários tipos de textos, bem como de saberes sobre a ligação entre objetivos, bases textuais e estruturas textuais globais.

A cada um desses quatro grandes sistemas de conhecimento se prende um conhecimento de tipo procedural., isto é, um tipo de conhecimento sobre como utilizar esses sistemas quando do processamento textual. Por conseguinte, o conhecimento procedural diz respeito ao saber como ativar tais sistemas de conhecimento, a fim de que eles possam atender às necessidades dos interactantes no momento da interação. O conhecimento procedural é extensivo também ao saber sobre as práticas específicas da cultura em que vivem os interactantes, ao domínio das estratégias de interação, tais como a preservação das faces, a representação positiva do self, polidez, entre outras.

A virada cognitivista permitiu também o reconhecimento pelos estudiosos do caráter estratégico do processamento textual. Portanto, assume-se que o processamento textual é estratégico. Ao produzir seus textos, os interactantes mobilizam vários tipos de estratégias que, por sua vez, envolvem a mobilização on-line dos diversos sistemas de conhecimentos já mencionados.
As estratégias utilizadas por ocasião do processamento textual podem ser divididas em:

a) estratégias cognitivas;
b) estratégias metacognitivas;
c) estratégias sociointeracionais;
d) estratégias textualizadoras.

Convém, antes de considerarmos cada uma dessas estratégias, esclarecer como devemos compreender estratégia. A estratégia é uma instrução global que nos orienta em cada escolha a ser feita no curso de uma ação. Quando consideramos a interação verbal, devemos ter em mente que os interactantes estão, a todo momento, formulando hipóteses sobre a estrutura e o significado de uma parte do texto ou de sua totalidade. Assim, os passos interpretativos são finalisticamente orientados, flexíveis, eficientes.
O processamento estratégico do texto não envolve apenas características textuais, mas também os objetivos, as convicções, as crenças e conhecimento de mundo dos usuários da língua. Vejamos, então, como se define cada um dos quatro tipos de estratégias a que aludimos.

As estratégias cognitivas consistem na realização de um “cálculo mental” que, tendo como base as expressões linguísticas do texto, mobiliza os conhecimentos armazenados na memória dos interactantes. A inferenciação – da qual nos ocuparemos mais adiante – se destaca como a principal estratégia cognitiva.
As estratégias metacognitivas permitem o controle e o regulamento do próprio conhecimento. Graças a elas, podemos estabelecer objetivos na leitura.
As estratégias interacionais são estratégias socioculturalmente determinadas de que se valem os interactantes a fim de estabelecer a interação verbal, mantê-la e conduzi-la a bom termo. Essas estratégias podem consistir na realização dos diversos atos de fala, nas tentativas de preservação das faces (facework) ou de representação positiva do self. Entre essas estratégias interacionais está também a polidez.
As estratégias textualizadoras (ou textuais), sem deixar de ser, em sentido lato, estratégias interacionais e cognitivas, referem-se às escolhas textuais feitas pelos interlocutores com vistas a satisfazer determinadas necessidades sociocomunicativas e a produzir determinados sentidos.
A virada cognitivista da Linguística Textual foi decisiva para a conceituação da textualidade, a saber, o que faz com que um texto seja considerado um texto. Ademais, pôde-se determinar, com essa mudança teórico-metodológica nos estudos do texto, os critérios da textualidade.
A fase cognitivista da Linguística Textual, herdeira do cognitivismo clássico, conservou a separação entre fenômenos mentais e fenômenos sociais, entre a interioridade (cognição) e a exterioridade (entorno social). Assim, os processos cognitivos foram contemplados como fenômenos que acontecem na mente dos indivíduos. Daquela separação resultou uma preocupação em explicar como os conhecimentos que se acham estruturados na forma de modelos mentais na memória dos indivíduos são ativados para a resolução de problemas oriundos do ambiente exterior. É preciso entender que, de acordo com essa perspectiva teórico-metodológica, o ambiente é reduzido a um espaço de informações que devem ser processadas pela mente humana.
A cultura e as experiências sociais, sendo partes desse ambiente, constituiriam apenas instâncias para a representação, na memória, de conhecimentos culturais. O cognitivismo clássico, herdeiro do dualismo cartesiano, assenta no pressuposto básico segundo o qual mente e corpo são substâncias separadas. Durante muito tempo, a Linguística endossou essa visão dualista da mente-corpo. No entanto, avanços na neurobiologia, na antropologia e na própria Linguística levaram a um questionamento dessa separação.
Com o questionamento da separação entre mente e corpo, passou-se a compreender que muitos de nossos processos cognitivos estão calcados sobre a percepção e a capacidade de atuação motora, isto é, física no mundo. Destarte, ao incorporar aspectos sociais, culturais e interacionais à compreensão da cognição humana, os estudiosos (linguistas, antropólogos, psicólogos cognitivistas, neurocientistas, etc.) se tornaram cada vez mais convencidos de que os processos cognitivos não ocorrem exclusivamente na mente dos indivíduos, mas também entre eles nas práticas da vida em sociedade.
Doravante, já não se podia mais sustentar a concepção de mente e corpo como substâncias separadas. A mente é um fenômeno essencialmente corporificado, e há relação íntima entre aspectos motores e perceptuais e as formas de raciocínio abstrato. Isso significa dizer que nossos raciocínios, mesmos os mais abstratos, estão calcados sobre as formas como nos orientamos corporalmente no mundo e como o percebemos sensorialmente. Chamou-se enação à emergência dos conceitos nas atividades nas quais os organismos se engajam. Assim, a própria formulação de conceitos é uma atividade não de uma mente que se pudesse conceber como separada do corpo; os conceitos se fabricam por organismos complexos que interagem entre si em diversas atividades no entorno biossocial em que vivem[3]. Portanto, as operações cognitivas que os seres humanos são capazes de realizar resultam da interação de várias ações conjuntas praticadas por eles na vida em sociedade. Na medida em que rejeita a separação entre cognição e fenômenos sociais, a abordagem sociocoginitivo-interacional assumirá como postulado central a necessidade de considerar, em conjunto, os aspectos sociais, culturais e interacionais no processamento cognitivo do texto. À luz desse quadro teórico-metodológico, nega-se que se dispense atenção exclusiva aos processos cognitivos que ocorrem dentro da mente dos indivíduos, sob pena de estorvar a compreensão do complexo fenômeno da cognição e do próprio processamento textual.
A visão sociocognitivo-interacional mantém que a língua é um tipo de ação conjunta. Os eventos linguísticos têm como base a interação social. A língua é uma atividade intersubjetiva situada. As ações verbais são sempre ações conjuntas, ou seja, ações que se realizam conjuntamente com os outros indivíduos.
A linguagem, por seu turno, é definida como lugar de inter-ação social, pois que, ao usar a linguagem, estamos, necessariamente, engajados em alguma forma de ação. A linguagem é o ‘lugar’ onde essa ação acontece cooperativamente com os outros. As ações linguísticas são realizadas por sujeitos sociais, em situações sociais, com propósitos específicos e determinados socialmente. Esses sujeitos de linguagem assumem papéis sociocomunicativos distribuídos socialmente.
No que tange à concepção de texto, ele passa a ser encarado como lugar de interação e lugar onde os interlocutores, enquanto sujeitos sociais ativos, dialogicamente se constroem e pelo qual são constituídos. A produção de textos é, portanto, uma atividade interativa extremamente complexa de produção de sentidos,

“(...) que se realiza, evidentemente, com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas requer não apenas a mobilização de um vasto conjunto de saberes (enciclopédia), mas a sua reconstrução – e a dos próprios sujeitos – no momento da interação verbal. (Koch, 2004, p. 33).”


É de suma importância que o professor de português, convencido da necessidade de empreender um ensino de língua que se oriente por atividades de apreensão dos mecanismos de produção de sentidos em textos reais, não perca de vista, a partir do que vimos até aqui elucidando, que os textos são entidades multifacetadas, que eles são resultado de um processo demasiado complexo de interação social e de construção social dos sujeitos, do conhecimento e da linguagem (Koch, 2004, p. 175).
Antes de passarmos a nos ocupar dos fenômenos da coerência e da coesão, é impreterível insistir em que não é possível haver processos de pensamento fora da linguagem. A linguagem também jamais se realiza fora de processos interacionais humanos. A linguagem é um princípio que medeia a inter-relação entre as referências do mundo biológico e as referências do mundo sociocultural (Morato, 2001. apud. Koch, 2004, p. 32).
Podemos, assim, concluir nosso itinerário sobre o desenvolvimento histórico da Linguística Textual, destacando seu caráter transdisciplinar, a respeito do qual nos escreve Koch:

“A Linguística Textual vem-se tornando, cada vez mais, um domínio multi- e transdisciplinar, em que se busca compreender e explicar essa entidade multifacetada que é o texto – fruto de um processo extremamente complexo de interação social e construção social de sujeito, conhecimento e linguagem”. (Koch, 2004, p. 175).


O conceito de contexto será apresentado e desenvolvido na seção em que vamos tecer algumas considerações sobre os fenômenos da coerência e da coesão. De entremeio, antes de nos lançar à referida tarefa, damos a conhecer o modo como a gramática deve ser entendida num ensino de língua que vise ao estudo dos processos de produção textual de sentidos.

1. 2. Gramática

A concepção de gramática como ‘sistema de regras e princípios que governam os arranjos linguísticos’ baseia-se na suposição de que a gramática é um sistema abstrato e unificado, biologicamente anterior, que constituiria uma pré-condição para o uso da língua. Essa concepção de gramática não pode ser mantida, se pretendemos desenvolver um ensino de língua que tenha como enfoque a língua em uso a partir do exame de textos efetivos. Uma vez abandonada essa concepção de gramática, deveremos assumir que a gramática é sensível ao discurso, ao uso da língua. A gramática emerge do uso da língua. Embora ela abrigue construções sedimentadas, não constitui um sistema estanque e fechado de regras. A gramática, encarada da perspectiva sociocognitivo-interacionista, é uma atividade on-line, inseparável do contexto de uso da língua. As construções gramaticais são suscetíveis de rearranjo a cada situação de comunicação. Essas construções são negociáveis em cada evento da interação social por meio da língua. Portanto, a gramática é suscetível à mudança e é afetada pelo uso que fazemos da língua no cotidiano.
Não há gramática fora do uso. As construções que se vão sedimentando são elas mesmas produtos do uso. O uso cria as construções linguísticas rotinizadas, convencionalizadas, suscetíveis, no entanto, às pressões do discurso. A gramática é, portanto, um sistema dinâmico que se reconstitui continuamente em cada evento de uso da língua.
Segue-se do que foi exposto que, ao nos voltarmos para o estudo dos processos de produção de sentidos em textos efetivos, deveremos estar interessados também nos modos como a gramática vai-se construindo, vai emergindo como atividade constitutiva da tessitura do texto. Obviamente, tanto a produção quanto a recepção de textos envolve muito mais do que a competência linguística ou gramatical. Por isso, o estudo do texto deve levar em conta muito mais do que a constituição on-line da própria gramática. No entanto, ao compreendermos a gramática como processo em movimento que se deixa apreender textualmente, damo-nos conta de que podemos abordá-la sem a necessidade de atomizar a língua, sem que precisemos fatiá-la em unidades para fins de análise desvinculada de qualquer interesse no esclarecimento do modo como a própria gramática está a serviço da produção de sentidos.


2. Coerência e coesão textuais
2.1. Coerência

Concordamos com Koch (2003), ao negar ser possível definir num único enunciado o conceito de coerência. Se pretendemos compreender satisfatoriamente esse conceito, mais vantajoso será atentar para os seus vários aspectos ou para as condições que tornam possível a construção da coerência. Não obstante, é possível delimitar um conjunto de noções recobertas pelo termo coerência textual. Nesse conjunto, destacam-se as seguintes características da coerência:

1) A coerência prende-se à possibilidade de construirmos um sentido (entre muitos possíveis) para um texto;

2) considerando-se 1), a coerência é um princípio de interpretabilidade ligado à inteligibilidade do texto, numa situação de interação;

É a coerência que faz com que um texto faça sentido para um usuário da língua, numa dada situação de interação. A coerência liga-se à capacidade de o interlocutor/leitor calcular um sentido para o texto.

3) A coerência não é uma propriedade do texto em si, mas se estabelece no processo que relaciona texto e usuários da língua numa dada situação de interação;
4) A coerência diz respeito à organização subjacente, reticular do texto. Ela se constrói a partir do texto, mas sempre em correlação com fatores de ordem semântica, cognitiva, pragmática e interacional;

5) A construção da coerência exige a possibilidade de o usuário da língua estabelecer uma correspondência entre os conhecimentos ativados pelas expressões linguísticas do texto e o conhecimento mundo que está armazenado em sua memória;

A coerência resulta, portanto, da continuidade de sentidos entre os conhecimentos ativados pelas expressões linguísticas. Resulta de uma conexão conceitual cognitiva entre os elementos constituintes da superfície textual.

6) Embora a coerência e a coesão sejam fenômenos complementares, a coesão não constitui condição necessária nem suficiente para a construção da coerência. Assim, é possível haver textos sem coesão, mas perfeitamente coerentes, ou, inversamente, haver textos com coesão, mas carecidos das condições necessárias à construção da coerência.

É importante não perder de vista o fato de que a coerência não é uma propriedade da superfície textual, mas depende da capacidade de o leitor construí-la com base na materialidade linguística do texto correlativamente com a mobilização de conhecimentos prévios de que ele dispõe. A coerência supõe a capacidade de o leitor (ou interlocutor) efetuar um ‘cálculo de sentido’, para o qual ele, apoiando-se nas expressões linguísticas do texto, é capaz de estabelecer uma relação entre os conhecimentos ativados pelo texto e os conhecimentos previamente armazenados na sua memória.
Os elementos lingüísticos que constituem a tessitura do texto servem de pistas para a ativação de conhecimentos armazenados na memória dos interactantes, servem também de base para inferências operadas por eles; concorrem também para auxiliar o receptor a apreender a orientação argumentativa do texto.

Pode-se discriminar entre onze fatores responsáveis pela coerência. Não poderemos aqui elucidar cada um deles; todavia, vamos apresentar e dilucidar como cinco deles concorrem para o processo de construção da coerência. Embora os apresentemos separadamente, destacando a influência de cada um deles na construção da coerência, o leitor deve ter em conta que eles atuam sempre em conjunto. Seguem-se os onze fatores responsáveis pela coerência, dentre os quais destacamos, em negrito, aqueles cuja importância será considerada.

1) Conhecimento linguístico;
2) Conhecimento de mundo;
3) Conhecimento compartilhado;
4) Inferências;
5) Situacionalidade;
6) Fatores de contextualização;
7) Informatividade;
8) Focalização;
9) Intertextualidade;
10) Intencionalidade e aceitabilidade;
11) Consistência e Relevância.


1) Conhecimento Linguístico

Para que se construa um sentido para um texto, embora não seja suficiente o conhecimento da língua em que ele foi produzido, é indispensável conhecer o significado das palavras e a estruturação sintática da língua. Se ler um texto escrito numa língua estrangeira constitui tarefa difícil ou quase impossível, sem o conhecimento dessa língua e sem o arrimo de um bom dicionário, também um texto produzido em nossa língua materna pode ser incoerente, pois ininteligível, em virtude, basicamente, da ocorrência de palavras e expressões ou estruturas pouco usuais ou arcaicas. O conhecimento linguístico recobre, portanto, da parte do produtor, a capacidade que ele tem de construir a estrutura sintático-semântica do texto de modo tal que favoreça a possibilidade de atribuição de um sentido para o texto; da parte do receptor, o conhecimento linguístico o ajudará no processo de decodificação das informações veiculadas pelo texto. Mas – é preciso frisar – ler não é decodificar, embora a decodificação seja uma etapa necessária do processo de leitura. A decodificação é tão-somente uma atividade que constitui uma etapa do processamento textual. Por isso, o conhecimento linguístico, isto é, conhecimento dos significados das palavras utilizadas, da estruturação sintática da língua, da variedade linguística empregada, das funções textuais dos recursos de coesão, etc. constitui condição necessária mas não suficiente para que consigamos atribuir um sentido para o texto (ou seja, para que sejamos capazes de construir-lhe a coerência).
O texto abaixo ilustra a importância do conhecimento linguístico. A dificuldade de construirmos a coerência para esse texto resulta, basicamente, de nosso desconhecimento da variedade linguística utilizada.

(1) O pronunciamento fósmeo lançado no instante correcional não merece remessa ao caruncho do esquecimento. Urge superar a vesânia e obsessão de possança, inscrevendo nos fatos da comarca o reproche do saber, pois descabe ao sufere capiau contar a palinódia. Agiu impulsionado por sentimento de prebeligerância, incompatível com o caracter instrutório que deve racionalizar toda fiscalização de segmento orgânico de juízo. A produção corretiva aluiu a segurança do feito, insinuou o boléu intelectual do magistrado autóctone e constitui um pálio-cúmulo na imaculada e luzente abóbada da Corregedoria Geral da Justiça.

(...)
(Trecho de despacho do Processo nº 344 / 85 do Poder Jurídico do Ceará, apud Machado, inédito).


2) Conhecimento de mundo

O nosso conhecimento de mundo desempenha papel importante na construção do sentido para o texto. Se o texto versar sobre um assunto do qual não temos conhecimento algum ou do qual temos pouco conhecimento, a construção da coerência pode não ocorrer, ou ser dificultosa. Esse conhecimento constitui a base para a ativação dos modelos cognitivos armazenados em nossa memória; ele inclui crenças a respeito do mundo, conhecimento das regras e costumes de nossa sociedade e cultura, etc. O mundo textual, construção do mundo pelo/no texto, nunca coincide com o mundo real, porque há sempre uma mediação de conhecimentos de mundos, dos interesses e objetivos de quem produz o texto e de quem o interpreta.
O texto abaixo ilustra a medida da importância do nosso conhecimento de mundo na construção de um sentido para o texto.

(2) (...) O fato simplesmente incrível de que Strauss não soube aproveitar nada da crítica Kantiana da razão para seu testamento das idéias modernas e de que por toda parte só se fala ao gosto do mais grosseiro realismo faz parte, precisamente, das surpreendentes características desse novo evangelho, que de resto só se apresenta como o resultado laboriosamente conquistado de contínua pesquisa histórica e natural (...)

(Friedrich Nietsche, Os pensadores, 1983: VII)

Notemos que o texto pressupõe que saibamos, entre outras coisas, 1) quem foi Nietzsche e quais foram suas preocupações filosóficas; 2) quem foi Strauss; 3) quem foi Kant; 4) no que consistiu a crítica da razão levada a efeito por Kant; 5) por que Strauss não soube aproveitar nada dessa crítica; 6) que significa realismo, etc. O texto foi construído com base na suposição de que o leitor já detém esses saberes. Disso se segue que, para a construção da coerência textual, é indispensável que os interactantes ou o autor e leitor compartilhem parcelas de seu conhecimento de mundo.

3) Conhecimento de mundo compartilhado

Cada indivíduo, inserido em um determinado contexto sócio-cultural, vai armazenando em sua memória, ao longo da vida, uma série de conhecimentos, de modo que é impossível que duas pessoas compartilhem exatamente o mesmo conhecimento de mundo. Para a construção do sentido do texto, entretanto, é necessário que uma grande parcela de conhecimentos seja compartilhada pelo autor e receptor do texto. Quanto maior for essa parcela, menor será a necessidade de explicitude do texto, pois o receptor será capaz de suprir as lacunas, por exemplo, através de inferências. Importa lembrar que um texto não comunica tudo, se o fizesse seria extremamente redundante e comunicativamente despropositado. Grande parte das informações textuais está implícita, submersa, cabendo ao leitor/ interlocutor recuperá-las por meio de inferências.
O enunciado abaixo só faz sentido, se os interactantes compartilharem parcelas de seu conhecimento de mundo. É preciso que eles compartilhem entre si, pelo menos, saberes a respeito a) da realização de eleições para a presidência; b) do país onde acontece o processo eleitoral; c) dos candidatos à presidência.

(3) Em 15 de novembro, será eleito o novo presidente

Assim também, em (4), os interactantes precisam compartilhar o saber sobre o dia do pagamento do carnê e sobre o pagamento a que o carnê corresponde.
(4) Hoje é dia de pagar o carnê.

Vale notar que o emprego do artigo definido depende da possibilidade de os interlocutores compartilharem o conhecimento sobre qual é o referente de “carnê”, ou seja, o uso do artigo definido supõe que os interlocutores disponham da informação sobre qual é o carnê que deve ser pago, a qual pagamento o carnê corresponde.

4) Inferências

Inferência é a operação pela qual, valendo-se de seu conhecimento de mundo, o receptor (leitor/ interlocutor) de um texto estabelece uma relação não-explícita entre dois elementos (normalmente frases ou trechos) textuais, ou entre esses elementos e os conhecimentos necessários à sua compreensão. A inferenciação é uma atividade linguístico-cognitiva básica no processo de compreensão textual. Ao interagirmos socialmente por meio de textos, não nos limitamos a apreender os conteúdos proposicionais dos enunciados a que somos expostos, mas, a todo momento, estamos derivando deles, com base no diversificado conjunto de saberes de que dispomos, conteúdos implícitos. A inferenciação é, particularmente, a atividade que está na origem dos fenômenos de pressuposição e subentendido. Por exemplo, o enunciado, a seguir, permite direta ou indiretamente a inferência dos seguintes conteúdos representados nas proposições em itálico.

(5) Paulo comprou um Siena zero.

Conteúdos inferíveis:
5a) Paulo tem um carro.
5b) Paulo tinha dinheiro para comprar um carro.
5c) Paulo é rico.
5d) Paulo é melhor partido que Pedro.

Apesar de essas proposições terem sido produzidas, por inferência, a partir de (5), elas não têm o mesmo estatuto semântico-pragmático. Assim, as inferências 5a) e 5b) foram ancoradas na forma do enunciado, particularmente na ocorrência do verbo “comprar”. Nesse caso, dizemos que 5a) e 5b) são conteúdos pressupostos por 5). O interlocutor ou leitor infere que “Paulo tem um carro” do fato de que nos tornamos possuidor de uma coisa depois que a compramos. Ainda com base na situação de “compra”, o interlocutor infere que Paulo tinha dinheiro, já que compras só podem se realizar se aquele que deseja participar delas tiver o recurso monetário para tanto. Esse saber sobre o que está envolvido na situação codificada pelo verbo ‘comprar’ faz parte do conhecimento de mundo do interlocutor, conhecimento que ele ativa para que possa realizar as referidas inferências.
Igualmente faz parte do conhecimento de mundo do interlocutor/leitor a crença de que ter um carro é ocupar um status de poder econômico. Mas essa crença não é ativada pela ocorrência do verbo “comprar”; nesse sentido, a inferência 5c) não se faz com base simplesmente na materialidade do enunciado; ela é produto de crenças, valores, opiniões que fazem parte das representações coletivas[4] da comunidade da qual faz parte o interlocutor. Concluir que Paulo é rico pelo simples fato de ele ter comprado um carro zero quilômetro é uma operação cognitiva que envolve muito mais do que o saber sobre o significado de uma dada palavra. Na verdade, essa conclusão deriva da crença, compartilhada socialmente, segundo a qual a compra de um carro zero quilômetro, ou melhor, possuir um carro zero quilômetro é sinal de riqueza. A inferência de 5d), por sua vez, embora suponha uma crença socialmente compartilhada, envolve operações cognitivas mais complexas. A questão é sabermos como a partir de “Paulo comprou um Siena zero quilômetro” pode-se inferir “Paulo é melhor partido que Pedro”. O que devemos levar em conta é o sistema axiológico do interlocutor, que fundamenta suas crenças sobre quais características devem definir o melhor candidato a parceiro sexual. Ao concluir que “Paulo é melhor partido que Pedro”, a partir de “Paulo comprou um Siena zero”, o falante quer comunicar que o poder econômico é o critério mais importante quando da escolha de um parceiro sexual. Se ele, por exemplo, concluísse 5d) numa conversa com a mulher que está indecisa entre Paulo e Pedro, poderia ela reagir negativamente à representação que ele faz dela, isto é, não aceitar a suposição de que ela está entre as mulheres interesseiras, “fúteis”, desejosas exclusivamente de usufruir as condições sócio-econômicas de um pretendente. Ao inferir 5d, o falante atribui ao interlocutor uma imagem socioculturamente definida que, nesse caso, muito provavelmente não será aceita, já que a legitimidade da relação entre o valor social ‘poder econômico’ e o valor social ‘parceiro amoroso’ que ela pressupõe é objeto de desacordo entre os indivíduos e grupos sociais. Os casos de 5c) e 5d) ilustram o fato de que os conteúdos inferidos têm o estatuto de subtendidos, pois que se produzem não com base na materialidade linguística dos enunciados, mas com base num conjunto de crenças, opiniões, ideologias, valores, pontos de vistas que são gerais e estáveis numa sociedade. Conquanto não caiba aqui desenvolver a diferença entre a pressuposição e o subentendido, vale observar que o subentendido é tributário do contexto. Enquanto o pressuposto está inscrito no enunciado, o subentendido resulta de uma inferência operada pelo interlocutor/ leitor que, normalmente, não é prevista pelo enunciador, ou sobre o qual este não assume responsabilidade. No caso de 5d), o falante se compromete apenas com a crença de que ‘o poder econômico de um parceiro amoroso ou sexual deve ser relevante’, mas o significado atribuído a 5d) pelo interlocutor, mesmo não sendo o pretendido pelo locutor, sugere que este tem responsabilidade sobre a representação negativa do seu interlocutor. Não podemos perder de vista que o grau de maior ou menor comprometimento com o conteúdo comunicado deve ser medido, na situação de interação, relativamente às camadas de implícitos. Assim, por exemplo, quem infere (5d) diz, implicitamente, “eu acredito que o poder econômico é importante na escolha do parceiro amoroso ou sexual”. Mas a forma do enunciado, ou seja, sua organização sintático-semântica, permite ao locutor isentar-se da responsabilidade pelo subentendido que é um momento da interpretação do interlocutor, isto é, é uma inferência de sua responsabilidade. Isso não significa negar que o aparecimento do enunciado suponha certas condições sócio-ideológicas e históricas que o tornam possível. Ao produzir 5d), o locutor, se não assume, linguisticamente, a atribuição de uma imagem negativa ao interlocutor[5], não deixa de ativar um contexto sociocognitivo que torna possível a crença nessa atribuição. Porque o interlocutor sabe, assim como o sabe o locutor (e toda a comunidade discursiva a que eles pertencem), que “Paulo é melhor partido que Pedro” significa mais do que deixa significar no nível proposicional. Mas, considerando-se a forma do enunciado, o locutor se compromete com 1) o próprio conteúdo proposicional, ou seja, o fato de Paulo ser melhor pretendente que Pedro e com 2) – que não está inscrito no enunciado, mas ativado pelos contextos sociocognitivos partilhados - o poder econômico é um valor social relevante na escolha de parceiros amorosos, sobretudo em nossas sociedades capitalistas. No entanto, o conteúdo 2) é objeto de controvérsia – daí a possibilidade de sempre haver mal entendidos no uso da língua, já que os significados de nossos enunciados não estão fixados de antemão; nossos enunciados só significam na interação social.[6] São os interactantes que, ao produzir textos, negociam os significados que se devem atribuir a eles. Ao produzir um texto, o produtor atribui, no momento mesmo de sua produção, um significado “x” que deseja seja reconhecido e aceito pelo interlocutor; mas o interlocutor é também produtor de sentidos; por isso, nossas trocas verbais são experiências de negociação de significados com o objetivo de conduzir a interação em curso de modo tal, que possamos nos compreender uns aos outros. Embora, idealmente, ao interagirmos, busquemos fazer com que o outro coopere conosco e aceite os significados que procuramos atribuir às nossas expressões linguísticas, não se segue daí que o acordo sobre os significados negociados seja atingido, já que a própria concepção de interação como negociação de significados pressupõe que o significado que eu posso atribuir a uma palavra ou enunciado não será, necessariamente, o mesmo significado atribuído por meu interlocutor. E lembremos que a divergência pode se dar mesmo na forma como codificamos linguisticamente um acontecimento. Por exemplo, eu posso codificar um acontecimento como ‘roubo’ e meu interlocutor codificá-lo como ‘empréstimo sem consentimento’. Posso categorizar a situação atual da política brasileira como ‘uma crise política’, enquanto meu interlocutor pode categorizá-la como ‘uma crise econômica’, e um terceiro pode dizer ainda que a crise é ‘político-econômica’. Em todos os casos mencionados, o que está em jogo é a atribuição de significado às nossas expressões linguísticas, é o modo como significamos as ocorrências do mundo, como produzimos versões do mundo através do uso da língua. Já insistimos neste ponto em outros textos, por isso nos estendermos sobre esse tema é desnecessário aqui, mas cumpre lembrar que o mundo textualizado, ou seja, o modelo de mundo construído pelo texto não coincide com o mundo “fora” do texto. Nossos textos elaboram um modelo de mundo, uma versão do mundo, portanto, uma interpretação/codificação/reconstrução do mundo[7].


5) Situacionalidade

A situacionalidade é também uma condição importante para que um texto seja coerente. A situacionalidade deve ser entendida em dois sentidos: a) a situação de interação exerce influência sobre a produção/ compreensão do texto; b) o texto também produz efeitos sobre a situação. Quando pensamos a influência da situação de interação sobre a produção e compreensão do texto, devemos levar em conta que a escolha da variedade linguística, o modo como os interactantes tratam do tema, as imagens recíprocas que eles constroem uns dos outros, os objetivos por eles perseguidos, os papéis sociais assumidos, etc. são determinados pela situação. Dependendo das propriedades que levamos em conta na situação de interação, nossos textos assumirão uma determinada forma (estrutura), serão vazados numa ou noutra variedade linguística, produzirão tais e quais efeitos de sentido e serão compreendidos de modos igualmente variáveis. Mas resta perguntar sobre como a situação atua sobre a produção e recepção de textos. Na verdade, costuma-se pensar a situação tanto como o momento e lugar em que se desenvolve a interação social, e os seus participantes (situação imediata), quanto como as condições sociopolítico-culturais que fundamentam a própria interação social. No entanto, a abordagem sociocognitivo-interacionista, não rejeitando o conceito de situação, reza que ela não influencia diretamente a interação verbal. É justamente por não haver uma influência direta da situação sobre a produção e compreensão dos textos que o conceito de contexto se impõe como extremamente importante.
Antes, porém, de elucidá-lo, cumpre dizer que o texto tem reflexos importantes na situação de comunicação, na medida em que o mundo textual não coincide exatamente com o mundo fora do texto. Conforme dissemos, o mundo textual não é uma cópia do mundo fora do texto. O texto é expressão de uma versão pública do mundo, uma versão do mundo segundo os propósitos, os interesses, as crenças, as convicções, as ideologias dos interactantes. O interlocutor ou leitor interpreta o texto em consonância com seus objetivos, com suas crenças, com seus pontos de vista. As coisas, fatos, eventos de que fala o texto não devem ser tomados como coisas, fatos e eventos do mundo fora do texto. Na medida em que os textos reconstroem o mundo, constroem também os referentes que passam a ser objetos-de-discurso, não objetos do mundo.[8]


2.1.2. Contexto sociocognitivo

O contexto, à luz da abordagem sociocognitivista do texto, não deve ser entendido como sinônimo de situação social concreta (o entorno físico, institucional em que se dá a interação verbal). O contexto é um constructo sociocognitivo. Por conseguinte, devemos pensar o contexto como sociocognitivamente construído com base em nossas experiências sócio-culturais. Chama-se, pois, contextos sociocognitivos ao conjunto de conhecimentos, propósitos, expectativas, opiniões, crenças, bem como ao conjunto de todos os sistemas de conhecimento (enciclopédico, linguístico, comunicacional, etc.) armazenados na memória dos interactantes e que precisam ser mobilizados por ocasião da interação verbal. A ativação desses contextos será indispensável para que o curso interacional se desenvolva, se mantenha e atinja um bom termo.
As abordagens sociocognitivistas insistem em que a situação imediata não tem influência sobre o uso da língua. Assim, por exemplo, o fato de duas pessoas interagirem num ônibus não constitui em si uma situação determinante dos efeitos de sentido produzidos no uso da língua. A situação imediata –  ‘viagem de ônibus’ – só terá influência sobre o uso da língua, desde que alguns elementos seus que se demonstrem relevantes servirem de base para a produção de modelos de contexto da própria situação em que ocorre a interação. Assim, é possível, por exemplo, que um incidente com um passageiro durante a viagem de ônibus suscite em alguns passageiros o interesse por conversar sobre as dificuldades de andar de transporte público. Nesse caso, eles ativarão seus conhecimentos sobre as condições do transporte público em seu país, as dificuldades enfrentadas cotidianamente pelos usuários, o mau comportamento do condutor do veículo, etc. Mas é importante insistir que o simples fato sermos passageiros de um ônibus não influenciará nossas práticas linguísticas.
  O que conta, no final das contas, para fins de produção e compreensão dos textos, são os contextos sociocognitivos que os interactantes supõem partilhados, em alguma medida. Assim, para que duas pessoas consigam interagir de modo a buscar a intercompreensão, elas precisam compartilhar, em alguma medida, seus contextos sociocognitivos. Já aludi ao fato de que os textos não encerram todas as informações necessárias para a sua compreensão; grande parte das informações veiculadas pelo texto é pressuposta como compartilhada com o receptor, isto é, é assumida como um conjunto de conhecimentos que o receptor já possui. O produtor do texto, porquanto pressupõe partilhar com o interlocutor algumas parcelas de conhecimento de mundo, só se encarregará de explicitar os conteúdos que não são supostos como  conhecimentos constitutivos do contexto sociocognitivo do interlocutor. Por outro lado, os conteúdos implícitos, que se supõem partilhados, são facilmente recuperáveis pelo receptor por meio de inferenciação.
Podemos chamar de modelos cognitivos de contexto ou simplesmente modelos de contexto tipos de contextos que definem a relevância de cada discurso[9] em cada situação de interação. Os modelos de contexto servem à monitoração dos eventos comunicativos. Eles são também sociocognitivamente construídos e incluem as crenças dos interactantes sobre a interação em curso, sobre o texto que está sendo produzido e compreendido (seja ele escrito, seja falado), bem como as propriedades da situação, tais como tempo, lugar, circunstâncias, condições, objetivos e outros fatores situacionais que possam ser relevantes para a produção e compreensão adequada dos textos. Os modelos de contexto são, portanto, constructos cognitivos que dizem respeito mais propriamente à representação das condições de interação verbal.
Contextos são, de modo geral, algum tipo de modelo mental. Pensar o contexto como modelo mental é assumir a interface mental entre o discurso e as situações sociais. Reitere-se que a situação social, ou o entorno biofísico-social, não influencia diretamente a produção e compreensão de um texto. A produção de texto, embora sempre seja socialmente situada, supõe que os usuários da língua são capazes de representar a estrutura social e as situações sociais, bem como as estruturas do discurso, de sorte que é no âmbito das representações mentais que é necessário encontrar o que liga o discurso à sociedade, o discurso à situação social.
Cabe perguntar o que são modelos mentais. Modelos mentais são representações cognitivas de nossas experiências. Na verdade, modelos mentais são as nossas experiências, visto que experiências nada mais são do que interpretações do que ocorre conosco (Dijk, 2012, p. 94). Contextos são constructos subjetivos e socialmente fundados, elaborados pelos interactantes, e dizem respeito às propriedades da situação de interação que eles supõem relevantes. Os usuários da língua constroem um modelo de representação analógica da realidade, a fim de que, com base nesses modelos de representação, possam fazer inferências aceitáveis a partir de textos.
Finalmente, quando consideramos a construção da coerência, devemos reconhecer que um texto será coerente para os usuários da língua, se eles forem capazes de construir modelos mentais dos eventos ou fatos sobre os quais estão discorrendo, e se forem capazes de relacionar entre si os eventos e fatos que se acham nesses modelos, por exemplo, estabelecendo entre eles relações de temporalidade ou causalidade.

2.2. Coesão textual

Já foi dito que a coesão textual não constitui condição necessária nem suficiente para garantir a coerência de um texto. Tal reconhecimento nos adverte do equívoco de acreditar que um texto destituído de recursos de coesão é, necessariamente, carecido de coerência, ou ainda de crer em que textos que manifestam recursos de coesão são necessariamente coerentes. O poema-pílula de Oswald de Andrade, abaixo reproduzido exemplifica a desnecessidade da coesão para que consigamos construir a coerência do texto:

(6)      Amor
           Humor

Nesse poema-pílula, não se verifica qualquer elemento de coesão. O poema se constitui de uma única palavra – “humor”. A palavra “humor”, subposta à palavra “Amor”, sugere o modo como o eu-lírico define o amor. Ao definir amor como “humor”, o eu-lírico subverte todo um imaginário ocidental para o qual o amor é um valor sublime, uma experiência capaz de dotar a vida de sentido, uma experiência capaz de causar os mais pungentes sofrimentos ou as mais excelsas alegrias. A “seriedade” com que o amor é tematizado (na literatura, no cinema, etc.) e experienciado na vida ordinária é questionada. Como é possível ao leitor desenvolver a compreensão deste poema, na falta de um elemento de coesão? O leitor ativa diversos saberes, entre os quais se pode citar o saber sobre o gênero textual ‘poema’, sobre o autor do poema, sobre  o movimento literário ao qual esse autor se vincula (o modernismo), etc. No que diz respeito ao saber sobre o modernismo na literatura brasileira, a compreensão do poema depende também de que o leitor reconheça que o modernismo se caracterizou, fundamentalmente, por opor-se ao tradicionalismo, à arte acadêmica e por elaborar expressões artísticas cheias de irreverência e capazes, não raro, de provocar escândalo.
Malgrado a originalidade da forma do texto, que se compõe de uma única palavra subposta ao título, o leitor também reconhece que ele se apresenta numa organização poética – uma organização na qual as expressões linguísticas se sobrepõem umas às outras (o eu-lírico apresenta a palavra “amor” e abaixo dela introduz a palavra “humor”, conferindo ao texto um arranjo típico da poesia, em que os versos se sobrepõem uns aos outros). Além disso, o leitor é capaz de inferir algum tipo de relação entre as duas palavras. Na falta de marcas linguísticas que sinalizem o tipo de relação, o leitor conclui que “humor” subsume tudo que o eu-lírico pensa ou pretende dizer sobre o amor (talvez, ele possa construir linguisticamente a relação supondo a intercalação da forma verbal “é” (“amor é humor”). Seja como for, o leitor opera com hipóteses na tentativa de construir o sentido para o poema. Mas essas hipóteses são produzidas com base no seu conhecimento de mundo, que inclui também saberes sobre outros discursos que versam sobre o amor. Na falta de recursos de coesão que contribuam para facilitar o processo de interpretação/compreensão, avulta a importância dos modelos cognitivos, aos quais recorre o leitor com vistas a atingir uma compreensão satisfatória do texto.
Outro exemplo de texto (um poema) destituído de elementos de coesão é o que se segue abaixo:

(7) O Show

      O cartaz
      O desejo

      O pai
      O dinheiro
      O ingresso

      O dia
      A preparação
      A ida

     O estádio
     A multidão
     A experiência

     A música
     A vibração
      A participação
      A volta
      O vazio

Com base no título (que é um fator de contextualização, que permite ao leitor prever o tema de que tratará o texto), o leitor pode esperar que o texto versará sobre o tópico “Show”. Ademais, a construção da coerência para esse texto é possível, porque o leitor é capaz de articular o modelo de mundo construído pelo texto ao modelo cognitivo, ou seja, a um frame representado pela categoria “show” que ele possui por força de suas experiências pessoais com o evento “show”. Ao ler o texto, o leitor consegue ativar um frame de “show”, ou seja, um modelo do que é um “show” correspondente ao modelo construído pelo texto. Autor e leitor compartilham, em alguma medida, conhecimentos sobre o que é um “show”, e esse conhecimento de mundo compartilhado é condição de possibilidade para que o leitor seja capaz de atribuir sentido ao texto. O texto elenca uma série de elementos que remetem quer às condições de realização de um show (cartaz, dinheiro, ingresso, estádio, multidão, etc.), quer à experiência de um integrante do público que assistirá ao espetáculo (o desejo, o pai, o dinheiro, a preparação, a ida, a experiência, etc.).
Dizer que a coesão não é nem necessária nem suficiente para a construção da coerência não significa dizer que, em muitos gêneros textuais, ela não é desejável nem exigida. A coesão auxilia na construção da coerência. Em gêneros textuais como “artigo de opinião”, “ensaio filosófico”, “monografia”, por exemplo, em que predomina a função argumentativa da linguagem, o uso de recursos coesivos que marcam essa função é indispensável.
Não poderemos discorrer detidamente sobre o fenômeno da coesão neste texto. Por conseguinte, cingir-nos-emos a definir a coesão e os seus dois tipos. A coesão é, portanto, é o mecanismo pelo qual construímos a tessitura do texto, isto é, a rede de relações entre os elementos que compõe a superfície textual. A coesão permite então a conexão, a ligação entre as palavras, as frases, sintagmas ou mesmo parágrafos inteiros de modo a compor cadeias coesivas dotadas de sentido. A coesão é responsável pela sequência linear do texto. Embora ela opere no nível da estrutura superficial do texto, relacionando entre si as suas partes, a coesão estabelece, no nível da estrutura profunda do texto, relações de sentido. Ora, ao ligar a oração “Estou com dor de cabeça” à oração “vou à escola”, o operador discursivo “mas” estabelece uma relação de sentido entre elas. A Gramática Tradicional nos habitou a compreender o “mas” como uma conjunção que serve à expressão da relação de contrariedade, de oposição entre dois fatos ou estado-de-coisas.[10] O estudo do funcionamento do operador discursivo “mas” no discurso deve, no entanto, ser orientado para a apreensão da sua função argumentativa. Por isso, em (8),

(8) Estou com dor de cabeça, mas vou à escola.

o operador “mas” introduz um argumento decisivo para a conclusão contrária àquela que se esperava. Assim, a parte “estou com dor de cabeça” encaminha uma conclusão R, que pode ser “ficarei em casa”. Ao introduzir “mas vou à escola”, o enunciador anuncia um argumento que tem mais “força” e que encaminha para a conclusão não-R, a saber, “não ficarei em casa”. Mas isso não é tudo. O “mas” pode encaminhar a conclusão de que o enunciador é estudioso, tem força de vontade, “é resistente, forte, não se deixa abater”. Nesse sentido, o enunciador pode pretender construir (ou ver construída pelo outro) uma imagem positiva do seu self. Acrescente-se que, embora possamos dizer que “mas vou à escola” exprime uma relação de contrariedade, ela não toca exatamente ao âmbito proposicional, isto é, “estou com dor de cabeça” e “vou à escola” não se relacionam como acontecimentos contrários (cf. Caí, mas me levantei). A oposição se dá em relação às expectativas sociais em torno de qual é o comportamento comumente assumido numa tal situação. Assim, esperamos que pessoas com dor de cabeça, sobretudo se ela for muito intensa, não consigam sair de casa, muito menos ir à escola, onde precisam se concentrar em atividades que demandam atenção, exercício de pensamento, etc. É essas expectativas que o enunciado “vou à escola”, articulado com “mas”, contraria.
Finalmente, há dois tipos de coesão. Ei-los abaixo:

a) Coesão referencial ou remissiva – é aquela por meio da qual um componente da superfície textual faz remissão a outro(s) elemento(s) presentes ou inferíveis a partir do modelo textual, que constitui uma memória compartilha publicamente pelo próprio discurso[11]. À forma que faz remissão a outro elemento chama-se forma referencial; o elemento a que se faz remissão chama-se referente.

Exemplos: Os garotos subiram na árvore amedrontados. Pálidos, os três olhavam o cachorro que latia raivosamente.

                Eu só espero uma coisa: a sua honestidade.

b) Coesão seqüencial: diz respeito aos procedimentos linguísticos por meio dos quais se estabelecem, entre os segmentos textuais (enunciados, partes de enunciados, parágrafos e sequencias textuais), diversos tipos de relações gramaticais e discursivas, à medida que se faz o texto progredir (progressão textual).

Exemplo: Amanhã, iremos ao shopping, mas você deverá avisar a sua mãe, para que ela não fique preocupada. Se não fizer isso, você não vai.


Considerações finais

Ao advogar a necessidade de que se promova um ensino de língua portuguesa, deveras, destinado ao desenvolvimento da competência comunicativa dos aprendizes, não nos preocupamos em definir o conceito de competência comunicativa, por julgar que o leitor já soubesse o seu significado. De qualquer forma, definimos agora o que é a competência comunicativa. A competência comunicativa recobre a capacidade que todo falante tem não só de produzir e interpretar enunciados em uma língua, mas também a capacidade que ele tem de adequar suas produções linguísticas às diversas situações de interação da qual participa como sujeito social. O desenvolvimento da competência comunicativa dos falantes de português deve, portanto, consistir na criação das condições necessárias para que eles ampliem seu repertório linguístico, passando a dominar o maior número de variedades linguísticas possível tanto em termos de produção quanto em termos de interpretação/compreensão. Um falante comunicativamente competente numa língua (seja na sua língua materna, seja numa segunda língua) não é só aquele que domina o mecanismo gramatical dessa língua ( ou seja, as regras e princípios que governam a construção de enunciados), mas, sobretudo, aquele que consegue usar os enunciados que produz de modo comunicativamente eficiente nas diversas situações de interação. Para tanto, ele precisa dominar mais do que regras de construção de frases ou textos; deve também saber reconhecer quais são as regras sociais ou expectativas sociais que regulam o uso da língua nas diferentes situações de interação. Somente o trabalho com textos reais tornará o ensino de português uma ocasião apropriada para o exercício reflexivo sobre todo um conjunto de condições sociais, culturais e políticas que influenciam o uso que fazemos de nossa língua. Ora, o conhecimento das normas e expectativas que regulam as vivências sociais se constitui e se transmite, fundamentalmente, através da linguagem, através dos textos, que são formas de cognição social. Onde mais poderemos apreender o modo como essas normas e expectativas conformam nossas vivências em sociedade senão no exame e discussão aturada das práticas discursivas?


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, Irandé. Lutar com as palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

DJIK, Teun A. van. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. São Paulo: Contexto, 2012.

FERRARI, Lilian. Introdução à Linguística Cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011.

KOCH, Ingedore G. Villaça. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2006.

____________ Introdução à Linguística Textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

NEVES, Maria Helena de Moura. Texto e Gramática. São Paulo: Contexto, 2006.







[1] O leitor poderá encontrar em Koch (2004) uma lista de argumentos em favor da necessidade de construir gramáticas textuais.
[2] A anáfora indireta é um tipo de estratégia referencial de associação na qual não há retomada de um referente anteriormente introduzido. Nesse sentido, a anáfora indireta se diferencia do tipo comum de anáfora, que supõe uma identidade ou correferência entre o referente e a forma referencial (cf. O gorila fugiu do zoológico. O animal ainda não foi encontrado). Embora envolva uma associação, estudiosos há que distinguem a anáfora indireta da anáfora associativa. Neste último tipo de anáfora, há uma relação de ingrediência (x é ingrediente, é parte de Y) que falta ao primeiro tipo (cf. O carro era antigo. O motor não já apresentava sinais de desgaste.). Para mais esclarecimentos, consulte-se Koch (2006).
[3] As pesquisas em Linguística Cognitiva vêm-se desenvolvendo com base na hipótese da base corpórea da cognição. Essa hipótese assenta-se na visão de que nosso corpo em inter-ação com o corpo dos outros indivíduos influencia as atividades cognitivas, tais como a percepção, a formação de conceitos, a imagística mental, a memória, o raciocínio, a linguagem, as emoções e a consciência (Ferrari, 2011, p. 44).
[4] Competiu a Durkheim cunhar a expressão representações coletivas, com vistas a designar certos tipos de “fatos sociais” que se situam no domínio psíquico dos indivíduos em coletividade. As representações coletivas compreendem as crenças, as ideias, os valores, os símbolos, os pontos de vista que estruturam modos de pensamento e de sentimento que são gerais e estáveis numa sociedade ou grupo social. As representações coletivas são compartilhadas pelos indivíduos em coletividades e servem para nortear suas práticas e organizar suas vidas. Elas são elementos constitutivos da cultura.
Segundo Durkheim, para agir no mundo, as pessoas precisam representá-lo em sua consciência e prever as consequências de suas ações. Assim, as representações coletivas são arranjos de crenças, ideias, representações, etc. que, sendo partilhados, capacitam os indivíduos para atuar tanto no mundo natural quanto no mundo social.

[5] Veja-se que o estatuto do locutor, em termos de comprometimento com o que diz, mudaria se o enunciado “Paulo é melhor partido que Pedro”, inferido a partir do saber comum segundo o qual “o poder econômico é relevante na escolha de um parceiro amoroso” se acompanhasse de “por isso acho que você deve ficar com Paulo”. Nesse caso, o locutor dificilmente conseguiria convencer o seu interlocutor que não pretendeu sugerir que ele deve ser um interesseiro.
[6] A questão da determinação do modo como significam os enunciados não deve nos ocupar aqui. É importante reter, no entanto, que as palavras não significam fora do uso; os enunciados não significam fora da interação social. Muito embora – é claro -, por um lado, as palavras conservem um conteúdo sedimentado por força dos inúmeros usos fixados historicamente para elas; por outro lado, os enunciados (e nos circunscrevemos aqui aos declarativos) encerrem um conteúdo proposicional, ou seja, codifiquem um estado-de-coisas que se identifica com o que comumente entendemos por significado de uma frase, a significação é um processo que ultrapassa o nível representacional ou ideacional das expressões linguísticas. Podemos diferenciar o significado de um enunciado (seu conteúdo proposicional) do seu sentido (que funções ele desempenha no curso da interação); ou, em outros termos, podemos diferenciar o significado proposicional do significado pragmático. Assim, “Maria está dormindo”, significa, no domínio proposicional, ‘há uma entidade chamada ‘Maria” que se encontra em estado de sono’, mas pode significar ‘ela não poderá atendê-lo, passe mais tarde’, se fizer parte de uma situação interacional em que o locutor A produz “Posso falar com Maria?” e o interlocutor B se limita a dizer “Ela está dormindo”. O fato de Maria estar dormindo já sugere ao locutor que ela não será despertada, que ela merece repousar, talvez porque chegou da escola cansada, etc. O que está em jogo é que o significado de “Ela está dormindo” é objeto de disputa entre os interlocutores envolvidos, porque B atribui a esse enunciado o significado ‘Maria não será incomodada’ e A precisará reconhecer que é esse significado que B pretende negociar e quer reconhecido por A. A insistência de A para que possa falar com Maria demonstraria a B que A foi incapaz de reconhecer o significado pretendido por B. Essa insistência poderia parecer a B como sinal de que A é inoportuno, inconveniente, etc.
[7] Apresentamos a perspectiva que é aceita no interior da Linguística Textual, mas não nos esquivamos de notar que ela ainda pressupõe a possibilidade de existir um mundo independentemente da linguagem. Em outro texto, publicado neste blog, procuramos argumentar que o “mundo”, tomado como  ‘a estrutura de significação da existência humana’, não existe fora dos quadros da linguagem. A totalidade do mundo já se nos apresenta estruturada como uma rede de significados. Não obstante, a visão, sustentada na Linguística Textual e compartilhada pelas teorias do discurso, de que o texto não espelha o mundo lança por terra a crença, ainda muito vulgarizada no senso-comum, de que a linguagem é um sistema de representação transparente, telegráfica do mundo. Nossos textos não são cópias do mundo real, mas versões públicas do mundo; disso se segue que entre o texto e o mundo, há o ponto de vista, as crenças, as opiniões, os preconceitos, a interpretação do produtor do texto, que é sujeito que, ao dizer o mundo, significa-o de um certo modo.
[8] O leitor poderá encontrar neste blog um texto em que trato do fenômeno da referenciação como um processo sociocognitivo-interacional de construção de objetos-de-discurso, portanto, de (re)construção interativa da realidade.
[9] O conceito de discurso não deve ser confundido com o de texto. Os textos são produtos do discurso. O discurso é, necessariamente, um acontecimento sócio-histórico protagonizado por pelo menos dois interlocutores, numa dada situação social. O discurso inclui o momento histórico e o espaço social. Não há, na literatura especializada, uma maneira unívoca de definir o discurso. A definição que aduzimos é concernente com os propósitos deste nosso estudo.
[10] Essa interpretação tradicional do operador discursivo “mas” é reducionista, por isso não dá conta da multifuncionalidade desse elemento. O “mas” não serve apenas ao estabelecimento de relações de contrariedade, de oposição. Os estudos funcionalistas nos dão farto testemunho de outros valores semântico-pragmáticos dessa unidade da língua. Para uma descrição do comportamento semântico-discursivo do operador “mas”, consulte-se Neves (2006).
[11] Segundo Koch (2004, p. 58) “o discurso constrói aquilo a que faz referência”. Nesse sentido, o discurso constrói uma representação que funciona como uma memória compartilhada. Essa memória é alimentada pelo próprio discurso. O leitor, à medida que vai lendo o texto, vai constituindo um modelo textual, ou seja, uma representação mental do próprio texto, a qual constitui uma espécie de memória discursiva. Por isso, as retomadas anafóricas não constituem recuperação de elementos introduzidos anteriormente no texto, mas de referentes que se acham acessíveis no modelo textual (na memória discursiva do leitor).