Mostrando postagens com marcador Nietzsche. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Nietzsche. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 3 de julho de 2019

A terra (...) tem uma pele; e essa pele tem doenças. Uma delas, por exemplo, chama-se “homem”. ( Zaratustra)



Resultado de imagem para nietzsche desenho


O ANIMAL DOENTE
O HOMEM COMO DOENÇA DA TERRA

PARTE 1





1. Vida como vontade de potência: perspectivismo e valor


Esta primeira seção de nosso estudo é destinada menos a uma dissertação cuidadosa e delongada sobre a concepção de Nietzsche de vida como vontade de potência, de perspectivismo e valor do que a um descerramento do horizonte hermenêutico do projeto crítico nietzschiano de transvaloração de todos os valores a partir da elucidação do que Nietzsche entende por vida, perspectivismo e valor. O que pretendemos é aplanar o solo de conceitos a partir dos quais se estenderá a discussão empreendida por nós neste trabalho. Sobre cada um dos temas que se põe aqui como objetos de nossa consideração não recairão aprofundamentos. O que pretendemos é tão somente iluminar, no espectro semântico da abordagem deles em Nietzsche, os aspectos que se inscreverão, no contexto da presente discussão, como pressupostos teóricos e metodológicos.
Comecemos por considerar o que nos parece ser importante na concepção nietzschiana de vida. O que nos parece indispensável sublinhar, na concepção nietzschiana de vida, é que a vida - lê-se em Vontade de Potência (2011, § 296) - “aspira a um sentimento máximo de potência”. Portanto, na concepção de vida como vontade de potência, importa-nos reter a ideia de que o que o querer (a vontade) quer é um aumento de potência. Mas a concepção de vida como vontade de potência é já uma interpretação da vida. A vida é um complexo de interpretações. É à luz da interpretação da vida como vontade de potência, ou seja, como jogo de relações agonísticas de forças que constituem a vida e o mundo, que Nietzsche pensará a moral como antítese da vida, como uma forma de interpretação, ou ainda como uma forma assumida pelas forças em conflito orientada para o enfraquecimento, a negação da vida. A vida, para Nietzsche, é um acumular de forças e também sempre multiplicidade em devir em meio a processos de singularização. O mundo é um campo de relações agonísticas de forças. O que existe são forças e relações de forças. Cada força é um princípio relacional de configuração de mundo. A diversidade do mundo deveniente é resultado da atuação das forças no jogo relacional agonístico que entre elas se estabelece. O corpo que eu sou é integrado por muitas forças. O próprio corpo é efetivação de forças, cada um de nós é um centro de forças, é um centro de vontades de potência. Corpo é um arranjo vital produzido como resultado do quantum de forças predominantes em conflito. Os instintos que compõem o corpo que eu sou também interpretam. Os instintos são produto da incorporação de valores. Como equivalente de afeto, o instinto constitui o centro de perspectivas a partir do qual uma interpretação é produzida; ele é uma expressão particular da vontade de potência.
O conceito de vontade de potência é, em Nietzsche, um modo de interpretação da vida e funcionará, no seu projeto de transvaloração de todos os valores, tanto para a avaliação do valor dos valores quanto para a instituição de um novo horizonte hermenêutico que tornará possível a demolição dos ídolos da tradição. Com a vontade de potência, a vida torna a colocar-se em seu centro de gravidade.
Passemos, doravante, a considerar o que Nietzsche entende por perspectivismo e, no âmbito desse conceito, o que devemos entender por valor e interpretação. No fragmento 311 de Vontade de Potência, obra já referida, Nietzsche nos esclarece sobre a seguinte relação entre vontade de potência e fixação de valores.


Todas as escalas de valores não são mais que consequências e perspectivas mais estreitas ao serviço dessa única vontade: a própria escala de valores não é mais que essa vontade de potência. (...)
Dar valor do ser: mas essa avaliação ainda faz parte do ser – e ao dizermos não, realizamos ainda o que somos... Impõe-se que aquilatemos o absurdo dessa atitude que quer julgar a existência, e ainda procura adivinhar depois o que sucede com isso. É sintomático. (ênfases no original).


Toda vontade de potência é um princípio de valoração; cada vontade de potência valora. O perspectivismo em que se esteia a filosofia nietzschiana recusa o pressuposto metafísico, segundo o qual existiria a coisa-em-si como suporte metafísico do devir. Ademais, o perspectivismo assenta na afirmação de que não há um mundo como totalidade ordenada, dotado de sentido e finalidade, para além de toda interpretação ou perspectiva. Portanto, conceber o mundo como atravessado pelas perspectivas significa destituí-lo de fundamento. Esse mundo – o nosso mundo – não tem ser porque nada há nele para além do devir. Cremos estar expresso neste parágrafo aquilo que não pode ser esquecido na concepção de perspectivismo em Nietzsche: que o mundo não tem ser porque nada há nele para além do devir. Mas precisamos desenvolver mais nossa consideração sobre o perspectivismo. Precisamos lançar luzes sobre o que Nietzsche entende por valor e interpretação. Para tanto, devemos ouvir o próprio Nietzsche, que nos escreve no Crepúsculo dos Ídolos (2006), na seção 5 de Moral como antinatureza :

Ao falar de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos força a estabelecer valores, ela mesma valora através de nós, ao estabelecermos valores... Disto se segue que também essa antinatureza de moral, que concebe Deus como antítese e condenação da vida, é apenas um juízo de valor da vida – de qual vida? de qual espécie de vida? – Já dei a resposta: da vida declinante, enfraquecida, cansada, condenada. A moral, tal como foi até hoje entendida – tal como formulada por Schopenhauer enfim, como “negação da vontade de vida” – é o instinto de décadence mesmo, que se converte em imperativo: ela diz: “pereça!” – ela é o juízo dos condenados. (grifo nosso).



No mundo, enquanto campo relacional agonístico de forças, certas forças, estando em conflito com outras forças, podem dominá-las, podem preponderar sobre elas. São essas forças preponderantes que criarão valores, sentidos. No caso do vivente humano, os processos valorativos e interpretativos mobilizam seus afetos, seus instintos; enfim, todo o seu corpo. No animal humano, portanto, não é uma “alma”, uma substância imaterial, separada do corpo, que valora.[1] Os valores que vicejarão serão sempre o das vontades de potência hegemônicas, independentemente de elas produzirem modos de ser decadentes. Aliás, é possível distinguir entre dois sentidos básicos em que Nietzsche nos fala de vontade de potência. No primeiro sentido, temos uma vontade de potência ascendente, que vê no devir a condição de possibilidade de mais ser; no segundo sentido, temos uma vontade de potência decadente, que vê no devir um processo corruptor de ser. Nesse caso, o devir impossibilita as formações de unidade. A vontade de potência decadente produz tipos (isto é, modos de ser de arranjos vitais) decadentes, negadores da vida. Mas a vontade de potência decadente também é produtora de valores.
Todo valor, para Nietzsche, é um sentido. Valorar é uma forma de impor sentido. Na medida em que é vontade de potência, a vida também se desenvolve como processo de interpretação, de criação de sentido. Se o mundo, depois do anúncio da morte de Deus, revela-se como mundo constituído de múltiplas relações fenomênicas, o sentido “é a preponderância de uma determinada relação no confronto com as demais” (Cabral, 2014, p.184). O sentido, portanto, organiza a multiplicidade de elementos fenomênicos que, inter-relacionados, compõem o mundo. Se, para Nietzsche, o mundo é multiplicidade de elementos relacionais, a interpretação é o processo produtor de um sentido. O mundo que, na tradição metafísica, foi pensado mediante as categorias da razão, da unidade, da finalidade e de ser não é senão mundo conformado segundo um processo interpretativo dentre outros possíveis. É na relação necessária com os processos interpretativos, produtores de um sentido, que devemos entender a noção de perspectiva em Nietzsche. À luz do pensamento do perspectivismo, toda perspectiva é decorrente dos processos interpretativos produtores de um sentido que, por sua vez, é responsável por organizar a pluralidade dos elementos fenomênicos inter-relacionados. A perspectiva é sempre indicadora da hegemonia de um princípio interpretativo, o qual, por sua vez, sintetiza outros processos interpretativos. Na medida em que toda conformação do mundo indica apenas a hegemonia de uma perspectiva determinada e porque a perspectiva, por definição, rejeita qualquer fundamentação num “em si”, a conformação do mundo é sempre passível de novas configurações. Em outras palavras, é o próprio mundo que se torna passível de infinitas interpretações.
Que quer dizer, em suma, o perspectivismo? Que não há um ponto de vista exterior ao mundo a partir do qual podemos enunciar a questão “o que é o mundo”. Nesse sentido, a vontade de potência, conciliando-se com o perspectivismo, designa essa mesma impossibilidade expressa pelo perspectivismo.
A vontade de verdade é também uma forma de vontade de potência, já que ela também cria valores e fixa sentido; mas se trata de uma forma de vontade de potência fraca, caracterizada pelo niilismo e pelo cansaço da vida. Segue-se daí que tanto a vontade de verdade quanto a vontade de potência acabam por representar duas perspectivas contrárias em face do mundo: a vontade de verdade quer encontrar uma verdade que estaria já dada no mundo; é uma perspectiva niilista que pressupõe haver a instância do em-si como suporte ontológico do mundo deveniente; a vontade de potência, pelo menos em sua conformação de forças ativas, ao contrário, nega haver um sentido do mundo já dado independente do trabalho interpretativo do homem e reivindica para si a tarefa de criar sentidos e estabelecer valores. Toda interpretação, portanto, reflete uma vontade de potência que interpreta.


A vontade de potência não pretende dizer o que o mundo é, mas como o sujeito deve interpretar o mundo se quiser pensar no máximo de sua potência. Não pretende descrever, mas legislar. Nesse sentido, dizer que o mundo é vontade de potência é um enunciado que reflete não a verdade do mundo, mas a potência da própria interpretação. (Rocha, 2003, p. 64, ênfase no original).

                                                                                   
Não rejeitando a compreensão da autora no que toca à concepção de vontade de potência como reflexo da potência da interpretação, acrescentamos, no entanto, que o enunciado o mundo é vontade de potência significa o mundo é embate relacional de forças, de instintos que expressam processos interpretativos que fixam um sentido (entre outros inúmeros possíveis) para o mundo. Ora, como a vontade de potência no homem constitui apenas um caso específico da vontade de potência em geral, como o homem é um ser vivo integrado no mundo, sem jamais poder transcender a ele, o ato de interpretar só pode expressar a vida interpretando a si mesma. Assim, “a vontade de potência não é outra coisa que vontade de interpretar”. (Rocha, ibid., p. 66). Quem interpreta? A resposta só pode ser: a vontade de potência. Sendo um conceito antimetafísico, a vontade de potência recobre a totalidade do mundo. A vontade de potência é um nome para designar o mundo como puro aparecer, como devir que é o próprio real.
 Toda moral é uma interpretação. A moral é uma interpretação do mundo, é expressão da vontade de mentir, de falsificar e enfraquecer a vida. Segundo Nietzsche, “a moral é tão imoral como qualquer outra coisa sobre a terra; a moralidade, ela mesma, é uma imoralidade”. (Nietzsche, 2008, § 308). No fragmento 116 de A Gaia Ciência (2012), ele nos ensina sobre o modo como a moral constituirá a condição do animal humano como animal de rebanho. Atentemos para a compreensão que Nietzsche tem da moral como uma forma de avaliação da vida:

Onde quer que deparemos com uma moral, encontramos uma avaliação e hierarquização dos impulsos e dos atos humanos. Tais avaliações e hierarquizações sempre constituem expressão das necessidades de uma comunidade, de um rebanho (...). Com a moral o indivíduo é levado a ser função do rebanho e a se conferir valor apenas enquanto função.


 Nietzsche, ao se debruçar sobre o problema da moral, a qual é entendida como uma interpretação baseada num sistema de valores que exprimem as condições de vida de um tipo humano particular, embora, muitas vezes, fale da moral de um modo geral, quando diz, por exemplo, “enquanto acreditamos na moral, condenamos a existência” (Nietzsche, ibid., § 6), Nietzsche não pretendeu destruir toda e qualquer moral. Nietzsche edificou uma crítica corrosiva contra uma espécie de moral e um tipo de homem produzido por ela. Uma passagem emblemática de Ecce Homo (2011b) dá-nos a conhecer a espécie de moral e o tipo de homem que estavam na mira da crítica destrutiva nietzschiana:


No fundo são duas negações que a minha palavra imoralista encerra. Eu nego, por um lado, um tipo de homem considerado até agora como supremo, os bons, os benévolos, os benéficos; nego, por outro lado, uma espécie de moral que, por sua autoridade e supremacia, apareceu como a moral em si– a moral de decadência, em termos mais precisos, a moral cristã.[2] (ênfases nossas).




Nietzsche tem em mira, portanto, a moral, em sua forma ascética, dualista, de inspiração platônica e prolongada pelo cristianismo. Devemos também atentar para o fato de que Nietzsche, ao insurgir-se contra a moral cristã cujos valores foram (e ainda são hoje, em grande medida, em muitas partes do mundo) determinantes da formação cultural do homem ocidental, não pretendeu negar a possibilidade de viver segundo algum conjunto de valores, mas esses valores devem estar a serviço da vida, devem servir para a produção de uma vida potencializada. Lembremos que Nietzsche reconhece que nós, enquanto viventes, somos obrigados a valorar, a interpretar, a significar o mundo, uma vez que a vida, sendo vontade de potência, é interpretação. No aforismo 114 de A Gaia Ciência (2012), escreve Nietzsche: “não existem vivências que não sejam morais no âmbito da percepção sensível”. Como se pode ver, se a moral é um conjunto de sentidos que servem para nortear o viver, então não pode deixar de ser ela um fenômeno intrínseco à vida.
Nietzsche mobiliza todo um arsenal crítico poderoso para derribar os alicerces de um tipo de moral que se desenvolveu como antítese da vida, para enfraquecê-la enquanto vontade de potência, enquanto jogo de relações de forças que querem dominar, expandir-se. Atacando essa forma de conformação da moral, Nietzsche ataca o niilismo e a metafísica que lhe estão atrelados.
Nietzsche – o contrário de um niilista – esforçou-se por descortinar ao homem as formas pelas quais ele poderia recuperar a pujança de que o adoecimento moral o privou. Nietzsche encontrou valor, sentido onde o niilista não via senão um abismo intransponível, um vácuo de sentido que condenava o homem a existir sem que lhe fosse possível divisar qualquer referencial balizador. O filósofo de Röcken ensinou seu amor fati – seu “engajamento moral alegre”, subsumido na fórmula “eu quero” – como o grande remédio contra o mal do niilismo.
O que se seguirá, nas próximas páginas, é o desenvolvimento de uma hipótese interpretativa da condição do homem como animal doente, do homem que se tornou o tirano da vida, do homem que é, para usar as palavras de Schöpke, uma guerra contra si mesmo, do homem que é “um não sonoro contra tudo o que nele é natural, animal e mortal”. (Schöpke, 2016, p. 280). É em consonância com estes termos que nos cumpre examinar o problema da doença homem, do homem como animal que submeteu toda a vida à tirania do homem:



O homem é o tirano da vida, de toda vida. Ele não pode ver nada livre, forte e belo, em si e no mundo, sem desejar imediatamente conter, aprisionar, diminuir suas forças. Ele não é a criatura divina de nossos sonhos. (Schöpke, ibid., p. 281).




2. O homem como doença da terra
A terra (...) tem uma pele; e essa pele tem doenças. Uma delas, por exemplo, chama-se “homem”.

  Zaratustra

Não há diferenças fundamentais entre o homem e os animais nas suas faculdades mentais (...) os animais, como os homens, demonstram sentir prazer, dor, felicidade e sofrimento.

Darwin

No início era o verbo e junto dele, como que por um efeito, surge o animal-homem, esse animal simbólico dotado da capacidade de esquecimento. A relação desse animal simbólico com o mundo é permeada pela distinção entre dois registros: o dos corpos materiais e o da linguagem. Destarte, ensina-nos Garcia-Roza (1990, p. 16):

(...) tendo feito sua emergência, as palavras passaram a significar os corpos naturais. Melhor dizendo: a partir do surgimento da linguagem, todos os objetos do mundo passaram a ser significativos. Ao ser através do qual a palavra fez sua emergência – e que foi por ela constituído – chamamos homem. A palavra não fez sua emergência no homem; o homem é um efeito dessa emergência. Tendo feito sua emergência, a palavra ressignificou ou simplesmente significou o próprio corpo com suas faltas, assim como os objetos do mundo. O efeito imediato foi a desnaturalização do corpo, das suas necessidades e dos objetos do mundo, assim como o surgimento de uma nova ordem: a ordem simbólica. (ênfase no original).

 O surgimento da ordem simbólica tornou possível o desenvolvimento da cultura[3]. Pela expressão ordem simbólica[4], entende-se a organização do mundo operada pela faculdade de simbolização, de que é dotado o animal humano, e graças à qual ele representa o real por um signo e compreende o signo como representante do real. Em outras palavras, a faculdade de simbolização permite ao homem transformar os elementos do mundo em conceitos, por meio dos quais ele estrutura suas experiências de mundo e lhes confere sentido.
A constituição da ordem simbólica está na origem do processo de desnaturação do homem. A faculdade da linguagem tornou possível o desenvolvimento da cultura. A cultura passou a ser o mundo próprio do homem, mundo cuja essência é ser mundo simbólico, um campo de produção de ficções[5]. Nossa vida depende da produção de ficções. Ficções são criações da imaginação. Elas não são nem verdadeiras nem falsas. Talvez, não as escolhamos; não obstante, elas conformam e estruturam, dotando de sentido, nossas vivências e experiências coletivas. As ficções não podem ser geradas ao bel-prazer; talvez, por isso, não possam ser descartadas sempre que desejamos. Ainda que as ficções, sem as quais o que nos restaria seria o desespero niilista, sejam obra do engenho e da atividade humana, elas escapam ao controle do animal humano. Importa-nos, portanto, destacar o fato de que esse mundo donde grandes edifícios de representação simbólica (a religião, a arte, a filosofia, a ciência) se elevam “como gigantescas presenças de outro mundo” (Berger & Luckmann, 2007, p. 61) são formas de mundo geradas, fabricadas graças ao trabalho de produção de ficções viabilizado pela linguagem.
Ocorre, contudo, que, ao ser um efeito dessa ordem simbólica, o animal simbólico, que é o homem, passa a viver sob o modo de um autoengano, sob o modo do esquecimento do caráter ficcional, metafórico do signo. Ora, é a partir dos signos ou da linguagem simbólica que o homem construirá o mundo das ficções que estarão a serviço da depreciação da vida. De fato, as ficções são necessárias à vida e nem todas as ficções estão a serviço da negação da vida, como, aliás, nos lembra Nietzsche. A ficção só passa a ser um valor superior à vida, “na medida em que permite o distanciamento a partir do qual a vida pode ser julgada”. (Mosé, 2011, p. 234). Não é, portanto, a produção de ficções um problema em si; na verdade, o problema está em tomar as ficções como verdade. Um diagnóstico, filosoficamente completo e consistente, que pretenda ser a expressão da compreensão do modo como o homem, sobretudo este tipo de homem que, no Ocidente, foi cunhado pela moral platônico-cristã, veio a se tornar, existencialmente, um animal doente tem de partir da crítica nietzschiana da relação metafísica que o homem, desde que os símbolos passaram a infestar e a orientar sua relação com o mundo, estabeleceu com a linguagem, porquanto “a linguagem é nossa ficção primeira, é ela que permite o universo imaginário que vamos chamar “mundo verdadeiro”. (ibid., p. 235). A crítica nietzschiana à linguagem e à gramática é uma crítica da relação metafísica que o homem estabeleceu com a linguagem. O homem, como animal de rebanho, vive uma vida anestesiada, reverenciando e adotando passivamente as significações partilhadas e herdadas por foça de suas práticas culturais. Entre as crenças partilhadas com seus semelhantes, está a crença na correspondência entre as palavras e as coisas. Essa relação de correspondência não só constituiu a condição de possibilidade para o surgimento do platonismo com sua moral decadente, como também constituiu a condição do homem como animal de rebanho e seu adoecimento como animal, cuja vontade de potência niilista parece ter definido ontologicamente a sua condição no mundo. Quando, por emergência da palavra no mundo, o animal humano se tornou animal simbólico, se lhe tornou dominante uma vontade de duração reforçada pela sua crença num mundo durável, a qual, por sua vez, remonta à experiência de duração originária dele com os signos, consoante nos faz ver Mosé (ibid.):


Os signos são a nossa primeira experiência de duração; é a duração ficcional da palavra que fornece a crença em um mundo durável; por serem sempre suprassensíveis, os signos são um tipo de Deus. Mas os signos são produto de um acordo, de uma convenção. É somente com o esquecimento do caráter ficcional dos signos que o homem pode acreditar que os sinais correspondem as coisas.



Na esteira de Nietzsche, desconstruir o edifício dos valores morais que conformam a vida do homem na modernidade consiste, em última instância, na dilapidação dos fundamentos simbólicos com que tal edifício foi erguido. A crítica genealógica que, afinada com o espírito nietzschiano, pretenda fazer coro à necessidade de reconduzir o homem à natureza, a saber, à necessidade de lhe transfigurar sua condição existencial de tal sorte que, no arranjo de forças que o constituem, sobressaia uma vontade de potência que seja expressão de um querer criador, que seja expressão de transmutação de sua estrutura instintual, de intensificação da potência, deve começar por trazer à luz o fato de que todo o trabalho de domesticação do homem levado a efeito pela cultura, e que redundou na espiritualização de suas paixões, no enfraquecimento de seus instintos, tem sua origem na relação metafisicamente originária que o homem estabeleceu com a linguagem. Fazer retornar o homem à natureza não significa pretender que o homem viva em estado selvagem, mas fazer triunfar sobre as más interpretações e falsificações antropomórficas da natureza uma interpretação da natureza que se afirme como imperativo do instinto.
Na próxima subseção, passaremos em revista os elementos mais importantes da crítica nietzschiana dessa relação, metafisicamente orientada, do homem com a linguagem.



2.1. A linguagem como exército de metáforas

Em Assim Falou Zaratustra (2011), Nietzsche, já no Prólogo, escreve: “o homem é algo que deve ser superado”. O homem que deve ser superado é esse tipo humano cujo corpo, enquanto arranjo relacional de forças, enquanto arranjo vital resultante do quantum de forças predominantes em conflito, se tornou enfraquecido, domesticado, declinante pelo trabalho das vontades de potência que configuram a interpretação moral da vida. Nietzsche insiste em que esse homem deve querer ser declínio; ser declínio é sacrificar-se a terra, “para que um dia a terra venha a ser do super-homem” [6] (ibid., p. 16).
Num aforismo de Humano Demasiado Humano (2005, p. 20-21), Nietzsche retoma o problema da linguagem, que havia sido desenvolvido em Sobre a verdade e a mentira em sentido extramoral:

A importância da linguagem para o desenvolvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhor. Na medida em que por muito tempo acreditou nos conceitos e nomes de coisas aeternae virates [verdades eternas], o homem adquiriu esse orgulho com que se ergueu acima do animal: pensou ter realmente na linguagem o conhecimento do mundo. O criador da linguagem não foi modesto a ponto de crer que dava às coisas apenas denominações, ele imaginou, isto sim, exprimir com as palavras o supremo saber sobre as coisas; de fato, a linguagem é a primeira etapa no esforço da ciência. Da crença na verdade encontrada fluíram, aqui também, as mais poderosas fontes de energia. Muito depois – somente agora – os homens começam a ver que, em sua crença na linguagem, propagaram um erro monstruoso.

A crítica da relação metafísica que o homem estabeleceu com a linguagem, levada a efeito por Nietzsche, culminará, no contexto de seu trabalho de transvaloração de todos os valores, não só com uma crítica à metafísica e à verdade como valor metafísico, mas também ratificará a posição nietzschiana, segundo a qual “o homem não é nenhum progresso em relação ao animal”.[7] Como a faculdade da linguagem tornou possível no homem o desenvolvimento do pensamento conceitual, abstrato, como o uso de símbolos, a capacidade de articular signos em discurso constitui a base daquilo que chamamos razão no homem, este "animal declinante”, “uma pequena e inquietante espécie de animal que – afortunadamente tem o seu tempo de vida sobre a Terra” e que “não passa de um instante, de um incidente”[8], passou a crer que o universo lhe teria sido destinado e que um lugar especial, elevado, lhe pertence por direito. Ao passar em revista o que nos parece ser importante na crítica nietzschiana da relação metafísica do homem com a linguagem, pretendemos destacar não tanto o aspecto epistemológico dessa crítica, a saber, a desconstrução da crença na verdade e da crença de que a linguagem nos possibilitaria o conhecimento verdadeiro do mundo, mas sobretudo  a reinscrição da condição existencial do animal humano no destino comum que ele compartilha com as demais espécies enquanto um ser natural.
Atentemos para o seguinte trecho de Nietzsche, colhido de Sobre Verdade e Mentira no sentido extramoral (2008, p. 34-35). Neste trecho, Nietzsche introduz o problema que, embora permeando toda a sua crítica à linguagem, se lhe impõe desde o início:

(...) Toda palavra torna-se de imediato um conceito à medida que não deve servir, a título de recordação, para a vivência primordial completamente singular e individualizada à qual deve seu surgimento, senão que, ao mesmo tempo, deve coadunar-se a inumeráveis casos, mais ou menos semelhantes, isto é, nunca iguais quando tomados à risca, a casos desiguais portanto. Todo conceito surge pela igualação do não-igual. Tão certo como uma folha nunca é totalmente igual a uma outra é certo ainda que o conceito de folha é formado por meio de uma arbitrária abstração dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do diferenciável, despertando então a representação, como se na natureza, além das folhas, houvesse algo que fosse “folha”, tal como uma forma primordial de acordo com a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, contornadas, coloridas, encrespadas e pintadas, mas por mãos ineptas, de sorte que nenhum exemplar resultasse correto e confiável como cópia autêntica. (grifo nosso).


No trecho supracitado, Nietzsche chama-nos a atenção para o que está em jogo na gênese da formação do conceito. Todo conceito opera uma redução da diversidade, das diferenças que se acham no mundo da experiência sensível. Aristóteles foi quem nos legou a concepção de conceito como ideia substancial, ou seja, uma ideia que abrigaria apenas as características essenciais, universais das coisas, por abstração dos aspectos acidentais, não essenciais. Na concepção clássica de conceito, que remonta a Aristóteles, o conceito é um conjunto de propriedades, individualmente necessárias e suficientes. O conceito se define como uma lista de propriedades necessárias suficientes. O animal humano tem necessidade de ordenar o mundo das suas experiências sensíveis, ele tem necessidade de organizar a variedade difusa de estímulos em objetos particulares invariantes. A função de simbolização própria da linguagem lhe permite distribuir esses objetos em classes de membros equivalentes. Identidade e equivalência são, portanto, dois princípios de categorização e de conhecimento do mundo. Pelo princípio de identidade, reconhece-se uma coisa, em diferentes circunstâncias, como uma só e mesma coisa. Pelo princípio da equivalência, reconhecem-se dois objetos com suas propriedades comuns como exemplares de uma mesma classe. São os conceitos que tornam possível a operação desses princípios. Os conceitos, quando são fixados por meio das expressões linguísticas, passam a assumir a forma de categorias conceituais, as quais tornam possível agrupar as coisas que se dão à nossa experiência sensível em classes específicas.
O que nos parece importante reter no trecho de Nietzsche é a ideia de que “todo conceito surge da igualação do não-igual”. Ao operar por meio da abstração das diferenças, a linguagem nos faz esquecer que “a diferença está no âmago do ser, uma vez que existir é já diferenciar-se”. (Schöpke, 2012, p. 155). O ser, consoante nos ensina Schöpke, “(...) é, antes de tudo, esse campo de singularidades, impessoais, pré-individuais”. Ora, todo o processo de semiotização do mundo, operado pela linguagem, na medida em que consiste na transformação do mundo da diversidade, das diferenças em mundo dos conceitos, das identidades nominais estáveis, é um processo linguístico-cognitivo produtor de ficções. É verdade que essas ficções constituem a teia de significados, tecida pelo animal humano, como resultado de um trabalho que lhe é naturalmente determinado. Tal como a aranha não pode deixar de produzir a sua teia, sem a qual sua subsistência não seria possível, o animal humano não pode deixar de criar essa teia de significados que dá sustentação à sua existência. Como bem observa o antropólogo Clifford Geertz, para quem a cultura é um sistema de símbolos e significados, o homem é um animal suspenso em teias de significados que ele mesmo teceu; a essas teias de significados Geertz chama cultura. Como todo animal, também o homem deve manter uma relação adaptativa com o meio ambiente, a fim de sobreviver. Mas, segundo Geertz, como seja um ser biológico destituído de instintos, o animal humano precisa adaptar-se ao meio ambiente adotando outro caminho. Esse caminho é o da produção da cultura. Geertz sustenta que todos os homens são geneticamente aptos para receber um programa, o qual se chama cultura. A cultura se desenvolveu simultaneamente com o equipamento biológico do homem e, por isso, deve ser compreendida como uma das características da espécie homo sapiens sapiens juntamente com o bipedismo e com um adequado volume cerebral.  Longe de negar que o desenvolvimento da faculdade da linguagem no homem lhe permitiu um desarrancamento das relações imediatas com o entorno biofísico, possibilitando, inclusive, um desenvolvimento exponencial de suas faculdades de cognição, não se pode perder de vista a ameaça psicótica que parece espreitar a condição humana, visto que imerso no mundo da ordem simbólica,

O homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente; não pode vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as próprias coisas, o homem está, de certo modo, conversando consigo mesmo. (Cassirer, 2012, p. 48).

Ainda que possa parecer, em certo sentido, exagero falar em “ameaça psicótica” quando lembramos que o homem vive emaranhado na teia de significados que ele mesmo teceu, não devemos tomar aqui como referência a interpretação psicanalítica da ‘psicose’. Não obstante, como perspicazmente ensina Cassirer, ao afastar o homem da lida com as coisas, as palavras, uma vez que operam tanto nos processos internos da consciência, possibilitando a compreensão e interpretação do mundo pelo homem, quanto nos processos externos de sua circulação em todas as esferas sociais, tendem a produzir uma alienação existencial do animal humano relativamente ao caráter complexo, enigmático e inesgotável da vida. Quiçá, o que chamamos de “ameaça psicótica” não seja mais do que a ‘loucura normal’ da condição humana, porquanto, ao criar a teia de significados, que é a cultura, o animal humano passa a viver sob o poder de duas formas de autoengano: a) crê que essa teia de significados esgota a totalidade do real;  e b) como consequência da primeira crença, passa a acreditar que goza de um privilégio ontológico porque seria o ser através do qual e para o qual o mundo é uma totalidade significativamente ordenada, ou seja, o mundo só existiria enquanto mundo através de e para esse animal simbólico. Novamente, devemos destacar o trabalho de produção de ficções operado pela linguagem, evocando o que nos diz Nietzsche neste outro excerto:

A inobservância do individual e efetivo nos fornece o conceito, bem como a forma, ao passo que a natureza desconhece quaisquer formas e conceitos e, portanto, também quaisquer gêneros, mas tão-somente um “x” que nos é inacessível e indefinível. (ibid., p. 36)

A linguagem é, na verdade, um sistema de metáforas mortas, de metáforas que perderam o cunho e que só valem como metal. No entanto, são estas metáforas que estão na origem da crença em uma identidade original das coisas. Nietzsche nos adverte de que, acreditando saber algo acerca das coisas, utilizando nomes como “árvore”, “cor”, “neve”, não usamos senão metáforas das coisas. Nesse tocante, em seu As pessoas e as coisas (2016, p. 65), o filósofo italiano Roberto Esposito, fazendo eco a Nietzsche, observa categoricamente:

Não tendo nenhuma relação constitutiva com as coisas que designam, as palavras, em suma, retiram delas a realidade que, contudo, pretendem expressar. Só perdendo sua existência concreta, os seres são linguisticamente representáveis. No momento exato em que é nomeada, a coisa perde seu conteúdo, transferindo-se no espaço sem espessura do signo. De tal forma, sua posse, por parte da linguagem, consiste em sua destruição.

Segundo Esposito, a representação linguística das coisas elide delas seu conteúdo vivo. Ora, já em Nietzsche, não se pode crer mais na relação de correspondência entre linguagem e realidade. A linguagem não estaria numa relação especular com o mundo. A linguagem, na verdade, constrói um mundo que lhe é próprio, mas o faz destruindo o mundo imediato da experiência das coisas vividas. Como lembra Esposito, ao se transformar a coisa em conceito, a linguagem opera a destruição da coisa. Não estaria já prefigurada na faculdade da linguagem, na capacidade humana de semiotizar o mundo sua pré-disposição para a destruição, sua tendência à nadificação da vida? Sem pretender aderir a qualquer versão de fatalismo, porquanto é inegável que, em função da linguagem, o homem também se tornou criador de belas obras, também pode ele se tornar criador de formas de vida afirmadoras, potencializadas, o fato é que a faculdade da linguagem pode tanto estar a serviço de homens artistas de sua própria existência como de homens  que tiranizam a vida em si, que aprisionam a vida, que a asfixia e a destrói. Se é verdade, conforme cremos, que a condição existencial do animal humano é, fundamentalmente, niilista, é igualmente lícito – nos parece - afirmar que o próprio processo de semiotização do mundo, operado pela linguagem, é um processo niilizador. O homem comum, na sua condição própria de animal de rebanho, sem estar consciente disto, reproduz esse aspecto niilista da linguagem no trato diário que tem com ela. Apenas o artista parece capaz, porque reconhece o modus operandi ficcional da linguagem, de desvelar o caráter niilista da linguagem, convertendo-o em possibilidades de criação, de recriação, de transformação da experiência humana do real. Ao reduzir o mundo a um “enorme columbário de conceitos, cemitérios de intuições (...) o mundo empírico inteiro [se torna] o mundo antropomórfico” (Nietzsche, ibid., p. 45).
Consoante Nietzsche, o impulso à formação de metáforas é a condição própria do homem, à qual ele não pode escapar nem por um instante. Renunciar a tal impulso significaria renunciar a ser homem, a ser um animal simbólico. Mas há, segundo Nietzsche, entre os homens aquele tipo artista, que é o homem desperto, pois que consciente da trama metafórica sobre a qual se estende sua existência. Ele exibe “o ávido desejo de configurar o mundo (...) sob uma forma tão coloridamente irregular, inconsequentemente desarmônica, instigante e eternamente nova como a do mundo dos sonhos”. (ibid., p. 46).



Em si, o homem desperto adquire clara consciência de que está acordado somente por meio da firme e regular teia conceitual e, precisamente por isso, chega às vezes à crença de que está a sonhar, caso alguma vez aquela teia conceitual seja despedaçada pela arte. (ibid.).


Basta-nos dar um exemplo do potencial que tem a arte de desmitificar a relação, animada e conservada sob o modo do autoengano, que o homem tem com a linguagem. É conhecido o quadro da artista surrealista belga René Magritte, no qual está estampada a imagem de um cachimbo e abaixo da qual se lê Ceci n´est pas une pipe, isto é, “isto não é um cachimbo”. Sob o efeito do encantamento ficcional do simbólico, o homem comum pode relutar em aceitar que, a despeito do que lhe aparece, ele não está diante de um cachimbo. Mas uma tal relutância só é possível porque, na lida cotidiana com a linguagem, se lhe esvaeceu a distinção entre as palavras e as coisas, entre a representação simbólica da coisa e a coisa mesma. Como nos lembra Foucault, uma imagem, ainda que fiel aparentemente ao objeto real, não é a realidade, fato, aliás, que não se pode recusar quando nos lembramos que o cachimbo da imagem não pode ser fumado. O “isto” do enunciado “isto não é um cachimbo” tem como referente não a coisa, que, aliás, está ausente, mas a “representação da coisa”, de sorte que “isto não é um cachimbo” significa ‘esta imagem de cachimbo não é um cachimbo na sua qualidade de coisa’.  Há em toda imagem ou ícone uma relação necessária entre a parte que expressa formalmente o conteúdo (significante) e o conteúdo expresso (significado). A situação difere bastante e se torna mais complexa quando se trata dos signos linguísticos. Toda relação com o signo está fundada numa ausência, pois que o signo se define como ‘o que está no lugar de’, ‘o que faz as vezes de’. Aquilo em cujo lugar está o signo é a coisa mesma, que, no entanto, está ausente. Sucede, contudo, que a relação entre o signo e a coisa da qual ele é signo não é nem necessária nem direta. O signo, como bem nos ensinou Saussure, é uma entidade dicotômica, a qual articula em si um significante (imagem acústica) e significado (ou conceito).[9] Ora, como na relação entre o significante e o referente extralinguístico, está de permeio o significado, como as palavras não são etiquetas para as coisas, não estão numa relação especular com as coisas, como a relação entre o significante (imagem acústica) e o significado é não motivada (Saussure usou o termo ‘arbitrária’), na maior parte das vezes, no uso normal da língua, ao acreditar estarmos falando do mundo, o que estamos fazendo é produzindo versões públicas do mundo, ou seja, estamos sempre falando acerca das formas como significamos o mundo, estamos falando acerca do mundo textualmente recriado, reconstruído, res-significado. Em última instância, estamos enredados no universo auto-referencial da linguagem, porque o próprio ato de falar é já fazer intervir uma ordem simbólica da qual eu, enquanto sujeito de discurso, sou, ao mesmo tempo, um efeito e parte constitutiva.
Na próxima subseção, vamo-nos debruçar sobre o que chamaremos de ‘a loucura da condição humana’ – expressão que tomamos a Becker (2013) -, tendo sempre como referência o horizonte da crítica nietzschiana do homem como um animal doente. Fazendo eco ao ensinamento de Lacan, partiremos do pressuposto de que a ‘loucura’ não é um desvio da normalidade, não é um fato patológico, mas a essência mesma da condição humana.



3. A loucura da condição humana: o adoecimento dos instintos

O homem é uma doença mortal do animal
Kojève
Quando tomamos o homem como um animal doente, na esteira de Nietzsche, devemos pensá-lo como a condição própria do homem cuja estrutura instintual foi conformada por um tipo de moral ascética, dualista, gestada no platonismo e prolongada pelo cristianismo. Essa moral, sendo ela uma forma de interpretação da vida, dará uma forma declinante às forças que constituirão um tipo de vida decadente. Esse tipo humano decadente cunhado por essa moral é o animal humano domesticado, o animal de rebanho, o animal doente, identificado com o tipo cristão, o tipo humano predominante no Ocidente, que prima entre os que levam ao adoecimento do espírito (corpo). Trata-se do tipo decadente, caracterizado pelo esgotamento do instinto, pela desagregação da vontade. De passagem, é preciso entender que o Nietzsche da maturidade fala em “tipos” como modos de ser, como condições de vida, como formas de vida e de moral que cristalizaram avaliações humanas. O tipo cristão não é necessariamente o fiel praticante que assiste às missas ou participa de cultos. Até mesmo um ateu pode ser ainda um tipo cristão, no sentido de que seu modo de ser, sua vida ainda podem conservar as avaliações que, produzidas pelas vontades de potência atuantes na constituição da cultura cristã, vieram a conformar, a configurar as forças que irão constituir a condição de existência do tipo cristão.





[1] O vivente humano é também vontade de potência. E toda vontade de potência é múltipla, porque é um jogo múltiplo de processos rivais; no caso específico do homem, as vontades de potência são uma dinâmica de relações entre afetos, instintos e nervos.
[2] Por que sou um destino, § 4.
[3] Mais adiante, daremos a conhecer o que entendemos por cultura.
[4] Suposta aqui está a ideia de que a ordem simbólica não é redutível à ordem natural. A questão que consiste em discutir se há uma ordem natural que precede à ordem simbólica não nos interessará, ainda que Garcia-Roza recuse essa precedência. O que nos importa, para efeito de nossa exposição, é demonstrar que a ordem simbólica é uma ordem própria e irredutível à ordem natural.
[5] Do latim fictio –onis, cujo radical fict é o mesmo de fingere (fingir), ficção é simulação, criação. Ao vocábulo “ficção” se predem os significados de ‘criar’, ‘inventar’, ‘modelar’. As ficções culturais são a criação de uma outra realidade, uma realidade entretecida por formas simbólicas.
[6] Fora de contextos de citação, usaremos a expressão “além-do-homem” como a tradução que nos parece mais adequada para Übermensch.
[7] Vontade de Poder (2008, §90)
[8] Ibid., § 303
[9] Devemos atribuir a Saussure o ter apartado da relação semiológica o referente (a coisa) do mundo real. A Linguística, enquanto ciência que se ocupa da língua, surge, no início do século XX, com o trabalho de fundamentação levado a efeito por Saussure, como um modelo epistemológico que deve levar em conta exclusivamente as relações diferenciais, opositivas que os signos estabelecem entre si para a constituição de um sistema linguístico encerrado em si mesmo.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

"Toda experiência profunda se formula em termos de fisiologia" (Cioran)



            Imagem relacionadaResultado de imagem para Nietzsche
                         



A disposição afetiva pessimista e a disposição afetiva trágica: natureza e diferenças



1. As disposições afetivas trágica e pessimista


O conceito de afeto, tanto quanto o de disposição, cumprirá um papel importante no horizonte hermenêutico em que se inscreve este texto. Afeto é um conceito que encontramos na Ética de Spinoza. Nesse livro, afeto relaciona-se a pathos (paixão) e recobre a ideia de aquilo que nos põe em movimento, em relação com o mundo[1]. O afeto descreve certo modo de relação que estabelecemos com o mundo. Afeto “é, ao mesmo tempo, o sentimento e a impressão que causamos nos outros e o que os outros causam em nós” (Schöpke, 2010, p. 16). A categoria de afeto cumprirá a função de um dispositivo de interpretação com o qual buscaremos compreender as filosofias de Schopenhauer e de Nietzsche como exercícios espirituais destinados a cunhar dois tipos vitais humanos radicalmente distintos.
O conceito de disposição, por seu turno, encontra registro na obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Nesse livro, disposições se definem como “estados de caráter formados devido aos quais estamos bem ou mal dispostos em relação às paixões”[2]. Como no excerto aristotélico a “disposição” se define como ‘estados do caráter’, e o caráter, para os gregos, combina entre si os aspectos psicológico e moral, buscamos em Jung uma definição de disposição que não abriga em seu campo intensional qualquer referência à moral. A definição proposta por Jung tem a vantagem de ser descritivamente adequada à compreensão do que entendemos por disposição afetiva. Para Jung, “disposição é uma propensão da psique para realizar algo determinado, para agir e reagir em determinada direção. (...) Pode-se definir disposição como uma ordenação – quer inata quer resultante da experiência – dos elementos orgânicos ou dos elementos mentais, ou de ambos”. (ênfase nossa).[3] Duas “fatias” do significado de disposição nos interessam para efeito de aplicação à proposta interpretativa em curso neste trabalho: propensão para e ordenação. Tendo em conta a compreensão jungiana de disposição como propensão para e ordenação dos elementos orgânicos quer inatamente fixada, quer decorrente da experiência, propomos subsumir o conceito de disposição no de destino. Mas destino não deverá ser entendido como ‘poder mais ou menos personificado que determina de modo irremediável o curso dos acontecimentos’. Ao tomar disposição como destino, aproveitamos as noções de propensão para e ordenação orgânico-mental, para construir dois significados que se fundem no conceito de destino: 1) como destino, a disposição caracteriza certo modo de estar afetado pelo enviar-se, pelo destinar-se da vida, cuja dinâmica de forças produz tais ou quais efeitos psicofisiológicos sobre um corpo vital humano; 2) como destino, a disposição não está sob o nosso controle, no sentido de que não escolhemos ser constituído psicofisiologicamente de tal ou qual modo[4].
Vale dizer que do fato de que não escolhemos a disposição que nos constitui não resulta que seja ela absolutamente inalterável. Não obstante, a alteração de uma disposição não depende de um ato deliberativo da vontade. Para que a alteração da disposição se dê, necessário é que o enviar-se da dinâmica da vida nos afete de modo diferente, que as conformações do enviar-se da vida modifiquem a estrutura afetiva de nosso corpo.
Entenderemos, portanto, por disposição afetiva um modo de ordenação dos afetos que nos predispõem, que nos fazem propensos a sentir e a perceber o mundo em consonância com o modo como o destinar-se da dinâmica da vida nos afeta e incide sobre nós, vale dizer, sobre nosso corpo, enquanto totalidade psicofisiológica.
Crendo esteja esclarecido o conceito de disposição afetiva, vamo-nos debruçar sobre a apresentação das características distintivas, das quais nos dá testemunho Rosset (1989), das visões pessimista e trágica. O esclarecimento dessas características deverá contribuir para que não se confundam as duas visões de mundo, muito embora elas não se diferenciem absolutamente. Conquanto seja pertinente, do ponto de vista teórico e metodológico, a maneira como Rosset as diferencia, no que nos diz respeito, será mais importante sublinhar a forma distinta como as duas disposições afetivas – a disposição afetiva pessimista e a disposição afetiva trágica – respondem aos dois pressupostos básicos, os quais as cosmovisões pessimista e trágica compartilham entre si:

1º pp. uma produção enunciativa sobre o pior;
2º pp. o reconhecimento da inerência do sofrimento ou da dor à dinâmica da vida.

Em outras palavras, tanto a cosmovisão pessimista quanto a cosmovisão trágica concordam em que: 1) é possível desenvolver um pensamento do pior; 2) a dor ou o sofrimento são experiências inerentes à dinâmica da vida.
Doravante, lancemos olhares sobre o modo como Rosset nos apresenta a distinção entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista. Rosset começa por notar que subjaz a todo pensamento filosófico um desejo; esse desejo reside na origem da filosofia. No caso particular da filosofia trágica, o filósofo é movido por algo que “quer o trágico”. Nietzsche é uma expressão paradigmática desse querer, pois seu querer assume a forma de um “sim” incondicional à vida. Não cabe aqui esclarecer o que significa, para Nietzsche, dizer sim incondicionalmente à vida. É forçoso protelar o tratamento desse ponto para que não nos desviemos demais do objetivo a que visamos nesta seção, qual seja, o de dilucidar a diferença entre as disposições afetivas pessimista e trágica. Não deixaremos, no entanto, de tecer considerações esclarecedoras no que toca ao caráter incondicionalmente afirmativo da filosofia trágica de Nietzsche.
Rosset prossegue afirmando que “a intenção trágica [sic.] não é comandada por uma visão pessimista do mundo”. (Rosset, 1989, p. 19). Disso não resulta que o pensamento trágico não seja expressão de uma visão de mundo “mais pessimista que qualquer pessimismo”. (ibid.). O que o pensamento trágico produz é uma interpretação deveras pessimista do real, mas essa interpretação não se encaminha no sentido da desaprovação do mundo, muito pelo contrário. O pensamento trágico, a despeito de pôr a nu o caráter doloroso da existência, a miséria da condição humana, a inexorabilidade do destino humano que, posto sob a consciência crítica, se revela irracional, sustentará uma aprovação jubilosa da existência.
Rosset se refere a duas diferenças maiores entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista: a diferença de conteúdo e a diferença de intenção. Do ponto de vista da diferença de conteúdo, o pessimista supõe a existência de uma natureza, do ser, de uma ordem do real, a qual considerará má e insatisfatória. É nesse sentido que o pessimista afirma o pior. O pessimismo realça e condena a incoerência do já ordenado: o mundo deve ser desaprovado, porque sua ordem é má. Para Rosset, a filosofia pessimista é uma filosofia que, assumindo o ‘dado’, ou seja, o mundo já ordenado, dotado de uma “natureza” (essência), reputá-lo-á mau, tenebroso, um erro que não deveria ser. Por outro lado, o pensamento trágico, negando a existência do ‘dado’, isto é, do mundo ordenado, se constitui num pensamento do acaso. Nas palavras de Rosset,


Não somente o pessimista não acede ao tema do acaso, como ainda a negação do acaso é a chave-mestra de todo pessimismo, assim como a afirmação do acaso é aquela de todo pensamento trágico. O mundo do pessimista está constituído de uma vez por todas; donde a grande palavra do pessimista: “Não se escapa”. O mundo trágico não foi constituído; donde a grande questão trágica: “Aí não se entrará jamais” (...). (ibid. p. 20, ênfases no original).


Ainda segundo o autor, não é nem o humor, nem o afeto que distinguem entre os dois pensamentos. O pensador trágico e o pensador pessimista encontram-se em igualdade de humor e afetos.
Se não são os afetos nem o humor que estão na base da diferenciação entre o pensamento trágico e o pessimista, em que termos se deve expressar tal diferença? Do que se expôs, fica claro que a filosofia trágica e a filosofia pessimista se diferenciam relativamente à afirmação ou à recusa de uma ordem do mundo já dada. O pensamento trágico a recusa; o pensamento pessimista a supõe e afirma a irracionalidade dessa ordem dada. Assim, para o pensador pessimista, o que existe não é objeto adequado para o pensamento. Segundo Rosset, o pensamento pessimista é a grande filosofia do ‘dado’, isto é, a filosofia pessimista assume a existência de um mundo já ordenado, cuja natureza é má. O pessimismo filosófico, na medida em que é uma filosofia do ‘dado’ enquanto já ordenado, coincide com a filosofia do absurdo.
Deveríamos concluir do que precede que a categoria do absurdo é um traço distintivo importante na caracterização dos pensamentos pessimista e trágico? Será que estamos autorizados a dizer, a partir de Rosset, que a filosofia trágica nega a absurdidade da existência? Uma tal conclusão é autorizada por Rosset, consoante podemos ler no seguinte passo:



Esta filosofia do absurdo [a filosofia pessimista] não é tanto contrária ao pensamento trágico quanto sem relações com ele. Trata-se aí, com efeito, de uma absurdidade segunda, condicionada, que se sustenta no sentido uma vez constituído: mostra-se que os “sentidos” apresentados pelo mundo existente recobrem outro tanto de não-sentido em relação a tudo aquilo que o homem se pode representar em matéria de finalidade”. (ibid., p. 22-23, ênfase no original).


Devemos, pois, reter que o pensamento pessimista, porquanto supõe a existência de um mundo já ordenado, pressupõe que esse ordenamento está investido de um sentido já constituído. Mas esse sentido já constituído pelo fato mesmo de haver ‘ordem’, uma natureza do mundo, se imiscui com uma vasta facha de sem-sentido. Em outras palavras, por mais que o homem possa “ver” uma ordem teleologicamente constituída no mundo, há sempre uma grande parte dessa ordem que se mostra desprovida de qualquer sentido.
Para o pensador pessimista, o absurdo está aí, já constituído, já instalado nas formas como o sem-sentido irrompe na malha do sentido, de tal modo que o pretenso sentido da ordem do mundo não elide as tribulações do sem-sentido, sempre persistente e perturbador daquela ordem. Destarte, o pensamento pessimista, seguindo a compreensão que tem dele Rosset, assume um sentido dado, a partir do qual esse pensamento explorará a fragilidade, a insuficiência desse sentido. O pensador pessimista denuncia o caráter insensato da ordem ontológica vigente. A ordem do mundo, no entanto, vige, mesmo que se apresente como desordem, como absurda (isto é, sem sentido).
Por seu turno, o pensamento trágico afirma a inexistência de um sentido já dado, mesmo que o mais absurdo. O pensador trágico sustenta a insignificância de tudo. Sendo afirmação do acaso, o pensamento trágico “é não somente sem relações com a filosofia do absurdo, como ainda é incapaz de reconhecer o menor não-sentido; o acaso sendo, por definição, aquilo a que nada pode desobedecer”. (ibid., p. 23, grifos nossos).
Consideremos, agora, a diferença entre a filosofia pessimista e a filosofia trágica do ponto de vista da intenção. Em consonância com esse ponto de vista, a sabedoria pessimista se caracteriza pela constatação, resignação e sublimação mais ou menos compensatória. A sabedoria trágica, por outro lado, recusa a constatação, ou, melhor ainda, se orienta pela impossibilidade de constatação. Tampouco é uma sabedoria que se erige “ao abrigo da ilusão” (ibid.). Também não afirma uma felicidade “ao abrigo do otimismo” (ibid.). Segundo Rosset, o pensamento trágico busca “uma coisa inteiramente outra: loucura controlada e júbilo”. (ib.id.). Façamos eco às palavras de Pascal, embebidas na loucura jubilosa do homem trágico, que cai no abismo dançando: “Nós somos tão necessariamente loucos que seria estar louco por uma outra espécie de loucura, não estar louco”. (...) “Alegria, alegria, lágrimas de alegria”. (apud. Rosset, p. 23-24).
Em que medida as considerações de Rosset sobre a diferença entre a sabedoria trágica e a sabedoria pessimista ajudam-nos a determinar a orientação diversa, não coincidente, das disposições afetivas a que já aludimos? Da compreensão de Rosset da diferença entre as duas sabedorias, colheremos as noções de acaso e absurdo, aprovação incondicional e desaprovação.
Em consonância com a lição de Rosset, diremos que a disposição afetiva trágica afirma e/ou celebra o júbilo na insignificância radical da existência, a coragem no enfrentamento do caráter deveniente da vida, a qual se revela como fluxo incessante que arrasta tudo que existe para o aniquilamento. A disposição afetiva trágica sustenta a aprovação jubilosa da existência.
A disposição afetiva pessimista, por sua vez, é movida pela resignação em face da crueldade do real, pela constatação do caráter insatisfatório, absurdo e aterrador da existência. A resignação pessimista pode vir acompanhada de uma proposta compensatória ou consoladora, animada, no entanto, pela negação da vida sem concessão, pela recusa da existência como irremediavelmente má, pela desaprovação da ordem do mundo considerada como desprovida de qualquer sentido último.
Acresce-se que as duas disposições afetivas afirmam o desespero, mas o fazem em sentidos diversos: a disposição afetiva trágica afirma o desespero jubiloso que quer o real tal como é. Para a disposição afetiva trágica, o devir, que caracteriza a impermanência de todas as coisas, que torna todas as coisas destituídas de densidade ontológica, não constitui razão para a negação do mundo. Por isso, o pensador trágico dará sua aquiescência ao fluxo incessante, ao destinar-se inexorável de tudo que existe ao aniquilamento. Um exemplo desse espírito trágico está muito claramente sumariado no seguinte trecho de Ecce Homo (2013, p. 107-108):



A afirmação do fluir e da destruição, elemento decisivo numa filosofia dionisíaca; o dizer “sim” à contradição e à guerra; o devir, com uma recusa radical do próprio conceito de “ser”- nisso tenho de reconhecer, em qualquer circunstância, o que está mais próximo de mim dentre o que até agora se tem pensado.



Consoante afirma Rosset (2000, p. 35), a sabedoria trágica enuncia “(...) uma fidelidade incondicional à nua e crua experiência do real”.
A disposição afetiva pessimista afirma o desespero como desesperança desorientadora, quanto à possibilidade de encontrar qualquer sentido último para a existência. Esse desespero aterrador inspira no espírito pessimista o pensamento de recusa do real tal como é, ao mesmo tempo em que lhe inspira a força com que denuncia o caráter insatisfatório, contraditório e mau da existência. O desespero pessimista orienta-se sempre no sentido da negação do mundo: desespero-me de buscar um sentido para a existência – diz o pessimista -, logo a existência é um inconveniente, um desastre, um acontecimento absurdo ao qual só posso dar minha desaprovação. A lenda do rei Midas, relatada por Nietzsche em O nascimento da tragédia, e referida antes por Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação, merece ser evocada aqui como um exemplo paradigmático do espírito pessimista, vale dizer, da negação da existência que caracteriza fundamentalmente o pensamento pessimista. Escreve Nietzsche:



(...) Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio SILENO, o companheiro de Dionísio. Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: - “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”. (Nietzsche, 2007, p. 33).


       
             2. A influência de Schopenhauer na formação do pensamento de Nietzsche


Escapa à alçada desta exposição discorrer em pormenores sobre a influência que a filosofia de Schopenhauer exerceu sobre o pensamento de Nietzsche. Nosso intento é mais modesto: queremos apenas assinalá-la de tal modo, que se torne possível o conhecimento da dívida que o pensamento de Nietzsche tem, sobretudo nos anos de juventude desse autor, para com a filosofia de Schopenhauer. A influência da filosofia de Schopenhauer sobre a formação do pensamento nietzschiano não deve ser interpretada de modo reducionista como a presença de marcas, de “pegadas” schopenhauerianas que sinalizam uma reapropriação e ressignificação pelo pensamento de Nietzsche de domínios de significado do pensamento de Schopenhauer. A influência se deixa ver também nos pontos claros de desacordo entre esses dois filósofos, na insistência com que Nietzsche cita Schopenhauer para censurá-lo, para marcar os pontos de discordância entre seu pensamento (de Nietzsche) e o pensamento desse filósofo pessimista.  Assim, a marca de influência de um pensador e/ou autor sobre outro se deixa ver não apenas nos rastros de continuidade que podemos identificar, mas também nos rastos de ruptura, de dissensão entre os dois pensamentos.
A descoberta da filosofia de Schopenhauer por Nietzsche se dá quando da leitura que este faz do livro O Mundo como Vontade e Representação. Àquela altura, Nietzsche frequentava os cursos de filologia do professor Ritschl, mestre a quem acompanha ingressando na universidade de Leipzig, em 1865.
Na leitura de O Mundo (publicado em 1819), Nietzsche se dá conta do sentido filosófico da tragédia. Ele não deixa de se admirar da concepção schopenhaueriana de mundo como manifestação de uma Vontade cega, sem finalidade e irracional. Em grande medida, é na filosofia schopenhaueriana que Nietzsche encontrará a matriz de sua metafísica trágica[5]. Consoante Rosset (1989), essa visão trágica já se deixa ver no pensamento schopenhaueriano. Recorde-se que a Vontade em Schopenhauer é o fundamento sem fundamento da existência. Essa “verdade trágica” será radicalizada por Nietzsche na elaboração de sua experiência dionisíaca de mundo, “cuja descoberta não suportaríamos sem o socorro da arte e das aparências”. (Rocha, 2003, p. 46).
O leitor familiarizado com o pensamento nietzschiano pode discordar – não sem razão – de que haja uma metafísica em Nietzsche. É verdade que um pensamento que toma o mundo como destituído de ser é ele mesmo antimetafísico. Não resta dúvida, portanto, de que “[a] concepção de existência como desprovida de ser atravessa toda a obra de Nietzsche”. (Rocha, 2003, p. 45). Não obstante, em O Nascimento da Tragédia, obra que se situa entre os escritos de juventude de Nietzsche e onde é mais flagrante a influência de Schopenhauer sobre Nietzsche, há uma concepção metafísica que se expressa na admissão de uma essência dionisíaca subjacente às aparências. Todavia, nota Rocha (ibid.), essa essência não deve ser tomada como fundamento do mundo, “mas, ao contrário, é uma instância privada de toda medida e inteligibilidade”. Se a filosofia do jovem Nietzsche pode ser considerada “metafísica”, isso se deve à preservação do horizonte de interpretação do mundo à luz do qual este é explicado a partir da postulação de uma instância subjacente às aparências. Não obstante, a metafísica que aí se afigura é “intrinsecamente paradoxal, já que esta instância é desprovida de todos os atributos que se supõem caracterizarem uma essência”. (p. 46). Paradoxal ou não essa metafísica, deixando de lado as sutilezas semânticas envolvidas nos termos linguísticos que entram a fazer parte da discussão, acreditamos que, sob a influência schopenhaueriana, a esta altura do desenvolvimento do pensamento de Nietzsche, ainda está presente o dualismo ‘aparência x essência’ que caracteriza o modo de pensar metafísico (dualismo que Nietzsche tratará de superar ao longo da produção posterior de sua obra).
A influência de Schopenhauer sobre o pensamento de Nietzsche não se reduz à apropriação que este faz do termo Vontade, cujo conceito divergirá, no entanto, completamente do conceito schopenhaueriano de Vontade. Nietzsche admirou Schopenhauer por ter este produzido um pensamento superior, que nada devia às influências de poder. A admiração nietzschiana por Schopenhauer é de tal vulto que a este um texto é dedicado. A terceira consideração intempestiva, que recebe o título Schopenhauer Educador, é um elogio ao filósofo de Dantzig, reputado por Nietzsche como um filósofo exemplar, que representou o modelo de homem lúcido, altivo e idealista, capaz de subverter as convenções e de lançar por terra as ilusões ao abrigo das quais a maioria dos homens vive. O trecho a seguir nos dá testemunho do tom elogioso com que Nietzsche fala de Schopenhauer:



O que eu relato é somente a primeira impressão, de algum modo fisiológica, que sobre mim produz Schopenhauer (...). Ele é probo porque fala e escreve para si mesmo; é alegre porque conquistou pelo pensamento a mais difícil das vitórias; é constante porque não pode não sê-lo. Sua força cresce vigorosamente e sem esforço, como uma chama no ar calmo, segura de si, sem tremular, sem inquietude”. (Nietzsche, 2008, p. 29-30).


Outro ponto de aproximação entre Nietzsche e Schopenhauer reside no reconhecimento de que ambos os filósofos conceberam a Vontade como constitutiva tanto do homem quanto da existência em geral, fora de uma perspectiva espiritualista. Ainda que sejam inegáveis as diferenças que se deixam ver quando cotejamos entre si os pensamentos desses dois filósofos, é igualmente inegável que ambos se notabilizaram como grandes perscrutadores da existência, “do fundo sombrio e doloroso da vida”. (Brum, 1998, p. 18).




2.1. Diferenças fundamentais entre a filosofia de Nietzsche e a de Schopenhauer


O pensamento de Nietzsche se pretende afirmador de uma única verdade: a verdade trágica, a qual, por sua vez, esteia-se na afirmação da inexistência do Ser. A afirmação da inexistência do Ser faz da filosofia de Nietzsche uma negação da metafísica, a saber, uma antimetafísica que ensina a inexistência de um fundamento que confere sentido e finalidade à existência.
O pessimismo de Schopenhauer, considerando como absurdo o mundo, que é espelho de uma Vontade obscura e inconsciente, oferece como saída para uma existência intrinsecamente dolorosa - a negação da vontade. Nietzsche, ao contrário, embora também considere o sofrimento como o fundo da existência, oferece a possibilidade de uma afirmação da vida no tempo. Nietzsche é aqui o antípoda de Schopenhauer. Para Nietzsche, “o homem trágico diz “sim” em face até do sofrimento mais duro: é bastante forte, bastante abundante, bastante divinizador para tanto”. (Nietzsche, 2011a, § 483).
Ainda que Schopenhauer explique o sofrimento, a dinâmica dolorosa da vida como um efeito necessário da afirmação do querer-viver, ele continua vinculado ao horizonte de compreensão cristã do mundo, à luz do qual o sofrimento torna a vida indesejável, uma experiência da qual devemos querer escapar, uma experiência que, maculada pela dor e sofrimento, a vontade deve recusar. A filosofia experimental de Nietzsche, por outro lado, “quer antes penetrar até o contrário, até o dionisíaco sim do mundo, tal qual é, sem desfalque, sem exceção e sem escolha, quer o eterno movimento circular: as mesmas coisas, a mesma lógica e o mesmo ilogicismo do encadeamento”. (Nietzsche, 2011a, § 476).
Contra o pessimismo schopenhaueriano, que vê a vida como uma catástrofe, um erro que não deveria ser, Nietzsche oferece seu dionisíaco sim à existência: “Estado superior que o filósofo pode atingir: ser dionisíaco em face da existência. Minha fórmula para tanto é o amor fati”. (ib.id.).
Nietzsche não se limita, como faz Schopenhauer, a admitir o caráter doloroso da existência como uma necessidade (Schopenhauer, aliás, o admite para, em seguida, oferecer uma fuga). Nietzsche o considera não só necessário, como também desejável, “como o lado mais potente, o mais fértil, o mais verdadeiro da existência” (ibid.). Schopenhauer ainda se movimenta num horizonte hermenêutico de justificação do mal, do sofrimento. Nietzsche, ao contrário, afirma o “pessimismo da força”, segundo o qual “o homem agora não tem mais necessidade de justificação do mal”; ele “condena precisamente a justificação: usufrui do mal puro e cru, acha o mal sem razão mais interessante”. (Nietzsche, 2011, § 461).  Nietzsche ousa ainda mostrar a radicalidade de sua transvaloração: é o bem que precisa ser justificado, que “precisa possuir um fundo mau e perigoso” (ibid.), sob pena de ser “uma grande tolice”.
Schopenhauer se movimenta ainda num horizonte de compreensão metafísica do mundo: ele busca o incondicional em face do condicional, a saber, seu pensamento opera segundo a crença em que o que é relativo (o mundo fenomênico) deve repousar sobre o absoluto (a Vontade como coisa-em-si). Schopenhauer é um herdeiro da tradição metafísica ocidental, na medida em que explica o devir, a impermanência, recorrendo à coisa-em-si, ao Ser.
Nada mais estranho ao pensamento de Nietzsche do que esse modo de pensar o real. Para Nietzsche, o mundo carece de substancialidade; o mundo é um fluxo de forças agonístico. Só existe o mundo do devir, caracterizado pela dinâmica agonística das vontades de poder: “o mundo – escreve Nietzsche – não é absolutamente um organismo; é o caos”. (ibid., § 316).
A filosofia de Nietzsche pode ser entendida como uma ontologia negativa[6], porquanto pensa o mundo como desprovido de Ser.  Na tradição, o ser se diz daquilo que é necessário em contraste com o que é apenas contingente; o ser se diz também daquilo que permanece idêntico a si mesmo e que, por isso, serve de suporte ao devir (o ser se diz substrato do devir); finalmente, o ser designa o que é em si mesmo e para si mesmo, independentemente do aparecer dos entes. Ora, a metafísica baseia-se no mecanismo de duplicação do real, o qual consiste em superpor ao mundo sensível, deveniente, o mundo inteligível, da necessidade e da permanência. Assim, em toda metafísica, a aparência só “é” na medida em que é suportada por uma essência da qual toma seu ser e a qual lhe dá consistência ontológica.
É precisamente essa duplicação do real em mundo sensível e mundo do Ser que Nietzsche rejeita. O pensamento de Nietzsche é, nesse sentido, antiplatônico, antimetafísico. Nietzsche recusa um tal desdobramento metafísico do mundo. Mesmo quando ele fala em “essência”, ela se esgota no seu aparecer. Em suma, como metafísica negativa, o pensamento de Nietzsche nega:

1)       A hipótese de que há um mundo sensível e que esse mundo é expressão de uma essência;
2)       O fluxo do devir como manifestação do Ser;
3)       O mundo sensível como uma duplicação do mundo suprassensível;
4)       Que as interpretações sejam a representação de um mundo previamente constituído.

Cumpre acrescentar que, se Nietzsche rejeita a existência do mundo suprassensível – chamado por ele de mundo-verdade -, o faz não por uma razão teórica, visto que a inexistência desse mundo não pode ser demonstrada, mas por razões práticas. Nietzsche rejeita a existência do mundo verdade (mundo das Essências imutáveis) pelas consequências que a crença nesse mundo acarreta: o niilismo e a condenação da vida, a qual é desvalorizada em favor da vida além-mundo, em favor do mundo suprassensível, o qual realizaria a verdadeira vida (como creem, por exemplo, os cristãos). A crítica nietzschiana à metafísica açambarca uma crítica à moral, à religião e ao racionalismo, os quais são entendidos como expressão da crença em um mundo-verdade. Aqui é oportuno lembrar que Nietzsche também criticará o que chama de “vontade de verdade” que está na raiz da crença de que o mundo tem um sentido já dado, que cabe ao homem tão-só descobrir.



[1] Por afetos, entende Espinosa (2011, p. 98) “as afecções do corpo, pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções”.  O afeto se distingue da paixão pela possibilidade de podermos, no caso do afeto, nos conceber como a causa de uma afecção.
[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. Bauru: SP, 2013, p. 74.
[3] CABRAL, Álvaro; NICK, Eva. Dicionário Técnico de Psicologia. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 87.
[4] Nada obsta a que a disposição possa ser pensada à luz do registro do ser espinosista como recoberto pela dinâmica dos encontros, pelas relações entre os corpos, pela dinâmica relacional caracterizada por encontros potencializadores ou despontencializadores de meu corpo com outros corpos. Nessa perspectiva teórica, a disposição afetiva poderia ser pensada como uma espécie de ‘marca’ piscofisiológica resultante da forma como se dão aqueles encontros.
[5] Conforme ficará claro adiante, a “metafísica trágica” caracteriza um momento do desenvolvimento do pensamento de Nietzsche: em uma palavra, o período em que vem a lume O Nascimento da Tragédia, obra onde a influência schopenhaueriana é flagrante. A esse respeito, Rocha (ibid.) faz uma observação que suprime qualquer margem de dúvida quanto ao domínio de referência a que se aplica o emprego do termo metafísica quando se fala de Nietzsche: “(...) podemos considerar que o termo metafísica deve ser entendido aqui de um modo muito particular: se o que o define é a concepção de uma essência subjacente às aparências, então a obra do jovem Nietzsche é efetivamente metafísica. Mas se o que define é a crença em um fundamento ou uma razão para a existência, então a filosofia de Nietzsche é desde o início rigorosamente antimetafísica”.
[6] Seguindo aqui a interpretação de Rocha (ibid., p. 44).




________________________________________________________

           REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS




             CABRAL, Álvaro; NICK, Eva. Dicionário Técnico de Psicologia. São Paulo: Cultrix, 2006.


            NIETZSCHE, Friedrich. Schopenhauer Educador. São Paulo: Escala, 2008.

___________________. Vontade de Potência. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011a.

___________________. Além do Bem e do Mal. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

___________________. Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011b.



___________________. Ecce Homo. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013b.

ROCHA, Silvia. P.V. Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

SPINOZA, Ética. Belo Horizonte: Autêntica Ed., 2011.