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domingo, 7 de dezembro de 2014

"O romantismo: O romantismo é um produto do cristianismo. Religiosidade exagerada, veneração fantástica às mulheres e valentia cavalheiresca, portanto Deus, a dama e a espada são os símbolos daquilo que é romântico." (Arthur Schopenhauer)

       
                 

                     

                                  Um itinerário filosófico-(des)amoroso
                          O amor-paixão e suas desventuras


Na história do pensamento filosófico, não foram raros os filósofos que levaram a efeito uma crítica corrosiva do amor, que os levou a considerá-lo uma espécie de mal contra o qual deveríamos nos imunizar. Pode-se citar, entre os filósofos para os quais é necessário prevenir-se contra as maquinações do desejo amoroso, Lucrécio, Schopenhauer e Nietzsche. Se nosso interesse é meditar sobre o amor filosoficamente, cumprir-nos-á, de início, reconhecer a necessidade de distinguir entre três tipos de amor, contemplados no curso da tradição: amor-eros ou amor-paixão, amor-philia e amor-caritas.
Quando me debruço sobre o tema do amor, concebendo-o como experiência de envolvimento entre um homem e uma mulher, e busco encaminhá-lo, tomando como modelo para o desenvolvimento de minhas reflexões, o amor materno, que defino como amor de cuidado, estou ciente de que construo uma perspectiva de amor idealizada, explicável, no entanto, pela interpretação psicanalítica, segundo a qual escolhemos nosso parceiro amoroso com base no modelo de amor constitutivo de nossas experiências com nossa mãe. A forma como se deu essas experiências de amor vai moldar nossas escolhas amorosas na fase adulta. O equívoco que se segue dessa tentativa de estender um modelo de amor, fundado na experiência do cuidado, à busca por entender a experiência de amor entre um homem e uma mulher consiste em ignorar que essa experiência de amor é sempre a de um amor interessado e sexual. Disso resulta que, segundo vários filósofos, essa experiência de amor, fundada na atração sexual, é uma experiência de possessividade, contaminada pelo ciúme e pela ilusão de fusão.
Quando Schopenhauer observou que o amor é um mal, ele se referia ao amor- paixão, ou ao amor romântico. A paixão amorosa é um perigo que Lucrécio, filósofo romano do século I a.C, tratou de denunciar. Lucrécio recomendou que os homens deveriam evitar se apaixonar, sob pena de se tornarem escravos de seu desejo jamais satisfeito definitivamente. O desejo sexual é fonte de sofrimentos, pois carreia ciúme e inveja, além de levar também os amantes a idealizar um ao outro. Poder-se-ia dizer que os que se deixam embeber-se da paixão amorosa estão a amar a imagem construída do outro, e não o outro tal como realmente é.
Este texto se destina à exposição e ao esclarecimento do pensamento desenvolvido por Lucrécio, Schopenhauer e Sartre acerca do amor, na tentativa de nos fazer ver as maquinações com as quais nossa sensibilidade moderna está entrelaçada, por força do trabalho de uma tradição romântica, cujos alicerces repousam numa longa tradição socrático-platônica e cristã, no interior da qual o valor do amor foi sobremaneira estimado. É certo que o Romantismo se encarregou de deturpar a visão de amor platônica, a qual não privou o amor de sua dimensão sexual; devemos a essa tradição romântica a crença, muito corrente no senso comum, de que o amor platônico é amor da impossibilidade de realização, da impossibilidade de consumação sexual. O amor platônico é impulsionado por Eros e nunca deixa, por isso, de ser erótico. No entanto, o amor para Platão deve conduzir os amantes, numa escalada de conhecimento, a amar o Belo em si. Os amantes são produtores de belezas; de modo que os enamorados devem ser movidos a amar o saber, a filosofia, até experienciar o amor à Forma, à Essência do Belo.
Cumpre frisar que o amor que será por mim contemplado nesta exposição é o amor-paixão.



1. Da necessidade de não se apaixonar: uma lição de Lucrécio

Lucrécio, poeta e filósofo romano do século I a.C, tornou-se famoso por seu poema filosófico De rerum natura (Da natureza das coisas), no qual enaltece Epicuro e revela sua visão de mundo. Lucrécio, poeticamente, descreve os fenômenos da natureza, os mais belos e os mais horríveis, esclarecendo suas causas naturais, à moda do atomismo mecanicista de Epicuro. Para Lucrécio, a filosofia precisa libertar os homens do terror, das superstições e do medo dos deuses. Face a esses medos, o filósofo deve empreender a busca pelo sentido do belo e a tranquilidade da alma.
A Roma de Lucrécio era um lugar de pragmatistas. O pragmatismo estruturava quer a esfera política, quer a da engenharia, quer ainda a do amor. Para Lucrécio, o amor não é mais do que um impulso natural que se corrompe quando se torna objeto de expectativa para a remissão do sofrimento (concepção esta que a Roma cristianizada viria a rejeitar, quando o cristianismo conferiria ao amor um valor supremo e o veria como uma força capaz de remir o sofrimento, o pecado e a morte), do mal e da morte.
Lucrécio atribuiu ao amor e a amizade um lugar central na vida, mas rejeitou o endeusamento da paixão, a qual era vista como uma espécie de escravidão e portadora das mais terríveis infelicidades. Tendo examinado cuidadosamente o modus operandi do desejo sexual e a irresistível necessidade em que ele está baseado, a saber, a necessidade de procriação e de prazer, Lucrécio esperava que nós nos tornássemos capazes de controlá-lo, em vez de nos deixar controlar por ele. Assim, acreditava que nos libertaríamos do medo, da loucura e da ilusão consequentes da tirania do desejo.
Lucrécio entendia que aquilo que as pessoas eroticamente embriagadas chamavam de amor não é senão um sintoma do instinto inconsciente de autoperpetuação. Seu modus operandi é poder e manipulação, guerra e ilusão.
O amor não era, para ele, uma virtude, mas um perigo; e a arte de amar consiste em viver esse instinto impulsivo e imprudente sem nos submetermos a ele. Fica excluído dessa visão de amor qualquer domínio de espiritualidade.
O sexo vicia – disso tinha certeza Lucrécio. O desejo nunca é satisfeito de modo definitivo e, diferentemente de outras formas de desejo, como o de comida e de água, quanto mais buscamos satisfazer o desejo sexual, mas dele ficamos inflamados. Lucrécio não negará a necessidade de gratificação do apetite sexual, mas recomendará moderação. Seu intento é nos libertar da tirania desse desejo e da paixão amorosa.
Não se segue do exposto acima que Lucrécio deixe de regozijar-se com o impulso amoroso, o qual vê como um poder generativo da deusa Vênus. A vitalidade desse poder emociona-se consigo. É ela o deleite ao qual devemos a conservação da vida como um querer mais de si mesma. Isto é, um querer de procriar.
Não devemos nos apressar em concluir que Lucrécio entendesse ser a vida boa em si mesma, nem má. Não sendo má a vida em si mesma, Lucrécio não era um pessimista, como o foi Schopenhauer. Lucrécio era um desalentado: ele evidenciava os horrores da vida cruamente, sem daí concluir que fosse mal em si.
Schopenhauer também verá a paixão sexual como uma energia erótico-cósmica de que está impregnada a natureza. Essa força vital procriadora ele chamará de “Vontade de vida”. No entanto, ao contrário de Lucrécio, por reconhecer nessa força sua insaciabilidade e o sofrimento a que ela nos conduz, ele verá a vida como um mal em si mesma.

2. Os três remédios de Lucrécio

No mundo antigo, grego e romano, a necessidade de prevenir-se contra a loucura do amor, mormente contra a tendência a ser idealizado ou a ser demonizado, quando nos lega uma grande decepção, era lugar-comum. Lucrécio oferece três remédios a esses males do amor, quais sejam: contemplação, casamento e promiscuidade. Destarte, a tirania do sexo pode ser acalmada pela contemplação, contida pelo casamento e, se tudo o mais fracassar, dissolvida pela promiscuidade.
Pela contemplação, desfrutamos prazeres simples e sociáveis. Podemos ver pessoas sexualmente atraentes, sem nos deixar dominar pela lascívia, o medo, o ciúme, a possessividade ou outras paixões tirânicas.
Correndo o risco de dizer muito esquematicamente, uma vez nos surpreendamos desejando fortemente alguém, devemos, propõe Lucrécio, estabelecer uma relação de amizade com essa pessoa e desfrutar deleites moderados, inclusive sexuais. Aqui, Lucrécio revela-se claramente epicurista. Mas reconhece que é extremamente difícil disciplinar nossos impulsos sexuais e nossos anseios por emoção embriagadora em geral.
Aos que, dentre nós, são incapazes disso, ele sugere o casamento e a geração de filhos, como meio de por termo à tendência de produzir ilusões sobre o nosso parceiro amado. Ambos os amantes passariam a se ver com realismo, sem o qual as relações humanas estão destinadas ao malogro. O desejo, em virtude do casamento, será refreado pela satisfação circunstancial, bem como pelas rotinas da vida conjugal. O sexo será canalizado para seu fim próprio: gerar a prole.
Lucrécio não pretende ser cínico ao sugerir o casamento como remédio para arrefecer o desejo sexual, livrando os amantes de suas armadilhas; ao contrário, ele elogia o casamento, porquanto ele resolve o eterno problema de como tornar possível a socialização e a satisfação de nossos anseios desregrados, tornando possível, assim, atingir uma relação duradoura e feliz.
Não há espaço para dar a saber o que nos diz Lucrécio sobre quem deve ser a pessoa adequada para a união conjugal. Considere-se, finalmente, o seu último remédio contra a tirania da paixão amorosa: a promiscuidade.
Aos que são torturados pela obsessão vã devem, pondo freio à imaginação, se lembrar de que há outras amantes atraentes no mundo e devem buscar alívio para sua carga libidinal onde quer que haja oportunidade de sexo recreativo. Escreve, assim, Lucrécio:

Mantenha longe da imaginação e afugente
Tudo que estimula o amor;
Volte sua mente para outros lugares
Livre-se do fluido em qualquer corpo que puder
Em vez de guardá-lo para uma pessoa
O que está fadado a levar a infortúnio e terminar em dor.


3. O amor na visão de Schopenhauer

A filosofia schopenhaueriana é marcada por um profundo pessimismo. Schopenhauer mantém que toda a realidade é governada por uma vontade cega e absurda de viver que leva todo o universo e cada ser vivo a desejar incessantemente algo que, uma vez obtido, torna-se motivo de insatisfação. Vê-se já aqui a medida da dívida que o pensamento de Freud tem para com o pensamento de Schopenhauer.
Segundo o filósofo de Dantzig, a vida do ser humano  combina tragicamente dor e tédio, anseio e luta: desta situação é possível libertar-se somente pondo fim à vontade e a si próprio, alcançando a tranquilidade nulificante de uma espécie de nirvana.
O amor é visto, portanto, à luz dessa concepção pessimista da vida, como um sentimento falso e enganador, primeiramente porque está calcado sobre o instinto sexual, que não é outra coisa senão um fatídico estratagema de que se serve a natureza e, por isso, a vontade, a fim de perpetuar a si própria, por meio da produção de novos indivíduos. Novamente aqui vemos o amor reduzido a um instinto, sem bem que perverso, de procriação. Em segundo lugar, o amor é ilusão, porque a maquinação da natureza se dá à revelia dos envolvidos na experiência amorosa, os quais acreditam que estão vivendo livremente seu amor, embora eles sejam meros instrumentos da vontade postos a serviço da sua finalidade própria: a reprodução. Para Schopenhauer, o casamento também atende a esta lógica rígida e, portanto, é desprovido de qualquer valor sagrado.
O amor é servo da vontade, da irracionalidade que governa cada evento e situação, fato demonstrável pela loucura que, não raro, caracteriza a experiência amorosa. O amor é poderoso e engana. E o ser humano que sucumbe ao jugo do amor é capaz de cometer qualquer perversidade e de resignar-se a toda sorte de sofrimento. O amor o ilude prometendo-lhe uma felicidade não factível. O prazer sexual é sempre uma experiência momentânea e insatisfatória, porque a finalidade do amor não é o contentamento do homem e da mulher, mas possibilitar a geração de filhos e, assim, a perpetuação da natureza.
Schopenhauer, contudo, contemplou outro tipo de amor, que podemos chamar de amor-caridade. Trata-se de um sentimento de compaixão que o ser humano experimenta quando descobre que sua própria dor é igual à dos seus semelhantes. Esse tipo de amor leva-o a se inclinar a um sentimento de partilha e solidariedade. Mesmo sendo ateu, Schopenhauer concebe um tipo de amor semelhante ao amor cristão, isto é, o amor-caridade, que não satisfaz quem o experiencia, mas expressa tão-só piedade para com a miserabilidade da condição do outro. Poder-se-ia dizer que esse tipo de amor conduz os homens a se reconhecerem como filhos do sofrimento inerente à existência.

4. O amor, segundo Sartre

Na fase existencialista de sua obra, Sartre não cessou de insistir no caráter conflitante das relações interpessoais. Seu pessimismo é extensivo às relações amorosas também.
Na opinião de Sartre, o amor é irrealizável, dado que qualquer relação de um ser humano com outro implica uma série de contradições insolúveis. É de se notar, de início, que a experiência amorosa impõe limites à liberdade alheia, não obstante acreditarem os amantes que respeitam a liberdade um do outro.
Além disso, segundo Sartre, o impulso amoroso funda-se numa vontade de unir-se totalmente à pessoa amada, na esperança, de todo injustificável, de que se estabeleça, assim, uma reciprocidade plena de sentimentos e anseios. Pura ilusão! – dirá Sartre. Toda tentativa nesse sentido está fadada ao fracasso, porque, embora o amante declare ser tudo para o amado, sem que isso signifique reprimir-lhe a livre expressão de sua personalidade, a reciprocidade de sentimentos resulta irremediavelmente impossível, de modo que só resta a cada qual um isolamento insuperável.
Não há lugar para esperanças e salvações, na visão sartreana de amor, porque as relações humanas jamais escapam à lógica da posse e da sujeição. O amor é desprovido de autenticidade, já que as relações humanas também o são. Logo, elas, tanto quanto o amor, estão destinadas ao fracasso. Longe de os outros serem fontes para relacionamentos gratificantes, eles são, para Sartre, nosso próprio inferno.

domingo, 6 de julho de 2014

"A visão do homem agora cansa - o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do homem..." (Friedrich Nietzsche)

                                

                       O espírito materialista e niilista
                       Uma conciliação contra a ilusão


Em Confissões de um filósofo (2001), Bryan Magee observa que o impulso básico para o filosofar é a curiosidade a respeito do mundo e não o estudo dos textos filosóficos.


“O impulso básico por trás da verdadeira filosofia é a curiosidade a respeito do mundo, não o interesse pelos textos dos filósofos. Cada um de nós emerge da pré-consciência da tenra infância e simplesmente se encontra aqui, nele, no mundo. O que é o mundo: E o que somos nós? Desde os primórdios da humanidade, houve quem fosse dominado pela compulsão de fazer essas perguntas e sentisse um anseio por encontrar as respostas. É isso o que quer realmente dizer qualquer expressão semelhante a “necessidade de metafísica do homem”.
(grifo meu, p. 264)


O indivíduo se entrega à filosofia no instante em que sente a necessidade de refletir sobre a presença plena do ser, do mundo, do qual ele emerge como uma consciência que se sabe finita. É no momento em que esse indivíduo se dá conta desse acontecer, desse haver, dessa Primeira Hora que fez dele um ente lançado no mundo e capaz de se inquietar com a existência do mundo e se perguntar sobre a possibilidade de nada ter existido que ele precisa da filosofia.
Neste texto, esforçar-me-ei por mostrar que a reflexão filosófica não só contribui para construir um modo pessoal de ver (interpretar) e compreender o mundo e a condição humana, compreensão que serve para orientar cada um de nós nas diversas formas pelas quais nós nos relacionamos com o mundo, mas também pode contribuir muito para realçar certos traços de temperamento ou de caráter. Cumpre dizer que emprego a palavra caráter não na acepção ética ou moral, mas na acepção psicológica, para designar, portanto, os aspectos da personalidade que constituem o ego e que, em suas manifestações, distinguem uma pessoa de outra.
Meu intento principal será demonstrar de que modo se pode conciliar o materialismo com o niilismo com vistas a nos esclarecer sobre o estado de ilusões a que estamos presos em nossas vivências cotidianas. Em última instância, espero conseguir mostrar que minhas crenças a respeito do mundo e da condição humana, bem como o modo como eu me relaciono com o mundo estão calcados sobre essas duas doutrinas. Meu temperamento se afina bem com elas. Ao dizer isso, quero dizer que, ao mesmo tempo em que nos entregamos à filosofia, a filosofia parece nos instar a que dela nos apropriemos, a que assumamos uma posição dentre as muitas possibilidades de pensar o mundo e o homem que ela nos oferece. Nosso encontro com a filosofia é um encontro com certo modo de pensar e viver o mundo.




1. A escura lucidez do niilismo

Tome-se o seguinte passo de Niilismo (2007), em que Rossano Pecoraro dá-nos a saber, de modo bastante geral, as condições sócio-históricas em que emerge a atitude niilista:

“A corrosão, a desvalorização, a morte do sentido. A falta de finalidade de resposta ao “porquê”. Os valores tradicionais depreciam-se; princípios e critérios absolutos dissolvem-se. A bússola, que outrora nos orientava, apesar das crises, das rupturas, das ilusões, da substituição frenética de rotas, explodiu em nossas mãos. A superfície, antes congelada, das verdades e dos valores tradicionais está despedaçada e torna-se difícil prosseguir no caminho, avistar um ancoradouro”.
(p. 7)



O niilismo, enquanto atitude e doutrina, surge em circunstâncias em que o homem percebe abalado o seu universo de referências. O niilismo é um conceito fundamental e indispensável à compreensão do desenvolvimento do pensamento filosófico vicejante nos séculos XIX e XX. É um fenômeno complexo, multifacetado. O niilismo se faz presente em toda parte.
Do latim nihil (nada), o niilismo recobre uma forma de pensamento obsedado pelo nada. O niilismo pode ser identificado no curso de toda a história do pensamento ocidental: faz-se notar nas teses do sofista Górgias (490-388 a.C.), na pena do filósofo e poeta italiano Giacomo Leopardi (1798-1837) – o nada é o princípio de Deus e de todas as coisas; na pergunta de Leibniz “por que o ser e não, antes, o nada?”, no pessimismo de Arthur Schopenhauer (1788-1860).
No entanto, é com Nietzsche que o niilismo ganha maior alcance e vigor na reflexão filosófica. Nietzsche foi, sem dúvida, “o maior profeta e teórico do niilismo” (p. 17). Devemos a ele a construção de um pensamento radical que identificou as origens mais remotas do fenômeno, vale dizer, o platonismo e o cristianismo.


“O século XX, século do niilismo abre-se com a morte de Nietzsche e com a crise de uma Razão que sucumbirá aos horrores de duas guerras mundiais, do facismo e do nazismo. O niilismo infiltra-se, encontra projetualidade onipotente na ciência e da técnica, impregna a atmosfera cultural de toda uma época, transforma-se em uma “categoria” fundamental no laboratório contemporâneo”.
(p.10)


O niilismo é uma doutrina filosófica que nega a existência do absoluto, quer como verdade, quer como valor ético. O absoluto aqui conjuga duas acepções: numa acepção, o absoluto é aquilo que é em si e por si, independentemente de qualquer outra coisa, aquilo que encerra em si sua própria razão de ser; noutra acepção, o absoluto recobre a ideia de que é algo independente de qualquer referência convencional (é o contrário do relativo).
Nietzsche utilizou esse termo para designar o que, para ele, era a decadência européia, a ruína dos valores tradicionais consagrados na civilização ocidental do século XIX. O niilismo caracteriza-se, portanto,  não só pela descrença em um futuro glorioso e, nesse sentido, é infenso à ideia de progresso, mas também pela afirmação da “morte de Deus”, na medida em que nega a crença num absoluto, fundamento metafísico de todos os valores, quer éticos, quer estéticos, quer sociais, da tradição.
Entanto, o niilismo nietzschiano conduz a novos valores afirmativos da vida, da vontade humana, pela superação da “moral de rebanho” e pela dissolução dos princípios metafísicos tradicionais. Na mira do niilismo nietzschiano, estavam os Ídolos tão enaltecidos pela civilização ocidental, quais sejam, a Verdade, a Razão e Deus.
O niilismo pode apresentar-se em duas formas: uma positiva e outra negativa. O niilismo positivo se manifesta por meio de um trabalho crítico que visa a desmascarar a abismal ausência de cada fundamento, verdade, critério absoluto e universal, ao mesmo tempo em que nos convoca a assumir nossa própria liberdade e responsabilidade, não mais garantidas, é verdade, nem sufocadas ou governadas por nada. O niilismo negativo é marcado pela acentuação de traços destruidores e iconoclastas, tais como os do declínio, do ressentimento, da incapacidade de avançar, da paralisia, do “tudo-vale” e do nefasto silogismo: “se Deus (a verdade, o princípio) está morto, então tudo é permitido”.


1.2. Niilismo em Nietzsche

Na filosofia nietzschiana, o niilismo assume um sentido negativo, que denuncia a decadência do homem ocidental, cujas origens remontam ao racionalismo socrático, à oposição platônica entre o mundo das Ideias e o mundo sensível, e à consequente desvalorização deste último em favor do primeiro; ao cristianismo, que Nietzsche chamou “platonismo para o povo”, o qual impôs uma moral de renúncia e submissão, de desvalorização da vida em nome de um além-mundo, ao mesmo tempo em que inculcou nas consciências de rebanho esperança de salvação e redenção.
Por outro lado, há, em Nietzsche, um niilismo positivo, de que se serviu o filósofo para demolir os ídolos da tradição, para desmascarar as falsidades e embustes dos valores e verdades tradicionais. Esse niilismo serviu para anunciar a superação do homem e o advento do “além-do-homem”.


1.3. Niilismo em Sartre

Também o pensamento francês do pós-guerra é perpassado por características niilistas. Jean Paul-Sartre (1905-1980) debateu-se com as grandes questões que o nihil suscita: o sentido da existência, a liberdade, engajamento, concepção da história.
Ao sustentar que o homem “é aquele ente em que a existência precede a essência”, Sartre compromete-se com a negação e dissolução de ideias como a de Deus, princípio, valores heteronômicos.
Afirmando que o homem está condenado a ser livre e que, no seu abandono, tem de inventar a si mesmo, Sartre endossa uma posição niilista, que se clarifica na ideia de que o homem é não é uma realidade dada, mas uma possibilidade, um projeto, um ente que tem de decidir ser nas escolhas que faz.
A dimensão trágica do “para-si” consiste no fato de ele estar sempre inserido numa situação determinada, de estar lançado em um mundo entre outros “em-si”. Esse choque do homem com o mundo das coisas condena-o a uma nadificação do mundo. O homem perde toda referência externa em que poderia se apoiar para afirmar-se unicamente a si mesmo e sua absoluta liberdade, que se funda no nada. Segundo Sartre, na tentativa de se realizar, o homem pretende, em última instância, ser Deus. Sucede, contudo, que a ideia de Deus aniquila a liberdade humana. Sem encontrar soluções e critérios para construir o fundamento de sua existência, o homem se vê dominado pela negatividade: escolher não faz sentido, e “o homem é uma paixão inútil” (Sartre).

“Em sua conferência, proferida no pós-guerra, O existencialismo é um humanismo (1945), (...) o filósofo defende-se das acusações de desengajamento e derrotismo, que sobretudo marxistas e católicos lhe imputavam, e mostra que a filosofia existencialista, mesmo com o seu fundo relativista e niilista, é capaz de propor uma regeneração dos valores a partir da “morte de Deus”.
(p. 31)


Cabe salientar que uma tal regeneração não é possível se o homem se perder numa busca insensata pelos princípios, critérios e valores decaídos. Essa regeneração só poderia realizar-se se o homem reinventar os seus valores “unicamente por força de si mesmo, mediante o seu engajamento e sua liberdade” (p. 31).


1.4. Niilismo em Albert Camus

Absurdo e revolta são os dois principais polos do pensamento de Camus (1913-1960). No romance O estrangeiro (1942), o autor explora a escandalosa gratuidade da existência, a sua insensatez constitutiva que silencia os valores e a moral. Em Camus, a liberdade defronta-se com a impotência ou a inevitabilidade da morte.
No ensaio O homem revoltado (1951), o absurdo é tratado como uma questão universal. O absurdo é a injustiça, o caos, a desrazão do mundo. É da visão desse espetáculo trágico que se origina a revolta. O homem revoltado é aquele que se esforça por dar um sentido ao absurdo, ultrapassando, assim, o niilismo.


1.5. Niilismo cosmológico

O que chamo de niilismo cosmológico é a concepção do homem que ressalta sua insignificância na totalidade do cosmo. Esse niilismo está ligado intimamente à cosmologia moderna. Depois de Descartes, com sua concepção de natureza como res extensa, a saber, um espaço vazio e matéria, o homem foi abalado por um estranhamento metafísico. Pascal já havia notado a terrível transformação trazida pela cosmologia materialista, que pulverizou a importância que o homem atribuía a si mesmo na ordem do universo. Escreve Pascal: “imerso na imensidão infinita dos espaços que ignoro e que me ignoram, eu me apavoro”.
O universo físico desvelado pela cosmologia moderna não dá ao homem viver mais em casa, nem sentir-se um ser especial, como no modelo cosmológico antigo e medieval. Desde então, o universo lhe parece estranho, desolador, sombrio e inóspito. Como numa cela que lhe priva a liberdade, sua alma percebe-se aprisionada numa infinitude cósmica atormentadora. O homem se percebe como a única voz no silêncio eterno das estrelas e dos espaços infinitos e indiferentes. O homem está só consigo e esse estado lhe é fonte de angústia e desespero. Destarte, nota Volpi, em O Niilismo (1999):

“Logo mais, o próprio Deus se eclipsará. Primeiro, como hipótese, supondo-se tudo “como se Deus não existisse” (...). Depois, como realidade. Tudo deve ser repensado, a começar pelo sentido de nossa existência, já que “Deus está morto”.
(p. 17)


A transcendência perde sua força, que antes ligava o homem à totalidade cósmica. O homem se vê abandonado a si mesmo e reclama sua liberdade. Não lhe resta senão apoiar-se nela, identificar-se com ela. Assim, o homem passa a ser a sua própria liberdade. Ele é o que projeta ser; tudo lhe é permitido. O existencialismo enfrentou o fato de essa liberdade ser uma liberdade desesperada, a qual acarreta mais angústia do que satisfação e força (Volpi, p. 17).
 Vale dizer que um niilista não acredita no próprio homem. O niilista renuncia à crença em que o homem é um ser especial na natureza, em que ele seja dotado de um valor ou destino metafísico, que justifica sua existência.


1.6. Niilismo e política

Desde o fim do século XVIII, o niilismo se fez sentir na história, tanto como força conceitual e filosófica, quanto como força pregnante do plano social e político. Os niilistas objetivavam a dissolução, a destruição da ordem social, do sistema de valores consagrados e do sistema político vigente – pelo menos era assim que os viam seus adversários.
No contexto da cultura francesa, o pensador católico Franz von Baader debruçou-se sobre o conceito de niilismo em dois ensaios, nos quais afirmava que o protestantismo, dando origem a um fenômeno dissolutivo das verdades sagradas, deveria ser combatido pelo catolicismo, que deveria impor novamente o “conceito de autoridade no sentido eclesiástico, político e científico”. Baader defendia uma luta contra todos os tipos de “dúvidas ou protestos, antigos ou novos”. Em seguida, definiu o niilismo como “um abuso da inteligência destrutivo para a religião”. Condenando o niilismo, ele estava condenando o que julgava ser um efeito do uso sobremaneira livre da razão, ou um sintoma da degeneração do tecido civil, religioso e social.
No contexto da Revolução Francesa, eram considerados niilistas aqueles que não eram nem favoráveis, nem contrários à insurreição. Na França do período pós-revolução, niilista era aquele que não acreditava em nada, que não se interessava por nada.

Sumariando, pode-se entender o niilismo como o diagnóstico da decadência e da crise dos valores. Na seção seguinte, tecerei algumas considerações sobre o materialismo filosófico. Valho-me, para tanto, do livro Uma Educação Filosófica (2001), de André Comte-Sponville. Nele, se topa um excerto em que o autor define o materialismo.

2.1. Materialismo

“(...) chama-se materialismo a doutrina que afirma que tudo é matéria ou produto da matéria (salvo o vazio) e que, por conseguinte, os fenômenos intelectuais, morais e espirituais (ou assim supostos) têm realidade secundária e determinada (...)” (p.119)


O materialismo é mais bem elucidado, quando contraposto ao idealismo, doutrina esta que afirma a existência independente, primeira e exclusiva do pensamento. Ao contrário, o materialismo afirma o primado da matéria. Dentre os aspectos que se podem inferir do trecho referido, destaco, tendo em vista a conciliação do materialismo com o niilismo, seu relativismo ético. Na perspectiva materialista, não há valores absolutos (não há Bem em si, Justiça em si, Belo em si, ou mesmo Deus). Todo valor é relativo a um corpo individual ou social, à história.
O materialismo se define, negativamente, pela recusa do dualismo e do espiritualismo (não existe nem mundo inteligível nem alma imaterial), do ceticismo e do criticismo (pois a realidade em si não é incognoscível). É incompatível com toda religião cujo corpo doutrinário se sustenta pela crença num Deus imaterial, criador e legislador.
O materialismo é uma filosofia de recusa, de embate (p. 120). É também um empreendimento de desmitificação. É importante salientar que o materialismo não nega, de modo algum, a existência do espírito. Na verdade, o materialismo se funda num paradoxo: afirma o primado da matéria e a primazia do espírito.
Essas breves notas sobre o materialismo são – assim me parece – suficientes para familiarizar o leitor com a doutrina materialista. Ela será mais bem elucidada à medida que me ocupar com o desenvolvimento de duas questões que se encontraram interligadas: ilusão e política. Delas me ocuparei, à luz da perspectiva materialista.


2.2. Materialismo e a ilusão do valor

Em Tratado do Desespero e da Beatitude (1997), Sponville afirma que o materialismo, em política, é antiplatônico, a saber, é a negação do ideal (p. 129). Disso não se segue que o materialista não tenha um ideal, que ele renuncie a todo ideal. Como filósofo, o materialista tem suas aspirações elevadas, suas exigências intelectuais, estéticas, portanto, seus ideais; se não os tivessem, não seriam filósofos.
O que o distingue, nesse tocante, do idealista é a forma como pensam o estatuto do ideal. Para um materialista, o ideal carece de existência absoluta; ao contrário, o idealista crê nessa existência absoluta do ideal. Para o materialista, o ideal não existe independentemente dos sujeitos, de certas condições sócio-históricas. Para o materialista, o ideal é o horizonte do desejo. Consoante insiste Sponville,

“(...) ser materialista é pensar que o ser não tem mais valor do que o valor tem ser. Dito de outro modo, o ser não vale nada, falando objetivamente, e o valor não é, isto é, só tem ser ilusório ou subjetivo. Em resumo, trata-se de disjungir o que Platão cônjuge: o valor e o ser, a norma e a verdade. Para um materialista, o valor não é verdadeiro, e a verdade não tem valor. Desespero e lucidez”.
(p. 135)



Quem quer que adote uma posição materialista compromete-se, necessariamente, com o fato de o ser não ter valor tanto quanto o valor não ter ser. Em outras palavras, “o ser não vale nada, falando objetivamente, e o valor não é, isto é, só tem ser ilusório ou subjetivo” (p. 135). O materialismo, assim, separa aquilo que Platão uniu: o valor e o ser, a norma e a verdade. Para um materialista, o valor não é verdadeiro, tampouco a verdade tem valor.
Uma vez adotando uma visão materialista do mundo, um indivíduo se compromete com o pressuposto básico segundo o qual os valores são ilusórios, são produtos da imaginação humana e sempre relativos. Destarte, o bem, o mal, o belo e o feio, o justo e o injusto são “puros fantasmas da alma nascidos das afeições do corpo” (p. 136). Para um materialista, os homens não são livres, muito menos guiados pela razão.
Do que se expôs até aqui, segue-se uma conclusão que o materialismo endossa: a política, a arte e a moral se encontram sempre ao abrigo da ilusão (p. 136). O materialismo é uma filosofia da desmitificação.

“(...) somente um discurso verdadeiro sobre a moral, sobre a arte, sobre a política pode mostrar que a moral, a arte e a política não tem verdade e não poderiam ter (...) Verdade e desespero: se não há valor que não seja ilusório, somente a verdade – a verdade sem valor – é capaz de nos desilusionar”.
(ib.id., ênfase no original)


Com Sponville – e permitindo-me o uso de um neologismo -, pode-se pensar o materialismo como uma doutrina do “desilusionamento”. Com Spinoza, vale dizer que “a verdadeira filosofia” é a que elabora a teoria da ilusão de toda filosofia; é a que reconhece seu sentido só pode ser determinado do ponto de vista dos homens. É verdadeira porque reconhece que a natureza (ou o Deus spinozista) é indiferente a tudo, ou seja, destituída de toda normatividade. Essa filosofia anuncia que não há nada além da natureza: tudo é e nada vale. Impõe-se-me um esclarecimento aqui: dizer que “nada vale” é dizer que nada tem valor em si, independente de um corpo individual, social ou da história.


2.3. Ilusão e política numa perspectiva materialista

Doravante, vou desenvolver e esclarecer o conceito de ilusão, com vistas a fazer entender em que medida a política (o mesmo vale para a arte e a moral) é ilusória. No que se seguirá, estarei interessado em elucidar qual é a ilusão própria à política. Ao apontá-la, dou a saber a situação ilusória de todo militante.
Comecemos por notar que ser antiplatônico em política é assumir que nenhuma política é verdadeira, que nenhuma é boa ou justa absoluta ou objetivamente. A esse respeito, sublinha Sponville: “Só há absoluto na natureza, e esta é indiferente a qualquer política” (p. 138). Todas as políticas se equivalem, porque nenhuma delas tem valor – materialismo e desespero.
Se nos socorrermos do ensinamento do budismo primitivo, a questão de como a ilusão estrutura, é constitutiva de nossa relação com o mundo ficará mais clara. O sábio, segundo a doutrina budista, é aquele que despertou da ilusão do samsara: ele é desapegado de tudo. Sabe que nada tem sentido, nada tem valor, nem mesmo o budismo. O real é indiferente. No mundo ilusório, que é o mundo em que vivemos, que é o mundo do samsara, tudo adquire valor e sentido, isto é, tudo passa a ter valor e sentido – segundo se crê - objetivamente. O sábio está liberto desse mundo, já que atingiu o nirvana, condição em que descobre a vacuidade do sentido, em que desperta do sonho normativo.
Deve-se entender, portanto, que, do ponto de vista budista, o indivíduo que vive para alguma coisa, isto é, em função de algo que ele pensa ser dotado de sentido, significado para si mesmo, é prisioneiro do samsara (samsara designa, na tradição budista e hinduísta, o ciclo de morte e renascimento em mundos materiais), ou seja, da ilusão. Mas essa ilusão não é o oposto do mundo real; ela pertence ao real, melhor ainda, é o mundo real em que vivemos. Tomemos nota do que nos ensina Sponville a seguir:

“Essa ilusão, da qual é uma ingenuidade crer que seja reservada aos ingênuos, e da qual Spinoza soube pensar a necessidade e mostrar, era para cada um de nós a trama – e o drama – de nossa vida” (p. 139).


Que nossa visita ao ensinamento budista não nos engane: não dou à palavra ilusão qualquer sentido místico. Se pretendo frisar a ideia de que a ilusão é a trama e o drama de nossa vida, é para mostrar que a ilusão reside nas formas como percebemos/ interpretamos o mundo. O materialista pensa que tudo o que vale – a arte, a moral e a política, e mesmo a verdade – na medida em que lhe atribuímos valor, é sempre ilusório. O materialismo não suprime a ilusão, mas fixa-lhe o seu devido lugar. Onde reside, pois, a ilusão? No espectador, naquele que vê o sol girar em torno da Terra. A astronomia ensina que o que vemos é uma ilusão – e desta jamais nos libertamos – e que essa ilusão obedece a leis necessárias. Portanto, se esse é o verdadeiro modo de funcionamento do mundo, um funcionamento que inclui a ilusão como dimensão necessária, nossa percepção não poderia ser de outro modo. Portanto, a ilusão é necessária. Ela tem a sua verdade.
As ditas ilusões de ótica são bem conhecidas, mas há outras maneiras pelas quais os indivíduos se iludem; e uma dessas maneiras é acreditar que desejamos as coisas que são boas. Note-se que o “ser boa” é tomado como condição para que desejemos uma coisa. Crer-se que qualidade “boa” está na coisa mesma (é parte dela) e que essa qualidade é responsável por dirigir nosso desejo. Ilusão comum! Mas, na realidade, é justamente o contrário que sucede. Uma coisa é boa porque a desejamos. O desejo comanda, portanto, nossas escolhas e determina o valor que atribuímos às coisas: “o desejo é a verdade do valor” (p. 141). É por isso que o valor não pode ter a pretensão de ser verdadeiro. A verdade não está sob o comando do desejo, apenas os valores. Uma coisa é verdadeira, independentemente de nosso desejo. Não somos imortais, e isso é verdade, independentemente de nosso desejo de imortalidade. Envelheceremos, e isso é verdade, independentemente de nosso desejo de permanecermos sempre jovens (ilusão). O real e a verdade são indiferentes aos nossos desejos.

“O que vale não é o que é (em verdade) justo, belo ou bom, mas simplesmente o que desejamos e que, por essa razão, julgamos ser justo, belo e bom” (p.141).


Que não haja dúvida: os valores são fixados por um ponto de vista humano, governado pelo desejo. Os valores não são nem irreais (o desejo é real) nem falso (já que isso suporia uma verdade em termos de valores), mas é ilusório (p. 141). Mas é ilusório não porque é falso, mas por crer-se verdadeiro. Não é por ser relativo, mas por julgar-se absoluto. É ilusório também porque crer-se divino: “o homem é só e julga como pode (...); a ilusão não está nesse juízo, mas na negação de sua solidão” (ib.id.). Atente-se nas palavras de Sponville:




“A ilusão não está em ser um homem e estar no centro do seu mundo, mas em se tomar por Deus (ou sua imagem) e estar no centro do universo. Porque o universo não tem centro e porque não há Deus que julgue” (p.141).



Não há saída: eis o labirinto em que vive o homem. O homem jamais poderá viver sem ilusões, porque ele próprio é ilusório. É ele que toma por efetivamente desejado, isto é, é ele que hipostasia o objeto de seu desejo e o transforma em valores objetivamente desejáveis.

“Não é apenas a religião, mas também toda ideologia, que é uma “consciência invertida do mundo”, uma câmara escura em que, como nas primeiras máquinas fotográficas, “os homens e suas relações nos aparecem de cabeça para baixo”. Mesmo ateus, os homens não podem prescindir de uma realização fantástica do ser humano, como diz Marx, a propósito de Deus, isto é, de um além da verdade” (p. 142)



A ideologia, para Marx, é esta forma de ilusão, ou o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido), pelo qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Pela abstração, os homens conhecem a realidade como algo dado, feito e acabado, que classificam, ordenam, sem nunca se indagarem sobre como tal realidade foi concretamente produzida. Pela inversão é que se explica que os homens tomem como objetivo (ou seja, como exterior ao sujeito, pertencente à coisa mesma) aquilo que, na realidade, é do domínio do subjetivo, da imaginação, atribuído à coisa pelos sujeitos.

2.3.1. A ilusão do militante

A ilusão própria da política prende-se à situação de qualquer militante. Essa ilusão consiste em que o militante crê ter razão – uma razão que ele pretende seja universal. Não é necessário o fanatismo para que ele acalente essa crença. Sponville pondera, nesse tocante, o seguinte:

“Há, assim, um fenômeno espontâneo de auto-sugestão pela qual cada um imagina defender não somente seus próprios interesses mas os do Bem, não apenas seus desejos mas as exigências da história, não as suas opiniões mas a verdade (p. 143).


Todos são sinceros, ou dizem o ser, quando se arvoram em combatentes em nome da justiça, da felicidade comum e da liberdade.


“Vários inclusive talvez estejam prontos, pela causa que creem justa, a sacrificar sua vida ou arriscá-la... E é sinceramente que o vencedor, qualquer que seja, pensará na noite da eleição que sua vitória é uma boa coisa, não para ele somente, ou para os seus amigos, mas para o [Brasil]”.
(p. 144-145)


Ele não está errado, nem está com a razão, porque “a política não é uma questão de razão, mas de desejo” (p. 145). Não havendo Deus para decidir, a razão não se interessa por fazê-lo. Ninguém tem razão, porque todos têm desejo. Pode acontecer que o candidato esteja errado, conforme nota Sponville:

“No máximo, pode-se dizer (...) que o candidato vencedor estará errado se acreditar que tem razão e que um Deus, em alguma parte, real ou fictícia, se rejubila secretamente com a vitória dele”.
(p. 145)



Sua ilusão consiste em pensar que a verdade triunfa quando, na verdade, é o desejo que se satisfez e que expressou a sua força. Seus adversários, por seu turno, também se iludem, se pensarem que foi o erro ou a mentira que venceu.

“Ninguém está errado, e todo mundo acha que tem razão. A ilusão não é o contrário da verdade, mas sua pretensão indevida” (ib.id.)


A situação do eleitor não é diferente da situação do político profissional. O eleitor se ilude também no momento em que se convence de que fez a melhor escolha, objetivamente falando. Sponville não pretende, de modo algum, sugerir a adoção do apoliticismo – “ilusão por ilusão, prefiro essa tensão da alma às facilidades insípidas e flácidas do apoliticismo – também ele ilusório, e político a seu modo” (p.146). Necessário é entender que não se escapa da ilusão e não se escapa da política, isto é, de atuar politicamente, mesmo que seja para renunciar a qualquer posição política; jamais se escapa da ilusão de viver como um “animal político”.
O que, raramente, ocorre ao militante é a prática da teorização dessa ilusão. Não lhe ocorre teorizar sobre a crença, largamente aceita, de que existe um bem político discernível do ponto de vista que funda a verdade (uma política objetivamente boa). A isso se chama platonismo: “o platonismo é a ideologia espontânea dos militantes” (p. 146).
Até aqui, consideramos a situação ilusória em que se encontra o militante idealista. Sponville não está certo de que haja um militante materialista; não obstante, supõe sua existência a fim de destacar o que torna a sua situação distinta da situação do militante idealista. Acompanhemos Sponville no seguinte excerto:

“[O militante materialista] combate sozinho e faz o que pode (...) Sabe que nem tem razão, nem está errado, que sua força está a serviço unicamente de seu desejo, e que seu desejo não tem outro direito que sua força... É lúcido e desesperado” (p. 147).


A ação política do militante materialista não é dotada de finalidade, e a história – ele o sabe bem – não tem sentido. A única finalidade que persegue é a do desejo. Como não há Deus, não há, para ele, um Verbo que justifique sua militância: “seu único verbo é sua palavra, singular e frágil” (ib.id.). Ele sabe que nenhum combate é bom, nem partido algum é melhor.

“Não é triste. Não é resignado. Tem a coragem de seu desespero, e a alegria de sua força. No silêncio de Deus e no burburinho do mundo, assume até o fim a solidão de seu desejo” (ib.id.).


Toda política é, portanto, desejante: “a política é a coletividade dos desejos” (p. 148). Nem todo desejo é, todavia, político; só o é, quando, por efeito da ilusão, pretende reinvindicar um bem universal, isto é, quando transforma o que é subjetivamente desejado em objetivamente desejado. A política toma sua força na hipóstase ideológica de um desejo coletivo, que é uma vontade geral ou sentido da história. É aqui que o militante materialista e o militante idealista se encontram:

“O militante materialista vive então as mesmas ilusões de seu irmão-inimigo idealista: ilusão de ter razão (“somos o partido da verdade...”), de estar a serviço de valores supremos (“combatemos pela Justiça”) ou de representar o universal (o Povo, a Nação...), em suma, de combater o bom combate, no fundo o único legítimo, o único que um Deus, se houvesse algum, poderia compartilhar; não dá para imaginar um Deus indo contra “o sentido da história” ou querendo a desgraça da humanidade. Enfim, parece que o militante materialista não pode se impedir de pensar sua prática em termos de conceitos fundamentalmente idealistas” (p. 149)


Então, devemos concluir que o materialista, enquanto militante, é tão iludido quanto o idealista, na mesma condição? A resposta é: sim e não. O materialismo se defronta com um paradoxo inevitável: na medida em que o materialismo é efeito do desejo é, apesar disso, uma doutrina que supõe necessariamente haver algo além do desejo. Esse “além” é que justifica o desejo e é necessariamente um ideal (porque não existe objetivamente). O militante idealista compartilha essa crença na existência de um além; mas somente o materialista reconhece que essa crença é ilusória. É necessário crer, pois a ilusão é necessária. Por isso, o materialista está condenado a esta contradição: ele crê em algo que sabe ilusório e o afirma como tal. Ele é obrigado a se desilusionar, sem abrir mão de sua crença que reconhece ilusória. Novamente é Sponville que nos esclarece a condição do militante materialista:

“É para isso que lhe serve a sua filosofia: não para ele se desembaraçar dessa ilusão (já que lhe ensina, ao contrário, a necessidade desta), mas para colocá-la em seu devido lugar, isto é, pensá-la como ilusão necessária” (p. 150).


A lucidez é experienciada no momento em que reconhecemos ser a política nada mais do que “jogo de forças e de desejos, e não a emergência de uma verdade” (p.150). Lucidez materialista e niilista, a um só tempo, portanto.

3. A aurora de nossa mente ou o começo de nossa ilusão

Nosso cérebro tem a capacidade natural de produzir ilusões. É possível explicar a facilidade com que nos enganamos, com que nos iludimos ao longo da vida estudando o modo como se desenvolve a cognição humana. Nos primeiros anos de vida, no período que Piaget chamou de pré-operatório, o cérebro de uma criança se acha ainda imaturo cognitivamente, muito embora ela já experimente emoções que determinarão significativamente suas experiências futuras. Aos dois anos de vida, a criança não consegue perceber outro ponto de vista além do seu próprio. Essa fase caracteriza-se pelo predomínio do pensamento egocêntrico. A criança, nessa fase, não consegue assumir o ponto de vista alheio.
Seu pensamento compreende o mundo sensível como uma extensão de si. É comum que a criança não consiga se distinguir de outras pessoas e objetos. Ela costuma atribuir suas vivências pessoais a essas pessoas e objetos. O animismo começa nesse período. Não obstante a imaturidade do cérebro, a criança está em pleno desenvolvimento da aprendizagem sobre a realidade a sua volta. Como sua racionalidade só irá amadurecer algum tempo depois, ela se relacionará com o mundo de maneira intuitiva, emocional e egocêntrica.
Seu conhecimento do mundo funda-se, basicamente, nos sentidos. Trata-se de um conhecimento jamais submetido à reflexão. Ela aprende, mas não entende seu conhecimento. Este conhecimento é, para ela, incompreensível.
Nos primeiros anos de vida, o que fica registrado na mente da criança é uma vivência do mundo baseada em si e, ao mesmo tempo, esquecida para si. Essas primeiras impressões da infância jamais se apagam. As experiências subsequentes estarão na base de nossas crenças emocionais já formadas nesse estágio de desenvolvimento de nossa cognição.
Se, no decorrer da infância, aprendemos o que é mais básico para atuar no mundo com pouca ou nenhuma consciência, o que sucede alguns anos depois? Não deve surpreender-nos que não construímos uma visão de mundo nova, com base na realidade. Na verdade, nós racionalizamos aquilo em que já acreditávamos por força das nossas emoções. Em vez de ajustar nossas explicações às evidências, fazemos o contrário: ajustamos às evidências às nossas crenças preexistentes. Vale dizer de modo mais claro: explicamos a realidade, ajustando-a de modo que se acomode às nossas crenças prévias, e tomamos estas crenças como a realidade. Notemos que já estávamos comprometidos com essas crenças. Essa operação de ajuste da realidade às nossas crenças primeiras e forjadas em experiências calcadas sobre as nossas emoções infantis explica por que muitos de nós chegam a acreditar que os valores são objetivos, que deuses existem e nos amam.
Estamos programados para fazer julgamentos morais com base numa teoria do realismo moral, consoante nota o filósofo e neurocientista Joshua Greene:

“O julgamento moral, em sua maior parte, não é guiado por raciocínios morais, mas por intuições morais de natureza emocional. Nossa capacidade de julgamento moral é uma complexa adaptação evolutiva a uma vida intensamente social. Na verdade, somos tão bem adaptados a fazer julgamentos morais que, aos nossos olhos, o ato de fazê-los é bastante fácil, parte do “bom senso”. Como muitas habilidades de fazer julgamentos morais nos parece uma habilidade perceptível, uma habilidade, neste caso, de discernir imediata e confiavelmente fatos morais que independem de mentes. O resultado é que somos naturalmente inclinados à errônea noção de realismo moral. As tendências psicológicas que encorajam essa crença equivocada têm uma importante função biológica, e isso explica por que julgamos o realismo moral tão atraente, ainda que seja falso. Digamo-lo ainda outra vez, o realismo moral é um erro que nascemos para cometer”.
(Greene, 2002. apud. Cioran, 2011, p. 89, grifo meu).



segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

"O homem deve ser inventado a cada dia". (Sartre) "Ousar é perder o equilíbrio momentaneamente. Não ousar é perder-se." (Kierkegaard)

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                                         Filosofia em foco

                      A existência angustiante
                             Uma leitura de Kierkegaard e Sartre


Este texto se destina a mostrar de que modo dois grandes representantes da corrente de estudos filosóficos, conhecida na tradição pelo nome de existencialismo - corrente filosófica cujo objeto é o homem concreto no mundo, o homem como ser que precisa fazer-se a si mesmo enquanto ser livre e ser para quem sua existência se lhe apresenta como um problema-, pensaram o conceito de angústia. Esses dois representantes são Sören A. Kierkegaard (1813-1855) e Jean Paul Sartre (1905-1980). Embora Sartre tenha uma grande dívida para com Kierkegaard, sua filosofia opõe-se à filosofia deste, relativamente a um pressuposto básico sobre o qual a sua (de Sartre) se erigiu e a partir do qual se desenvolveu: a inexistência de Deus. Enquanto Kierkegaard se ocupou da existência do homem tendo como ponto de referência a relação do indivíduo com Deus, Sartre pensa-a como um acontecimento contingente, e não algo em cuja origem se encontra uma Providência. É no confronto de duas filosofias, assentadas em pressupostos opostos, ou seja, uma de orientação cristã e outra de orientação ateísta, que buscarei iluminar o modo como os dois filósofos compreenderam a experiência da angústia como uma dimensão estruturadora da existência humana.
Ainda que haja pontos de contato entre os dois pensamentos, especialmente no que tange ao tema da angústia, o modo de enfocá-lo e as consequências que o enfoque de cada um carreia são diferentes. Trataremos, portanto, de pontuá-las. Também tenho em vista assinalar os pontos em que os dois filósofos se encontram e os pontos em que eles se distanciam, no que tange à visão deles sobre o que é o homem.
Antes de expor, em pormenores, como ambos os filósofos pensaram a angústia – tema central deste texto -, precisarei lançar um olhar geral sobre o empreendimento filosófico desses dois pensadores, destacando temas que se relacionam intimamente à questão da angústia.
Para os meus propósitos, em cuja extensão não está prevista uma dissertação sobre o existencialismo como tal, basta assinalar que essa corrente de estudos filosóficos busca pensar o indivíduo concreto, tendo em conta sua existência cotidiana. Um postulado central do existencialismo é formalizado pela frase a existência precede a essência. Com ela, quer-se dizer que não existe uma natureza humana, que não é possível definir o homem anteriormente ou previamente ao ato de existir. Ela significa que o homem, enquanto projeto, primeiro existe para então, exercendo sua liberdade absoluta, realizar-se, escolher quem quer ser; em uma palavra, definir-se. Essa frase nega que haja uma essência precedente, que determinaria aquilo que cada indivíduo vai ser ou deve ser. É necessário, portanto, reter esse postulado, ao qual retornarei, mais adiante, ao me ocupar com o pensamento de Sartre, a fim de que o leitor compreenda bem em que bases se sustenta o desenvolvimento do pensamento existencialista, nas suas diversas vertentes. Quem quer que se alinhe com a perspectiva existencialista não poderá rejeitar o postulado segundo o qual no homem a existência precede a essência.
Começarei por considerar o pensamento de Sartre, por se tratar de um pensador que marcou indelevelmente o nosso tempo. Sartre está mais próximo de nós do que Kierkegaard. A opção por começar por Sartre não pode fazer esquecer ao leitor a precedência de Kierkegaard. A filosofia de Sartre inspirou-se, em parte, no pensamento de Kierkegaard. Sartre tem uma dívida para com Kierkegaard (e, certamente, para com Heidegger).

1. Sartre: no homem, a existência precede a essência

Sartre (1905-1980) foi um filósofo bastante atuante na França do pós-guerra. Considerado o principal divulgador e um dos grandes nomes do existencialismo, Sartre tem uma grande dívida para com Kierkegaard e Heidegger. Sua mais importante obra é O Ser e o Nada.
Sartre levou a sério a tese central do existencialismo – a existência precede a essência -, de tal modo que é difícil dissociá-la de sua filosofia, ainda que, tal como está formalizada, constitua ela a expressão de uma releitura que ele, Sartre, fez de Heidegger. Sem me estender sobre o problema de saber se Sartre foi fiel à letra de Heidegger, nesse tocante, o fato é que essa tese tem uma importância inegável na estruturação de sua doutrina filosófica. Com base nessa tese, Sartre argumentou que o homem não é predeterminado por alguma essência, que sua existência é marcada fundamentalmente pela liberdade: primeiro o homem existe, se encontra no mundo, para só depois definir um sentido ou uma essência para a sua vida.
A referida tese deve ser compreendida relativamente à afirmação da absoluta liberdade do homem. Como ser totalmente livre, é o homem, enquanto indivíduo concreto existente no mundo, que escolhe quem quer ser. É preciso, aqui, assinalar a importância que tem o pressuposto ateísta em que se erige e a partir do qual se desenvolve o pensamento sartreano. Como não exista Deus, isto é, como não exista um projetista que determine previamente um sentido, uma meta ou plano para a existência do homem, argumentará Sartre que cabe ao indivíduo e apenas a ele escolher as formas de viver que pensa ele serem mais adequadas ou as melhores.
Se o pressuposto da inexistência de Deus, em que se apoia a filosofia de Sartre, se alinha adequadamente com a proposição segundo a qual não há uma essência humana prévia que faça de cada indivíduo o que é ou deve ser, não se segue daí que Sartre estivesse mais preocupado em provar o seu postulado existencial (a existência precede a essência) com base em seu ateísmo. Na verdade, sua maior preocupação residia em argumentar que, mesmo admitindo-se a crença em Deus, essa crença resultaria sempre de uma escolha pessoal, de modo que a crença em qualquer divindade não pode ser imposta a ninguém. É sempre o indivíduo que tem de escolher entre crer ou não crer num deus ou nas visões miraculosas de um profeta.
Novamente, reportando-nos à tese existencialista que está no cerne, especialmente, da filosofia de Sartre, compreende-se bem por que Sartre afirma ser absoluta a liberdade do homem. Sartre não nega que o homem a exerça em certas condições sociais, não nega que escolhemos tendo em conta certas circunstâncias, certo conjunto de condições; mas nega que haja determinismo de alguma espécie. O homem goza de liberdade absoluta porque não possui uma essência que o determina, porque “o destino do homem encontra-se dentro dele mesmo”. Estamos condenados a sermos livres: não nos é possível não escolher, pois não escolher é também uma escolha.
Vale insistir em que, ao sustentar que no homem a existência precede a essência, Sartre quer-nos fazer ver que os entes humanos não são dotados de alma, natureza ou essência que os façam ser o que são. Assim também, afirmar a absolutidade da liberdade humana não é, de modo algum, ignorar as condições em que essa liberdade é exercida. Por isso, Sartre fala em facticidade. Evidentemente, o ente humano é um ser que se acha no mundo, que precisa exercer sua liberdade nesse mundo. Mas ao chegar ao mundo, esse ser encontra certas condições que preexistem a seu nascimento. A facticidade é, portanto, não só nosso passado, mas também nossas condições biológicas, sociais, etc. Ela compreende o fato de nascermos numa dada sociedade, de possuirmos certos atributos físicos, de falarmos um idioma, e nos encontrarmos em situações sociais que não escolhemos totalmente. Não obstante, para Sartre, a existência humana é capaz de transcender sempre esse domínio do imediatamente dado, movendo-se, portanto, para além dele, negando-o.
Vamo-nos concentrar, agora, visto que é urgente fazê-lo, na questão da liberdade, em Sartre. Para Sartre, tanto quanto para Kierkegaard, o homem é um ente livre. Eis aqui um ponto de contato entre os dois pensadores, a cujo desenvolvimento me deterei mais adiante. Por ora, convém notar o radicalismo com que Sartre trata da questão da liberdade, ao enfocá-la como a essência da condição humana. Esse radicalismo é entrevisto no exemplo que ele fornece de um homem que esteja encarcerado. Mesmo nessa condição, é ele quem escolhe entre a resignação e o desafio, ou seja, é ele quem escolhe entre permanecer como prisioneiro ou agir para alcançar sua libertação. As consequências de sua escolha não o eximem de fazê-la. É claro – e este ponto é importante – que a liberdade absoluta ou radical se acompanha da responsabilidade total. Somos sempre responsáveis por tudo o que fazemos. Não há lugar para desculpas. Não podemos dar desculpas ou responsabilizar um ser divino ou nossa facticidade por nossas ações e as consequências que elas carreiam. Se o fizermos, incorreremos no que Sartre chama de má-fé. Ser livre é ser responsável: a absolutidade da liberdade implica a absolutidade da responsabilidade. Veremos que a consciência dessa relação necessária entre liberdade e responsabilidade é fonte de angústia. Mas, antes de trazer à cena a questão da angústia, precisamos desenvolver um pouco mais a relação entre liberdade e responsabilidade.
Em O Existencialismo é um humanismo (2010), observa Sartre acerca da responsabilidade o seguinte:

“(...) A primeira decorrência do existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que ele é, e fazer repousar sobre ele a responsabilidade total por sua existência. E quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que ele é responsável estritamente por sua individualidade, mas que é responsável por todos os homens” (grifo meu).


Nesse passo, Sartre argumenta que, ao fazer uma escolha por conta própria, um indivíduo também escolhe por todos os outros indivíduos. Quando, em sua escolha, esse indivíduo inventa o homem que quer ser, ele cria, ao mesmo tempo, uma imagem do homem que cuida ele deve ser. Essa imagem deve ser extensiva a todos e deve valer para toda uma época.
Como o homem é um projeto, como nada predetermina aquilo que ele é ou deve ser, a responsabilidade é consequência dessa liberdade que tem o homem de definir o significado de sua própria vida. Naquela mesma obra, Sartre nota a extensão de nossa responsabilidade:

“Se a existência, além do mais, precede a essência, e nós queremos existir ao mesmo tempo em que moldamos nossa imagem, tal imagem é válida para todos e para nossa época inteira”.
(p. 27)


O homem, como “ser condenado a ser livre”, não tem escolha senão assumir essa condição. No existencialismo, o homem é sempre considerado um ser em situação e é em situação que ele precisa construir o sentido de sua existência. Necessário é insistir em que, não obstante Sartre afirmar ser todo indivíduo, no momento em que tem de escolher, responsável por toda a humanidade, não ignora o fato de que ninguém pode ter controle absoluto sobre a situação em que se encontra. Sartre reconhece que há outros indivíduos além de nós e que, embora sejamos livres, numa dada situação, não podemos simplesmente determiná-la.

1.2. A angústia e a inescapabilidade à liberdade

Doravante, vou-me deter a mostrar como a experiência de angústia é definida e explicada por Sartre. Começarei, pois, apresentando a definição de angústia proposta por Sartre. Sartre a entende como um tipo de apreensão fenomenológica da liberdade absoluta a que o homem está condenado. Na angústia, é a liberdade que se apresenta, em seu próprio ser, como uma questão para si mesma.
Sartre – e, nesse tocante, Kierkegaard e Heidegger estão de acordo – diferencia a angústia do medo. Enquanto o medo supõe um objeto externo que o provoca, a angústia não tem objeto externo. Mais precisamente, a angústia põe diante de si mesmo o indivíduo; ele sente angústia em face da representação do modo como poderia agir numa ou responder a uma situação ameaçadora. A angústia pressupõe uma apreensão reflexiva sobre o eu e sobre nossa liberdade para responder a uma situação-limite de modos vários. Sartre ilustra a compreensão que tem de angústia com a imagem de alguém que, caminhando junto a um precipício experiencia a possibilidade de pular no abismo. É justamente na consciência de sua liberdade para saltar no abismo que reside a angústia.
Duas são as fontes de angústia que já se podem discriminar, tendo em vista as considerações feitas até aqui. Para Sartre, a angústia pode manifestar-se no reconhecimento de nossa liberdade total e também na consciência da responsabilidade que temos de assumir por força dessa condição. Assim, sentimos angústia ao reconhecer que somos totalmente livres, que nada determina o que somos ou como devemos agir e também a sentimos ao tomarmos consciência de que somos responsáveis por nossas ações. A angústia emerge ou resulta da consciência de que nada pode impelir-nos a ser ou fazer alguma coisa. Nossos sucessos e fracassos na vida são produtos de nossas escolhas e somos por eles responsáveis.
Tanto Kierkegaard quanto Sartre veem a angústia como um componente fundamental da existência humana. A angústia é consequência dessa necessidade humana de construir um sentido para a existência – uma existência – vale lembrar -  que carece de um fundamento transcendente (pelo menos, é esta a visão de Sartre) e que, por isso, não pode renunciar à busca pela construção de um significado.

1.3. O nada da consciência e a angústia

Antes de levar a cabo esta seção, é preciso elucidar o problema da consciência, em Sartre, e o modo como esse problema se articula à questão da angústia.
Vamos começar notando que, acerca do ser, Sartre limita-se a dizer que é. Para Sartre, o ser é o que é, e nada mais. O ser é pleno, total, perfeito, ilimitado, nada pode perturbá-lo, porque ele não tem nenhuma consciência de si mesmo; ele é pura e simplesmente. Relativamente à consciência, o ser é o objeto, é tudo aquilo do qual temos consciência. Dessa concepção de ser segue-se que a consciência precisa do objeto para ser, já que a consciência é nada. Diremos melhor: ela é nada sem o objeto para o qual ela se dirige. O sujeito não é nada, para Sartre.
Como a consciência só existe na sua relação intencional (aqui fica clara a influência da fenomenologia no pensamento de Sartre) com o objeto que não é ela mesma, segue-se daí que o fundamento da consciência é o nada. A consciência se define pelo princípio da contradição: ela é aquilo que não é e não é o que é. Isto é, ela é consciência de outra coisa, mas ela nunca se identifica com o objeto do qual ela é consciência.
O ser, na medida em que é perfeito, fechado em si mesmo, é chamado por Sartre de em-si. A consciência é o para-si.  O para-si é responsável, em seu ser, pela relação com o em-si. Ele se produz sobre o fundamento de uma relação com o em-si. Convém dizer o seguinte sobre o para-si. Embora envolva auto-reflexão, o para-si compreende toda a consciência. O ser do para-si é a liberdade, pela qual ele nega o em-si. Também não devemos pensar o para-si como um ente real, embora exista na medida em que sabe o que não é. A consciência diante de uma cadeira sabe que não é este objeto que ela postula. O para-si é consciência livre e transcendente, porque nega tanto nossa facticidade quanto os objetos.
Antes de me estender um pouco mais sobre o modo de ser da consciência, cabe notar como Sartre entende o Nada. Em Sartre, o nada tem estatuto ontológico; ele é parte da estrutura ontológica do nosso mundo. Nesse sentido, Sartre se distancia de uma longa tradição filosófica, que via o nada como o não-ser. Para Sartre, o nada não é o não-ser, não exclui o ser, não é ausência de ser. O nada, na perspectiva de Sartre, integra a relação entre o homem e o mundo. É através do para-si (a consciência) que o Nada irrompe no mundo. O ser e o nada são, pois, duas categorias ontológicas fundamentais. Dualista ou não, Sartre afirma que o nada é uma interrupção dentro do próprio ser ou, dizendo poeticamente, o nada emerge do ventre do próprio ser.
Volvendo à questão da consciência. Um retorno a Descartes permite a Sartre estabelecer uma distinção entre o cogito pré-reflexivo e o cogito reflexivo. A afirmação de que a existência precede a essência implica, entre outras coisas, a inexistência de um “eu”, com o qual experienciamos o mundo. Vale enfatizar este ponto: Sartre nega que exista um “eu” que se identifique com a consciência. O modo original da consciência é o que Sartre chama de cogito pré-reflexivo, graças ao qual experienciamos o mundo e de cujo domínio está excluída uma concepção do “ego”.
O segundo modo da consciência é o cogito reflexivo, que supõe um “eu” que reflete sobre experiências passadas. Esse “eu” se encarrega por unificar essas experiências, dotando-lhes de um sentido.
Sucede, contudo, que o “eu”, para Sartre, não seria mais do que um feixe de percepções; ademais, o filósofo sustenta que nosso modo original de perceber o mundo, de nele existir não envolve a existência de um “eu”. Segundo Sartre, nós olhamos o mundo como olhamos a paisagem através de uma janela, sem que, nesse ato, tenhamos uma experiência fenomenológica de nossa própria individualidade. Tampouco apreendemos a nós mesmos como sujeitos cuja unidade perduraria. Por outro lado, quando trazemos à memória eventos vividos, como se olhássemos pela janela, em retrospecto, conferimos a nós um “eu”, no momento em que atribuímos uma unidade à sequência temporal. Nesse momento, estamos em face do modo chamado cogito reflexivo.
Da concepção sartreana de consciência, deve-se reter o seguinte:

a) A consciência é posicionalmente consciente do objeto da qual ela é consciência. A consciência é sempre consciência de alguma coisa; e também é consciência que assume uma conduta em relação a essa coisa;

b) A consciência é não posicionalmente consciente de si mesma enquanto consciência, ou seja, ela está indiretamente consciente de que não é o objeto que está visando.

Como não há um conteúdo real para a consciência, como não há um eu que está em relação consciente com o objeto que visa, Sartre conclui que o fundamento da consciência é o nada. A consciência, para Sartre, é fundamental e ontologicamente um não-ser em relação ao ser.
Como o fundamento da consciência é o nada, nenhum ser pode assumir o estatuto de princípio de explicação do comportamento humano. Não há nenhum tipo de essência, quer divina, quer biológica, quer psicológica, quer social, que anteceda e determine nossas ações. Sartre não hesitará em concluir que o homem é tão somente o conjunto de seus atos. A liberdade é o único fundamento dos valores e nada justifica a adoção de tal ou qual valor.
O homem é o ser pelo qual os valores existem e, como tal, ele é injustificável. A angústia também faz morada nessa liberdade que experimenta o homem de ser o fundamento sem fundamento (sem essência, natureza, etc) dos valores.
O nada da consciência é o fato de não haver um conteúdo real para essa consciência. Não há – insisto – um eu que esteja numa relação consciente com o objeto. Essa inexistência de um eu, de uma essência ou natureza é o que torna a existência humana condenada a ser livre.

1.4. A angústia diante do passado e do futuro

Sartre observa que podemos experimentar angústia quando da própria emergência da possibilidade de uma ação realizar-se no futuro, sem que nenhum impedimento suprima essa possibilidade. O homem que caminha junto ao precipício, por exemplo, é livre até para lançar-se ao abismo. Essa possibilidade de realizar uma ação futura, uma ação sempre aberta, o angustia.
Por outro lado, Sartre nota que uma decisão que tenhamos tomado no passado sempre pode ser revogada, caso seja esta a vontade de quem a tomou. Assim, um apostador que, perdendo muito dinheiro no jogo e que tenha quase lançado por terra as chances de casar-se, decidisse não mais jogar, jamais estaria obrigado a manter sua decisão quando passasse por uma casa de jogos. Pode suceder que, nesse momento mesmo em que o apostador passasse pela casa de jogos, experimentasse angústia, justamente por aperceber-se de que a decisão que tomara outrora não o obriga a mantê-la em definitivo.


2. Kierkegaard: o homem é uma síntese entre o finito e o infinito

Qualquer tentativa de abordar a filosofia de Kierkegaard deve pontuar o fato de que ele é um dos poucos filósofos cuja vida exerceu uma profunda influência na construção de sua obra. Embora considerado o pai do existencialismo, a relação de Kierkegaard com o existencialismo não é tão facilmente sustentável. De qualquer forma, tradicionalmente, sua obra se caracteriza como a expressão de um existencialismo cristão. No entanto, Kierkegaard não era um doutrinador cristão; era, antes de tudo, um pensador religioso (filósofo?) que expressou suas angústias e inquietações ao longo do trabalho de reflexão sobre a fé cristã e sobre o modo mais adequado de o homem, enquanto indivíduo, vivenciá-la. Kierkegaard manteve com o cristianismo uma relação de tensão e sofrimento – uma relação decorrente de uma influência religiosa marcante de seu pai. Seu pai apreciava o modo exacerbado como os rígidos princípios do protestantismo dinamarquês eram observados. O protestantismo era, à época, a religião de Estado. Várias publicações de Kierkegaard foram destinadas à crítica ao cristianismo de Estado, que, para ele, era incompatível com suas crenças cristãs.
Filósofo dinamarquês nascido em compenhague, Kierkegaard desenvolveu sua filosofia tendo em mira, especialmente, a filosofia de Hegel com sua pretensão de estabelecer, em definitivo, a identidade entre o real e o racional. Contra Hegel, Kierkegaard insistiu em que não é a Razão que governa o mundo. Embora reconhecesse que ela pode ter uma função reguladora, observava Kierkegaard que a matéria sobre a qual ela atua está impregnada de irracional.  Em oposição a Kant, Kierkegaard delegou à fé um lugar proeminente em face da razão supra-sensível. A ele importava mais, no julgamento, a seriedade, a autenticidade da vida, a pureza do coração, e não a transgressão de uma lei da razão. Sua originalidade consistiu em atribuir superioridade à dimensão religiosa, em detrimento da dimensão ética. Ademais, estabeleceu em Deus a instância normativa. Retornarei a esse ponto mais adiante.
Tendo em vista sua crítica às filosofias que pretendiam superestimar o poder da Razão, Kierkegaard pode ser inserido entre os filósofos denominados de irracionalistas. O irracionalismo, em cuja esteira pode-se situar a filosofia de Kierkegaard, foi um movimento marcante no final do século XIX, que visou a criticar a supremacia da razão, vista como um instrumento pelo qual era possível estabelecer a verdade. Essa tendência ganhou força, especialmente, depois de Hegel.
Os pensadores irracionalistas buscavam reanimar a questão da verdade, tomando para ponto de partida a existência. Afinado com esse projeto, Kierkegaard não hesitou em afirmar a necessidade de viver uma verdade que seja verdadeira para o eu.
O irracional é o paradoxal, para Kierkegaard. Esse paradoxal é originário, é a própria energia da vida em sua interioridade mais escusa. Esse paradoxal ou irracional enfeixa todas as forças da alma. Reside ele na percepção de que é tão-só a categoria do absurdo que lhe permite pensar a fronteira que precisa transpor para que a existência se revista de sentido. Observa Kierkegaard que é trabalho da condição humana atingir o supremo bem que é a beatitude ou eternidade.
A essa altura, saliente-se que Kierkegaard, alinhando-se com os postulados do irracionalismo, nega que o sentido da existência seja atingível pelo caminho da reflexão racional. A investigação de Kierkegaard, na medida em que se afasta de toda a tradição filosófica, se situa fora do domínio da racionalidade ordinária. Embora situada no domínio do paradoxo e da paixão, sua investigação vai mais além, de modo a alcançar o “padecer”. São caras ao seu empreendimento filosófico as categorias existenciais existência, angústia, desespero, liberdade e beatitude.
Para Kierkegaard, o modo como o homem se relaciona consigo mesmo determina sua situação no mundo. Essa relação se dá na forma de três dimensões: a estética, a ética e a religiosa. Tratarei delas em uma seção separada.
Vale insistir em que Kierkegaard critica tanto a falta de religiosidade do clero da Igreja Luterana, em sua época, quanto a influência negativa de Hegel no mundo intelectual.

2.1. A proeminência do indivíduo

A filosofia de Kierkegaard centrou-se no indivíduo, que ganha proeminência ontológica. Sua filosofia, portanto, contrasta com a de filósofos como Spinoza, Hegel e Marx, para os quais o indivíduo pouco importava. O eu kierkegaardiano não existe encerrado em si mesmo; mas não se erige em absoluto. O eu não é o fundamento de si mesmo; não é a identidade do sujeito com o produto de seu ato. Entre o eu e o absoluto há intermediações que se impõem no caminho que leva o primeiro a atingir o último.
O postulado da existência do eu como auto-relação serve de eixo para Kierkegaard pensar a existência e a condição humana – condição marcada profundamente pelo desespero. Kierkegaard sustentou que a existência nunca poderá ser objeto para o pensamento. Ela é a origem a partir da qual cada um de nós tem experiências, pensa e age. Existir, para o homem, não é ser ou ter uma existência empírica e imediata. O homem é o único existente; o único ente diferente de todos os outros entes, os quais têm uma existência empírica e não sabem o que são. Para o homem, que tem consciência de sua finitude, a existência é uma tarefa, uma exigência, qual seja, a do devir, a de definir-se.
Para Kierkegaard, o homem é, de fato, um ente particular, porquanto está adiante de si; ele se ocupa de si mesmo, está perpetuamente interessado em si, inclinado aos possíveis (nada para ele está fixado, determinado previamente). O homem é um ente que pode ser, mas sempre em face de suas escolhas. É por seus atos que o homem se determina, que ele emerge do imediatismo das coisas, ao mesmo tempo em que age livremente: ele ek-siste, isto é, mantém-se fora de si mesmo, no seu projeto, sua relação com o que é. O existente, que é o homem, é o único ente capaz de existir na abertura ao ser. Sendo autêntica, a existência do homem faz sentido por si mesma.
O que seria, então – perguntaríamos a Kierkegaard – existir para o homem? Existir, para o homem, é, ao mesmo tempo, não ser Deus e não ser apenas como os entes ou coisas que existem na inconsciência da imediatidade e na coincidência do eu consigo mesmo. A existência é o próprio sentido da vida que, não se prestando a ser um objeto de uma consciência imediata, se desnuda progressivamente ao longo do tempo – domínio em que ela é instada a realizar-se na relação com a verdade eterna. Em Kierkegaard, a existência mantém uma relação de extrema intimidade com a subjetividade de viver.

2.1.2. O homem como síntese entre o infinito e o finito

Em Kierkegaard, a existência tem como horizonte Deus. Nesse ponto, Sartre se distancia de Kierkegaard. Em Sartre, a existência tem como único horizonte o mundo. Mas nos concentremos em Kierkegaard. Para ele, toda existência é uma espécie de mal-estar, dado que o homem percebe como problemática a inserção no tempo do princípio eterno que lhe deu origem. Ademais, é um mal-estar, porque os possíveis embaçam a liberdade que precisa determinar-se.
É a totalidade da finitude no homem que deve relacionar-se com o infinito. Sucede, contudo, que essa finitude é complexa por si mesma, é conflituosa; está fadada à tensão e ao desequilíbrio. Na finitude, a consciência opera uma cisão entre alma e corpo, entre interioridade e exterioridade. A emergência do espírito no homem é já o limiar da angústia. Mas, antes de tratar desse irromper-se da angústia no surgimento do espírito, é necessário compreender não só o que Kierkegaard chama de espírito, mas também seu lugar na sua própria filosofia.
Remontando à condição de Adão no Paraíso bíblico, Kierkegaard toma como ponto de partida o estado de inocência, no qual a alma e o corpo compõem uma unidade em repouso e em serenidade. Nesse estado, não há angústia, não há nada contra o qual se deve combater. Na inocência, estado de ignorância e típico da idade infantil, o ser humano não é determinado como espírito; mas é determinado psiquicamente como unidade imediata com a natureza. Sem culpa, sem angústia e sem sofrimento, o homem goza da felicidade da inocência.
Kierkegaard, trazendo à cena a proibição feita por Deus a Adão, mostra que é justamente porque a proibição desperta em Adão a possibilidade de liberdade que essa proibição o angustia. O que antes, em estado de inocência, era o nada da angústia, deste momento em diante, passa a ser interiorizado nele, Adão, como um nada que se qualifica por força do espírito: esse nada é a angustiante possibilidade de ser-capaz-de.
Kierkegaard prosseguirá observando que essa possibilidade angustiante não sabe o que ela é capaz de fazer (ignora-se a distinção entre o bem e o mal). Existe tão-só, neste momento, a possibilidade de ser-capaz-de. Essa possibilidade, evidentemente, não deixa de ser uma forma de ignorância, embora superior. Também é uma forma superior de angústia. Essa capacidade ama e não ama a angústia, porque foge dela.
Seguem-se às palavras de proibição, as palavras da sentença. Deus, então, sentencia: “Certamente tu morrerás”. Adão, evidentemente, não sabe o que significa morrer; todavia, a ignorância de Adão não exclui a possibilidade de ter-lhe afigurado ao espírito um acontecimento terrível. O horror experimentado por Adão, ao imaginar a possibilidade desse acontecimento terrível, se converteria em angústia, dado que Adão não compreendeu o enunciado de Deus. Fica-lhe novamente a ambiguidade da angústia: ele a ama, enquanto infinita possibilidade de ser-capaz-de, mas dela foge; agora, especialmente, porque ela lhe põe diante de outra possibilidade que assume a forma de consequência de sua escolha. Se ele é infinitamente capaz de, é capaz de fazer qualquer coisa, até mesmo de matar-se.
A inocência adâmica situa-se na angústia, quando esta se relaciona com o proibido e com o castigo. Sem haver culpa, há, no entanto, angústia.
Retomemos o conceito de espírito, a fim de precisá-lo. Direi, em primeiro lugar, que, em Kierkegaard, o espírito deve testemunhar a nossa liberdade relativamente à natureza, a qual é necessária e determinada. O espírito é o aspecto religioso de nossa existência, em contraste com o aspecto sensual, carnal e mundano. É o princípio do pensamento e da reflexão no homem. Daí ter-nos legado Kierkergaard, em seu O conceito de angústia (2010, p. 46), o enunciado “Quanto menos espírito, menos angústia”. O espírito é a faculdade de síntese reflexiva.
O homem é espírito. O espírito é o eu, e o eu é uma relação entre a alma e o corpo. Essa relação se relaciona consigo mesma, por meio do espírito. O eu é o fato de que a relação se relaciona consigo mesma. Assim, não sendo identidade abstrata, o eu é essencialmente relação viva consigo mesma. Não é propriamente relação entre alma e corpo, mas a relação em sua reflexividade que se desenvolve na dinâmica do tempo. A reflexividade dessa relação, que se vai desdobrando no tempo é que permite a realização da síntese entre o finito e o infinito, entre o temporal e o eterno, entre a liberdade e a necessidade, entre o absoluto e o relativo, entre o incondicionado e a condição que compreende os contraditórios de nossa humanidade. Deve-se insistir em que é através do espírito que a relação entre a alma e o corpo relaciona-se reflexivamente consigo mesma. O eu é essa relação que se relaciona consigo mesma em sua reflexividade.
Ao se debruçar sobre a identidade do eu, Kierkegaard insiste em sua reflexividade, insiste na singuralidade de cada indivíduo, graças à qual esse eu se desprende da impessoalidade da espécie e se desfaz das máscaras forjadas pelas convenções sociais.
Não é custoso ver que, em Sartre, o conflito dessa relação não encontra lugar. Para Sartre, não há um “eu”, um sujeito, entendido como conteúdo da consciência. Não há, portanto, espírito; e não há cisão entre corpo e alma. Em Sartre, o eu é produto da necessidade de conferir unidade a experiências passadas. É um feixe de percepções. Não é fundamento da consciência, já que a consciência se constitui enquanto nada.
O espírito, portanto, surge como consequência da cisão entre alma e corpo, a qual, por sua vez, resulta do conhecimento, da consciência reflexiva de si mesmo. No momento em que Adão e Eva tomam consciência de sua nudez, o espírito se faz presente no estado de repouso (ainda que em esboço), permitindo o nascimento da vida interior. Não devemos supor que, em estado de inocência, o homem encontra-se em unidade com a natureza. O espírito, ainda que repouse em estado de imediatidade e sonho, coloca Adão e Eva em face da possibilidade de ser capaz de. Esse espírito, ainda como possibilidade, já experimenta a angústia diante do nada.
Em Kierkegaard, a existência humana é dotada de uma reflexividade bastante complexa. O homem é filho do finito e do infinito, do eterno e do temporal. Sua condição obriga-o a buscar incessantemente o equilíbrio nessa relação, com vistas a realizar o mais adequadamente possível a síntese. Ora, uma síntese é reunião de duas coisas percebidas como distintas. Trata-se, pois, da síntese entre o finito e o infinito. Essa relação relaciona-se consigo mesma, e o seu resultado é o eu. Nota Kirkegaard que ou essa relação se faz a si mesma, ou é tornada possível por obra de outra coisa. Se esse é o caso, a relação, ou seja, o espírito, relaciona-se com aquilo que a tornou possível, a saber, com Deus. Por conseguinte, para Kierkegaard, resgatar conscientemente a relação com Deus é nascer para si mesmo de verdade. É renascer, reconciliar-se. Mas essa renovação envolve dor. Há uma tensão no interior do indivíduo que escolhe relacionar-se com Deus: é o indivíduo que se determina, que se escolhe. Se ele fosse determinado, não seria um eu. Nesse ponto, Kierkegaard e Sartre se aproximam: a liberdade do indivíduo implica responsabilidade, e existir é estar intimamente consciente de que somos responsáveis pelo que escolhemos vir a ser. Todavia, em Kierkegaard, há uma força ontológica fundadora da relação consigo mesma.
É tarefa do homem não só reunir numa unidade a alma e o corpo, mas elevar essa unidade ao nível de espírito, graças à relação com Deus. O homem espiritual, cuja vida finita renasce na relação com o infinito, é uma forma do homem que se sobreleva ao homem, tanto quanto o homem eleva-se sobre o animal. A espiritualidade, na perspectiva de Kierkegaard, é uma propriedade do homem que o distingue absolutamente do animal.


2.1.3. Unindo pontos

Façamos uma síntese intermediária ou provisória, antes de trazer à cena a questão principal desse texto: a da angústia.  Kierkegaard esboça uma teoria do self, à luz da qual pensa o espírito como síntese entre corpo e alma. O espírito precisa compreender numa síntese o tempo e a eternidade, no momento em que TEM DE FAZER ESCOLHAS.
Kierkegaard reintroduz na filosofia o nada como categoria ontológica. A disposição que nos leva ao nada é a angústia. Kierkegaard, seguido por Heidegger, considera a angústia como aquilo que manifesta o nada.
Estar na presença de Deus é estar envolvido numa solidão muito pessoal, muito íntima que deve permanecer discreta e oculta. O homem, síntese entre o finito e o infinito, deve experienciar o sentimento religioso em sua interioridade, ou seja, na relação do eu consigo mesmo diante de Deus. Diante de Deus, a exterioridade desaparece e deve o homem fechar os olhos.
A única essência do homem é não ter essência alguma. O homem é uma existência livre, é um ente livre que corre o risco de se perder. Ele constitui uma exceção na natureza: ele é livre, capaz de autodeterminar-se em ato, é livre do determinismo natural. Sua existência, por definição, supõe o desprendimento de seu ser relativamente aos imperativos da natureza. Pela liberdade, o homem é um dever-ser: ele deve determinar-se sem deixar se determinar. O homem é um ser em perpétuo vir a ser.

2.1.4. Explicitando alguns pressupostos kierkegaardianos

Em Kierkegaard, a religião anda em par com a filosofia. Religião e filosofia têm o mesmo objeto – Deus enquanto verdadeiro em si e por si e o homem na sua relação com ele. Kierkegaard reconhece nas religiões um domínio em que o homem expressou sua consciência do Absoluto, de modo que não se pode negar que elas são obra suprema da razão. Não obstante, Kierkegaard se revoltou contra o pretender exaustivamente submeter o religioso ao pensamento. Também critica a tendência de subsumir o real ao racional – tendência que leva à quase diluição do individual no universal. Aqui, se entrevê sua crítica a Hegel, cujo sistema pretendia reunir tudo – Deus, o homem e o mundo – ao abrigo de uma Razão soberana, tendo o homem um lugar central numa totalidade que lhe justifica progressivamente a própria existência. Kierkegaard acusava Hegel de que, ao proceder assim, suprimia a angústia como uma dimensão fundamental da existência humana.
Como Kierkegaard tenha se dedicado a desenvolver uma fenomenologia do espírito individual ou da existência, a questão que o ocupava não era “o que é o homem?”; seu esforço era encaminhado no sentido de demonstrar as etapas por que ele, homem, deve passar, a fim de apropriar-se cada vez mais de si, como numa caminhada ou ao longo de uma história que se vai construindo e na qual a morte pode irromper para sinalizar o quão inacabado é o homem. A fenomenologia do espírito individual busca, pois, descrever os momentos que, relacionados dialeticamente, compõem o curso de ascensão do indivíduo a si mesmo, sem que jamais chegue a termo, no domínio temporal, esse processo de ascensão a que a própria vida destina cada um de nós. Donde a ideia de existência como edificação. Existir é um edificar-se contínuo, que supõe a passagem de um momento a outro num esforço por encontrar-se consigo mesmo.
A existência é uma tarefa, e é tarefa do existente, isto é, do homem tornar-se uma síntese entre o finito e o infinito. Nesse sentido, essa síntese é a própria essência humana, a cuja realização se consagra o homem. Cabe, a essa altura, uma digressão elucidativa. Se Sartre nega haver qualquer essência ou natureza humana que determine o que o homem pode ser, Kierkegaard, ao que parece, admite uma essência humana. Diz, inclusive, que a essência da existência humana é a auto-relação, e essa auto-relação determina o modo de o homem encontrar-se ou estar no mundo. Todavia, o homem, dirá Kierkegaard, é um ser livre, o que nos leva à conclusão de que essa essência não é um determinante; é o que o homem traz em si como possibilidade para ser vivida intimamente, e, como possibilidade, está sempre submetida à vontade, à liberdade do homem. Vale lembrar que o homem precisa realizar a síntese que o constitui como tal, mas ela só pode realizar-se na existência, e o homem é livre para escolher entre a realização dessa síntese, a busca por uma relação com Deus e a imersão total no mundo.
Devemos ter em conta que não se trata de uma ascensão do espírito em direção a Deus, mas da relação do espírito consigo mesmo em diálogo com Deus. A cisão é a própria relação do espírito consigo mesmo. O homem é, pois, marcado por uma cisão que constitui sua própria existência pela mediação de seu fundamento, qual seja, Deus.
Ora, se a essência humana consiste em ser bem-sucedido nessa relação com Deus, não pode o homem furtar-se a ela, tampouco deve o homem fugir ao mundo. Kierkegaard preconizava que o fim a que se destina a existência humana é apropriação da existência como existência no aqui e agora, em cada instante que nos dá a eternidade.
É importante reforçar esta ideia, a fim de que se torne claro o que se seguirá, quando eu me concentrar no problema da angústia: o homem é uma síntese entre o psíquico e o corpóreo. O espírito perturba continuamente, quando presente, essa relação entre alma e corpo. Por outro lado, não deixa de ser favorável a ela porque busca estabelecê-la. Trata-se de um poder ambíguo, portanto. A forma como o espírito se relaciona consigo mesmo e com a condição do homem é a da angústia: “O espírito se relaciona como angústia (p. 47)”.
A existência, para o homem, o lança a um paradoxo, ou melhor, está fundada num paradoxo. O espírito não pode desembaraçar-se de si mesmo; tampouco pode apreender-se a si mesmo, enquanto ele se volta para fora de si. O homem não pode imergir num estado vegetativo, pois que ele é determinado pelo espírito; não pode escapar à angústia, já que ele a ama, mas não a ama verdadeiramente, porquanto, afinal, foge dela.
Finalmente, para Kierkegaard, a consciência humana é marcada profundamente pelo desespero. Ainda que eu não possa me ocupar desse tema neste texto, vale notar que o desespero é visto por Kierkegaard como uma característica essencial do ser humano. Não há homem livre do desespero. O desespero é uma verdade totalizante da condição humana. E Kierkegaard não consente a objeções. Quem quer que suponha não carregar desespero é porque se deixa viver despreocupado em face do mundo. Kierkegaard reconhece que o homem vive imerso na banalidade da vida, na qual encontra satisfação imediata. Vivendo num relativo entorpecimento em face de sua condição desesperante, o homem não se dá conta, naturalmente, do desespero, tampouco se apercebe da flutuação entre saúde e doença que acenam com a fragilidade da vida. Ele vive em segredo, e a vida lhe passa desperdiçada. Kierkegaard nega que a felicidade se encontre no prazer. Ela é uma miragem, enquanto busca de um bem durável, no plano da finitude e do possível. E conclui: todo homem é, por natureza, desesperado.


2.2.  O salto de fé

Na medida em que existir é, simultaneamente, devir e ser, existir exige a fé. Mas a fé não é fuga ao mundo, mas uma apreensão da eternidade no tempo. Enquanto certeza interior que antecipa a infinitude (Hegel), ela é esforço orientado para descobrir o sentido da existência, ou seja, para viver com sentido, para viver uma vida bem orientada na dimensão do ser. Por isso, a fé conduz ao crescimento no ser; é ela abertura do tempo à eternidade, de modo que, pela fé, o homem vive da própria eternidade no tempo.
Lembremos que o homem é cindido por um abismo que precisa transpor. Esse abismo se interpõe entre o eu e o eu mesmo. Toda uma vida é necessária para transpô-lo. Examinemos, brevemente, o lugar que ocupa a fé na filosofia de Kierkegaard. Qual é a sua importância para a existência humana?
Kierkegaard afirma que a escolha é nosso ponto de partida, é nossa companhia permanente e nosso fardo mais pesado. Como ente livre, o homem tem sempre de fazer escolhas. O problema fundamental para Kierkegaard, quando se debruçou sobre a condição humana, é o que cada eu, enquanto indivíduo, deve fazer e não que deve conhecer. Necessário é encontrar uma verdade que valha para o eu, uma ideia por que esse eu possa viver e morrer. Mas onde encontrá-la? Respondeu Kierkegaard: na crença religiosa. Mas a crença religiosa envolve paixão e não razão. A fé é incompatível com a razão; esta pode minar aquela. A crença autêntica supõe um salto de fé, porque se define como uma força que provém de nosso interior e que dispensa a orientação da razão. Não importa, aqui, se nossa crença é verdadeira ou certa.
Segundo Kierkegaard, a fé só tem sentido, ou melhor, só é necessária na ausência de certezas e de segurança. Se estivéssemos realmente seguros da existência de Deus, prescindiríamos da fé. Mas a existência de Deus não é uma questão de reflexão racional. O apelo à necessidade de manter em divórcio a fé e a razão não é uma originalidade de Kierkegaard; na verdade, ele não faz mais do que recuperar posições antigas de pensadores como Tertuliano (155 d.C) e João Duns Escoto (1265-1308), os quais insistiam no primado da fé sobre a razão.

2.3. As dimensões da auto-relação

A existência do homem pode desenrolar-se em três dimensões, segundo Kierkegaard. Na dimensão estética, o homem assume uma posição de pura exterioridade. Nela, ele se evade de si. A vida estética se esvai no instante do prazer. Nela, o homem busca o prazer como sentido da vida, mas não qualquer prazer; tão-somente aquele prazer que provoca o amor que não se satisfaz em possuir o corpo do amado; quer possuir sua alma e sua liberdade. Dois tipos humanos são característicos dessa dimensão: o sedutor, que vive em função do prazer, tipo para o qual o prazer é o sentido da vida; e o poeta, que, sendo um esteta, se deixa impregnar-se da beleza do real para poder erigir seus versos.
Na dimensão ética, o homem vê-se diante da liberdade. Essa dimensão é a dimensão da liberdade. O homem não pode passar de uma dimensão para a outra por meio de um ato da inteligência; para fazê-lo, ele precisa de um salto, o qual depende de um ato da vontade. O locus da liberdade é a consciência individual, a qual é marcada profundamente pelo desespero. O desespero é um sentimento que o homem experimenta em face da escolha de si mesmo.
O tema do desespero demandaria, por si mesmo, um novo texto. Não me deterei a tratar dele aqui. Basta-me notar que o desespero se prende à liberdade de que goza o homem em face de sua própria condição como ser de relação consigo mesmo. O homem pode assumir duas atitudes: pode querer relacionar-se consigo mesmo, independentemente do princípio absoluto que o pôs nessa relação (ou seja, ignorando a Deus), ou pode não querer relacionar-se consigo mesmo. Quando o homem se nega a relacionar-se consigo mesmo, situa-se no domínio da ficção, porque pretende, em vão, escapar a si mesmo, o que lhe é impossível, a não ser matando-se. Essa impossibilidade de fugir a si mesmo é fonte de desespero para o homem.
Na dimensão religiosa, o homem encontra-se com a fé. Acontece que, se a dimensão ética se assemelha a uma farsa, já que as regras encobrem e impedem o ato de liberdade, e se a dimensão estética tem uma urdidura de comédia, porque leva o homem a voltar-se para o prazer e o entretenimento, a dimensão religiosa tem uma face de tragédia, porque sua força motriz é a paixão – a paixão da fé. Onde há paixão há angústia e dor.
Kierkegaard considera a fé a mola da história humana. O homem, contudo, que fica atrelado às tarefas que servem para preencher o tempo não vai mais além.
Diremos, à guisa de conclusão, que não há entre as três dimensões mediação, porquanto cada uma delas se caracteriza por contradições inconciliáveis. Somente a liberdade pode por fim aos conflitos, já que o indivíduo precisa escolher uma dentre as dimensões. A passagem de uma dimensão a outra não se dá à luz da razão, mas à luz da vontade, por meio de saltos. Mas a dimensão religiosa é, para Kierkegaard, mais verdadeira, por ser mais significativa para o ser humano.

2.4. A angústia como dimensão estruturante da existência

Trata-se de uma ideia fulcral esta que verbalizarei – fulcral porque serve de sustentáculo para o que se seguirá. A angústia, para Kierkegaard, não é uma patologia psíquica, uma enfermidade, como fora consagrada na literatura psicanalítica. A angústia, na filosofia kierkegaardiana, é uma estrutura básica do modo como o existente, isto é, o ente humano se relaciona com a vida, consigo mesmo e com os outros. Ela dá forma a essa relação.
Vimos, quando eu trouxe a interpretação que fez Kierkegaard da tentação no Paraíso bíblico, que a angústia decorre da manifestação do Nada. O Nada, quando interiorizado pela consciência, causa angústia. A angústia reside em nossa liberdade que se traduz como “angustiante possibilidade de poder”. Sartre acompanha Kierkegaard na distinção entre angústia e medo. Enquanto o medo supõe um objeto real, um perigo real, a angústia é apreensão diante do nada, do vazio. É na angústia que a liberdade se expressa como poder ser.
Para Kierkegaard, ao contrário de Sartre, a angústia não é angústia diante do mundo; é o fato mesmo de o homem existir no mundo, enquanto ser encarnado, síntese entre corpo e alma, e corpo sexuado. Tanto Kierkegaard quanto Sartre, porém, definem a angústia como uma estrutura existencial, na qual a liberdade humana toma consciência de si mesma como sendo seu próprio nada. Kierkegaard e Sartre se aproximam também no tocante à compreensão segundo a qual o homem experimenta a angústia na carne, ainda que essa visão seja mais marcante em Kierkegaard.
Para Kierkegaard, a angústia é a realidade da liberdade como possibilidade que se coloca antes da possibilidade. Isso significa que o homem é livre antes mesmo de poder ser segundo a determinação de sua liberdade. A liberdade no homem preexiste à possibilidade de poder ser o que ele quiser, e isso lhe causa angústia.
A angústia é o pressentimento experimentado pelo homem de que ele é maior do que a experiência imediata.  Kierkegaard vê na angústia a ação do espírito como causa simultânea da cisão e da síntese entre alma e corpo na consciência reflexiva. Compreendamos melhor essa ideia.
Ao tomar consciência de seu corpo, o homem remete a imediatidade corporal à exterioridade, isto é, ao tomar consciência de seu corpo, o homem apreende essa realidade imediata remetendo-a como algo que se relaciona à exterioridade do mundo. Como corpo, ele se percebe como parte constitutiva da natureza; no entanto, no momento mesmo em que toma consciência da imediatidade corporal, o homem experimenta sua interioridade como domínio capaz de se autodeterminar. A dialética entre interioridade e exterioridade atravessa e marca inteiramente a existência humana. O homem não é mais apenas um corpo; não está mais unido inextricavelmente ao natural; pela consciência de sua interioridade e pela possibilidade que  tem ela de se autodeterminar, o homem percebe-se como livre das amarras e predeterminações da exterioridade, do natural.
A angústia, então, liga-se à reflexividade nascente, a essa experiência originária que constitui o fato mesmo de existir, ao qual, no entanto, a própria condição humana impõe um tornar-se ato de existir. Longe de levar a experiência a perder-se num vácuo, a angústia lhe confere sentido, porque provém justamente dessa indeterminação humana originária que se impõe o dever de autodeterminar-se.
A angústia é o que leva a consciência a flutuar diante de todos os possíveis. Ela surge da intuição de que o homem é uma síntese a realizar-se, mas que, no entanto, fracassa, na maioria das vezes, na tarefa de edificação de si mesma. A angústia é o domínio em que o si mesmo começa a aparecer, é uma experiência impregnada de uma tonalidade afetiva única, dado que ela não tem objeto. A angústia não é intencional, no sentido de que não se dirige para um objeto. Ela se apresenta na origem do desvelar-se do indivíduo a si mesmo, quando ele se confronta com o seu nada, com o abismo desprovido de profundidade que é o possível; ela surge quando ele toma consciência de sua situação desesperadora. Enfim, ela surge da impotência que sente o homem, logo de início, quando se esforça por realizar uma síntese adequada.
Por fim, cumpre notar que a angústia, em Kierkegaard, é o sentimento de inquietude que se encontra na origem da livre opção (no que Sartre está de acordo); mas é também o que resulta do reconhecimento pelo homem de sua finitude e da sua condição mortal (é angústia diante da morte, do nada); e também – o que não deixa de nos surpreender – angústia em face do silêncio de Deus. Nem a fé nos dá garantia.

Conclusão



Penso ser arriscada qualquer tentativa de estabelecer uma linha demarcatória entre as duas visões sobre a angústia, por mim contempladas neste texto. Para fazê-lo, precisarei me aprofundar mais nessa temática tanto em Kierkegaard quanto em Sartre. Por ora, reitero que tanto um quanto outro situam a angústia no domínio da liberdade e da responsabilidade que decorre da consciência que tem o homem de ser livre. No entanto, em Kierkegaard, a angústia parece ser mais invasiva, mas conflitante, porque se imiscui na interioridade da subjetividade humana, corrói o eu durante o esforço de realização de sua síntese. Como Sartre não reconhece o eu como realidade ontológica, a angústia não pode manifestar-se como um sentimento esmagador do eu em sua interioridade. Em Kierkegaard, a angústia está envolvida na transcendência do homem tendo como instância de referência o Absoluto. Sartre, embora reconheça que o homem é ser de autotranscendência, nega que essa autotrasncedência o conduza a uma relação com o Absoluto. A autotranscendência do homem, para Sartre, se dá como imanência, porque se dá no mundo, é relativa ao mundo. O homem se autotranscende porque livre, porque pode ultrapassar sua facticidade, ou melhor, pode negá-la. Para Sartre,, ao contrário de Kierkegaard, a angústia é angústia em face do mundo.