Um cidadão do mundo
Nem provinciano, nem nacionalista, mas um cosmopolita. Sócrates era um homem de vanguarda. Um andarilho que vivia na Atenas de 470-399 a .C. Um homem que logrou conciliar sabedoria e virtude, o bem e a verdade. Um homem que cuidava ser o mal fruto da ignorância. Um homem injustamente condenado pela ignorância de seus conterrâneos, que o julgaram corruptor dos jovens. Um homem que pagou com a própria vida simplesmente porque viveu a questionar o senso-comum de sua época. Um homem que morreu pelas mãos do que combatia – a ignorância. Um homem que submeteu as opiniões correntes ao escrutínio da razão, o único caminho pelo qual julgava ser possível conhecer a verdade. Um homem que ficou famoso pela formulação de um método, conhecido como “maiêutica” e, por isso, chamado de “parteiro das ideias”. E acrescente-se das ideias pré-concebidas. Sua filosofia era uma filosofia da ética, voltada para o questionamento dos valores morais. Eis Sócrates, o pai da razão!
Ele não foi o único personagem da História da filosofia que me ensinou a compreender a importância de não aceitarmos as opiniões e as ideias correntes, sem que antes as examinemos. Decerto, à medida que me aprofundava na leitura filosófica, outras tantas figuras dignas de nota contribuíram para que esse espírito crítico-reflexivo adormecido em mim acordasse. E há algum tempo escrevo sobre os benefícios que a renovação intelectual permitida pela filosofia me acarretou. Hoje, me apercebo de que minha prática como educador e pesquisador, na área da ciência da linguagem, só enriqueceu. O poeta, o professor, o pesquisador, o leitor, o ateu, o amante da linguagem – todas essas faces que compõem a imagem do “eu” que me cabe estão em harmonia visceral, de tal sorte que uma não pode ser compreendido sem relação com a outra.
A escolha pelo conhecimento, certamente, acarreta-nos algumas limitações em nossa sociabilidade. Em outras palavras, se escolhemos tornar-nos leitores dedicados e amantes da leitura, e se julgamos, assim, ser o conhecimento um bem a ser perseguido, é quase certo que nossas vivências sociais, nossas relações com os outros não serão as mesmas. Você, leitor, abandonará certos grupos, buscará integrar-se a outros grupos cujos indivíduos têm interesses afins e exibem um grau de escolarização e/ou letramento maior. Sua vida social mudará drasticamente. A solidão intelectual acaba por ser inevitável, até que você possa reconstruir sua identidade social e linguística, para viver relações que satisfaçam suas novas necessidades.
A pós-modernidade nos coloca diante de um desafio, no tocante à (re)construção da identidade. Os especialistas nesse campo advogam que as identidades são hoje plurais e versáteis. Trocamos de identidade mais ou menos como trocamos de roupa, dependendo da situação. A globalização explica, pelo menos em parte, essa versatilidade de identidades, que redunda em fragmentação. Não há mais lugar para identidades fixas, que conservamos até o fim da vida. Há disponível uma multiplicidade de estilos; o império do efêmero rege nossas vidas. Os códigos culturais se fragmentam e as identidades mudam constantemente. Nesse contexto, o sujeito é continuamente deslocado.
Se é possível assumir muitas identidades, como então conciliá-las? Como mobilizá-las adequadamente aos diferentes contextos sociais? E não podemos nos esquecer da relação intrínseca entre identidade e linguagem, já que pela língua as identidades são construídas e negociadas. Quando falamos, evidenciamos muito do que somos. Heidegger ensinou-nos que a linguagem é a morada do ser; de um ser que é social e histórico. Não há eu fora da linguagem, não há sujeito (que, na modernidade tardia, se desloca continuamente) fora do discurso. Não há humano sem a dimensão simbólica. Tão importante quanto essa relação é pensar a identidade relativamente à diferença. Na realidade, não podemos pensar a identidade sem considerá-la na sua relação necessária com a diferença, já que a identidade de uma pessoa se constrói, pela linguagem, na relação com o outro. Essa relação se dá dentro de um sistema de produção de significados compartilhado (cultura).
Precisamos de professores não só que ensinem conhecimentos, mas que ensinem o valor de conhecer. Precisamos de professores que não ensinem o conhecimento como mercadoria empacotada e pronta para ser desembrulhada e consumida, mas que conduzam os estudantes no longo e instigante processo de construção intersubjetiva (porque social) do conhecimento. Precisamos de professores com vocação ao magistério; de professores que não se limitam a reproduzir conhecimentos já dados esquematicamente em compêndios, mas de professores que proponham as questões já suscitadas sob novas perspectivas e que suscitem novas questões. Precisamos de professores-pesquisadores, como advogava Paulo Freire.
Enfim, precisamos desenvolver em nós o espírito socrático, para verdadeiramente alcançarmos a condição de cidadão do mundo.