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sexta-feira, 4 de outubro de 2019

"A ilusão é uma fé desmedida". (Balzac)


                                  Resultado de imagem para animal humano

                           POR UMA NATURALIZAÇÃO DO HOMEM

         A maneira como tenho procurado pensar apropriativamente o niilismo, reinscrevendo-o num campo de determinação semântica, à luz do qual ele vai-se descortinando como campo de expressões dinâmicas, de forças contestatórias, fenomenicamente multívocas, devenientes, plásticas, capazes de pôr-se a serviço da crítica e negação de toda interpretação/compreensão antropomórfica, antropocêntrica da vida tem como fito fazer notavelmente operante a Lucidez niilista, a qual, muito embora lastreada por uma negatividade radical, declara guerra a todas as ilusões antropomórficas em relação às quais a vida e a existência são avaliadas na tradição metafísica ocidental. Trazendo à luz o caráter ficcional das instituições humanas nas quais se organiza a realidade social, em cujo cerne está o mundo simbólico que dá sustentação à existência humana, o niilismo, tal como entendo, apura a percepção, refina o olhar, a fim de que se torne visível e reconhecível o mundo como uma pluralidade de ambientes cada qual se constituindo como uma unidade funcionalmente fechada, mas solidária, resultante de seleção prévia de uma série de elementos ou marcas, as quais, por seu turno, são objetiva e funcionalmente relacionados com os órgãos receptores dos animais não humanos, os quais percebem a marca e reagem a ela.

       O niilismo, realizando seu ataque às interpretações antropomórficas da vida, lança luzes sobre a existência de outros mundos, tempos e espaços em que se movimentam outros seres viventes. A abelha e a mosca que observamos voar em torno de nós não se movem no mesmo mundo em que vivemos. O que chamamos de 'mundo' é um complexo diverso e diferenciado de outros infinitos e até microscópicos mundos. A pluralidade dos mundos tem primazia sobre a unidade; o multi-verso, sobre o uni-verso; a diferença sobre a identidade. É preciso, assim, distinguir entre o espaço objetivo no qual vemos mover-se um vivente e o mundo ambiente constituído por uma série de 'portadores de significados', em relação aos quais se orientam os animais e os animais humanos. Também nós, animais humanos, nos movemos nesse mundo significativamente ordenado, e nosso mundo humano não tem qualquer privilégio sobre os demais mundos. Mesmo o mundo objetivo varia segundo o ponto de vista a partir do qual o consideramos. Existe, assim, uma floresta-para-o-guarda florestal, uma floresta para-o-lenhador, etc. Mesmo o caule de uma flor-do-campo, na qualidade de portador de significado, constitui a cada vez um elemento diverso, diferente em um ambiente diverso.
            


            

terça-feira, 24 de setembro de 2019

"Existir seria uma empresa totalmente impraticável, se deixássemos de dar importância ao que não tem" (Cioran)


                      NIETZSCHE E O NIILISMO - ProEnem
                                                  

                  O niilismo como pensamento dessacralizador


Nesta exposição, interessa-me retomar o tema do niilismo, a fim de argumentar em favor da tese de que o niilismo constitui toda forma de pensamento e/ou questionamento filosófico que põe a descoberto, que desnuda o caráter ficcional do conjunto dos valores e instituições sociais. O niilismo, sendo a lógica de constituição da história ocidental, é um fenômeno decisivo – quiçá determinante - das dinâmicas sócio-históricas que permitiram o desenvolvimento, no interior da sociologia, de uma teoria construcionista crítica. Além de dilucidar, em linhas gerais, a tese central de uma teoria construcionista crítica, pretendo também esclarecer em que medida é lícito dizer que o niilismo instaura o horizonte epistêmico à luz do qual foi possível o desenvolvimento de uma compreensão da realidade social como resultado de uma construção humana.
Antes, porém, de levar a efeito as duas tarefas referidas, urge dizer que o niilismo não é um fenômeno histórico circunscrito ao século XIX. Embora seja sustentável argumentar que os séculos XX e XXI são os períodos históricos de radicalização do niilismo, embora devamos admitir que o niilismo é hoje a nossa condição normal, há traços, pegadas do niilismo em quase toda a história da filosofia ocidental e, certamente, em toda doutrina na qual o Nada aparece como problema central (Volpi, 1999). Os primeiros registros de um pensamento niilista parecem remontar ao movimento sofista. Tome-se, por exemplo, a contenda sofística que põe em confronto nómos e phýsis. Nómos é a convenção dependente de um acordo estabelecido por um grupo de indivíduos e que se torna lei para esse grupo. A phýsis é a natureza cuja ordem necessária independe da ação humana. O niilismo como categoria crítica social começa sua carreira com o questionamento sofístico. Os sofistas sustentaram a primazia do nómos sobre a phýsis. A moral é convenção. A igualdade e desigualdade entre os homens são produzidas pela vida social; elas não são naturais. Pitágoras (481- 411 a.C.), advogando que de todas as coisas “ o homem é a medida”, tomou o homem para critério da realidade. O homem é a medida de todas as coisas, das que são, que são, e das que não são, que não são significa que é a ação humana que faz as coisas existir tais como são; é pela ação humana que outras coisas não existem, porquanto os homens convencionaram , por meio de leis, criadas por eles, não as admitir. O pensamento de Protágoras se filia à invenção da história. É no convencionalismo sofístico, na defesa sofista do nómos que se podem encontrar as primícias do desenvolvimento do niilismo como categoria crítica social. Górgias, por seu turno, foi o primeiro niilista da história ocidental (Volpi, 1999). Pela primeira vez, com clareza, desfaz-se a identidade entre ser, pensar e dizer, expressa na palavra lógos. Com Górgias, estabelece-se a diferença, a separação e a autonomia entre realidade, pensamento e linguagem. Três são as declarações de Górgias cujas consequências levaram à ruptura daquela identidade: 1) o ser não é ou o Nada é; 2) o ser não pode ser pensado; 3) o ser não pode ser dito. Os limites desta exposição impedem-me de me alongar sobre essas três teses. Penso suficientes estas considerações acerca das origens históricas do niilismo.


1. A realidade como constructo social

Passo, pois, a partir de agora, a me debruçar sobre as duas seguintes questões, já anteriormente mencionadas e agora devidamente enunciadas: 1) o que defende uma teoria construcionista crítica?; 2) em que medida o niilismo abre o horizonte epistêmico à luz do qual tornou-se possível o desenvolvimento de reflexões, teorias que põem a descoberto o caráter de constructo social das instituições humanas? A fim de dar conta da primeira questão, começo por citar Harari, que, em seu Sapiens – uma breve história da humanidade (2018, p. 52-53), observa:


(...) grande parte de nossa história gira em torno desta questão: como convencer milhões de pessoas a acreditarem em histórias específicas sobre deuses nações, ou empresas de responsabilidade limitada?



Quando ouvimos, por exemplo, o Presidente da República, falar em “nosso sentimento patriótico”, devemos inferir daí duas conclusões: 1) há uma forte cumplicidade entre o discurso político e o senso comum; 2) o enunciador evoca a crença, comumente partilhada, na existência objetiva dessa entidade chamada “pátria”. A crença na existência objetiva de tipos de coisas que são, na verdade, constructos sociais, ficções culturais, criações da imaginação humana é indispensável não só à constituição da realidade social, mas também à sua permanência. Conservando e partilhando a crença no caráter objetivo dos constructos sociais, como se a realidade social existisse independentemente da atividade humana, muitas pessoas vivem e morrem em nome dessas ficções culturais, dessas construções sociais. À medida que o poder de influência dessas construções imaginárias se amplia, vai-se tornando cada vez mais claro que a própria sobrevivência de rios, leões e matas depende de nossa crença no poder dessas criações da imaginação que damos o nome de nações, deuses, corporações, Estado, capitalismo, dinheiro, etc.  Segundo Harari (ibid., p. 158-159), a ordem imaginada está incrustrada no mundo material. Embora seja criada por nossa imaginação, exista como ente da razão, essa ordem se objetiva, sendo até mesmo gravada na pedra. A ordem imaginada define nossos desejos, como bem assinala o autor:



(...) a maioria das pessoas não quer acreditar que a ordem que governa a sua vida imaginária, mas na verdade cada pessoa nasce em uma ordem imaginada preexistente, e seus desejos são moldados desde o nascimento pelos dominantes. Nossos desejos pessoais, portanto, se tornam as defesas mais importantes da ordem imaginada.



A ordem imaginada é intersubjetiva, ou seja, ela é uma criação de indivíduos social e historicamente situados e engajados em práticas sóciocognitivas-interacionais. Conforme assinala Harari (ibid., p. 164),


[ela] existe na rede de comunicação ligando a consciência subjetiva de muitos indivíduos. Se um único mudar suas crenças, ou mesmo morrer, será de pouca importância. (...) Fenômenos intersubjetivos existem de uma maneira diferente de fenômenos físicos como a radioatividade, mas seus impacto no mundo ainda pode ser gigante.



Uma ordem imaginada só pode ser mudada, se, primeiramente, as pessoas passarem a acreditar na possibilidade de criar uma ordem social alternativa. Um dos postulados da teoria construcionista crítica é sustentar que toda realidade social, por mais densa ontologicamente que seja, por mais sólida que seja, pode ser revogada, muito embora reconheça que o instituído, tendo se estabelecido, passa a existir concretamente, fazendo valer seus imperativos, de modo que “a realidade construída perdura, torna-se instituição, estrutura, moldagem, não sendo o caso de pensá-la como de fácil demolição” (Filho, 2017, p. 38). O que uma teoria construcionista crítica sustenta é, em suma, o seguinte:


A realidade social existente (incluindo as dimensões imaginárias, simbólicas e subjetivas) é uma construção que decorre das práticas dos indivíduos, grupos, classes sociais, instituições, etc. em sua contínua atuação nos vários espaços em que se distribuem nas diferentes sociedades e épocas. ( grifo meu, Filho, ibid., p. 31-32).



O construcionismo crítico mantém que nossas lutas e disputas fazem parte da constituição do tecido histórico, mas essa constituição da história não segue um plano racional. Em grande medida, as construções sociais e seus resultados são involuntários e imprevisíveis. O mundo social é permeado de instituições que não foram racionalmente concebidas ou conscientemente planejadas. Como bem disse Cioran (2011, p. 100), “ninguém quer aceitar que a história se desenvolveu sem nenhum motivo, independentemente de uma direção determinada, de um objetivo”.
Cuidando esclarecida a tese central da teoria construcionista crítica, lançarei olhares sobre a questão que consiste em determinar em que medida o niilismo constitui um horizonte histórico-epistêmico à luz do qual se tornou possível o desenvolvimento de uma teoria ou de um conjunto de reflexões sociológicas, filosóficas que põem a descoberto o caráter ficcional, artificial, imaginário da realidade social.




2. O niilismo como categoria crítica social


Consoante ensina Volpi (ibid., p. 8), “o niilismo constitui (...) uma situação de desnorteamento provocado pela falta de referências tradicionais, ou seja, dos valores e ideais que representavam uma resposta aos porquês, e como tais, iluminavam a caminhada humana”.
A modernidade do século XIX se caracterizou pela atuação de sujeitos sociais que questionavam explicitamente valores e instituições sociais vigentes até então de um modo tal considerado por eles revolucionário. O niilismo, a partir da década de 1860, antes mesmo de sua teorização por Nietzsche, era relativamente difundido pela Europa e referia-se a correntes socialistas revolucionárias atuantes na Rússia czarista. Os questionamentos levantados pelos segmentos sociais que se opunham a estes grupos socialistas eram muito próximos daqueles levantados posteriormente pelos filósofos: é desejável romper com instituições consideradas até então legítimas? Mais do que isso: é possível que o mundo social sobreviva sem elas, sem que tornemos a viver em um estado de barbárie? A essas questões que acenavam com o receio e a angústia em face de um futuro catastrófico, acresce-se a dúvida acerca da possibilidade de os novos valores e instituições que esses revolucionários pretendiam criar fornecerem um sentido sólido para o mundo. O niilismo, nesse contexto histórico, congrega uma série de propostas ativas, anseios, atitudes destinadas ao rompimento com os valores, as instituições e sentidos pré-existentes na sociedade. O niilismo na Rússia da segunda metade do século XIX desenvolveu-se no imaginário popular por força das ações de jovens estudantes socialistas, que atuavam nas grandes cidades do país, como São Petersburgo, Moscou e Novgorod. A intenção deles era organizar a população camponesa para o levante revolucionário contra o Estado czarista. As classes dirigentes da sociedade pressentiam nesses movimentos subversivos o risco do Nada, de que é prenhe todo niilismo: a ausência de toda ordem social.
A experiência da Rússia czarista atesta que, historicamente, o niilismo assenta na contestação e na necessidade de ruptura com os valores sociais tradicionais, considerados como esteios sólidos para a instituição de sentido para o mundo e a existência humana. É justamente nesse horizonte de compreensão do niilismo que proponho se deve vê-lo como um acontecimento histórico que determina o modo de ser do homem que se constituiu na confluência das culturas judaico-cristã e greco-romana. O niilismo instaura uma certa ambiência hermenêutica e epistêmica à luz da qual a realidade social ou o mundo humano, ordenado em instituições, relações e práticas simbólicas, costumes e atividades políticas e culturais pôde passar a ser questionada como uma construção resultante da atividade de agentes humanos situados historicamente. É na esteira do niilismo e graças ao seu poder de negação, de nadificação que se pode combater e recusar as concepções essencialistas com base nas quais se explica a existência do mundo e do homem pela alegação da existência prévia, originária de uma instância transcendente e eterna ou de entes sobrenaturais e criadores.
O niilismo se insurge contra o que Michel Meffesoli chama esquema substancialista que marcou o Ocidente, cujas figuras são a do Ser, Deus, Estado, Instituição, Indivíduo, Identidade, Bem, entre outras. O niilismo descerra as condições de possibilidade para o compromisso com a crítica radical do que Meffesoli chama “Fantasma do Uno”, ou seja, uma matriz ideológica, imaginária que, reduzindo toda a diversidade e complexidade do real (domínio das infinitas possibilidades, das virtualidades) ao imperativo do Uno, está na origem da fundação dos monoteísmos morais, políticos e dos autoritarismos que culminaram com os piores totalitarismos. O niilismo, a fim de assegurar seu poder bélico, contestatório de todas aquelas variantes do esquema substancialista, precisa trazer à luz a insignificância radical da condição humana, o abismo em que assenta a história, a abissal indiferença cósmica para com nossas rixas, rivalidades, lutas e disputas pelo poder de determinar o curso do desenvolvimento histórico que resiste a acomodar-se ao regime de um plano racional.
Penso ter descerrado, a esta altura, o que chamo de Lucidez niilista. O niilismo se apresenta, pois, como uma forma de pensamento dessacralizador, fundado na negação radical de todo ideal, de toda pretensão de segmentos societários, que gozam do privilégio do poder instituído, de reificar, de naturalizar, hipostasiar sentidos e valores que são historicamente produzidos, sedimentados e conservados. O niilismo é o modus operandis de toda crítica desconstrucionista ou genealógica que visa a “desenterrar”, a pôr sobre a terra as raízes das configurações, das conformações históricas cuja existência é justificada metaempiricamente ou metafisicamente. Como bem nota Filho (ibd., p. 52),


(...) é o ser humano o único animal que tem consciência antecipada de sua morte, e a ilusão produzida por ele próprio, de permanência (reprodução, duração e eternidade) da realidade dos mundos cósmico e social anda, em diversas culturas e até aqui, de par com a vontade de imortalidade, invulnerabilidade à morte. Fenômeno cuja generalidade não o torna menos constructo humano que todos os outros.



Embora não reste dúvida de que, historicamente, os seres humanos erigiram os grandes edifícios simbólicos que constituem a ordem social com vistas a tornar possível a sobrevivência da espécie num ambiente natural inóspito, é sempre bom lembrar que tais edificações garantem aos homens a proteção contra a angústia originária que, acompanhando Heidegger, dormindo no ser-aí, pode, no entanto, ser despertada revelando o Nada – não o nada como “ao lado” do ente em sua totalidade, mas o nada no ente como perda de mundo, como fuga do ente em sua totalidade. O modo de ser do impessoal tende a expulsar o nada: “quanto mais nos voltamos para o ente em nossas ocupações, tanto menos nós o deixamos enquanto tal, e tanto mais nos afastamos do nada. E tanto mais seguramente nos jogamos na pública superfície do ser-aí”. (Heidegger,  1983, p. 41).
O niilismo é o grande pensamento da Lucidez, da mais luminosa Aurora, que descerra o horizonte do Nada, como experiência da nulidade, da insignificância, do desamparo, da perda, do Vazio para afirmar o real como domínio de infinitas possibilidades e a vida, na esteira de Nietzsche, como complexo de múltiplas interpretações configuradoras, criadoras de novas formas de existência. Sendo os seres humanos animais simbólicos dotados de uma consciência antecipada da morte, o niilismo deve afirmar seu poder de dessacralização sob o regime hermenêutico do signo da Morte, à luz do qual cada indivíduo humano é lembrado de que “ganha a sua vida como uma dádiva, surge do nada, depois sofre a perda dessa dádiva através da morte, voltando ao nada”. É sob o regime hermenêutico do signo da Morte que o niilismo deve lembrar aos indivíduos, contra as suas manias de grandeza, contra seus empedernidos hábitos de rivalizar, disputar e até matar em nome de suas crenças ilusórias, justificadas metafisicamente, contra suas aparentemente inofensivas loucuras diárias que os fazem subservientes do falatório e de seus dispositivos de interpretação que visam a assegurar ser o mundo, o real tal como dele se fala – é, repito, sob o regime hermenêutico da Morte que o niilismo deve lembrar aos indivíduos “que seu lugar e duração (...) são partes finitas de um infinito, de um ilimitado” e que



 sua existência propriamente dita encontra-se apenas no presente, cujo escoar sem obstáculos no passado é uma transição contínua para a morte, um sucumbir sem interrupção (...) pois sua vida passada já terminou por inteiro, morreu e não mais existe. (Schopenhauer, 2015, p. 360).

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

"O niilismo está à porta: de onde vem a nós este mais sinistro de todos os hóspedes." (Nietzsche)


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                     A filosofia na vizinhança do niilismo


Assumiremos como pressuposto tácito e inquestionável para quem quer que se ocupe da filosofia que a confiança na razão é a essência de toda empresa filosófica. Não nos parece custoso rastrear, ao longo da história da filosofia, as diferentes figuras pelas quais essa confiança na razão se expressa. Essa confiança na razão nasce com a filosofia e perdura até os dias de hoje, a despeito de a razão, em vários momentos da história do pensamento, ter sido convocada a comparecer perante o tribunal da suspeita[1]. Não resta dúvida de que a confiança na razão – entendendo-se por razão, nesse momento, a faculdade que nos habilita a produzir discursos coerentes e inteligíveis que são eles mesmos modelos de representação do mundo – não poderia sucumbir, sob pena não só de a filosofia ser condenada ao silêncio eterno dos museus da história, mas também sob pena de a totalidade da existência humana submergir num irracionalismo balbuciante[2]. Mesmo a crítica da razão levada a efeito por aqueles que Ricouer chamou “filósofos da suspeita” não deve ser vista como uma convocação à adesão ao irracionalismo, mas sim, no que diz respeito mais propriamente ao trabalho fabulador da razão, como um exame radical e desmitificador das ideologias “progressistas”, em nome da razão, da moral, da História, as quais querem subjugar a vida em favor de pretensos valores superiores.
Retornemos, então, ao momento em que sublinhávamos o fato de que a filosofia surge e se desenvolve historicamente como uma atividade discursiva em cujo cerne repousa a confiança na razão. Dissemos que essa confiança na razão pode ser mapeada pelo exame das diversas formas como ela se expressa no decurso do desenvolvimento histórico da filosofia. A filosofia nascente afirma essa confiança na razão a partir de uma série de pressupostos, dentre os quais destacamos os quatro seguintes:

1º o mundo constitui uma totalidade ordenada e inteligível, que pode ser racionalmente explicada;

2º “Nada vem do nada e nada retorna ao nada”: o mundo é um cosmo eterno e imperecível;

3º Seu princípio perene e imortal de origem e constituição é a phýsis, de onde tudo brota e para onde tudo regressa;

4º A essência do mundo ou o ser é alcançado exclusivamente pelo pensamento e, portanto, é invisível, embora seja um invisível racional e lógico.

Mesmo a preocupação (que perpassa toda a história do pensamento filosófico e constitui uma questão fundamental em torno da qual muita tinta correu) em explicar como o uno, isto é, o idêntico em si mesmo (phýsis) se transforma no múltiplo e diferente de si mesmo (kósmos); ou, em sentido inverso, mesmo a preocupação em explicar como o múltiplo e o diferente  (os entes do mundo) pode originar-se do uno e a ele retornar supõe uma confiança na razão que se expressa na crença na identidade entre o real e o racional – crença esta que encontrará longo e persistente eco na história da filosofia, sendo quiçá Hegel, no século XIX, seu mais obstinado defensor. Essa confiança na razão também se manifesta, na tradição, na concepção de razão como uma força que nos liberta dos preconceitos, do mito, das opiniões arraigadas e falsas, das aparências, ou ainda como uma força que permite estabelecer um critério universal ou comum para a conduta do homem.
Parece-nos um truísmo dizer que, desde suas origens, a filosofia pautou-se pela busca de princípios capazes de conferir sentido ao conjunto da experiência humana. A experiência filosófica, que supõe a determinação de um sentido para o mundo, ancorava-se, entre os gregos, na crença de que o cosmos apresenta uma ordem eterna, divina, bela e inteligível, à qual a vida humana deveria ajustar-se. O sentido da vida humana consistia, segundo acreditavam os antigos, em ajustar-se a essa ordem. Na época de Hegel, havia uma crença disseminada de que a história humana tem um sentido e um significado – essa é, aliás, uma crença que sobrevive nos dias atuais em contextos religiosos, sobretudo porque o pensamento religioso sempre admitiu que o curso da história humana tem sentido e que esse sentido, no caso do cristianismo (para nos ater a uma experiência religiosa mais próxima), é resultado dos propósitos de um Deus pessoal e Criador, que governa todo o processo determinando-o da origem ao fim.
A partir de Platão, a filosofia deduziu do eterno o sentido e a normatividade para a vida humana. Com Platão, a filosofia passa a acalentar a esperança de alcançar o bem pela harmonia com o sumamente real, o sumamente eterno e perfeito. Evidentemente, essa ascensão ao sumamente real supõe uma confiança na razão, ou, em termos platônicos, no conhecimento inteligível, na dialética que educa a alma para que ela atinja ascensionalmente o conhecimento inteligível do incondicionado, da Verdade em si mesma, do Ser. Escapa à alçada deste estudo deslindar as formas como se afigura na filosofia platônica essa confiança na razão. Não obstante, vale dizer que a Alegoria da Caverna constitui um exemplo paradigmático dessa confiança na razão. Em síntese, da Alegoria da Caverna podemos colher a seguinte lição: só podemos conhecer a verdade quando ultrapassamos o domínio das aparências sensíveis para, num movimento ascendente, contemplar os arquétipos ou as Ideias eternas e imutáveis que constituem o mundo inteligível, este que é dotado de mais realidade que o mundo sensível, onde nós habitamos. É necessário omitir alguns pormenores da escalada de conhecimento rumo à contemplação da Forma do Bem, ponto de irradiação da luz para todo o campo das Formas Perfeitas. A confiança platônica no conhecimento inteligível, na luz da inteligência tem desdobramentos em sua ética que cumpre aqui tão-só assinalar de passagem. Platão advogará que as opiniões não conduzem ao conhecimento verdadeiro; as opiniões são aparências de um saber; não o verdadeiro saber. As opiniões pertencem ao mundo das coisas sensíveis e não nos permitem desvelar a essência das coisas. Por outro lado, o conhecimento é um processo ascendente que nos encaminha à realidade imutável, pela qual todas as coisas são o que são. A Cidade justa depende, portanto, do conhecimento do Bem em si e da Justiça em si. Os homens só serão justos e bons conhecendo o Bem e a Justiça em si, isto é, a Forma do Bem e a Forma da Justiça. Enquanto permanecem confundidos por aquilo que parece bom e justo, mudando continuamente de opinião, eles serão injustos e infelizes. Particularmente importante é lembrar que Platão via na razão a parte superior da alma humana. A razão é responsável por dar a medida. A parte racional da alma – repetimos - cumpre a função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. A parte racional é a parte espiritual e imortal da alma. É a função superior da alma, o princípio divino em nós. A razão é uma força que possibilita a libertação do homem do jugo dos apetites, das paixões pela submissão destas e daqueles ao controle e à justa medida determinada pela própria razão.
É preciso insistir em que, ao advogarmos que a filosofia se caracteriza essencialmente como uma atividade discursiva e/ou reflexiva baseada na confiança na razão como precondição para sua própria realização enquanto tal, não estamos ignorando que, ao longo de toda a história da filosofia, antes mesmo de o trabalho da desconstrução começar a solapar os fundamentos do legado da tradição, a confiança na razão foi, de algum modo, questionada. Nossa argumentação se orienta no sentido de sustentar que sempre (ou quase sempre) que essa confiança na razão encontrou-se às voltas com as vozes da suspeição, da desconfiança, a filosofia viu-se nas proximidades da sombra do niilismo. Basta pensarmos, por exemplo, na crítica vertiginosa empreendida pelo romantismo alemão de um Novalis ou Schlegel à ideia de uma arquitetônica em Kant. Todo um paradigma da racionalidade legado pela tradição se encontrou profundamente abalado; tudo se acha fraturado no romantismo alemão: o próprio paradoxo é lugar de sentido; o ser é um efeito e todo efeito é ser; sujeito e objeto se confundem; a lógica é subvertida, o rigor romântico transforma todas as coisas em coisas indiscerníveis; o sujeito é uma criação da linguagem; a linguagem não comunica nada (não há elemento fundante da linguagem); não há coisas ou mundo antes da linguagem: não há estrutura última do mundo; falta a garantia da referencialidade da verdade; os românticos recusam a evidencialidade da vinculação entre linguagem e homem. O movimento romântico, em suma, se caracterizou, fundamentalmente, como ruptura com o modelo identitário da filosofia.
 A série de abalos provocados pelo romantismo alemão não se esgota aí evidentemente. O que importa é ver que, ao subverter radicalmente toda uma série de pressupostos do paradigma tradicional da racionalidade, o romantismo alemão foi acusado de ser um movimento niilista. Niilista também, por um lado, porque celebrou unicamente o livre jogo da fantasia, a atividade espontânea de um eu que não mais reconhece o não eu, a matéria, o universo e até mesmo Deus. Niilista também, segundo seus acusadores, é a operação filosófica por meio da qual o romantismo alemão pretendeu suprimir o objeto da reflexão para mostrar que ele é produto de uma atividade invisível e inconsciente de um sujeito que é ele mesmo criação da linguagem.
A história da filosofia se caracteriza por uma tendência constante, a qual consiste na depreciação de toda forma de diferença e mudança. Em grande medida, a Metafísica, no Ocidente, se expressou como aversão a todo tipo de pensamento do devir. Nesse contexto, o que vimos chamando “confiança na razão” significa crença na existência de um mundo de identidades estáveis, de um mundo do qual as diferenças, a alteridade são ou excluídas ou relegadas à condição de possibilidade para se pensar as identidades.
Se, por um lado, um exame acurado do desenvolvimento do pensamento filosófico demonstraria, sem grande custo, a validade da tese por nós esposada, segundo a qual a filosofia nasce e se desenvolve com base numa confiança na razão; por outro lado, pode não ser imediatamente evidente a proposição segundo a qual o niilismo, enquanto uma forma de pensamento obcecado pelo nihil – o nadaé encontrado em toda a história do pensamento ocidental: de Górgias, com sua célebre fórmula “nada é, e se alguma coisa fosse, não poderia ser conhecida; e, se fosse conhecível, seria inexprimível” – à teologia negativa do poeta e filósofo Giordano Leopardi, para quem o nada é o princípio de Deus e de todas as coisas, o niilismo também impregnou o existencialismo francês de Sartre e Camus. Mas foi, sem dúvida, Nietzsche o maior profeta e teórico do niilismo. É com ele que o niilismo se erige em categoria histórica e em objeto de reflexão filosófica. Dedicaremos uma seção específica para apresentar a interpretação nietzschiana do niilismo. O niilismo já estaria suposto no cerne da doutrina paradoxal do cristianismo do Deus que assume a forma humana, do Deus que se faz homem. Nessa doutrina, Deus é situado na empiricidade dinâmica da história. O niilismo é a inesgotável nova narração da vida-morte do além imanentizado, ou seja, do Deus feito homem.
Niilismo, a despeito de seu significado multívoco, pode ser definido como uma doutrina que opera segundo uma série de reduções: os entes, as coisas, o mundo e, em particular, os valores e os princípios – são negados e reduzidos a nada. Do ponto de vista ontológico, o niilismo é a afirmação de um mundo do qual não se pode sair, de um mundo sem transcendência, sem valores superiores, sem alhures. Estar sempre de luto, reconhecer que nossa relação com o sentido originário, com os deuses, com o fundamento é uma relação marcada pela ausência, pela perda, pelo desaparecimento – eis, em suma, a essência da experiência niilista.
Parece-nos razoável dizer que toda a filosofia subsequente ao anúncio da morte de Deus constituiu um esforço de ultrapassamento do niilismo, uma busca por fazer viger alguma experiência de sentido no deserto que se tornou o mundo, após a devastação levada a cabo pelo trabalho da desconstrução. A filosofia, por razões que suponho estejam claras, não pode coexistir com o niilismo; o niilismo constitui uma ameaça à própria possibilidade da experiência filosófica. Pelo menos, nos parece ser esse o perigo que mesmo Nietzsche - a seu modo - e os filósofos que o sucederam souberam entrever. [3]
Não obstante, a par do aspecto negativo do niilismo, há nele um aspecto positivo. Num sentido positivo, o niilismo, na esteira de Nietzsche, permite uma nova posição de valores baseada na vontade de poder como caráter fundamental de tudo que é. Quando nos admiramos da insistência com que o niilismo, no seio do próprio trabalho filosófico de instituição de um horizonte de sentido vinculativo que torne possível ao homem viver neste mundo, faz ressoar seu eco, já não podemos então ignorar a questão como fazer filosofia em face da presença impregnante e perturbadora desse hóspede sinistro, que resiste a toda ordem de despejo. Em suma, o filósofo de hoje não deveria esforçar-se por responder a premente questão  - como é possível filosofar em face da presença do signo da Morte, da tentação do suicídio, da natureza emergente do Nada, que ameaça, por todos os lados, a pretensão de conferir sentido à série de esforços mobilizados pelos homens na tentativa de suportar o que eles, não raro, pressentem como um fardo, um peso, a saber, a própria existência?





[1] Não temos a pretensão de esclarecer quais são esses momentos. Basta-nos apenas observar que essa confiança na razão, embora seja uma precondição histórica para o desenvolvimento da filosofia, não passou incólume aos ruídos da vozes da suspeita, dentre as quais se destaca como a mais devastadora a de Nietzsche. É bem verdade que a crítica nietzschiana da razão não tinha em mira a razão em si, mas um modo específico de constituição da racionalidade grega: a racionalidade socrático-platônica, que, aos olhos de Nietzsche, produziu a fábula do mundo suprassensível, do mundo-verdade, cuja consequência mais evidente foi a negação da própria vida.
[2] Essa advertência não deve mascarar o fato de que posturas irracionalistas frequentaram a história do pensamento filosófico.
[3] No caso de Nietzsche, o ter entrevisto o perigo não significa que, ao fazer a crítica do niilismo, Nietzsche estivesse pretendendo “salvar” a filosofia do envenenamento niilista; sua preocupação, na verdade, era restabelecer a unidade entre a vida e o pensamento, era reconduzir o pensamento para a sua verdadeira morada – a vida -, para dela se ocupar, potencializando-a, e para que a vida, sob o cuidado potencializador do pensamento, se potencializasse. Mas foi justamente porque pretendeu liberar a vida de uma tradição de pensamento que não fazia senão enfraquecê-la que ele entreviu para que estéreis abismos caminhava o pensamento.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

A essência do niilismo: "(...) a crença no devir, a convicção, niilista, de que todas as coisas estejam no tempo, de que tudo flui e nada permanece" (Rossano Pecoraro)


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                           Filosofia e Niilismo
                      Primícias de uma investigação

 

Na filosofia moderna, na esteira de Descartes, por intuição entende-se a apreensão de qualquer objeto mental. Intuição, nesse sentido, recobre tudo que o pensamento experimenta com precisão em si mesmo ou na imaginação. Locke não dirá diferente disso – intuitivo é o conhecimento que percebe a concordância ou discordância entre duas ideias imediatas. É por intuição, portanto, que chego a compreender que, depois de Nietzsche, é impossível fazer filosofia como a fizeram seus antecessores. O que significa essa impossibilidade?  Para mim, ela significa duas coisas: 1) impossibilidade de sustentação de um pensamento filosófico afinado com os pressupostos hermenêuticos à luz dos quais se orientou a tradição; 2) insistência em manter silêncio sobre as consequências radicais para a reflexão filosófica advindas da perturbação desse que é o “mais sinistro de todos os hóspedes” – o niilismo.

A confiança na razão é a essência de toda empresa filosófica. A história do pensamento filosófico, desde suas origens, orientou-se pela busca de princípios capazes de conferir sentido ao conjunto da experiência humana. Quando admitimos que a filosofia se desenvolveu, desde suas origens pré-socráticas, como uma prática discursiva assentada na confiança na razão, queremos dizer que a experiência filosófica é ela mesma uma experiência destinada ao trabalho com o sentido. A filosofia tem como preocupação a determinação de um sentido para o mundo. Historicamente, portanto, a filosofia, buscando explicar, num registro racional, os problemas já colocados pelo mito e a religião, assumirá alguns pressupostos que, na modernidade (e, sobretudo, depois do trabalho da desconstrução), se tornaram ineficazes para conferir sentido à vida humana. Dentre esses pressupostos, destaquem-se três:

 

a) o mundo constitui uma totalidade ordenada e inteligível, cuja história obedece a um desenvolvimento explicável;

b) Esse mundo ou cosmo apresenta uma ordem eterna, divina, bela (boa); em última instância, inteligível.

c) o sentido da vida humana consiste em ajustar-se a essa ordem divina e bela que constitui o cosmo.

 

Toda a história da filosofia ocidental, sobretudo a partir de Platão, orientou-se pelo pressuposto de que um ente, quanto mais real, quanto mais verdadeiro, quanto mais eterno, mais bondade e perfeição possuiria. A vida humana deveria orientar-se pelo mais real, pelo que é em si.

Com o anúncio nietzschiano da morte de Deus, se esgota o sentido no próprio coração do universo. Com ela, apaga-se a ulterioridade do princípio, desaparece o “lugar” da constituição dos valores superiores. O homem sente a proximidade desse que é “o mais sinistro dos hóspedes” – o niilismo.

De fato, o niilismo, enquanto uma forma de pensamento obcecado pelo nihil – o nada, pode ser rastreado em toda a história do pensamento ocidental. De Górgias com suas famosas teses “nada é, e se alguma coisa fosse, não poderia ser conhecida, e se fosse conhecível, seria inexprimível” – à teologia negativa do poeta e filósofo italiano Giacomo Leopardi, para quem o nada é o princípio de Deus e de todas as coisas, o niilismo impregnou o existencialismo francês cujos maiores expoentes são Sartre e Camus. Mas foi, sem dúvida, Nietzsche o maior profeta e teórico do niilismo. É com ele que o niilismo se erigirá em categoria histórica e em objeto de reflexão filosófica. Niilismo, a despeito de seu caráter multívoco, pode ser definido como uma doutrina que opera segundo uma série de reduções: os entes, as coisas, o mundo e, em particular, os valores e os princípios – são negados e reduzidos a nada. Do ponto de vista ontológico, o niilismo é a afirmação de um mundo do qual não se pode sair, de um mundo sem transcendência, sem valores superiores, sem alhures. Estar sempre de luto, reconhecer que nossa relação com o sentido originário, com os deuses, com o fundamento é uma relação marcada pela ausência, pela perda, pelo desaparecimento – eis, em suma, a essência da experiência niilista.

Me parece razoável dizer que toda a filosofia subsequente ao anúncio da morte de Deus constituiu um esforço de ultrapassamento do niilismo, uma busca por fazer viger alguma experiência de sentido no deserto que se tornou o mundo, após a devastação levada a cabo pelo trabalho da desconstrução. A filosofia, por razões que suponho estejam claras, não pode coexistir com o niilismo; o niilismo constitui uma ameaça à própria possibilidade da experiência filosófica. Pelo menos, me parece ser esse o perigo que mesmo Nietzsche e os filósofos que o sucederam souberam entrever.

 

Não obstante, a par do aspecto negativo do niilismo, há nele um aspecto positivo. Num sentido positivo, o niilismo, na esteira de Nietzsche, permite uma nova posição de valores baseada na vontade de poder como caráter fundamental de tudo que é. É esta dimensão positiva do niilismo que precisa ser mais bem aprofundada. Para mim, portanto, a grande questão filosófica, o problema que mais interesse tem-me despertado em minha lida diária com a filosofia, é como fazer filosofia em face da presença impregnante e perturbadora desse hóspede sinistro, que resiste a toda ordem de despejo. Em suma, como é possível filosofar em face da presença do signo da Morte, da tentação do suicídio, da natureza emergente do Nada, que ameaça, por todos os lados, a pretensão de conferir sentido à série de esforços mobilizados pelos homens na tentativa de suportar o que eles, não raro, pressentem como um fardo, um peso, a saber, a própria existência? Eu me sinto tentado, quase por intuição, a anunciar uma resposta cuja elaboração supõe a defesa de uma filosofia da banalidade do real. O niilismo não encerra tão somente um aspecto negativo; ele não pode ser compreendido e experienciado apenas como ausência dos fundamentos, vazio, abandono, náusea, aniquilamento. Como o niilismo encerre também um aspecto positivo, ele deve ser compreendido e pode ser experienciado como afirmação da banalidade da vida, como desmitificação, como renúncia às formas nocivas de autoengano, como recusa do esgotamento da vontade, da tirania dos valores “superiores” que divorciaram o homem do real, que asfixiaram a vida instintiva no próprio homem. O niilismo pode ser o modo próprio de a vida instintiva dar-se ao homem como gratuidade, como um viver-se que é vontade de vida, potência de ser, que se afirma sob a forma de um novo Aufklärung (esclarecimento). Na medida em que o niilismo constitui a categoria fundamental através da qual devemos pensar a constituição histórica do homem ocidental, na medida em que o niilismo se tornou “a condição normal” de nosso tempo, será necessário também examinar as formas atuais assumidas por um “niilismo incompleto”, que reduziram a vida do homem comum à vida besta em escala planetária, a uma forma de vida depauperada. O niilismo contemporâneo é um niilismo que não atingiu suas últimas consequências, a saber, a libertação do homem e da vida no homem da tirania das ficções, dos produtos da criação do “imaginário radical, para usar um conceito de Castoriadis, com o qual ele busca compreender o caráter ficcional ou imaginário da instituição da ordem social. Esse niilismo incompleto encontra numa bioascese seu  modus operandi mais devastador, porque produz uma forma, cientificamente controlada e balizada, de esgotamento do corpo, porquanto funciona como um biopoder que busca obsessivamente, por um lado, ajustar o corpo às normas científicas de saúde, de longevidade; e por outro, às normas da cultura do espetáculo, conforme o modelo das celebridades. Vige ainda aí, de modo explícito, a crença na Ciência como o caminho redentor do homem de sua condição existencialmente precária e mortal. O niilismo contemporâneo revela uma nova forma de aprisionamento do homem, de escravização da vida: a tirania da imagem corporal ideal, que se persegue mesmo à custa do bem-estar, mesmo que sejam necessárias as mutilações do corpo que comprometem esse bem-estar. O corpo é um corpo reificado e a imagem corporal como signo do Belo almejado, um Belo que não é uma Essência a habitar o mundo platônico das Formas, mas um Belo que toma corpo, que “se faz carne” e se torna objeto de adoração, idolatria; essa imagem corporal que expressa o Belo ideal é absolutizada. O niilismo incompleto contemporâneo, sob a forma de biopoder, produz meros sobreviventes: ele separa, no homem, a vida orgânica da vida animal, o não humano do humano. Sua ambição suprema é a separação definitiva do zoé e bios. Fazer sobreviver significa reduzir o homem à vida vegetativa; significa, em última instância, reduzir a vida humana a um mínimo biológico, à vida nua, ao mero fato da vida.

 

domingo, 31 de janeiro de 2016

"Que significa o niilismo? Que os valores superiores se depreciam." (Nietzsche)

                                      







                       O niilismo: um estado patológico[1]

Este texto constitui um fragmento do trabalho intitulado “Uma abordagem semântica relacional do niilismo, da má consciência e o do ideal ascético na filosofia de Nietzsche”, por mim desenvolvido na disciplina Ética II do curso de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).



O acontecimento da morte de Deus constitui, conforme vimos, um imperativo histórico. Com ele, passamos a viver num mundo ao qual falta qualquer profundidade que antes lhe servia de suporte metafísico. A vontade de poder permeia todos os acontecimentos do mundo, caracterizando o próprio mundo como superfície fenomênica. Não há mais um ‘em si’ como instância doadora de sentido ao mundo. Portanto, vimos que o niilismo é tanto a experiência da falta de sentidos normativos que orientavam as vivências humanas quanto a impossibilidade de ter acesso ao absoluto.
Também acenamos com o fato de que Nietzsche não pode ser alcunhado de “filósofo do niilismo”. Pretender fixar-lhe tal lugar é ignorar seu esforço combativo orientado para a superação do niilismo. Nietzsche foi quem melhor soube identificar as causas desse estado patológico da vida e de propor-lhe uma forma de tratamento. O acontecimento da morte de Deus, para Nietzsche, não apenas fez eclodir o desespero niilista, como também (e sobretudo) abriu o horizonte para a possibilidade de superação do niilismo. Para Nietzsche, o niilismo é a condição normal da nossa época, da época pós-moderna. É verdade que, num primeiro momento, Nietzsche reconhece que o niilismo é experienciado como consequência da derrocada dos valores superiores. Nietzsche, ao perguntar o que significa o niilismo, numa primeira aproximação, responde: “que os valores superiores se depreciam”[2]. Mas essa não é a experiência que tem o tipo forte. A experiência niilista que se segue da derrocada dos valores superiores mantidos até então pela instância metafísica representada por Deus acometerá um tipo vital específico. O trecho abaixo confirma essa nossa interpretação. Além disso, o trecho patenteia-nos que o grandioso evento da “morte de Deus” sequer fora ainda sentido pela maioria dos homens. É importante reter o seguinte: a crítica de Nietzsche ao niilismo remonta às raízes do niilismo, que não se encontram no acontecimento da “morte de Deus”. Nietzsche parte do reconhecimento de que o niilismo veio suprimir a questão sobre a finalidade da existência. O “para quê” da vida carece de sentido depois que o mal do niilismo envenenou o modo como o homem experiencia o mundo. No entanto, o que parece preocupar Nietzsche é justamente a questão sobre o que a necessidade de interpretar a vida à luz da categoria de finalidade encoberta. O niilismo, segundo Nietzsche, é um estado patológico que não atingiu ainda seu termo. Falta-lhe justamente um sentido para o qual ele possa tender. O acontecimento da morte de Deus não é o começo desse estado, para Nietzsche; mas um estágio extremamente importante para superá-lo. Por isso, o acontecimento da morte de Deus descerra um novo horizonte hermenêutico que permitirá fomentar novas formas de interpretação da vida que se destinem à superação do estado patológico do niilismo, cujas raízes é anterior a esse grandioso acontecimento.

- O maior acontecimento recente – o fato de que “Deus está morto”, de que a crença no Deus cristão perdeu seu crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular, mais desconfiado, mais estranho, “mais velho”. Mas pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande, distante e à margem da compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda que muitos soubessem já o que realmente sucedeu realmente sucedeu – e tudo que estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado; toda a nossa moral européia, por exemplo. Esta longa e abundante sequência de ruptura, declínio, destruição, cataclismo, que agora é iminente: quem poderia hoje adivinhar o bastante acerca dela, para ter de servir de professor e prenunciador de uma tremenda lógica de horrores, de profeta de um eclipse e ensombrecimento solar, tal como provavelmente jamais houve na Terra?... Mesmo nós, adivinhos natos, que espreitamos do alto dos montes, por assim dizer, colocados entre o hoje e o amanhã e estendidos na contradição entre o hoje e o amanhã, nós, primogênitos e prematuros do século vindouro, aos quais as sombras que logo envolverão a Europa já deveriam ter se mostrado por agora: como se explica que nós encaremos sem muito interesse o limiar deste ensombrecimento, e até sem preocupação e temor por nós? Talvez soframos demais as primeiras consequências desse evento – e estas, as suas consequências para nós, não são, ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento, aurora... De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que “o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto”.[3]


Este aforismo tem insignes imagens que servem à expressão da significatividade do horizonte que se abre com o acontecimento da morte de Deus. Nietzsche o descreve como  “uma nova espécie de luz”, “uma nova aurora”, “como o nosso mar”, “mar aberto”. Todas essas imagens remetem ao horizonte descerrado pela “morte do velho Deus”. É justamente o mundo que se torna infinito novamente, que se torna suscetível de infinitas interpretações. Mas experienciar o acontecimento  da morte de Deus como “felicidade”, “alívio”, “contentamento”, “encorajamento”, como uma espécie de iluminação por uma nova aurora só é possível aos espíritos livres. Por isso, Nietzsche escreve sobre “as consequências para nós”, isto é, as consequências segundo uma interpretação que fixa um sentido sintetizador daquela “sequência de ruptura, de declínio, corrupção, cataclismo”. Ora, compreender o acontecimento da morte de Deus como algo capaz de produzir tal estado-de-coisas decorre de certo modo de conformação do mundo segundo um processo interpretativo de certo modo do relacionar agonístico entre vontades de poder. O tipo afirmador, o que é dotado de espírito livre, na medida em que é vontade de poder, valorará o acontecimento da morte de Deus, isto é, lhe imporá um sentido que sirva ao propósito de afirmar a vida, de intensificar a vida, de fortificá-la,; um sentido que possibilite quantificar ascensionalmente as forças da vontade. Esse tipo afirmador fixará um sentido que expressará consentimento pleno às consequências daquele acontecimento. O “mar está aberto”, e o tipo afirmador “quer que assim seja!”, não apesar dos perigos, mas por causa dos perigos que a imensidão do mar, que se lhe torna novamente acessível, lhe guarda. Porque os perigos, para o tipo afirmador, é condição de possibilidade para a ousadia, para o envidar de esforços corajosos destinados à regeneração da vida, à conformação de novos corpos vitais que sejam a encarnação de vontades de poder que amem o modo do destinar-se da vida.
Cumpre-nos, agora, responder à questão: como Nietzsche compreende o niilismo? Está claro que ele não ignora os modos como o niilismo é interpretado em seu tempo. Porque reconhece que o niilismo está ligado à depreciação dos valores superiores, Nietzsche discriminará entre duas formas de niilismo: um niilismo ativo e um niilismo fatigado (ou passivo).  Essa última forma de niilismo tornou-nos cansados do homem. Na Genealogia, lemos o seguinte:

- junto com o temor do homem, perdemos também o amor a ele, a reverência por ele, a esperança em torno dele, e mesmo a vontade de que exista ele. A visão do homem agora cansa – o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do homem.[4] (ênfase nossa).


O fato de o homem estar cansado de si mesmo – nisso consiste o niilismo fatigado. Essa forma de niilismo não mais ataca. Nietzsche fornecerá como exemplo desse niilismo fatigado o budismo[5]. Nietzsche, no entanto, também vê o cristianismo como uma religião niilista. Tanto o budismo quanto o cristianismo comungam da mesma empresa: lutam contra os sentimentos de inimizade e os consideram fontes de todo o mal. As duas religiões também ensinam a indiferença em relação à ostentação de felicidade. O budismo é uma religião marcada por uma profunda luta contra o desejo, que considera a causa de todo sofrimento. O problema é que lutar contra o desejo é lutar contra a vida. O budista quer separar-se da vida, quer alcançar a dissolução absoluta no nada (nirvana final)[6]. A vida, para ele, também não pode ser aprovada, por isso ele quer interromper a lei do samsara (do ciclo de nascimento-morte-renascimento). O homem que não conseguiu interromper o ciclo de renascimentos vive na condição de escravo. É necessário, então, que esse homem alcance a salvação, que, diferentemente da salvação cristã, é uma salvação que depende exclusivamente de si mesmo. O cristianismo também quer separar-se da vida, embora seja proibido ao cristão fazê-lo voluntariamente (tanto quanto para o budista). O fim supremo do cristão é a salvação, que envolve a possibilidade de libertar-se do mundo para fruir de uma nova vida no Reino de Deus. O cristão não é desse mundo; seu destino é viver para adorar a Deus na esperança de obter dele a salvação. Para Nietzsche, esse desejo de salvação próprio do cristão decorre de sua “profunda incultura” com relação ao objeto de seus desejos.
O budismo e o cristianismo creem que os instintos vigorosos da vida (e para Nietzsche tudo que é instinto é bom) não mais atendem à conquista da alegria, mas são causa de sofrimento. No budismo, o sofrimento é experienciado quando aqueles instintos motivam a ação. O conceito de carma no budismo supõe que o nosso destino é determinado por nossas ações. Assim, como todas as ações têm consequências, ações más (e pensamentos maus) acarretam uma série de renascimentos danosos. Portanto, o modo como se constituirá a vida em que o indivíduo renascerá é consequência direta do modo como agiu, se comportou, pensou na vida anterior. Para romper com o carma, para suprimir o ciclo de renascimentos, o budista deve viver segundo a instrução deixada por Buda. Em essência, deve viver de modo a evitar os excessos, a desmesura (hýbris). Toda forma de proceder que seja desmesurada produz desprazer. Para Nietzsche, o cristão, por sua vez, também crê que aqueles instintos causam sofrimento, na medida em que levam a inimizades. O ódio e a ofensa engendram desprazer, violentam “a paz da alma”; e o que mais aspira alcançar em vida o bom cristão é a paz da alma (“que a paz esteja convosco”).
O niilismo fatigado é sinal de fraqueza, para Nietzsche; é expressão de cansaço da vida, de esgotamento da vontade.

(...) de tal forma que os fins e valores preconizados até o presente pareçam impróprios e não mais se imponham, de sorte que a síntese dos valores e dos fins (sobre os quais repousou toda cultura sólida) se decomponha; e que os diferentes valores se guerreiem entre si; uma degradação...; que tudo o que alivia, cura, tranquiliza, atormenta,  venha em primeiro plano, sob roupagens diversas, religiosas ou morais, políticas ou estéticas etc.[7]

Esse trecho sugere que o niilismo constitui um estado de decepção quanto à pretensão de fixar uma finalidade para o “eterno vir a ser”. O niilismo parece ser consequência de se criar valores que, em vez de afirmar a vida, se destinam a condená-la. A decepção ou se relaciona com um propósito que, em todo caso, fora previamente determinado, ou, de maneira geral, decorre da percepção de que as crenças numa finalidade para a vida são insuficientes para lhes dar coesão. Nesse caso, segundo Nietzsche, “o homem não mais se apresenta como o colaborador e, menos ainda, como centro do “eterno vir-a-ser”.[8]
No que tange ao niilismo ativo, ele alcança o máximo de sua força destrutiva. Essa forma de niilismo é destruidora de todos os valores superiores em que se esteia a moral ocidental. Essa forma de niilismo é um estágio necessário para a transvaloração de todos os valores; mas ela deverá também ser superada, porque é necessário reconduzir o homem para a terra; é necessário reconciliá-lo com sua existência aqui no mundo. O homem acreditou por muito tempo que a finalidade da existência fora fixada por uma autoridade sobre-humana. Essa autoridade, ordenadora do mundo, é fonte de todos os valores supremos. Mas os homens que passaram a questioná-la e a deixar de crer nela buscaram outras instâncias de autoridade moral: a consciência, a razão, o rebanho, a história. Nietzsche observa que a emancipação da autoridade teológica tornou a necessidade de moral mais premente. A própria moral torna-se mais imperiosa; afinal, como poderíamos viver num mundo em que não houvesse nenhum preceito moral a orientar a convivência humana ou num mundo em que não houvesse preceito moral que nos proibisse atender aos apelos de nossos “cruéis instintos”?
Segundo Nietzsche, o niilismo também ensejou uma outra fase: a do fatalismo. Não se divisa resposta alguma para a questão do “para quê”. Não podemos querer um fim, muito embora ainda seja possível acreditar que “para alguma parte estamos indo”[9]. Posteriormente, a negação passou a ser a explicação da vida. Negar a vida significa destituí-la de qualquer valor: a vida é uma experiência absurda, destinada a suprimir-se.


Niilismo como condição psicológica

Nietzsche descreve o niilismo, tendo em vista seu aspecto psicológico, como uma experiência decorrente da necessidade de darmos “o sentido” a tudo que não se presta a recebê-lo. Ao pretendermos determinar “o sentido” para o mundo, constatamos que o mundo resiste a se deixar estruturar por esse sentido. Destarte, segundo Nietzsche,

O niilismo, como condição psicológica, aparecerá primeiramente, logo que sejamos forçados a dar a tudo o que acontece o “sentido” que aí não se encontra: dessa forma, quem procura acabará por perder a coragem. O niilismo é, pois, o conhecimento do longo desperdício da força, a tortura que ocasiona esse “em vão”, a incerteza, a falta de oportunidade de se refazer de qualquer maneira que seja, de tranqüilizar-se em relação ao que quer que seja – a vergonha de si mesmo, como se fôssemos ludibriados por longo tempo.[10] (ênfases no original).

Nietzsche não está negando que seja parte fundamental da condição humana a necessidade de produzir sentido. Já fizemos notar que a vida mesma nos força a valorar, a produzir sentido. O problema está em pretender doar ao mundo “o sentido”, isto é, um único sentido; é supor que o mundo se preste a acomodar-se à crença na unicidade do sentido. Ora, o sentido, segundo vimos, é um problema tratado por Nietzsche à luz de seu perspectivismo. Como a trama da realidade é resultado de um jogo agonístico de vontades de poder que se relacionam entre si e como cada vontade de poder interpreta, isto é, é produtora de sentido, existe sempre a possibilidade, a princípio, de perdurar um confronto entre múltiplos sentidos. No entanto, o próprio sentido é indicativo da preponderância, da hegemonia de uma vontade de poder, de uma força sobre as demais. Esse sentido indicador da hegemonia “apaga” a inerência conflitiva das relações entre as forças, isto é, pretende mascarar o aspecto deveniente, contraditório da dinâmica das relações entre as forças. Quer-se impor como único sentido possível, como o sentido último, absoluto que confere substancialidade ao mundo, que o sustenta e que serve de horizonte norteador das ações humanas. A propósito da origem desse sentido, Nietzsche dirá que pode ser fixado “pelo cumprimento de um cânone moral superior”; pode ser resultado do “aumento do amor e da harmonia entre os seres ou parte da realização do estado de felicidade universal; ou até a marcha para um não ser universal”[11]. O problema, segundo Nietzsche, é que essa necessidade de fixar uma unidade de sentido é parte da dinâmica deveniente do próprio mundo. Ora, o devir do mundo impossibilita atingir o objetivo pretendido, qual seja, sintetizar definitivamente toda a multiplicidade dos elementos do mundo. A alternativa é tão pouco favorável, isto é, pretender que exista uma instância metafísica que sirva de fundamento desse único sentido ordenador, estruturador do mundo é iludir-se quanto à possibilidade de o devir reger-se por uma unidade superior.
Na descrição do niilismo como condição psicológica, Nietzsche faz-nos ver ainda outros dois traços importantes. O primeiro dentre estes traços é que o niilismo é resultado da necessidade de estabelecer uma ordem, uma totalidade, uma sistematização em tudo o que acontece no mundo. Em uma palavra, o niilismo é consequência inevitável da necessidade que tem o homem de logicizar o mundo. Mas, “não existe semelhante totalidade”[12]. A totalidade a que Nietzsche se refere e em proveito da qual o indivíduo se sacrifica é a humanidade. Nietzsche nega que o sentido do mundo possa derivar da profunda dependência do homem em relação a um todo que lhe é infinitamente superior. Nietzsche não crê na humanidade como um “ente”. O homem já não encontra valor em si, tendo reconhecido que não há tal totalidade a lhe garantir um enraizamento ontológico no mundo. A necessidade que tem o homem de crer no todo objetiva assegurar o seu próprio valor.
O terceiro e último traço do niilismo como condição psicológica assenta em dois pressupostos: 1) o devir não possibilita a realização de nada; 2) o devir não encontra esteio e governo em alguma grande unidade à qual o indivíduo possa vincular inteiramente a sua existência. No primeiro caso, julga-se que, no mundo, em que tudo flui, tudo se transforma, tudo está destinado a não ser o que era, toda pretensão à realização está fadada ao malogro. Vida é desfazimento; no viver no mundo em fluxo perpétuo, os projetos humanos correm o risco de nunca realizar-se, ou, caso venham a se realizar, correm o risco de sucumbir à impermanência a que estão destinadas todas as coisas. No segundo caso, não havendo possibilidade de garantir um sentido de unidade em que a existência do indivíduo possa estear-se, ele vê-se arrastado também pela impermanência de todas as coisas. Resta-lhe inventar um mundo-verdade, um mundo que transcenda ao mundo deveniente. Mas, ao inventar esse mundo-verdade, o homem condena o mundo do devir; toma-o como uma ilusão.

Mas desde que o homem compreenda que este mundo somente foi edificado para responder às necessidades psicológicas e que este não tem absolutamente qualquer fundamento, nasce-lhe uma forma suprema de niilismo, forma que abarca a negação de um mundo metafísico – que exclui a crença num mundo-verdadeiro. Por este ângulo, admite a realidade do devir, como única realidade, proibindo qualquer desvio que leve a um além e a falsas divindades e não tolera mais este mundo embora não queira negá-lo.[13] (ênfase no original).


A leitura do excerto acima autoriza-nos dizer que o niilismo decorre do reconhecimento pelo homem de que o mundo metafísico ou o mundo-verdade é criação sua. Ademais, o homem reconhece que o criou para atender a necessidade que ele tem de crer que o sentido do mundo esteja assegurado por um “em si”. No entanto, como procuramos mostrar, o niilismo é uma experiência que não foi levada até as suas últimas consequências. O homem que reconhece que o mundo-verdade não existe, que sua criação atende a necessidades psicológicas suas, não renuncia completamente ao mundo do em-si e dos deuses.
As categorias de “finalidade”, “unidade” e “ser” responderam, na tradição, pelo anseio de conferir ao mundo fundamento. O mundo passou a ser concebido como uma ordem (cosmo), uma totalidade dotada de sentido que era mantida na postulação dessas categorias. Assim, “finalidade”, “unidade” e “ser” constituíram instâncias metafísicas doadoras de sentido ao mundo; a partir delas, o mundo recebia valor. Com o niilismo, suprime-se a estrutura metafísica que assegurava uma ordem de sentido ao mundo. Suprimida essa estrutura metafísica, o mundo deixa de ter valor. Ademais, passou-se a crer que o mundo não pode mais ser interpretado; e ignorou-se que o niilismo só levou à derrocada uma interpretação que se conservou hegemônica durante muito tempo, na história do ocidente. Segundo Nietzsche, da desvalorização daquelas categorias não se segue que estejamos justificados para desvalorizar o mundo. É preciso reconhecer que o niilismo deve sua causa à crença naquelas categorias. O niilismo, para Nietzsche, repousa em nosso inveterado hábito de medir o valor do mundo “de acordo com as categorias que se relacionam com um mundo fictício”[14]. A experiência do niilismo, antes de nos conduzir ao abandono num universo que não mais se importa conosco, antes de nos arrastar para o desespero, deve ser uma experiência vivenciada como a grande aurora, o instante decisivo em que nos apercebemos de que nos habituamos a ver os valores como imanentes à essência das coisas. Julgamos, falsamente, que as coisas possuem, em si mesmas, um valor. Acompanhemos o que nos escreve Nietzsche a seguir:

Conclusão: todos os valores pelos quais experimentamos até o presente tornar o mundo avaliável para nós, e pelos quais temo-lo precisamente desvalorizado desde que se mostraram inaplicáveis – sob o ângulo psicológico, todos estes valores são resultados de certas perspectivas de utilidade, estabelecidas para manter e aumentar as criações de domínio, mas falsamente projetadas na essência das coisas.[15] (ênfase nossa).


Tendo em conta o excerto acima, categorias como “finalidade”, “unidade” e “ser”, com as quais procuramos valorar o mundo, foram produzidas por princípios interpretativos que se tornaram hegemônicos (que assumiram a forma de perspectiva) com o propósito de assegurar a manutenção e o aumento do domínio de uma vontade de poder criadora. Desde que elas se demonstraram inúteis, o homem passou a experimentar uma perda de mundo. Com a experiência niilista, o homem descobriu que aqueles valores não existem como propriedades inerentes à constituição do mundo, mas foram projetadas por ele como se fossem propriedades essenciais do mundo. Tal descoberta leva o homem a condenar o mundo. No entanto, Nietzsche parece querer argumentar que o caráter desmitificador da experiência niilista, na medida em que torna o mundo infinito novamente, a saber, na medida em que descerra para o homem um novo horizonte de possibilidades de interpretação do mundo, aponta, por isso mesmo, o caminho a ser trilhado pelo homem para que possa superá-la.
O que o homem experiencia com a desvalorização dos valores que até então sustentavam a sua existência é caracterizado por Nietzsche como uma forma de niilismo radical: “(...) a convicção da absoluta insustentabilidade da existência, quando se refere aos valores superiores que se aceitam; acrescente-se ainda o sabermos que não temos o menor direito de fixar um além ou um “em si” das coisas.”[16]. Para Nietzsche, o que explica nossa convicção absoluta da ausência de sentido da vida é nossa crença na moral: “enquanto cremos na moral, condenamos a existência”[17]. Nossa fé na moral suprime-nos a vontade de viver. Enquanto continuamos a acreditar em que a existência não se sustenta sem um fundamento moral, a existência continuará a ser condenada. O pessimismo que daí se segue leva o homem a experienciar o niilismo extremo: não há mais sentido possível, não há mais valor que anime a vontade de viver. Toda a história da moral ocidental, para Nietzsche, se desenvolveu como negação da vida como vontade de poder, ou ainda, como falsificação da vida.
Nietzsche acredita que o niilismo ativo deve ser encorajado. É justamente essa forma de niilismo que deve estar a serviço do combate ao niilismo passivo ou fatigado. Como o niilismo passivo ou fatigado é um sintoma de uma longa experiência moral negadora da vida, cumpre servir-se do niilismo ativo como meio para a destruição dos valores superiores que levaram o animal humano a adoecer. Mas – sublinhe-se isto – o niilismo ativo constitui apenas um estágio da radicalidade do processo de transvaloração de todos os valores. Nietzsche não se satisfaz apenas com a demolição dos ídolos da tradição, dos valores superiores; em todo caso, é preciso pavimentar o caminho para o advento do além-do-homem.





[1] Este texto é parte de um trabalho acadêmico com o qual obtive, ao final do curso, a nota máxima.
[2] Vontade de Potência, Niilismo, § 2.
[3] A Gaia Ciência,  Livro V, § 343.
[4] Primeira dissertação, § 12.
[5] É preciso notar que, para Nietzsche, o budismo e o cristianismo são religiões de declínio, são movimentos niilistas (Nietzsche, 2011, § 135-136). Mas, em O Anticristo, ele reconhecerá que, em certos aspectos, o budismo mais ocupado da vida que o cristianismo. Por exemplo, Nietzsche ressaltará que o budismo é mais realista que o cristianismo; que o budismo coloca objetivamente os problemas da vida, que soube suprimir o conceito de “deus”, que não luta contra o pecado, mas contra o sofrimento, que, em suma, “ele se encontra além do bem e do mal” (Nietzsche, 2012, § 20 et.seq.).
[6] O nirvana é o estado em que todo o carma e a lei dos renascimentos são interrompidos. O nirvana é uma experiência que deve se dar no aqui e agora, no mundo, portanto. Quando o budista atinge o nirvana, consegue extinguir o desejo. Mas a forma última e definitiva do nirvana só se alcança com a morte, que é a extinção absoluta. Alguns budistas chamam-na de parinirvana. (Gaarder, Jostein et.al. O livro das religiões. Trad. Isa Mara Lando. Companhia das Letras: São Paulo, 2005).
[7] Nietzsche,  op.cit, loc.cit.
[8] Nietzsche, 2011. Crítica do niilismo, § 5.
[9] Ibid., p. 141.
[10] Ibid., p. 142.
[11] Ibid.
[12] Ibid., p. 143.
[13] Ibid., p. 143-144.
[14] Ibid., p. 145.
[15] Ibid.
[16] Ibid., p. 146
[17] Ibid.


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