Preleções sobre
política
Uma contribuição para o
enfrentamento
do analfabetismo político
brasileiro
PARTE
3
1.
Introdução
Esta
última etapa deste artigo, cujas duas partes precedentes compõem com esta um
percurso textual ao longo do qual minha preocupação principal tem sido fornecer
subsídios teóricos à formação de uma consciência política emancipada da
taramelagem a que fica circunscrita a discussão política nas esferas de
sociabilidade do senso comum, abriga reflexões sobre a filosofia política
moderna. Embora eu esteja prevenido contra a suposição enganosa de que um
discurso mais elaborado, teórica, filosófica, política e sociologicamente,
possa encontrar acolhida, facilmente, nos retalhos discursivos do senso comum
(na verdade, é mais provável que um discurso dessa natureza encontre robusta
resistência em função das tendências autoritárias que se aninham frequentemente
no falatório do senso comum), os sujeitos que ousarem pensar para além de suas
trincheiras discursivas avizinhadas ao discurso autoritário poderá enfrentá-lo
com a mesma prudência e perspicácia de quem usa galochas para atravessar um
lamaçal. Pensar é manifestação de resistência, e o homem comum que,
frequentemente, se deixa arrastar pelos modos esquemáticos, rígidos,
esquálidos, superficiais, preconceituosos, irracionais de falar do senso comum,
é incapaz de pensar verdadeiramente. Para Sócrates, o homem não era ainda um
“animal racional”, como o conceberia Aristóteles; mas um ser pensante, e o
pensamento desse ser pensante, que é o homem, expressa-se na forma do discurso,
de modo que a identidade entre discurso e pensamento é uma das características
mais notáveis da cultura grega. É bem verdade que, até certo ponto, essa
identidade entre pensamento e discurso, que compõe o lógos, já se notava na filosofia pré-socrática. Mas Sócrates foi
quem pensou essa identidade como diálogo do eu consigo mesmo, e essa identidade
entre o pensamento e o discurso passou a ser vista como a condição primária do
pensamento. Pensar, portanto, à luz do socratismo, é diálogo solitário do eu
consigo mesmo. Ora, a descoberta de Sócrates é de extrema relevância política,
porque o que ela nos diz é que a solidão, que antes e depois de Sócrates era
vista como prerrogativa e hábito exclusivo do filósofo – hábito que a pólis supunha fosse antipolítico – é
condição necessária para o bom funcionamento da pólis. Sócrates elevou o pensamento à condição de ser o melhor
guia, melhor até que as leis que ordenam a pólis e governam o comportamento
humano, para o bem viver comum. Sem me alongar sobre os desdobramentos deste
ensinamento socrático e sobre sua influência conflitual sobre o modo de vida na
pólis, se eu o evoco aqui, é para
argumentar no sentido de que o falatório do senso comum não é o lugar próprio
do pensamento. A lição socrática é clara: o
pensamento é diálogo da alma consigo mesma. E esse diálogo se faz na
solidão do eu em diálogo consigo mesmo. O pensamento exige a ruminação, o
demorar-se nas articulações do lógos.
É o que Sócrates nos ensina e que Nietzsche soube bem aproveitar. Dizer e
pensar é o mesmo: esta é uma das lições mais preciosas que os gregos nos
ensinaram. Quem fala sem pensar ofende, e aprendemos isso pelo senso comum:
“desculpe-me falei sem pensar”. É possível falar sem pensar? Mas como, se falar
e pensar é o mesmo? É que nós nos habituamos a dissociar o pensamento da
linguagem, nós, modernos, desfizemos a identidade grega entre pensar e falar.
Para nós, a fala é a realização de um tipo de código, de um sistema de signos
que é a língua; e esta é vista apenas como veículo de expressão do pensamento
(essa concepção de língua é corrente no senso comum). O pensamento passa a ser
entendido como pensamento pré-verbal, pensamento que existe anteriormente à
palavra, ao discurso, à linguagem. Comumente, reduzimos pensamento a mensagem
representada nos juízos, nos enunciados, nas proposições. Mas, se, para nós, pensar não é mais o mesmo
que falar, então é preciso se questionar sobre o que é pensar, afinal. Que o
homem é um ser falante, um homo loquens,
é uma evidência do nosso senso comum. Falamos, tagarelamos o tempo todo. Mas quando
é que pensamos? Num certo sentido, nosso pensamento é verbal, só podemos pensar
com palavras, com a concatenação de signos (embora isso não seja um ponto
pacífico nem na filosofia nem na psicologia). Mas não faltam partidários dos
dois lados do problema: há os que admitem a existência de um pensamento
pré-verbal e há os que a recusam; há os que negam que pensamento exista na
dependência da linguagem; e os que defendem que sem linguagem não há pensamento
(conceitual), que, afinal, a matéria de que é feita o pensamento são as
palavras. Ora, pensamos com palavras; e isso é inegável. Ainda que se possa
falar num pensamento pré-verbal nos primeiros estágios de desenvolvimento
infantil, antes do desenvolvimento da faculdade da linguagem, quando esta
começa a se desenvolver, pensamento e linguagem se soldam um no outro, de modo
que, daí em diante, se tornam indiscerníveis. Não precisamos, todavia, nos
embrenhar em tão antiga e longa discussão, sob pena de nos perdermos
totalmente, de nos afastarmos demais do ponto em questão que interessa. O que é
pensar? O senso comum não pensa, no sentido preciso que procuro definir a
atividade do pensamento. Fala, e fala muito! Mas não pensa. É que para pensar,
precisamos nos demorar, precisamos ruminar... O que, afinal, se rumina na
ruminação que é o pensar? O significado, as articulações significativas das
coisas, dos acontecimentos, de tudo aquilo que se apresenta como problema ou
questão para o pensamento. Arendt dizia que pensar é entrar no significado do
acontecimento, é penetrar interrogando o significado do que acontece. O que o
que acontece quer dizer? O que o que acontece quer significar? “Isso” que me
ponho a pensar, vale dizer, a ponderar, a examinar, a pesar: o que “isso”
significa. Pensar é desvelar a significatividade do que acontece pelo
reconhecimento da problematicidade do acontecimento. Quem fala coisas
apressadas, quem fornece respostas prontas para um acontecimento, por
definição, problemático, não pensou a problematicidade, por isso não pensou
nada. Por vezes, me deparo com a expressão resumitiva “simples assim” ao cabo
de um raciocínio pretensamente apresentado como a solução para uma dada questão
suscitada ou acontecimento noticiado nas redes sociais, e o “simples assim” me
põe a pensar, se torna para mim um acontecimento (de discurso), portanto, algo
problemático, porque dotado de uma possibilidade de significação. E o que o
“simples assim” parece significar? Significa que não há o que pensar, não há
por que perder tempo pensando, porque não há questão, não há problema algum
para ser pensado. O “simples assim” significa tacitamente o seguinte: o mundo é
transparente, tudo é óbvio demais, não veem? Quem diz “simples assim” diz “dei
a solução simples de um problema que não é verdadeiramente problemático”,
porque não há problema algum aí. Para o senso comum, o mundo não é
problemático, por isso não se dá a pensar, não se dá como acontecimento que
requer o pensamento problematizante. Para o senso comum, as coisas são óbvias,
autoevidentes, transparentes, simples. Portanto, é possível dizer sem pensar.
Quem repisa, compulsivamente, estridentemente, o slogan “mito” num ato de
linguagem exortativo para se referir a Bolsonaro não está pensando; está,
certamente, falando, mas não pensando. Fala-se, grita-se frases de efeito,
palavras de ordem, mas não se pensa. Também não pensa quem diz, por exemplo, que
Bolsonaro está fazendo o melhor pelo Brasil. E por que não pensa? Porque quem o
diz se nega, ao dizer, a pensar o significado do que diz, o significado do
acontecimento que consiste na relação de predicação entre “fazer o melhor pelo
Brasil” e “Bolsonaro”. Não pensa porque incapaz de questionar a adequação dos
termos empregados na relação predicativa. Não pensa porque não pensa o
significado de “fazer o melhor”. O que é “fazer o melhor por alguém”? Pensar
verdadeiramente é dar um salto para além do que é comumente aceito como
evidente, óbvio, indiscutível. Pensar é – repito – adentrar o acontecimento
para pesar, ponderar, avaliar, medir, ver a significatividade do que acontece.
Pensar é ter, por isso, os olhos bem abertos, contemplar, para analisar atentamente,
para observar demoradamente o interior do acontecimento, desvelando, assim a
sua significatividade.
O
que me proponho, portanto, nesta terceira e última parte deste estudo, é
convidar o leitor a pensar a problematicidade da questão política num espaço
dialógico com o modo rasteiro e superficial como ela é tratada no senso comum.
Para tanto, situarei a problematicidade da questão política no domínio de
reflexões teóricas que atravessam a filosofia política moderna[1]. Ao
longo do percurso de minhas reflexões, definirei e discutirei uma série de
conceitos que são indispensáveis a uma discussão política que vise a uma
compreensão mais ampla e profunda do acontecimento político que o libere dos
ferrolhos com os quais ele é trancado no discurso do senso comum.
Debruçar-me-ei
, doravante, sobre a definição de conceitos que precisam estar bem claros numa
discussão política que se pretenda teoricamente bem fundamentada. Entre os
conceitos considerados, estão o de política,
o de poder, o de Estado, o de democracia, o
de sociedade civil e sociedade política (sistema político), o
de Estado Democrático de Direito, o
de direitos civis, direitos políticos, direitos sociais e cidadania.
É nesta etapa de minhas reflexões que trago à baila as contribuições de Nicolau
Maquiavel e Thomas Hobbes para a ruptura moderna com o modo de fazer e pensar a
política, o Estado e o poder na tradição clássica. Na seção final deste artigo,
forneço um recorte do desencanto com a política e do recuo da democracia na
pós-modernidade.
2. Conceitos básicos em filosofia
política
2.1. Política
Segundo
Fukuyama (2013), nossos primos primatas já eram dotados de amplas habilidades
sociais e políticas, antes mesmo de a espécie humana aparecer na cena evolutiva
com seu cérebro dotado de faculdades que favorecem e promovem formas de
cooperação social. Destarte, conforme ensina o autor:
(...)
O estado de natureza podia ser caracterizado como um estado de guerra uma vez
que a violência era endêmica, mas esta era perpetrada menos por indivíduos e
mais por grupos sociais fortemente unidos. O homem não entrou na sociedade e na
vida política em consequência de uma decisão consciente e racional. A
organização comunal veio-lhe naturalmente, embora as maneiras específicas pelas
quais ele coopera sejam influenciadas pelo ambiente, pelas ideias e pela
cultura. (ibid., p. 46).
Fukuyama parece confirmar a posição de
Aristóteles: o homem é naturalmente predisposto a viver numa comunidade
organizada politicamente. Fukuyama, baseando sua análise nos postulados dos
estudos evolucionistas, reconhece existir uma base biológica da política, ou
seja, as condições biológicas nos fornecem os componentes fundamentais para o
desenvolvimento político. Consoante assinala o autor:
(...) Grande parte da natureza humana é constante
em sociedades diferentes. A enorme variação de formas políticas que vemos,
tanto no presente, como no decorrer da história, é, no primeiro caso, produto
da variação no ambiente físico habitado pelo homem. À medida que as sociedades
se ramificam e preenchem diferentes nichos ambientais pelo mundo, desenvolvem
normas e ideias distintas, em um processo conhecido como evolução específica.
Os grupos humanos também interagem uns com outros e esta interação é um fator
de mudança tão forte quanto o ambiente físico. (ibid., p. 63).
Fukuyama adverte, contudo, que a política
surge, originalmente, como luta pela
liderança. Os membros de uma comunidade sentem-se sobremaneira atraídos por
um determinado indivíduo que demonstra grandes habilidades físicas, coragem,
sabedoria ou capacidade de julgar disputas de forma justa. Assim, segundo o
autor, “se a política é uma luta pela liderança ela também é uma história dos
seguidores e da disposição da grande massa de seres humanos para conceder aos
líderes uma posição superior e se subordinarem a eles”. (ibid., p. 60). Em
comunidades socialmente coesas, ou seja, bem-sucedida nos modos de organização
política, essa subordinação das massas ao líder é voluntária e calcada sobre a
crença no direito de governar desse líder. Ainda segundo Fukuyama, o poder
político depende essencialmente do reconhecimento. O problema que se põe aqui
é: até que ponto um líder ou uma instituição é considerado legítimo e pode
exigir obediência de seus súditos? Consoante Fukuyama, “o desejo de
reconhecimento garante que a política jamais será reduzida a um simples
interesse econômico pessoal”. (ibid.). Ademais, “o homem faz julgamentos
constantes do valor intrínseco ou da dignidade de outras pessoas ou de
instituições e se organiza em hierarquias baseadas nessas avalições”. (ibid.). As
pessoas podem seguir um líder ou subordinar-se ao poder de uma instituição
motivadas pelos próprios interesses; todavia, as organizações políticas que
detêm mais poder são aquelas que se legitimam mediante a inculcação de uma
crença mais ampla nos membros da comunidade.
Fukuyama nos dá a conhecer as
características fundamentais das formas complexas de organização social. Estas
características são as seguintes:
1) Os seres humanos são dotados da
aptidão para favorecer parentes e amigos e para estabelecer com eles relações
baseada em trocas de favores. Só mudam essa tendência se forem fortemente
incentivados a fazê-lo;
2) Em função de sua capacidade de
abstração e de teorização, graças à qual os seres humanos produzem modelos
mentais de causalidade, estendendo-os inclusive a forças invisíveis ou
transcendentes, eles desenvolvem a religião que funciona como componente
significativo de coesão social;
3) O homem também tem a tendência de
seguir normas com base em emoções e não na razão. Por isso também tem a
tendência a assentir em modelos mentais e nas regras deles derivadas que são
vistas como regras dotadas de valor objetivo;
4) O homem aspira ao reconhecimento intersubjetivo,
ou ao de seu próprio valor, ou do valor de seus deuses, suas leis, seus
costumes e modos de vida. Uma vez que seja concedido o reconhecimento, ele se
torna o fundamento da legitimidade e torna possível o exercício da autoridade
política.
Fukuyama
chama a atenção para o fato de que tanto a aptidão para favorecer parentes
quanto o altruísmo recíproco não são propriedades exclusivas da espécie humana.
Os seres humanos compartilham essas predisposições naturais com outras muitas
espécies de animais. Tais predisposições explicam as formas de cooperação que
se verificam entre pequenos grupos da mesma espécie. Em seus estágios
embrionários, a organização política humana é semelhante aos modos de vida de
bandos observados em primatas superiores como chimpanzés. Trata-se de uma forma
padrão de organização social. A tendência a favorecer amigos e parentes pode
ser desencorajada sempre que a introdução de novas regras e incentivos se faz
necessária. Por exemplo, pode-se superar essa tendência, sempre que é
necessário contratar um indivíduo qualificado em vez de um amigo.
Cumpre ainda acrescentar que o
desenvolvimento dos sistemas políticos se faz acompanhar da transferência do
reconhecimento, antes relacionado a indivíduos, para instituições, ou seja, para
regras ou padrões de comportamento que perduram ao longo do tempo, como a
monarquia britânica ou a Constituição dos EUA. A ordem política se baseia na
legitimidade e na autoridade que decorrem do domínio legítimo. Consoante mostra
Fukuyama, “a legitimidade implica que as pessoas que compõem a sociedade
reconhecem a justiça fundamental do sistema e estão dispostas a respeitar suas
regras”. (ibid., p. 60). Nossas sociedades contemporâneas estão fundadas na
crença de que a legitimidade seja conferida por eleições democráticas e pelo
respeito à lei. Evidentemente, porém, a democracia não foi a única forma de
governo que, historicamente, conseguiu legitimidade. É importante atender no
modo como se constitui o poder político, considerando-se o seguinte excerto de
Fukuyama.
O poder
político se baseia na coesão social. Esta pode se originar de cálculos
egoístas, mas em geral este não é suficiente para induzir os seguidores a se
sacrificar e morrer pelo bem de suas comunidades. O poder político é produto não apenas dos recursos e do número de
cidadãos que uma sociedade pode comandar, mas também do grau de reconhecimento
da legitimidade dos líderes e instituições. (ibid., grifos meus).
Vemos,
a partir do exposto, descortinar um horizonte de compreensão da política mais
amplo do que as formas demasiado restritas como o senso comum de nossa
sociedade a entende. A política pode
ser definida como a arena de realização ideológica da sociedade, porquanto,
mediante a política, ganham corpo os esforços de construção de identidades
comuns nas interações subjetivas. Mas a política também pode ser definida como
o encontro entre as formas de conceber o espaço de decisão sobre o que é comum.
Decerto, o solo da política é o solo da necessidade e da inevitabilidade do
convívio. Portanto, a política diz
respeito aos modos de organização do espaço público e tem como objetivo
garantir o convívio social.
Como
a política se ocupa do que pertence à cidade e do que diz respeito ao cidadão,
ela compreende também as formas de gerenciamento da coisa pública, dos recursos
a ela ligados; compreende também as estratégias destinadas à definição de
critérios para o alcance dos fins comuns. Pode-se também pensar a política como
uma atividade social que recobre as forças que impulsionam o desenvolvimento
social. A política também recobre o espaço de definição das ideologias
predominantes na constituição da estrutura social. É claro que a política
também tem a ver com a gestão do convívio e do conflito. Como lembra Fukuyama,
sociedade e conflito existem desde que existem seres humanos, já que estes são
animais, ao mesmo tempo, sociais e competitivos. Fundamentalmente, a política
está intimamente ligada à distribuição, reprodução e manutenção do poder, uma
vez que governantes e governados se relacionam de tal modo, que uns distribuem
poder aos outros. A questão do poder se torna, por isso, extremamente
importante para compreender, com exatidão, as transformações pelas quais passou
a política na era moderna. Por isso, nosso próximo tema será o do poder. Antes,
porém, convém ajuntar algumas considerações sobre a relação entre política e
Direito, já que o Direito é intimamente dependente do modo de organização
política. Diz-se melhor: política e direito precisam coexistir de modo articulado.
O
Direito compreende um conjunto de normas jurídicas que regula o comportamento
humano. A proximidade da política com a esfera jurídica é patente nas leis,
decretos, portarias, órgãos burocráticos, impostos, taxas, instituições
públicas, que são todos criações humanas que dizem respeito ao que é comum e à
construção da coisa pública. Sem a política, o Direito não passaria de um campo
instituído de formalidades injustas, expressas em atos normativos, em ações de
governo ou em decisões judiciais e administrativas, ou de fixação de regras sem
autenticidade e desprovidas de eficácia. A experiência jurídica depende,
portanto, da experiência política, na medida em que esta nutre o direito de
legitimidade. Por outro lado, a política, se praticada sem o direito, degenera
em corrupção e na ditadura.
2.2. O Poder
Marx
Weber define o poder como a
probabilidade de um agente social, político ou um grupo impor sua própria
vontade eficaz mesmo contra toda resistência de seus destinatários, numa
relação social, qualquer que seja o seu fundamento. Poder, portanto, implica
imposição de uma vontade eficaz e resistência a essa imposição. Em toda prática
de poder, há resistência por parte de indivíduos ou grupos sobre cuja vontade
recai a força coercitiva do poder. Para Weber, poder é imposição de um centro
ou núcleo de padrões de conduta que devem ser seguidos independentemente dos juízos
de valor que se façam acerca deles. Claro é que esta maneira de conceber o
poder não é a única possível. Como já sublinhei na primeira parte deste
trabalho, uma das lições mais importantes que a vida intelectual nos ensina é
que o real é mais complexo do que o conhecimento que podemos ter dele. Como a
realidade não é simples e nem transparente, segue-se evidente que os conceitos
ou as categorias com os quais buscamos torná-la inteligível não são
semanticamente unívocos e simples. Como lembra Han (2019), o conceito de poder
está imerso num caos teórico e há várias
representações divergentes desse conceito. Não tenho aqui a pretensão de conferir
alguma ordem a esse caos; mas aceno para as interpretações divergentes que
acompanham a história do desenvolvimento desse conceito.
O
conceito de poder, se situado relativamente à oposição que Aristóteles
estabelece entre ato (ergon) e potência (dynamis),
designaria a potência, que é uma virtualidade, ou uma capacidade determinada
que está em condições de exercer-se, de tornar-se ato efetivo, a qualquer
momento, ou desde que as condições externas lhe sejam favoráveis. Por exemplo a
capacidade que tem um arquiteto para construir uma casa é seu poder. Ou ainda,
se numa democracia, um partido tem poder político, é porque tem a capacidade, a
potência para mobilizar certo número de eleitores, ou porque tem a capacidade
de deflagrar greves, etc. Poder, no sentido de potência, portanto, recobre bem
a definição que Weber nos dá dele. Mas poder pode significar mais do que
potência (Macht, em alemão). O
conceito de poder pode recobrir a
noção de força. Assim, o poder é a
expressão da determinação de uma força de um modo muito preciso. Diremos,
portanto, que um partido tem poder, quando tem força para fazer articulações
políticas, quando tem força para mobilizar sua militância, etc. A força do
poder pode ser definida como sua dominação.
Um poder domina ou é dominante quando tem a probabilidade de fazer com que uma
ordem com dado conteúdo específico seja seguida por um dado grupo de pessoas. É
claro que as relações de dominação ou de poder não exaurem a totalidade do
sistema de comportamento social que é moldado e imposto. Os costumes, leis,
preconceitos, crenças, paixões coletivas também contribuem para a instituição
da ordem social. Se alguém tem poder, é preciso que, em algum lugar, existam
indivíduos que sejam desprovidos de poder. Hume dizia que os homens se acostumaram
muito rapidamente à obediência cívica. Logo, há muito tempo, o poder é
reconhecido como uma fatalidade, como uma força a que devemos obedecer. Assim,
no senso comum, ser cidadão equivale a ser obediente aos poderes vigentes numa
sociedade.
Para
Arendt (2016), entretanto, o poder não pode ser identificado com a violência. O
poder é expressão de um consenso e se exerce pelo discurso, pela capacidade
democrática de compartilhar espaços públicos comuns. O poder é uma habilidade
humana para agir em grupo. O poder não é uma qualidade de um único indivíduo. O
poder, para Arendt, é algo inerente a todo agrupamento humano, a toda e
qualquer sociedade.
Pode-se
entender o poder tanto como o terreno da dominação, da injustiça e da opressão,
quanto como o da administração da vida em comum, da justiça e da liberdade.
Bobbio advoga que a questão fundamental da política é o poder. A filosofia
política e as ciências políticas,
segundo esse autor, se ocupam preferencialmente do modo como o poder é
adquirido, como é conservado, como é exercido, defendido e perdido. Demais, a
filosofia política está interessada também em compreender como podemos nos
defender contra ele.
Thomas
Hobbes (1588-1679), filósofo do absolutismo e integrante de um grupo de autores
do jusnaturalismo racional dos séculos XVI, XVII e XVIII, famoso por sua obra o Leviatã, advoga que o Estado é a
entidade que mais poder é capaz de concentrar, porque o poder é a questão
central de toda política. Concentrando todo o poder, o Estado pode proteger a
sociedade e aperfeiçoar o convívio humano. Para Hobbes, o maior dos poderes humanos
é o conjunto dos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só
pessoa, natural ou civil, a quem eles delegam o uso de todos os seus poderes
por força de sua vontade. Essa única pessoa que concentra todos os poderes
delegados é o Estado. O Estado representa, assim, a forma pela qual se consegue
obter a pacificidade no convívio humano perante a ameaça de dissolução, de
anarquia, de destruição que podem levar os homens a retornar ao estado de
natureza belicoso. Hobbes é um pensador que propôs uma doutrina política sobre
a máxima concentração do poder, sobre a máxima unificação do poder, sobre a
máxima integração do poder na pessoa do soberano.
Mas
é possível pensar o poder não como um atributo exclusivo ou restrito ao Estado.
Foucault (1926-1984), ao contrário de Hobbes, pensa o poder como poder criador,
produtor, mais do que como poder coercitivo ou repressivo. O poder produz
discursos, saberes, normas, segundo Foucault. A discussão sobre o poder deve
ser conduzida para a questão sobre o que somos a partir do modo como “somos
feitos”. Trata-se, segundo Foucault, de pensar o poder na esfera de nossa
relação com o outro, pois os poderes se espraiam em várias esferas da estrutura
social e operam a normalização, a repressão, o encarceramento dos sujeitos
sociais, constituindo-os como tais. O poder de que fala Foucault é um poder
difuso, capilar, fugidio, mas profundamente constitutivo de modos de ser e
estar individuais em coletividade. Age-se conforme o poder e estamos o tempo
todo cercado pelo poder nas relações intersubjetivas: na família, na escola, no
hospital, nos presídios, na empresa, em face de um juiz, etc. Não percebemos
sua presença como elemento de determinação e constituição do sujeito. Assim,
para Foucault, o Estado não é o poder, mas um dos momentos de aparição, entre
outros, do poder, porque as relações humanas no cotidiano são permeadas pelo
poder e sofrem continuamente uma inflação dele. O poder, para Foucault, é
reticular, é coextensivo ao funcionamento do corpo social. Numa passagem
emblemática de Microfísica do Poder
(2017), Foucault nos esclarece sobre a sua concepção de poder:
O
que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele
não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas,
induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma
rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma
instância negativa que tem por função reprimir. (ibid., p. 45).
2.3.
O pragmatismo político de Maquiavel
Nicolau
Maquiavel (1469-1527) é, sem dúvida, um marco e uma referência na história do
pensamento político. A ele devemos a separação entre as esferas ética e
política, que a tradição grega uniu. No vocabulário do senso comum, seu nome
ficou associado, através da forma nominal maquiavélico,
a práticas ou atitudes dissimuladas, diabólicas, inescrupulosas, falsas. Sem
embargo dessa herança pejorativa e formada em preconceitos seculares, Maquiavel
produziu uma obra de valor filosófico inestimável, que representa uma
modificação fundamental na metodologia de abordagem da questão da política.
Maquiavel inaugura uma nova ética para a política, começando por dissociar
aquilo que a tradição grega unia: a ética e a política.
A
preocupação basilar de Maquiavel é com o que os homens efetivamente fazem ou
podem fazer quando estão inseridos nas esferas do poder. O maquiavelismo
pretende orientar as práticas dos governantes, levando em consideração as
próprias maneiras pelas quais os seres humanos se relacionam com o poder.
Maquiavel não deixou de reconhecer que o desmando, a vaidade, a corrupção, o
favorecimento, a crueldade, o egoísmo, a arrogância, o unilateralismo, o
autoritarismo, o interesse particular, o gozo, etc. acompanham o poder.
Maquiavel preocupou-se, sobremaneira, em analisar o poder e em propor maneiras
de conquistá-lo, administrá-lo e conservá-lo. Para ele, os homens de poder
costumam ser medíocres nessas tarefas, pois ignoram comumente as técnicas de
gerenciamento do poder. Maquiavel aspirava à sistematização de seus saberes
acerca dessas técnicas, compondo, assim, uma doutrina que orientasse a
atividade daqueles que ocupam funções no governo. Em suma, Maquiavel
preocupava-se com o modo como o governante deve praticar a política e como deve
exercer seu poder. Por isso, ele propõe uma ética de fins para a política, e
não de meios. Tudo é válido quando o que está em jogo é exercer e manter o
poder.
Embora
o poder não se exaure na força, Maquiavel reconhecia que há muita força no
poder. O poder e a força não são, para ele, idênticos, mas o poder precisa da
força para consolidar-se e preservar-se. A força não pode ser negada ao poder,
sob pena de este fragilizar-se e decair em face do inimigo. De fato, Maquiavel
ensina que o príncipe ou governante deve aliar política à guerra, e deve-se
esforçar por conquistar a confiança de seus súditos. A confiança se conquista
pela aparência, pela demonstração de uma aparente amizade ao povo. Afinal, o
povo não quer ser comandado ou oprimido pelos poderosos, nem estes devem
desejar comandar e oprimir o povo. Maquiavel aconselha a que os governantes
mantenham a estima do povo e busquem conquistar a estima daqueles que não
anuíram ao processo de sua ascensão ao poder. Segundo Maquiavel, as leis e as
armas são os instrumentos de que dispõe o príncipe para agir. As boas leis
dependem das boas armas, donde seu interesse na análise do tipo de exército que
o príncipe pode utilizar.
Maquiavel
não nega a influência da fortuna (acaso) nos negócios humanos, e critica a
imagem de um deus cuja vontade governaria inevitavelmente o destino dos homens.
Ele admite que a ação humana é condicionada não somente pela estrutura social
previamente existente, como também pelas características dos agentes
envolvidos. Maquiavel nega, no entanto, que a fortuna dirija a ação dos
governantes, tampouco admite que os agentes políticos devam se manter
engessados no conformismo e na resignação. Ainda que, não raro, os homens não
consigam resistir à força das condições impostas pela fortuna, eles não devem
esquivar-se de ajustar-se a elas, viabilizando os melhores meios para a ação.
Sem dúvida, a fortuna determina as condições estruturais em que a ação se
realiza, mas deixa aos homens uma margem considerável para a atuação.
Portanto,
para Maquiavel, aquele que é capaz de auferir êxito dentro de uma conjuntura
estabelecida pela fortuna, é considerado um homem dotado de virtú. Virtú
é o conjunto de qualidades, tais como percepção da realidade, compreensão das
circunstâncias, habilidade de avaliação do momento, aptidão para se ajustar às
diferentes situações, capacidade de adotar medidas extraordinárias, - que não
se confundem com as virtudes consagradas pela tradição filosófica. Tais
qualidades que compõem a virtú permitem ao homem alcançar
seus objetivos a partir das condições fixadas pela fortuna.
Sem
virtú,
o príncipe não pode manter-se no poder. A ideia de virtú é central na
doutrina de O Príncipe (1513-1514),
escrito político mais importante da obra de Maquiavel. A virtú é uma habilidade
indispensável àquele que pretende conquistar o poder e fazê-lo reconhecido por
aqueles que governa.
Por
fim, cumpre acrescentar que a tradição, desde os antigos gregos e os medievais,
afirma que, para a fruição da vida civil (vivere
civite), era necessário instaurar a concórdia e a unidade. Maquiavel, por
seu turno, pensa que a vida civil só pode ser mantida no espaço dos conflitos,
como fez Roma, já que os conflitos são inerentes ao corpo político. Para
Maquiavel, em todo corpo político predominam dois humores ou desejos: o desejo
dos grandes de mandar e dominar, e o desejo do povo de não ser dominado nem
oprimido. Esses dois humores ou desejos podem ser complementares, já que um
implica o outro indefinidamente. Se eles podem ser afirmados conjuntamente, não
podem ser, porém, satisfeitos simultaneamente. Logicamente, a plena realização
de um dos desejos implica a impossibilidade de satisfação do outro: se o desejo
dos governantes de dominação for totalmente realizado, o desejo do povo de não
ser dominado não pode ser realizado. Maquiavel propõe, assim, que se mantenha o
equilíbrio entre os dois desejos. Nenhum deles deverá predominar no corpo
político, visto que, se assim for, o corpo como um todo se degenera e perece.
Nos principados, a pluralidade de humores ou desejos é mediada pelo príncipe, a
quem compete mantê-los em equilíbrio. Nas Repúblicas, o equilíbrio deve ser
garantido pela Constituição e pelas leis, de sorte que os homens devem ser
sistematicamente desencorajados de recorrer à força para satisfazer seus
desejos, pois, se movidos pela avidez da satisfação irrefreável, acabariam por
chafurdar-se num estado de licenciosidade. Por isso, é necessário criar
instituições que impeçam a supressão dos conflitos entre os desejos e que
permitam a expressão mútua deles. A política, para Maquiavel, depende da
criação de mecanismos capazes de lidar com as inevitáveis divergências
decorrentes da dessemelhança dos desejos. Em suma, a política deve construir
espaços e meios públicos nos quais e pelos quais os conflitos engendrados pelos
desejos distintos do governante e dos governados possam ocorrer, sem que se
oblitere a possibilidade de convivência entre os membros constituintes da
comunidade política.
2.4.
Estado
Comumente, as pessoas falam de Estado,
da soberania do Estado brasileiro, sem ter clareza sobre o que é o Estado. Por
vezes, elas confundem Estado com Governo, o que é um erro. Por isso, é preciso
colocar a questão “o que é o Estado?”. Uma das maneiras de defini-lo é como organização dos meios políticos, como sistematização do processo predatório sobre
um determinado território. Decerto, o Estado nasceu da conquista e da
exploração. Ele nunca foi criado por um contrato social, como imaginavam os
contratualistas, como Hobbes, Locke e Rousseau. Como ensina Rothbard (2019), “o
Estado é aquela organização na sociedade que busca manter um monopólio do uso
da força e da violência em uma determinada área territorial; especificamente, é
a única organização na sociedade que obtém sua receita não pela contribuição
voluntária ou pelo pagamento por serviços providos, mas através da coerção”.
(ibid., p. 16). Destarte, “o Estado provê um canal legal, ordenado e
sistemático para a predação da propriedade privada; ele garante uma provisão
certa, segura e relativamente “pacífica” para a casta parasística na
sociedade”. (ibid., p. 23). O Estado exerce o monopólio do crime. Ele proíbe o
homicídio privado, mas organiza o assassinato em escala colossal. Ele pune o
roubo cometido por um indivíduo, mas assenhoreia-se de tudo que quiser. Do
ponto de vista sociológico, pode-se definir o Estado como um instituição
social, imposta por um grupo vitorioso de homens sobre um grupo derrotado, com
o único fito de regular o domínio sobre o grupo derrotado e de garantir o poder
ao grupo vitorioso e a ordem contra a revolta interna e contra ataques
externos. Na prática, o domínio do grupo vitorioso não tem outro propósito
senão a exploração econômica dos grupos derrotados. Há, segundo Rothbard, a
tendência inerente ao Estado de ultrapassar os limites constitucionais. Por
isso, adverte-nos o autor:
Uma constituição escrita certamente possui muitas
e consideráveis vantagens, mas é um grande equívoco supor que a mera inserção
de provisões para restringir e limitar o poder do governo, sem dotar àqueles para cuja proteção elas foram inseridas com os meios
para assegurar a sua observância (itálico meu), será suficiente para evitar
que o partido maior e dominante abuse de seus poderes. (ibid., p. 52, ênfase no
original).
Devemos suspeitar de todo discurso oficial que
nos inculque a crença de que “o Estado somos nós”, de que o Estado é uma grande
família humana. Segundo o autor, com o desenvolvimento da democracia moderna, a
identificação do Estado com a sociedade foi reforçada, a ponto de hoje, no
senso comum, ouvirmos apelos sentimentais, tais como “nós somos o governo”.
Tais apelos, além de serem um engodo, violam os princípios do bom senso. Nós
não somos o governo. Como adverte o autor, “se “nós somos o governo”, então,
qualquer coisa que um governo faça a um indivíduo não é apenas justa e não
tirânica, mas também “voluntária” de parte do indivíduo em questão”. (ibid., p.
14). Nós não somos o governo, se o fôssemos a dívida pública enorme que se paga
pela tributação sobre um grupo para benefício de outro, deveria ser entendida
como uma dívida que devemos a nós mesmos. Por isso, é necessário rechaçar a
crença ingênua e vulgar de que nós somos o governo e de que os políticos nos
representam, como atesta o autor:
Devemos, portanto, enfatizar que “nós” não somos o governo; o governo não somos “nós”. O governo não
“representa” de nenhuma forma concreta a maioria das pessoas. Mas, mesmo se
assim fosse, mesmo se 70% das pessoas decidissem assassinar os 30% remanescentes,
isso ainda seria assassinato e não um suicídio voluntário por parte da minoria
executada. (ibid., p. 15).
No senso comum da sociedade
brasileira, especialmente, ainda se reproduz a falácia democrática segundo a
qual os políticos são nossos representantes. Para termos uma ideia mínima de
quão falsa é essa crença, bastaria observar que o verdadeiro representante de
um indivíduo está sempre sujeito às suas ordens, pode ser demitido a qualquer
momento e não pode agir contrariamente aos interesses e desejos daquele de quem
é representante. Obviamente, o representante em uma democracia nunca satisfaz
essas pré-condições básicas, as únicas correspondentes a uma sociedade
libertária. Para a maioria das pessoas, sobretudo se vivem em sociedades
historicamente marcadas por abismos socioeconômicos entre os mais ricos e os
mais pobres, como no caso da sociedade brasileira, o Estado é considerado como
uma instituição de serviço social. Segundo Rothbard,
(...) Alguns teóricos veneram o Estado como
expressão máxima da sociedade; outros o consideram uma organização aprazível,
embora muitas vezes ineficiente, cujo intuito é alcançar objetivos sociais;
porém, quase todos o consideram um meio necessário para alcançar os objetivos
da humanidade, um meio a ser usado para concorrer com o “setor privado” e, com
frequência, superá-lo na disputa por recursos. (ibid., p. 13-14).
A
visão de um Estado provedor ou assistencialista acalenta o imaginário da maior
parte da população brasileira, cotidianamente oprimida e violentada por esse
mesmo Estado de quem espera cumpra com a função que justifica sua existência:
servir aos interesses comuns, mormente das classes subalternas,
socioeconomicamente vulneráveis. Mas acontece que o Estado usa a força e a
violência contra essa mesma população a quem deveria servir para obter e
ampliar a sua receita. Assim, o Estado passa a regular e ditar as outras ações
de seus súditos.
Cuido ser extremamente importante,
para uma discussão política bem embasada, que não se confunda Estado com
Governo. O termo Estado, usado para se referir aos Estados modernos, data do
século XIII. O Estado moderno e ocidental começa a ganhar forma no fim da Idade
Média. Por Estado, então, entende-se, hoje, de modo bastante geral, o conjunto
das instituições que controlam e administram uma nação. Foi na Idade Média, que
o poder, antes fragmentado entre diversos nobres e duques, ou senhores
governadores de terras, voltou a se concentrar nas mãos dos reis. Antes da
formação de um governo centralizado, a Europa carecia de Estados ou nações. Os
duques não tinham muito poder legislador, visto que a legislatura da Igreja,
centrada em Roma, detinha o monopólio do saber e tinha uma burocracia própria,
bem distribuída em vários ducados. Destarte, a Igreja exercia mais controle
legislativo do que esses governadores. O clero e a aristocracia local é que
detinham o controle dos meios de repressão, os quais eram compartilhados com os
duques. Além da centralização do poder numa dada instituição, havia outra
condição para que se formasse o Estado moderno tal como ele se apresenta a nós
hoje:
O modelo de Estado como o conhecemos necessita
ainda que haja um sistema unificado de coleta de impostos e um conjunto de
crenças entre os cidadãos – como a de que alguns valores fundamentais os unem,
bem como a noção de que existe uma história ou características comuns que os
assemelha a seus concidadãos e os separa dos demais. Estado, no caso, se refere a todos os agentes políticos, às
instituições públicas, aos próprios princípios e lei de regimento sintetizados,
na maioria dos casos, em uma Constituição: ele inclui o governo e a burocracia
que regem um povo num determinado território. (Bragança, 2019, p. 18).
No
passo acima, colhido de Bragança (2019), diz-se que o Estado inclui o governo;
mas inclusão não é identificação. O Estado não se identifica com o Governo. O
Estado moderno se constituiu, na Europa, com o enfraquecimento do absolutismo,
a saber, com o combate ao poder absoluto do rei (“O Estado sou eu”, teria dito
o rei francês Luís XIV, em pleno Absolutismo), e com a formação de uma
estrutura burocrática indispensável ao funcionamento desta forma emergente de
Estado. Burocracia é, aliás, uma instituição que, no Brasil, é sinônimo de
aborrecimento, morosidade, dados os seus entraves, suas exigências sem fim que
parecem dificultar a vida do cidadão comum. Quando pensamos em burocracia,
pensamos nas repartições públicas, cartórios, escritórios de despachantes, em
formalidades como papéis, assinaturas e carimbos. Mas a burocracia envolve
muito mais que isso. Embora a burocracia nos pareça sempre funcionar mal, ela é
um acontecimento fundamental do ponto de vista sociológico. Ela é uma estrutura
caracterizada por regras e procedimentos explícitos e regularizados, por uma
divisão de reponsabilidades e especialização do trabalho, por um regime de
hierarquia e relações impessoais destinadas a garantir a administração das
diversas áreas do Estado. De fato, o Estado moderno é altamente burocratizado;
mas essa ampla burocratização do Estado responde à maior complexidade da
organização social. A burocracia é a esfera que aplica as regras estabelecidas
pelo Estado de acordo com a sua Constituição. O corpo burocrático se constitui
de técnicos, em sua maioria, não eleitos, mas nomeados pelo governo, cuja
função é dirigir áreas fundamentais e indispensáveis à implementação de
projetos do governo. E assim se multiplicam as secretarias e secretários, as
pastas e seus ministros... Os técnicos de carreira profissional não têm mandato
e podem perdurar por vários governos. O problema é que a burocracia pode
exercer um poder igual ou mesmo maior que o governo, razão por que diversos
países estabeleceram uma Constituição que dá poderes ao governo de cercear o
poder da burocracia, e vice-versa. Trata-se de um jogo de forças entre o poder
governamental e o poder burocrático essencial ao equilíbrio das forças públicas
encarregadas da administração do Estado.
Contemporaneamente,
o governo recobre o agente político
eleito para administrar as instituições do Estado, durante determinado período.
No presidencialismo das maiores democracias do mundo, o governo dura quatro
anos. O governo é o que elegemos a cada quatro anos, é o que pode mudar de
slogan e de lado. O governo faz acordos políticos com determinados partidos a
fim de garantir sua governalibilidade. O governo é transitório, mas o Estado é
atemporal. Governos podem influenciar a maneira como o Estado se organiza, e
isso é especialmente importante saber sempre que alguém alega que se o Estado
é, por natureza, opressor (como Engels o pensava), o governo vigente deve,
necessariamente, sê-lo. Mas isso é confundir Estado com Governo. Governos podem
mudar radicalmente a orientação ideológica do Estado e certas regras
fundamentais deste. E o Estado, por seu turno, limita os poderes dos governos,
assim como determina que tipos de governos podem surgir para a sua regência. Em
suma, Governos são composições transitórias de atores políticos e estruturas de
poder que administram o Estado. O Estado, por seu turno, é o conjunto de
instituições públicas, mais ou menos duradouras, que representam e organizam a
população que habita um território. Escolas, hospitais, presídios, Exército,
polícia são instituições de Estado, gerenciadas pelo governo em exercício num
dado período histórico. Por isso, causa desagrado aos próprios agentes públicos
e à opinião pública quando Bolsonaro se refere ao Exército como “meu Exército”.
Governos são, pois, provisórios, e, em países com regime democrático e eleições
frequentes, são mudados com regularidade. No Brasil, os governos duram apenas
quatro anos, ou até menos, segundo o comportamento dos políticos e o anseio
popular, ou a vontade de outras forças econômicas poderosas. Mas Bragança
faz-nos lembrar o seguinte:
(...)
em países presidencialistas como o Brasil, a distinção entre Estado e governo
não é clara. Acrescente a isso o fato de que a maioria dos presidentes de
países presidencialistas tem todo o interesse de se perpetuar no poder ou de
perpetuar suas políticas de governo além de seus mandatos. Para tal objetivo
trabalham para tornar uma política temporária de governo em uma política
permanente de Estado. (ibid., p. 212).
Casara
(2020, p. 61), por sua vez, recorda que “o Estado é, em essência, uma formação
histórica voltada à organização jurídica
do poder; entretanto, ao longo da história, nem sempre essa “organização
jurídica” permitiu a contenção do poder”. Novamente, o tema do poder se impõe
se quisermos compreender a natureza do Estado. O sucesso e a estabilidade
políticos de uma sociedade depende da estrutura de Estado e dos poderes que
esse Estado confere ao governo e à burocracia. Muito poder concedido aos
governos e à burocracia significa sujeitar a sociedade à tirania do Estado.
Pouco poder conferido ao governo e à burocracia, por outro lado, significa
restringir as ações necessárias à proteção da sociedade contra o poder da
soberania constituída. Todo governo tende a querer mais poder e controle sobre
a coisa pública; ele não é bem disposto para conviver com limitações impostas
por outras instituições independentes da estrutura do Estado. Foram raros os
períodos na histórias do Ocidente em que governos abdicaram do poder ou
reforçaram a independência de outras instituições de Estado que estavam fora do
escopo de controle do governo.
Fukuyama
(p. 30) observa que o Estado “foi a primeira fonte centralizada de autoridade
que detinha o monopólio efetivo do poder militar sobre um território”. Cabia, doravante, ao Exército e à polícia do
Estado garantir a paz. Com o Estado, as terras já não eram mais propriedade de grupos
de parentes, mas de indivíduos, que conquistaram cada vez mais o direito de
vendê-las e comprá-las como quisessem. Seus direitos a elas eram garantidos não
por parentes, mas por tribunais e sistemas jurídicos com o poder de resolver as
disputas e compensar as injustiças.
Segundo Casara, casos há em que o
Estado se submete a leis que funcionam como limites ao exercício do poder.
Noutros casos, o que se verifica é que a legislação estimula a ampliação do
poder estatal. Nesses casos, o que temos são apenas um simulacro de limites
fixados ao exercício de poder. Por isso, só formalmente se pode falar na
existência de um Estado de Direito.
2.5.
Democracia: sociedade civil e sociedade política
A Grécia do século V a.C. é
considerada pela historiografia oficial o berço da democracia ocidental, mas
Fukuyama diverge da opinião historicamente hegemônica. Para ele, os Estados da
Atenas do século V a.C não eram liberais, mas comunitários e não respeitavam a
privacidade nem a autonomia dos seus cidadãos. Por isso, o governo praticado
naquele tempo seria melhor definido, na sua opinião, como um “republicanismo
clássico”. Nas palavras do autor, lemos o que se segue:
Os gregos recebem normalmente o crédito de terem
inventado a democracia, na qual os governantes não eram hereditários, mas
escolhidos pelo voto. A maioria das sociedades tribais também relativamente
igualitária e elege seus governantes, mas os gregos foram além e introduziram
um conceito de cidadania baseado em critérios políticos em vez de parentesco. A
forma de governo praticada em Atenas no século V a.C., ou sob a república
romana, provavelmente é mais bem descrita como “republicanismo clássico”, uma
vez que os direitos eram concedidos apenas a um número limitado de cidadão e
havia grandes distinções entre classes, que excluíam da participação política
um grande número de pessoas (inclusive muitos escravos). (op.cit., p. 35).
Que a democracia da Atenas do século V
a.C. era ainda embrionária em termos da ampliação dos direitos civis e
políticos já o sabemos, mas o que me interessa é determinar os aspectos
fundamentais do regime democrático – aspectos estes quase sempre ignorados pelo
senso comum. Desde já, faz-se mister dizer o seguinte: a democracia não se define,
essencialmente, pelo direito ao sufrágio universal. Segundo Touraine (1996, p.
25), “o regime democrático é a forma de vida política que dá maior liberdade ao
maior número de pessoas que protege e reconhece a maior diversidade possível”. Para
este autor, o que define a democracia não é o governo da maioria, “mas antes de
tudo o respeito pelos projetos individuais e coletivos, que combinam a
afirmação de uma liberdade pessoal com o direito de identificação com uma
coletividade social, nacional e religiosa particular”. (p. 26). Ademais, a
democracia não se define apenas pelo respeito às leis, mas sobretudo pela
formação de uma cultura política. A cultura democrática se define pela
igualdade. Portanto, “a cultura democrática só pode surgir se a sociedade
política é concebida como uma construção institucional cujo objetivo principal
é combinar a liberdade dos indivíduos e coletividades com a unidade da
atividade econômica e das regras jurídicas”. (p. 29). A cultura democrática
expressa o esforço de combinação entre unidade e diversidade, liberdade e
integração. O autor lembra também a importância da autonomia do sistema
político para a instituição da democracia. Na democracia, é preciso distinguir
entre Estado, sociedade política (ou sistema político) e sociedade civil. A
democracia supõe essa distinção. Se o Estado for confundido com o sistema
político, a multiplicidade dos interesses sociais passa a ficar subordinada à
ação unificadora do Estado. Se, por outro lado, confundimos sociedade política
com sociedade civil, deixamos de perceber como se pode construir uma ordem
política e jurídica que não se reduza à simples reprodução dos interesses
econômicos dominantes. Portanto, a condição central para a formação da
democracia é a separação entre a sociedade civil, a sociedade política (ou
sistema político) e o Estado. A democracia só pode existir caso as lógicas
próprias da sociedade civil e do Estado, que são distintas, forem reconhecidas.
Ademais, a democracia existe na dependência da existência de um sistema
político autônomo em relação tanto à sociedade civil quanto ao Estado,
consoante ensina Touraine:
Isso lembra que a democracia não é um modo de
existência da sociedade inteira, mas da sociedade política e que, ao mesmo
tempo, o caráter democráticos da sociedade política depende de suas relações
com a sociedade civil e com o Estado. Relações de dupla dependência, o que se
opõe à concepção hegemônica do sistema político defendida pelos partidários do
contrato social; mas também relações de autonomia que dão às instituições
políticas um papel que supera de longe o de um honesto corretor e que o
transforma no elemento central de integração da sociedade e da manutenção da
ordem pública. (ibid., p. 67).
Segundo Touraine, “chamamos
democrática a sociedade em que os atores sociais orientam seus representantes
políticos que, por sua vez, controlam o Estado”. (p. 51). A democracia assenta
na limitação do poder do Estado. Por Estado,
Touraine entende “os poderes que elaboram e defendem a unidade da sociedade
nacional diante das ameaças e problemas externos ou internos, em relação também
ao seu passado e futuro, portanto, à sua continuidade histórica”. (p. 63). O
Estado é mais que um poder executivo; é um poder administrativo. Por seu turno,
o sistema político ou sociedade política tem por função “elaborar
a unidade a partir da diversidade, e, por conseguinte, subordinar a unidade às
relações de força que existem no plano da sociedade civil, reconhecendo o papel
dos partidos políticos que se interpõem entre grupos de interesses ou as
classes e o Estado”. (ibid.). Por fim, a sociedade
civil não pode ser reduzida aos interesses econômicos, pois constitui “o
domínio dos atores sociais que são orientados por valores culturais e, ao mesmo
tempo, por relações sociais, muitas vezes, conflitantes.” (ibid.). A sociedade
política só pode ser criada, caso se estabeleça a separação entre a sociedade
civil e o Estado. A democracia afirma a autonomia do sistema político, bem como
sua capacidade de estabelecer relações com outros dois níveis da vida pública,
tornando possível que a sociedade civil legitime o Estado.
A democracia não significa o poder do povo,
expressão tão confusa que é interpretá-la em todos os sentidos e, até mesmo
para legitimar regimes autoritários e repressivos; mas significa que a lógica
que desce do Estado para o sistema político e depois para a sociedade civil
seja substituída por uma lógica que vá de baixo para cima, da sociedade civil
para o sistema político e daí para o Estado; isso não tira a autonomia do
Estado ou do sistema político. (ibid., p. 64).
É no sistema político que a democracia
se realiza. O Estado, em si mesmo, não é democrático. Nenhuma das funções
fundamentais do Estado exige a democracia. Por outro lado, o pensamento liberal
preparou a democracia, ao rejeitar a identificação do Estado com a religião.
Mas aqui cabe uma ressalva: há regimes liberais que não são democráticos. E a democracia,
no liberalismo, fica limitada a um único de seus aspectos: a limitação do
poder. Ademais, como observa, Touraine, "a concepção liberal de democracia
se limita a garantir a livre escolha dos governantes, sem se preocupar com o
conteúdo da ação destes”. (p. 69). Gostaria de frisar um aspecto da democracia
que cuido sumamente importante: o
reconhecimento da pluralidade de atores sociais na sociedade civil. Uma
democracia que se pretenda representativa deve ser pluralista. A pluralidade
dos atores políticos está intimamente ligada à autonomia e ao papel
determinante das relações sociais. Nesse tocante, nos diz Touraine o que se
segue:
Uma sociedade política que não reconhecesse essa
pluralidade das relações e dos atores sociais não representaria as condições
para ser considerada democrática, ainda mesmo que – repetimos – o governo ou
partido no poder insistiam sobre a maioria que os apoia e, portanto, sobre seu
sentido do interesse geral. (ibid., p. 44).
Também o reconhecimento dos direitos e
garantias fundamentais, quais sejam, o
direito à vida, o direito à liberdade, o direito à igualdade, o direito à
segurança, o direito à propriedade,
o direito à educação, o direito à saúde, etc., é indispensável à existência da
democracia. Tais direitos limitam o
poder do Estado, famílias, empresas e Igrejas. Em suma, o que nos propõe a
democracia liberal é o seguinte:
1) Respeito aos direitos fundamentais
das pessoas e aos direitos políticos dos cidadãos, incluindo as liberdades de
associação, reunião e expressão, mediante o império da lei protegida pelos
tribunais;
2) Separação dos poderes entre
Executivo, Legislativo e Judiciário;
3) Eleição livre, periódica e
contrastada dos que ocupam os cargos decisórios em cada um dos poderes;
4) Submissão do Estado e de todos os
seus aparelhos àqueles a quem os cidadãos delegaram o poder;
5) Possibilidade de rever e atualizar
a Constituição na qual se estabelecem os princípios das instituições
democráticas;
6) Exclusão dos poderes econômicos e
ideológicos das esferas de condução dos assuntos públicos.
2.6.
Estado Democrático de Direito
Precedendo ao Estado Democrático de
Direito, formou-se, historicamente, o Estado de Direito moldado nos ideias
liberais, em oposição ao Estado absolutista e outras formas de autoritarismo.
Sua formação não se deu sem alguma hipocrisia, conforme observa Casara (2020):
(...) A história (...) demonstrou o fracasso desse
projeto político. Basta lembrar que o Estado Fascista italiano e o Estado
Nazista alemão também se apresentavam como Estados de Direito. Aliás, a cada
dia com mais frequência, atos concretos de autoritarismo atendem à legalidade
(ainda que por desvios hermenêuticos), razão pela qual se torna importante
reconhecer a existência de uma “legalidade autoritária” (...). (ibid., p.
59-60).
Casara
lembra também que o formalismo jurídico do Estado de Direito serviu, muitas
vezes, para manter relacionados ideologicamente o Estado e a sociedade civil. O
Direito, nesse caso, não impôs limites ao exercício do poder, nem contribuiu
para o projeto de uma nova sociedade. Como insiste Casara, “o direito serviu (e
ainda serve) para ocultar as relações de dominação política e exploração
econômica”. (ibid., p. 60). Nesse cenário, ao Estado de Direito coube o papel
de favorecer a dissimulação das forças sociais e de criar uma aparente
normalidade adequada à manutenção desse sistema de dominação e exploração.
Segundo o autor, a noção de Estado de Direito pressupõe limites legais ao
exercício do poder; mas, nesse modelo de origem liberal, esses limites são meramente
formais. O Estado que reconheceu, por meio de suas leis, a existência de
limites, a estes não se submete. Os atores jurídicos, geralmente, se põem a
serviço dos modelos autoritários de Estado. O fascismo e o nazismo, por
exemplo, serviram-se do direito. A opressão, lembra o autor, pode muito bem
coexistir com o direito.
Como
alternativa ao Estado de Direito, surge, no devir histórico, o Estado
Democrático de Direito. O Estado
Democrático de Direito é um Estado constitucional, cuja dimensão
democrática se define pelos direitos e garantias fundamentais que se apresentam
como obstáculos ao exercício do poder. Assim, o Estado Democrático de Direito
possui mecanismos de controle que protegem os direitos e garantias fundamentais
das pessoas da violação ou da recusa pelo arbítrio dos governantes. Mas devemos
atentar para a lição de Casara, segundo a qual “só há verdadeiro Estado
Democrático de Direito se existir também uma correlata cultura de respeito à Constituição
e, em especial, de respeito aos direitos e garantias fundamentais”. (ibid., p.
62). Qualquer brasileiro sabe quão desrespeitado, no Brasil, é este princípio
elementar do Estado Democrático de Direito. Nós vivemos, por isso, num Estado
Pós-democrático, no qual limites e direitos de liberdade são considerados de
modo negativo, de sorte que devem ser descartados, a menos que sirvam à
repressão. Na Pós-democracia, o Estado não encontra limites rígidos ao
exercício de seu poder, e o poder econômico e o poder político se aproximam a
ponto de quase se identificar. Como lembra Casara, no Estado Pós-democrático, a
democracia se esvazia de seu conteúdo.
O
Estado Constitucional não é apenas Estado de Direito, é também Estado
Democrático, no qual o poder deve ser limitado e exercido de forma democrática,
com vistas à concretização do projeto constitucional moderno que prevê vida
digna para todos, inclusive para aqueles que são considerados indesejáveis por
uma parte da população. Também se deve garantir vida digna àqueles que não
servem aos interesses do mercado e do Capital financeiro. Atente-se para o que
escreve Casara abaixo:
(...)
só há Estado Democrático de Direito se existir democracia substancial/
constitucional, isto é, se, além do sufrágio universal e da participação
popular na tomada de decisões, também se fizer presente o respeito aos direitos
e garantias fundamentais, dentre eles, em destaque, a liberdade. Não só a
liberdade de empresa ou a liberdade de ser proprietário, mas a liberdade que
permita à pessoa exercer todas as suas potencialidades legítimas. (ibid., p.
63).
O Estado Democrático de Direito
esteia-se, pois, nos dois seguintes princípios:
1) Estado limitado pelo direito,
especialmente, pelos direitos fundamentais;
2) poder político estatal legitimado
pelo povo.
Portanto, a democracia e os direitos e
garantias fundamentais estão intimamente ligados e são interdependentes.
2.7.
Cidadania e tipos de direitos
De início, é forçoso dizer que a cidadania é participação ativa na luta pela conquista de três espécies de
direito: direitos civis, direitos
sociais e direitos políticos. Para o senso comum, ser cidadão limita-se,
quase sempre, ao direito de votar. Mas quem quer que tenha exercido alguma
atividade política no bairro onde mora, na igreja que frequenta, na escola onde
trabalha ou estuda, no sindicato, etc., deveria saber que o ato de votar, por
si mesmo, não garante a cidadania. A conquista da cidadania e seu pleno
exercício dependem de determinadas condições econômicas, políticas, sociais e
culturais. Por exemplo, quando Antunes, em seu livro O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era
digital (2020), sublinha as consequências da transformação do capital, ele
acena com condições econômicas, como o desemprego consequente e precarização do
trabalho, que contribuem para limitar significativamente ou mesmo afastar os
direitos sociais, os direitos políticos e para violar os direitos civis sem os
quais não há exercício de cidadania. Antunes ensina que “a longa transformação”
do capital levou-o à era da financeirização e mundialização. A chamada fase do capitalismo financeirizado introduziu
uma nova divisão internacional do
trabalho, cuja tendência clara é a intensificação de níveis de precarização
e informalidade, bem como de intelectualização do trabalho. Ambas as tendências
se misturam, segundo Antunes, numa espécie de simbiose. O autor chama-nos a
atenção para uma forte ampliação dos mecanismos de funcionamento do mundo do
capital, o qual vem incorporando novas formas de geração de trabalho excedente,
tais como os trabalhos terceirizados ou pautados pela informalidade. A
consequência ainda mais social e economicamente catastrófica é que esse
processo leva à expulsão de “um conjunto significativo de trabalhadores
(incluindo jovens qualificados e
ultraqualificados, muitos dos quais com pós-graduação)” (ibid., p. 33,
grifo meu) da produção. Tais jovens não encontram emprego em seus países.
(...) Isso sem falar dos enormes contingentes de
imigrantes menos qualificados, cujos novos fluxos migratórios (Sul-Norte,
Norte-Sul, Norte-Norte e Leste-Oeste) aumentam os bolsões de trabalhadores
sobrantes, descartáveis, subempregados e desempregados. (ibid.).
A
precarização do trabalho, o desemprego em massa, a expulsão de jovens
sobrequalificados do processo de produção são fatores que alijam pessoas do
exercício da cidadania.
É
claro que ser cidadão é ter direitos e deveres, é ser súdito e soberano. Tal
condição é contemplada na Carta dos Direitos da ONU (Organização das Nações
Unidas), de 1948, cujas primeiras matrizes são as cartas de Direito dos Estados
Unidos da América (1776) e da Revolução Francesa (1798). Seu pilar consiste na
afirmação de que todos os homens são iguais perante a lei, sem discriminação de
raça, credo e cor, que sabemos ser um princípio constitucional que, no Brasil,
é cotidianamente desrespeitado. A cidadania contempla também o direito que
todos devem ter ao domínio sobre o próprio corpo e sua vida, bem como o acesso
a um salário adequado à promoção da própria vida, o direito à educação, à
saúde, à habitação, ao lazer. Ademais, a cidadania inclui o direito de todos
poderem expressar-se livremente, de militar em partidos políticos e sindicatos,
de promover movimentos sociais e de lutar por seus valores. Em suma, a
cidadania implica o direito de ter uma vida digna.
No
entanto, ser cidadão não é apenas ser sujeito de direitos; é também ser agente
da existência desses direitos. Assim, aos cidadãos compete também deveres, como
o de lutar pela conquista de seus direitos. Os cidadãos, na modernidade, não
são meros receptores passivos. Precisam ser, sobretudo, sujeitos ativos daquilo
que podem conquistar. Se há, por exemplo, um problema em seu bairro ou em sua
rua, um cidadão não deve esperar que a solução caia dos céus. É preciso que ele,
conjuntamente com os demais moradores, se organize para buscar uma solução,
como a de pressionar as autoridades governamentais competentes para que tomem
uma providência.
A
cidadania é o próprio direito à vida digna no sentido pleno. Trata-se de um
direito que precisa ser construído coletivamente, não só para fins de
atendimento das necessidades básicas, mas também para fins de acesso a todos os
âmbitos da existência em sociedade, entre os quais se inclui o mais abrangente
dentre eles: o lugar dos seres humanos no Universo. Disse, no início desta
seção, que a cidadania é participação ativa na luta pela conquista de três
espécies de direitos. Convém agora defini-los.
Os
direitos civis dizem respeito
basicamente ao direito de dispor do próprio corpo, à locomoção, à segurança,
etc. Novamente, no Brasil, esse direito é muito pouco respeitado no cotidiano
em que vivemos. A experiência brasileira de quase duas décadas de ditadura militar
é um exemplo claro de um período de anticidadania, de cerceamento da expressão
e da liberdade, de tortura e de eliminação daqueles que se opunham à forma de
pensar e agir dominantes.
Também
as condições socioeconômicas geradas pela fase atual do capitalismo, com o
crescimento da precarização do trabalho e a submissão da vida à racionalidade
neoliberal, exigem corpo e mente de trabalhadores cada vez mais espoliados,
precarizados. O crescimento do desemprego e do subemprego em escala global e,
especialmente no Brasil de hoje, assolado pela crise sanitária da Covid-19,
leva milhões de cidadãos a ter de conviver forçosamente com a pobreza, a
miséria ou a submeter-se a empregos informais para sobreviver. Em tais
circunstâncias desumanizadoras, assiste-se à derrocada dos direitos civis de
grande parte da população de nosso país.
Os
direitos sociais recobrem o
atendimento das necessidades humanas básicas. São todos aqueles que devem repor
a força de trabalho, sustentando o corpo humano: alimentação, habitação, saúde,
educação, lazer. Os direitos sociais dizem respeito ao direito ao trabalho (que
o desemprego em massa nega), a um salário decente (que as condições limitadoras
do subemprego negam), ao direito à saúde, à educação, à habitação, etc. É
desnecessário dizer que, no Brasil, tanto hoje como ao longo de sua história, a
maioria da população se encontra privada de tais direitos, tendo de arrastar
uma existência precária, em condições de injustiça e pobreza.
Os
direitos políticos recobrem o
direito que cada indivíduo tem de deliberação sobre sua vida, o direito de ter
livre expressão de pensamento e de prática política, religiosa, etc. Os
direitos políticos são atinentes, principalmente, à convivência com os outros
em grupos de representação direta (sindicato, partidos, movimentos sociais,
escolas, conselhos, associações de bairro) ou indireta (pela eleição de
governantes, parlamento, assembleias), resistindo à força coercitiva dos
poderes vigentes, mediante greves, pressões, movimentos sociais. Também os
direitos políticos tocam a deliberações sobre os outros dois tipos de direitos
– os civis e os sociais -, lançando luzes sobre eles de modo tal, que possam
ser conquistados. Esses três tipos de direitos, que formam os direitos do cidadão,
estão intimamente vinculados entre si. Todos eles são dependentes da correlação
de forças econômicas e políticas para que possam se efetivar. Os direitos de
uns precisam corresponder aos direitos dos outros, a fim de que seja dado a
todos o direito à vida digna – traço básico da cidadania.
Por
fim, gostaria de salientar que não pode haver cidadania se não houver um
salário condigno para a grande maioria da população. O trabalhador, reduzido à
mercadoria no modo de produção, deve, no entanto, lutar para obter certa
equivalência na troca estabelecida com o capitalista e o Estado. É claro que os
trabalhadores precisam ter acesso aos bens indispensáveis à sua subsistência
(habitação, saúde, educação), mas não só isso. É igualmente necessário que eles
tenham direitos políticos e que subsistam mínimas condições democráticas para
que reivindiquem seu direito de ser cidadão. Ademais, é indispensável que esses
trabalhadores, continuamente precarizados, possam ser educados, conscientizados
sobre a existência de todos aqueles direitos, a fim de que se sintam
estimulados para o engajamento político nos processos sociais de luta por uma
sociedade mais justa e igualitária.
3.
O diagnóstico do desencanto
Em seu livro Ruptura: a crise da democracia liberal (2018), Manuel Castells
convida-nos a meditar sobre o que chama “a profunda crise de nosso tempo”, a
qual recobre a ruptura da relação entre governantes e governados.
A desconfiança nas instituições, em quase todo o
mundo, deslegitima a representação política e, portanto, nos deixa órfãos de um
abrigo que nos proteja em nome do interesse comum. Não é uma questão de opções
políticas, de direita ou esquerda. A ruptura é mais profunda, tanto em nível
emocional quanto cognitivo. Trata-se do colapso gradual de um modelo político
de representação e governança: a democracia liberal que se havia consolidado
nos dois últimos séculos, à custa de lágrimas, suor e sangue, contra os Estados
autoritários e o arbítrio institucional. (...) Não é uma rejeição à democracia,
mas à democracia liberal tal como existe em cada país em nome da “democracia
real” (...). (Castells, 2018, p. 78).
Castells,
tal como outros autores revisitados aqui, também lembra que a democracia
liberal não pode ser considerada representativa, já que a democracia se
constrói em torno de relações de poder social que a fundaram e que, já
cristalizado em instituições, ela se encarrega de expressar. O autor lembra
também que o poder judiciário depende indiretamente do sistema político. Só no
imaginário social a democracia é representativa, ou seja, os cidadãos precisam
acreditar que estão sendo representados. A força e a estabilidade das
instituições democráticas dependem “de sua vigência na mente das pessoas”.
(ibid, p. 12). Segundo Castells, “se for rompido o vínculo subjetivo entre o
que os cidadãos pensam e querem e as ações daqueles a quem elegemos e pagamos,
produz-se o que denominamos crise de legitimidade política; a saber, o
sentimento majoritário de que os atores do sistema político não nos
representam”. Isso acontece, há alguns
anos, com o sistema político no Brasil: nós assistimos a uma total decomposição
desse sistema. Castells também nos mostra de que modo a profissionalização da
política reforça a ruptura da democracia. Com a profissionalização da política,
os políticos se tornam um grupo social que defende seus próprios interesses
acima dos interesses daqueles de quem dizem ser representantes. Além disso, a
burocratização interna dos partidos limita a renovação à competição entre seus
líderes, sem o controle e a decisão de seus militantes. No ato eleitoral,
dominado pelo marketing eleitoral e pelas estratégias de comunicação, o
funcionamento do sistema se dá de modo autônomo relativamente aos cidadãos.
Como eleitores, eles até se mobilizam para votar e podem entusiasmar-se por
aqueles em quem projetam suas esperanças, ignorando o fato de que a autonomia
do funcionamento do sistema político-eleitoral é garantida pelas pesquisas de
opinião, cujo desenho é controlado por aqueles que a encomendam. Quando o medo
da mudança é superado pela esperança, os eleitores são fisgados pela tática
emocional básica da manutenção do poder. No entanto, sendo recorrente a frustração dos eleitores,
a legitimidade vai-se erodindo, ao mesmo tempo que a resignação dá lugar à
indignação. Mas não tarda a vir a promessa de que as coisas vão melhorar se
eles aguentarem firmes e continuarem suportando as amarguras dos desgovernos.
Em face do insuportável, todavia, é preciso romper com tudo. Mas o rompimento
fora das instituições tem um alto custo social e pessoal. Tal rompimento
desagrada aos meios de comunicação que, em última instância, são controlados
pelo dinheiro ou pelo Estado. O que era um modelo de representação cai em
ruína. E os eleitores-cidadãos, ou se conformam com a crença de que as coisas
são assim, ou aqueles entre os quais não as aceitam que venham às ruas onde a
polícia os aguarda com bombas de efeito moral e balas de borracha: “essa é a
crise da legitimidade”, escreve Castells. Segundo Castells, esse sentimento de
rejeição à prática profissional da política é amplamente majoritário, embora
varie de acordo com os países. Mesmo em países escandinavos, como a Dinamarca,
é possível identificá-lo na opinião pública.
Outro fator que leva a essa crise de
legitimidade, segundo Castells, é a submissão da atividade política à lógica da
empresa. Uma vez que as ideologias tradicionais, seja as igualitaristas de
esquerda, seja aquelas que reforçam os valores da direita clássica, perderam
poder de convencimento e mobilização em face da expansão da ideologia do
consumo que acompanha o modelo neoliberal triunfante, a atividade política tem-se
tornado cada vez mais uma atividade destinada à busca de sucesso pessoal. Essa
busca de sucesso pessoal, através da política, se expressa na forma de
acumulação pessoal de capital durante o período em que o ator político ocupa
uma posição de poder.
Com o tempo, o cinismo da política como
manipulação deriva em um sistema de recompensas que se alinha com o mundo do
ganho empresarial, na medida em que se concebe a política como uma empresa. Por
fim, não há corruptos sem corruptores, e em todo o mundo a prática das grandes
empresas inclui comprar favores ao regulador ou contratador de obra pública. E
como muitos fazem, é preciso entrar no jogo para poder competir. Assim, a
separação entre o econômico e o político se esfuma e as proclamadas grandezas
da política costumam servir para disfarçar suas misérias. (ibid., p. 25).
Castells
também nos alerta sobre o papel que cumpre a digitalização de toda informação na
constituição dos espaços de disputa pelo poder, na atual fase do capitalismo
digital. Segundo o autor, a luta pelo poder nas sociedades democráticas
submetidas ao regime do capitalismo digital é atravessada pela política
midiática, pela política do escândalo e pela autonomia comunicativa dos
cidadãos. Estamos permanentemente imersos num universo midiático, no qual a
realidade é construída, nosso comportamento e decisões são moldados pelos
signos de que nos valemos para interagir uns com os outros nesse universo. A
política não escapa “a essa regra básica da vida na sociedade-rede na qual
entramos em cheio” (ibid., p. 26). Para Castells, só há a política que se
manifesta nesse mundo midiático multimodal que se constituiu nas últimas duas
décadas. As mensagens midiáticas que circulam nesse mundo formam a opinião e
devem ser extremamente simples. Segundo o autor, a mensagem capaz de provocar
mais impacto é uma imagem, geralmente a imagem de um rosto humano “no qual nos
projetamos a partir de uma relação de identificação que gera confiança”.
(ibid.). Por isso, segundo o autor, é necessário não ignorar o fato de que a política é fundamentalmente emocional.
O processo cognitivo de elaboração e decisão baseia-se nesse primeiro reflexo
emocional que caracteriza a imagem emocional que fazemos do outro. A primeira
impressão que temos de alguém assume a forma de opinião. Essa opinião de cunho
emocional, calcada sobre a imagem que construímos do outro “se confirma ou se
desmente na elaboração do debate contínuo que acontece nas redes sociais em
interação com a mídia”. (ibid., p. 26-27).
É
importante compreender como se constroem as imagens negativas das lideranças
políticas e como as mensagens trocadas no universo midiático multimodal, por
exemplo, das redes sociais, produzem o efeito de personalização da política. Começo, pois, dando a saber como se
constrói a imagem de si e do outro no discurso. O termo ethos, aproveitado da retórica de Aristóteles, é definido, nos
estudos linguísticos sociointeracionais e na Análise do Discurso, como “imagem
de si”. Todo ato de linguagem, todo discurso implica a construção de imagens
recíprocas efetuada pelos interactantes. Ao interagir, por meio da língua, os
interactantes constroem uma imagem de si e uns dos outros. Há a imagem que um
interactante A faz de si mesmo, a
que este interactante faz de outro interactante B, a que este interactante faz de si e a que faz do interactante A.[2] A
construção de um ethos discursivo é
privilegiada, porque é indissociável de um posicionamento político. A partir de
Aristóteles, ethos comporta ou um
sentido moral, baseado na epieíkeia,
e , nesse caso, abarca atitudes e virtudes como honestidade, benevolência ou
equidade; ou um sentido “objetivo” de héxis
(hábito, disposição adquirida) e, nesse caso, compreender hábitos, modos, costumes ou caráter. Para Aristóteles, persuade-se pelo caráter (éthos) quando o discurso torna o orador
digno de fé ou de confiança. As pessoas honestas nos inspiram uma confiança
maior e mais imediata. Mas é necessário que essa confiança seja um efeito do discurso, e não um juízo
prévio sobre o caráter do orador. O ethos
de um orador/locutor são os traços de caráter ou, no quadro teórico dos estudos
linguísticos contemporâneos, as imagens
de si, que ele mostra/constrói à/para a audiência ou ao/ para o seu
interlocutor, para produzir nele uma boa impressão, uma boa vontade, simpatia,
apreço, ou para persuadi-lo (pouco importa se de fato, o locutor é sincero
realmente). O locutor/orador enuncia uma mensagem, ou produz um ato de
linguagem, e o faz, ao mesmo tempo, dizendo quem ele é e quem ele não é.
Castells
observa que “a dinâmica de construção de uma mensagem simples e facilmente
debatível em um universo multiforme conduz à personalização da política”. (ibid., p. 27, grifo meu). A confiança
no valor e na boa intenção de um projeto é gerada com base na liderança
representada discursivamente por alguém. Nesse universo midiático de mensagens
simples, a luta política mais eficaz é a destruição dessa confiança por meio da
destruição moral e da imagem de si de quem se representa discursivamente como
líder. Conforme lembra Castells, “as imagens negativas são cinco vezes mais
eficazes em sua influência do que as positivas”. (ibid.). A tática empregada
consiste em fazer valorações negativas da imagem de um político ou candidato
preferido ou apoiado pelo interlocutor, a fim de solapar a confiança que ele
tem nesse ator político: “daí a prática de operadores políticos profissionais
no sentido de buscar materiais prejudiciais para determinados líderes
políticos, manipulando-os e até fabricando-os para aumentar o efeito
destrutivo” (ibid.).
Na
realidade, os estudos demonstram que isso é já algo tão habitual que as
vitórias ou derrotas dos políticos não seguem necessariamente o curso dos
escândalos. Frequentemente, a pessoa acaba preferindo “seu corrupto” em vez do
corrupto “do vizinho da frente” – como todos o são, na percepção geral, tal
atributo acaba sendo descontado, salvo os casos de políticos virgens, cuja
auréola pode durar algum tempo. Embora os efeitos políticos da política do
escândalo sobre políticos específicos sejam indeterminados, tal política gera
um efeito secundário que é devastador: o
de inspirar o sentimento de desconfiança e reprovação moral sobre o conjunto
dos políticos e da política, contribuindo assim para a crise de legitimidade.
(ibid., p. 28, grifo meu).
No mundo das redes digitais, todos
podem se expressar com autonomia e liberdade. As mensagens são trocadas em
ondas multiformes, com imagens e frases de efeito, lugares-comuns, que juntos
formam um cacofonia político-informativa cujo fim é questionar tudo o que não
se presta à verificação pessoal. No mundo da pós-verdade, do qual a mídia
participa inevitavelmente, a incerteza torna-se a única verdade confiável. As
mensagens que se avolumam de modo fragmentado e a ambiguidade das trocas
verbais são imbuídas de emoções únicas e pessoais, e são constantemente
nutridas por estratégias de destruição da esperança. E assim nos encontramos
todos num círculo fechado no qual assumimos o papel de funcionários do
desalento coletivo, que nos condena a uma outra forma de “servidão voluntária”:
a do simples eleitor que fala muito de política sem se interessar efetivamente
por ela e sem compreendê-la para além da lógica binária que opõem corruptos e
supostos “salvadores da pátria” como as únicas alternativas possíveis para a
gestão dos negócios públicos.
O vínculo entre o pessoal e o institucional se
rompe. O círculo se fecha sobre si mesmo. Enquanto isso, procuramos às cegas
uma saída que nos devolva aquela democracia mítica que pode ter existido em
algum lugar, em algum tempo. (ibid.)
PALAVRAS FINAIS
A cegueira do rebanho
Eu nunca me deixei seduzir pelo discurso do voto em nome do fim da
corrupção no Brasil. Também sou intelectualmente muito mal disposto para
“discutir” política no quadro de categorias tão reducionistas quanto a de
“corrupção”. Não sou militante. Meu interesse em política supõe o diálogo com a
tradição da filosofia política e a reapropriação de seus conceitos no exercício
do verdadeiro pensamento. Por isso, o senso comum da política me esmorece, me
enfada. Não me sinto motivado para bate-bocas sem fim sobre quais as melhores
raposas (políticos) para cuidar do galinheiro (o rebanho humano). De fato, não
me convence a escolha eleitoral em nome do fim da corrupção, primeiro porque
todos os candidatos se apresentam, em sua campanha, como dispostos a combater a
corrupção ou a pôr fim a ela (ou a pôr fim aos privilégios, a começar pelos da
classe política - quem não se lembra de Collor, que se apresentava como “o
caçador dos marajás”?); segundo - e o que é mais decisivo - porque não creio
que a corrupção chegará a um fim, algum dia, na política. A história da corrupção
da política brasileira não é um mal de um único partido político (não,
camarada, não começou com o PT!). A corrupção na política do Brasil é
sistêmica, é parte do modus operandi
do sistema político brasileiro. E não só do sistema político brasileiro. É
preciso dizer enfaticamente: A CORRUPÇÃO
É SISTÊMICA NA POLÍTICA EM GRANDE PARTE DO MUNDO. Eis que, com a satisfação
de quem encontra em grandes pensadores uma ressonância de pensamento ou a
confirmação de suas suspeitas, deparo um trecho de Castells, que nos ensina
muito oportunamente:
Embora a política espanhola seja uma das mais
corruptas da Europa, A CORRUPÇÃO é UM TRAÇO GERAL DE QUASE TODOS OS SISTEMAS
POLÍTICOS, inclusive nos Estados Unidos e na União Europeia, e um dos fatores
que mais contribuíram para a crise de legitimidade. Se os que devem aplicar as
regras de convivência não as seguem, como continuar delegando a eles nossas
atribuições e pagando nossos impostos? COSTUMA-SE ARGUMENTAR QUE SE TRATA APENAS
DE ALGUMAS MAÇÃS PODERES E QUE ISSO É NORMAL, levando em conta a natureza
humana. Porém, com algumas exceções, como a Suíça e a Escandinávia (mas não a
Islândia), a CORRUPÇÃO É UMA CARACTERÍSTICA SISTÊMICA DA POLÍTICA ATUAL. (ibid.,
p. 24. ênfases minhas).
Com isso, não estou a sugerir que a corrupção política não deva nos
causar indignação ou que, por nos parecer tão ‘normal’, deva nos imobilizar na
resignação e na apatia. Não! O que pretendo sugerir é que, por um lado, é
empobrecer o espaço do debate público o hábito enfadonho de reduzir a questão
política ao problema da corrupção e de quem são seus corruptores; por outro
lado, é sinal, no mínimo, de ingenuidade acreditar na fala de um político que
se apresenta como um agente do fim da corrupção. E é sinal de estupidez
prosseguir com essa crença cegamente, como quem usa uma venda sobre os olhos
que impede de ver as práticas intoleráveis, porque pérfidas, ignóbeis,
ignominiosas, ou mesmo perversas, desse agente político “messiânico”.
Em matéria de política tanto quanto em qualquer outro âmbito, em que as
paixões da gregariedade resvalam facilmente para o torvelinho da
irracionalidade, convém ponderar sobre a lição de O ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA:
“A
responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam".
[1]
A filosofia
política recobre a análise filosófica da relação entre os cidadãos e a
sociedade, as formas de poder e as condições em que ele se exerce, os sistemas
de governo, a natureza, a validade e a justificação das decisões políticas.
[2]
Na verdade, tal processo é, teoricamente, ilimitado, pois a construção das
imagens recíprocas se realiza com base em pressuposições dos interactantes
acerca das imagens reciprocamente construídas na interação verbal. Assim, eu não
só construo, ao falar, uma imagem de mim mesmo e uma imagem do meu
interlocutor, mas faço uma imagem (suposta) da imagem que ele faz de mim, da
que ele acredita que eu fiz dele, etc. Além disso, os interactantes constroem
uma imagem acerca da situação em que se encontram e dos assuntos sobre os quais
falam, das opiniões sobre tais assuntos, etc.