Mostrando postagens com marcador Materialismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Materialismo. Mostrar todas as postagens

domingo, 6 de julho de 2014

"A visão do homem agora cansa - o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do homem..." (Friedrich Nietzsche)

                                

                       O espírito materialista e niilista
                       Uma conciliação contra a ilusão


Em Confissões de um filósofo (2001), Bryan Magee observa que o impulso básico para o filosofar é a curiosidade a respeito do mundo e não o estudo dos textos filosóficos.


“O impulso básico por trás da verdadeira filosofia é a curiosidade a respeito do mundo, não o interesse pelos textos dos filósofos. Cada um de nós emerge da pré-consciência da tenra infância e simplesmente se encontra aqui, nele, no mundo. O que é o mundo: E o que somos nós? Desde os primórdios da humanidade, houve quem fosse dominado pela compulsão de fazer essas perguntas e sentisse um anseio por encontrar as respostas. É isso o que quer realmente dizer qualquer expressão semelhante a “necessidade de metafísica do homem”.
(grifo meu, p. 264)


O indivíduo se entrega à filosofia no instante em que sente a necessidade de refletir sobre a presença plena do ser, do mundo, do qual ele emerge como uma consciência que se sabe finita. É no momento em que esse indivíduo se dá conta desse acontecer, desse haver, dessa Primeira Hora que fez dele um ente lançado no mundo e capaz de se inquietar com a existência do mundo e se perguntar sobre a possibilidade de nada ter existido que ele precisa da filosofia.
Neste texto, esforçar-me-ei por mostrar que a reflexão filosófica não só contribui para construir um modo pessoal de ver (interpretar) e compreender o mundo e a condição humana, compreensão que serve para orientar cada um de nós nas diversas formas pelas quais nós nos relacionamos com o mundo, mas também pode contribuir muito para realçar certos traços de temperamento ou de caráter. Cumpre dizer que emprego a palavra caráter não na acepção ética ou moral, mas na acepção psicológica, para designar, portanto, os aspectos da personalidade que constituem o ego e que, em suas manifestações, distinguem uma pessoa de outra.
Meu intento principal será demonstrar de que modo se pode conciliar o materialismo com o niilismo com vistas a nos esclarecer sobre o estado de ilusões a que estamos presos em nossas vivências cotidianas. Em última instância, espero conseguir mostrar que minhas crenças a respeito do mundo e da condição humana, bem como o modo como eu me relaciono com o mundo estão calcados sobre essas duas doutrinas. Meu temperamento se afina bem com elas. Ao dizer isso, quero dizer que, ao mesmo tempo em que nos entregamos à filosofia, a filosofia parece nos instar a que dela nos apropriemos, a que assumamos uma posição dentre as muitas possibilidades de pensar o mundo e o homem que ela nos oferece. Nosso encontro com a filosofia é um encontro com certo modo de pensar e viver o mundo.




1. A escura lucidez do niilismo

Tome-se o seguinte passo de Niilismo (2007), em que Rossano Pecoraro dá-nos a saber, de modo bastante geral, as condições sócio-históricas em que emerge a atitude niilista:

“A corrosão, a desvalorização, a morte do sentido. A falta de finalidade de resposta ao “porquê”. Os valores tradicionais depreciam-se; princípios e critérios absolutos dissolvem-se. A bússola, que outrora nos orientava, apesar das crises, das rupturas, das ilusões, da substituição frenética de rotas, explodiu em nossas mãos. A superfície, antes congelada, das verdades e dos valores tradicionais está despedaçada e torna-se difícil prosseguir no caminho, avistar um ancoradouro”.
(p. 7)



O niilismo, enquanto atitude e doutrina, surge em circunstâncias em que o homem percebe abalado o seu universo de referências. O niilismo é um conceito fundamental e indispensável à compreensão do desenvolvimento do pensamento filosófico vicejante nos séculos XIX e XX. É um fenômeno complexo, multifacetado. O niilismo se faz presente em toda parte.
Do latim nihil (nada), o niilismo recobre uma forma de pensamento obsedado pelo nada. O niilismo pode ser identificado no curso de toda a história do pensamento ocidental: faz-se notar nas teses do sofista Górgias (490-388 a.C.), na pena do filósofo e poeta italiano Giacomo Leopardi (1798-1837) – o nada é o princípio de Deus e de todas as coisas; na pergunta de Leibniz “por que o ser e não, antes, o nada?”, no pessimismo de Arthur Schopenhauer (1788-1860).
No entanto, é com Nietzsche que o niilismo ganha maior alcance e vigor na reflexão filosófica. Nietzsche foi, sem dúvida, “o maior profeta e teórico do niilismo” (p. 17). Devemos a ele a construção de um pensamento radical que identificou as origens mais remotas do fenômeno, vale dizer, o platonismo e o cristianismo.


“O século XX, século do niilismo abre-se com a morte de Nietzsche e com a crise de uma Razão que sucumbirá aos horrores de duas guerras mundiais, do facismo e do nazismo. O niilismo infiltra-se, encontra projetualidade onipotente na ciência e da técnica, impregna a atmosfera cultural de toda uma época, transforma-se em uma “categoria” fundamental no laboratório contemporâneo”.
(p.10)


O niilismo é uma doutrina filosófica que nega a existência do absoluto, quer como verdade, quer como valor ético. O absoluto aqui conjuga duas acepções: numa acepção, o absoluto é aquilo que é em si e por si, independentemente de qualquer outra coisa, aquilo que encerra em si sua própria razão de ser; noutra acepção, o absoluto recobre a ideia de que é algo independente de qualquer referência convencional (é o contrário do relativo).
Nietzsche utilizou esse termo para designar o que, para ele, era a decadência européia, a ruína dos valores tradicionais consagrados na civilização ocidental do século XIX. O niilismo caracteriza-se, portanto,  não só pela descrença em um futuro glorioso e, nesse sentido, é infenso à ideia de progresso, mas também pela afirmação da “morte de Deus”, na medida em que nega a crença num absoluto, fundamento metafísico de todos os valores, quer éticos, quer estéticos, quer sociais, da tradição.
Entanto, o niilismo nietzschiano conduz a novos valores afirmativos da vida, da vontade humana, pela superação da “moral de rebanho” e pela dissolução dos princípios metafísicos tradicionais. Na mira do niilismo nietzschiano, estavam os Ídolos tão enaltecidos pela civilização ocidental, quais sejam, a Verdade, a Razão e Deus.
O niilismo pode apresentar-se em duas formas: uma positiva e outra negativa. O niilismo positivo se manifesta por meio de um trabalho crítico que visa a desmascarar a abismal ausência de cada fundamento, verdade, critério absoluto e universal, ao mesmo tempo em que nos convoca a assumir nossa própria liberdade e responsabilidade, não mais garantidas, é verdade, nem sufocadas ou governadas por nada. O niilismo negativo é marcado pela acentuação de traços destruidores e iconoclastas, tais como os do declínio, do ressentimento, da incapacidade de avançar, da paralisia, do “tudo-vale” e do nefasto silogismo: “se Deus (a verdade, o princípio) está morto, então tudo é permitido”.


1.2. Niilismo em Nietzsche

Na filosofia nietzschiana, o niilismo assume um sentido negativo, que denuncia a decadência do homem ocidental, cujas origens remontam ao racionalismo socrático, à oposição platônica entre o mundo das Ideias e o mundo sensível, e à consequente desvalorização deste último em favor do primeiro; ao cristianismo, que Nietzsche chamou “platonismo para o povo”, o qual impôs uma moral de renúncia e submissão, de desvalorização da vida em nome de um além-mundo, ao mesmo tempo em que inculcou nas consciências de rebanho esperança de salvação e redenção.
Por outro lado, há, em Nietzsche, um niilismo positivo, de que se serviu o filósofo para demolir os ídolos da tradição, para desmascarar as falsidades e embustes dos valores e verdades tradicionais. Esse niilismo serviu para anunciar a superação do homem e o advento do “além-do-homem”.


1.3. Niilismo em Sartre

Também o pensamento francês do pós-guerra é perpassado por características niilistas. Jean Paul-Sartre (1905-1980) debateu-se com as grandes questões que o nihil suscita: o sentido da existência, a liberdade, engajamento, concepção da história.
Ao sustentar que o homem “é aquele ente em que a existência precede a essência”, Sartre compromete-se com a negação e dissolução de ideias como a de Deus, princípio, valores heteronômicos.
Afirmando que o homem está condenado a ser livre e que, no seu abandono, tem de inventar a si mesmo, Sartre endossa uma posição niilista, que se clarifica na ideia de que o homem é não é uma realidade dada, mas uma possibilidade, um projeto, um ente que tem de decidir ser nas escolhas que faz.
A dimensão trágica do “para-si” consiste no fato de ele estar sempre inserido numa situação determinada, de estar lançado em um mundo entre outros “em-si”. Esse choque do homem com o mundo das coisas condena-o a uma nadificação do mundo. O homem perde toda referência externa em que poderia se apoiar para afirmar-se unicamente a si mesmo e sua absoluta liberdade, que se funda no nada. Segundo Sartre, na tentativa de se realizar, o homem pretende, em última instância, ser Deus. Sucede, contudo, que a ideia de Deus aniquila a liberdade humana. Sem encontrar soluções e critérios para construir o fundamento de sua existência, o homem se vê dominado pela negatividade: escolher não faz sentido, e “o homem é uma paixão inútil” (Sartre).

“Em sua conferência, proferida no pós-guerra, O existencialismo é um humanismo (1945), (...) o filósofo defende-se das acusações de desengajamento e derrotismo, que sobretudo marxistas e católicos lhe imputavam, e mostra que a filosofia existencialista, mesmo com o seu fundo relativista e niilista, é capaz de propor uma regeneração dos valores a partir da “morte de Deus”.
(p. 31)


Cabe salientar que uma tal regeneração não é possível se o homem se perder numa busca insensata pelos princípios, critérios e valores decaídos. Essa regeneração só poderia realizar-se se o homem reinventar os seus valores “unicamente por força de si mesmo, mediante o seu engajamento e sua liberdade” (p. 31).


1.4. Niilismo em Albert Camus

Absurdo e revolta são os dois principais polos do pensamento de Camus (1913-1960). No romance O estrangeiro (1942), o autor explora a escandalosa gratuidade da existência, a sua insensatez constitutiva que silencia os valores e a moral. Em Camus, a liberdade defronta-se com a impotência ou a inevitabilidade da morte.
No ensaio O homem revoltado (1951), o absurdo é tratado como uma questão universal. O absurdo é a injustiça, o caos, a desrazão do mundo. É da visão desse espetáculo trágico que se origina a revolta. O homem revoltado é aquele que se esforça por dar um sentido ao absurdo, ultrapassando, assim, o niilismo.


1.5. Niilismo cosmológico

O que chamo de niilismo cosmológico é a concepção do homem que ressalta sua insignificância na totalidade do cosmo. Esse niilismo está ligado intimamente à cosmologia moderna. Depois de Descartes, com sua concepção de natureza como res extensa, a saber, um espaço vazio e matéria, o homem foi abalado por um estranhamento metafísico. Pascal já havia notado a terrível transformação trazida pela cosmologia materialista, que pulverizou a importância que o homem atribuía a si mesmo na ordem do universo. Escreve Pascal: “imerso na imensidão infinita dos espaços que ignoro e que me ignoram, eu me apavoro”.
O universo físico desvelado pela cosmologia moderna não dá ao homem viver mais em casa, nem sentir-se um ser especial, como no modelo cosmológico antigo e medieval. Desde então, o universo lhe parece estranho, desolador, sombrio e inóspito. Como numa cela que lhe priva a liberdade, sua alma percebe-se aprisionada numa infinitude cósmica atormentadora. O homem se percebe como a única voz no silêncio eterno das estrelas e dos espaços infinitos e indiferentes. O homem está só consigo e esse estado lhe é fonte de angústia e desespero. Destarte, nota Volpi, em O Niilismo (1999):

“Logo mais, o próprio Deus se eclipsará. Primeiro, como hipótese, supondo-se tudo “como se Deus não existisse” (...). Depois, como realidade. Tudo deve ser repensado, a começar pelo sentido de nossa existência, já que “Deus está morto”.
(p. 17)


A transcendência perde sua força, que antes ligava o homem à totalidade cósmica. O homem se vê abandonado a si mesmo e reclama sua liberdade. Não lhe resta senão apoiar-se nela, identificar-se com ela. Assim, o homem passa a ser a sua própria liberdade. Ele é o que projeta ser; tudo lhe é permitido. O existencialismo enfrentou o fato de essa liberdade ser uma liberdade desesperada, a qual acarreta mais angústia do que satisfação e força (Volpi, p. 17).
 Vale dizer que um niilista não acredita no próprio homem. O niilista renuncia à crença em que o homem é um ser especial na natureza, em que ele seja dotado de um valor ou destino metafísico, que justifica sua existência.


1.6. Niilismo e política

Desde o fim do século XVIII, o niilismo se fez sentir na história, tanto como força conceitual e filosófica, quanto como força pregnante do plano social e político. Os niilistas objetivavam a dissolução, a destruição da ordem social, do sistema de valores consagrados e do sistema político vigente – pelo menos era assim que os viam seus adversários.
No contexto da cultura francesa, o pensador católico Franz von Baader debruçou-se sobre o conceito de niilismo em dois ensaios, nos quais afirmava que o protestantismo, dando origem a um fenômeno dissolutivo das verdades sagradas, deveria ser combatido pelo catolicismo, que deveria impor novamente o “conceito de autoridade no sentido eclesiástico, político e científico”. Baader defendia uma luta contra todos os tipos de “dúvidas ou protestos, antigos ou novos”. Em seguida, definiu o niilismo como “um abuso da inteligência destrutivo para a religião”. Condenando o niilismo, ele estava condenando o que julgava ser um efeito do uso sobremaneira livre da razão, ou um sintoma da degeneração do tecido civil, religioso e social.
No contexto da Revolução Francesa, eram considerados niilistas aqueles que não eram nem favoráveis, nem contrários à insurreição. Na França do período pós-revolução, niilista era aquele que não acreditava em nada, que não se interessava por nada.

Sumariando, pode-se entender o niilismo como o diagnóstico da decadência e da crise dos valores. Na seção seguinte, tecerei algumas considerações sobre o materialismo filosófico. Valho-me, para tanto, do livro Uma Educação Filosófica (2001), de André Comte-Sponville. Nele, se topa um excerto em que o autor define o materialismo.

2.1. Materialismo

“(...) chama-se materialismo a doutrina que afirma que tudo é matéria ou produto da matéria (salvo o vazio) e que, por conseguinte, os fenômenos intelectuais, morais e espirituais (ou assim supostos) têm realidade secundária e determinada (...)” (p.119)


O materialismo é mais bem elucidado, quando contraposto ao idealismo, doutrina esta que afirma a existência independente, primeira e exclusiva do pensamento. Ao contrário, o materialismo afirma o primado da matéria. Dentre os aspectos que se podem inferir do trecho referido, destaco, tendo em vista a conciliação do materialismo com o niilismo, seu relativismo ético. Na perspectiva materialista, não há valores absolutos (não há Bem em si, Justiça em si, Belo em si, ou mesmo Deus). Todo valor é relativo a um corpo individual ou social, à história.
O materialismo se define, negativamente, pela recusa do dualismo e do espiritualismo (não existe nem mundo inteligível nem alma imaterial), do ceticismo e do criticismo (pois a realidade em si não é incognoscível). É incompatível com toda religião cujo corpo doutrinário se sustenta pela crença num Deus imaterial, criador e legislador.
O materialismo é uma filosofia de recusa, de embate (p. 120). É também um empreendimento de desmitificação. É importante salientar que o materialismo não nega, de modo algum, a existência do espírito. Na verdade, o materialismo se funda num paradoxo: afirma o primado da matéria e a primazia do espírito.
Essas breves notas sobre o materialismo são – assim me parece – suficientes para familiarizar o leitor com a doutrina materialista. Ela será mais bem elucidada à medida que me ocupar com o desenvolvimento de duas questões que se encontraram interligadas: ilusão e política. Delas me ocuparei, à luz da perspectiva materialista.


2.2. Materialismo e a ilusão do valor

Em Tratado do Desespero e da Beatitude (1997), Sponville afirma que o materialismo, em política, é antiplatônico, a saber, é a negação do ideal (p. 129). Disso não se segue que o materialista não tenha um ideal, que ele renuncie a todo ideal. Como filósofo, o materialista tem suas aspirações elevadas, suas exigências intelectuais, estéticas, portanto, seus ideais; se não os tivessem, não seriam filósofos.
O que o distingue, nesse tocante, do idealista é a forma como pensam o estatuto do ideal. Para um materialista, o ideal carece de existência absoluta; ao contrário, o idealista crê nessa existência absoluta do ideal. Para o materialista, o ideal não existe independentemente dos sujeitos, de certas condições sócio-históricas. Para o materialista, o ideal é o horizonte do desejo. Consoante insiste Sponville,

“(...) ser materialista é pensar que o ser não tem mais valor do que o valor tem ser. Dito de outro modo, o ser não vale nada, falando objetivamente, e o valor não é, isto é, só tem ser ilusório ou subjetivo. Em resumo, trata-se de disjungir o que Platão cônjuge: o valor e o ser, a norma e a verdade. Para um materialista, o valor não é verdadeiro, e a verdade não tem valor. Desespero e lucidez”.
(p. 135)



Quem quer que adote uma posição materialista compromete-se, necessariamente, com o fato de o ser não ter valor tanto quanto o valor não ter ser. Em outras palavras, “o ser não vale nada, falando objetivamente, e o valor não é, isto é, só tem ser ilusório ou subjetivo” (p. 135). O materialismo, assim, separa aquilo que Platão uniu: o valor e o ser, a norma e a verdade. Para um materialista, o valor não é verdadeiro, tampouco a verdade tem valor.
Uma vez adotando uma visão materialista do mundo, um indivíduo se compromete com o pressuposto básico segundo o qual os valores são ilusórios, são produtos da imaginação humana e sempre relativos. Destarte, o bem, o mal, o belo e o feio, o justo e o injusto são “puros fantasmas da alma nascidos das afeições do corpo” (p. 136). Para um materialista, os homens não são livres, muito menos guiados pela razão.
Do que se expôs até aqui, segue-se uma conclusão que o materialismo endossa: a política, a arte e a moral se encontram sempre ao abrigo da ilusão (p. 136). O materialismo é uma filosofia da desmitificação.

“(...) somente um discurso verdadeiro sobre a moral, sobre a arte, sobre a política pode mostrar que a moral, a arte e a política não tem verdade e não poderiam ter (...) Verdade e desespero: se não há valor que não seja ilusório, somente a verdade – a verdade sem valor – é capaz de nos desilusionar”.
(ib.id., ênfase no original)


Com Sponville – e permitindo-me o uso de um neologismo -, pode-se pensar o materialismo como uma doutrina do “desilusionamento”. Com Spinoza, vale dizer que “a verdadeira filosofia” é a que elabora a teoria da ilusão de toda filosofia; é a que reconhece seu sentido só pode ser determinado do ponto de vista dos homens. É verdadeira porque reconhece que a natureza (ou o Deus spinozista) é indiferente a tudo, ou seja, destituída de toda normatividade. Essa filosofia anuncia que não há nada além da natureza: tudo é e nada vale. Impõe-se-me um esclarecimento aqui: dizer que “nada vale” é dizer que nada tem valor em si, independente de um corpo individual, social ou da história.


2.3. Ilusão e política numa perspectiva materialista

Doravante, vou desenvolver e esclarecer o conceito de ilusão, com vistas a fazer entender em que medida a política (o mesmo vale para a arte e a moral) é ilusória. No que se seguirá, estarei interessado em elucidar qual é a ilusão própria à política. Ao apontá-la, dou a saber a situação ilusória de todo militante.
Comecemos por notar que ser antiplatônico em política é assumir que nenhuma política é verdadeira, que nenhuma é boa ou justa absoluta ou objetivamente. A esse respeito, sublinha Sponville: “Só há absoluto na natureza, e esta é indiferente a qualquer política” (p. 138). Todas as políticas se equivalem, porque nenhuma delas tem valor – materialismo e desespero.
Se nos socorrermos do ensinamento do budismo primitivo, a questão de como a ilusão estrutura, é constitutiva de nossa relação com o mundo ficará mais clara. O sábio, segundo a doutrina budista, é aquele que despertou da ilusão do samsara: ele é desapegado de tudo. Sabe que nada tem sentido, nada tem valor, nem mesmo o budismo. O real é indiferente. No mundo ilusório, que é o mundo em que vivemos, que é o mundo do samsara, tudo adquire valor e sentido, isto é, tudo passa a ter valor e sentido – segundo se crê - objetivamente. O sábio está liberto desse mundo, já que atingiu o nirvana, condição em que descobre a vacuidade do sentido, em que desperta do sonho normativo.
Deve-se entender, portanto, que, do ponto de vista budista, o indivíduo que vive para alguma coisa, isto é, em função de algo que ele pensa ser dotado de sentido, significado para si mesmo, é prisioneiro do samsara (samsara designa, na tradição budista e hinduísta, o ciclo de morte e renascimento em mundos materiais), ou seja, da ilusão. Mas essa ilusão não é o oposto do mundo real; ela pertence ao real, melhor ainda, é o mundo real em que vivemos. Tomemos nota do que nos ensina Sponville a seguir:

“Essa ilusão, da qual é uma ingenuidade crer que seja reservada aos ingênuos, e da qual Spinoza soube pensar a necessidade e mostrar, era para cada um de nós a trama – e o drama – de nossa vida” (p. 139).


Que nossa visita ao ensinamento budista não nos engane: não dou à palavra ilusão qualquer sentido místico. Se pretendo frisar a ideia de que a ilusão é a trama e o drama de nossa vida, é para mostrar que a ilusão reside nas formas como percebemos/ interpretamos o mundo. O materialista pensa que tudo o que vale – a arte, a moral e a política, e mesmo a verdade – na medida em que lhe atribuímos valor, é sempre ilusório. O materialismo não suprime a ilusão, mas fixa-lhe o seu devido lugar. Onde reside, pois, a ilusão? No espectador, naquele que vê o sol girar em torno da Terra. A astronomia ensina que o que vemos é uma ilusão – e desta jamais nos libertamos – e que essa ilusão obedece a leis necessárias. Portanto, se esse é o verdadeiro modo de funcionamento do mundo, um funcionamento que inclui a ilusão como dimensão necessária, nossa percepção não poderia ser de outro modo. Portanto, a ilusão é necessária. Ela tem a sua verdade.
As ditas ilusões de ótica são bem conhecidas, mas há outras maneiras pelas quais os indivíduos se iludem; e uma dessas maneiras é acreditar que desejamos as coisas que são boas. Note-se que o “ser boa” é tomado como condição para que desejemos uma coisa. Crer-se que qualidade “boa” está na coisa mesma (é parte dela) e que essa qualidade é responsável por dirigir nosso desejo. Ilusão comum! Mas, na realidade, é justamente o contrário que sucede. Uma coisa é boa porque a desejamos. O desejo comanda, portanto, nossas escolhas e determina o valor que atribuímos às coisas: “o desejo é a verdade do valor” (p. 141). É por isso que o valor não pode ter a pretensão de ser verdadeiro. A verdade não está sob o comando do desejo, apenas os valores. Uma coisa é verdadeira, independentemente de nosso desejo. Não somos imortais, e isso é verdade, independentemente de nosso desejo de imortalidade. Envelheceremos, e isso é verdade, independentemente de nosso desejo de permanecermos sempre jovens (ilusão). O real e a verdade são indiferentes aos nossos desejos.

“O que vale não é o que é (em verdade) justo, belo ou bom, mas simplesmente o que desejamos e que, por essa razão, julgamos ser justo, belo e bom” (p.141).


Que não haja dúvida: os valores são fixados por um ponto de vista humano, governado pelo desejo. Os valores não são nem irreais (o desejo é real) nem falso (já que isso suporia uma verdade em termos de valores), mas é ilusório (p. 141). Mas é ilusório não porque é falso, mas por crer-se verdadeiro. Não é por ser relativo, mas por julgar-se absoluto. É ilusório também porque crer-se divino: “o homem é só e julga como pode (...); a ilusão não está nesse juízo, mas na negação de sua solidão” (ib.id.). Atente-se nas palavras de Sponville:




“A ilusão não está em ser um homem e estar no centro do seu mundo, mas em se tomar por Deus (ou sua imagem) e estar no centro do universo. Porque o universo não tem centro e porque não há Deus que julgue” (p.141).



Não há saída: eis o labirinto em que vive o homem. O homem jamais poderá viver sem ilusões, porque ele próprio é ilusório. É ele que toma por efetivamente desejado, isto é, é ele que hipostasia o objeto de seu desejo e o transforma em valores objetivamente desejáveis.

“Não é apenas a religião, mas também toda ideologia, que é uma “consciência invertida do mundo”, uma câmara escura em que, como nas primeiras máquinas fotográficas, “os homens e suas relações nos aparecem de cabeça para baixo”. Mesmo ateus, os homens não podem prescindir de uma realização fantástica do ser humano, como diz Marx, a propósito de Deus, isto é, de um além da verdade” (p. 142)



A ideologia, para Marx, é esta forma de ilusão, ou o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido), pelo qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Pela abstração, os homens conhecem a realidade como algo dado, feito e acabado, que classificam, ordenam, sem nunca se indagarem sobre como tal realidade foi concretamente produzida. Pela inversão é que se explica que os homens tomem como objetivo (ou seja, como exterior ao sujeito, pertencente à coisa mesma) aquilo que, na realidade, é do domínio do subjetivo, da imaginação, atribuído à coisa pelos sujeitos.

2.3.1. A ilusão do militante

A ilusão própria da política prende-se à situação de qualquer militante. Essa ilusão consiste em que o militante crê ter razão – uma razão que ele pretende seja universal. Não é necessário o fanatismo para que ele acalente essa crença. Sponville pondera, nesse tocante, o seguinte:

“Há, assim, um fenômeno espontâneo de auto-sugestão pela qual cada um imagina defender não somente seus próprios interesses mas os do Bem, não apenas seus desejos mas as exigências da história, não as suas opiniões mas a verdade (p. 143).


Todos são sinceros, ou dizem o ser, quando se arvoram em combatentes em nome da justiça, da felicidade comum e da liberdade.


“Vários inclusive talvez estejam prontos, pela causa que creem justa, a sacrificar sua vida ou arriscá-la... E é sinceramente que o vencedor, qualquer que seja, pensará na noite da eleição que sua vitória é uma boa coisa, não para ele somente, ou para os seus amigos, mas para o [Brasil]”.
(p. 144-145)


Ele não está errado, nem está com a razão, porque “a política não é uma questão de razão, mas de desejo” (p. 145). Não havendo Deus para decidir, a razão não se interessa por fazê-lo. Ninguém tem razão, porque todos têm desejo. Pode acontecer que o candidato esteja errado, conforme nota Sponville:

“No máximo, pode-se dizer (...) que o candidato vencedor estará errado se acreditar que tem razão e que um Deus, em alguma parte, real ou fictícia, se rejubila secretamente com a vitória dele”.
(p. 145)



Sua ilusão consiste em pensar que a verdade triunfa quando, na verdade, é o desejo que se satisfez e que expressou a sua força. Seus adversários, por seu turno, também se iludem, se pensarem que foi o erro ou a mentira que venceu.

“Ninguém está errado, e todo mundo acha que tem razão. A ilusão não é o contrário da verdade, mas sua pretensão indevida” (ib.id.)


A situação do eleitor não é diferente da situação do político profissional. O eleitor se ilude também no momento em que se convence de que fez a melhor escolha, objetivamente falando. Sponville não pretende, de modo algum, sugerir a adoção do apoliticismo – “ilusão por ilusão, prefiro essa tensão da alma às facilidades insípidas e flácidas do apoliticismo – também ele ilusório, e político a seu modo” (p.146). Necessário é entender que não se escapa da ilusão e não se escapa da política, isto é, de atuar politicamente, mesmo que seja para renunciar a qualquer posição política; jamais se escapa da ilusão de viver como um “animal político”.
O que, raramente, ocorre ao militante é a prática da teorização dessa ilusão. Não lhe ocorre teorizar sobre a crença, largamente aceita, de que existe um bem político discernível do ponto de vista que funda a verdade (uma política objetivamente boa). A isso se chama platonismo: “o platonismo é a ideologia espontânea dos militantes” (p. 146).
Até aqui, consideramos a situação ilusória em que se encontra o militante idealista. Sponville não está certo de que haja um militante materialista; não obstante, supõe sua existência a fim de destacar o que torna a sua situação distinta da situação do militante idealista. Acompanhemos Sponville no seguinte excerto:

“[O militante materialista] combate sozinho e faz o que pode (...) Sabe que nem tem razão, nem está errado, que sua força está a serviço unicamente de seu desejo, e que seu desejo não tem outro direito que sua força... É lúcido e desesperado” (p. 147).


A ação política do militante materialista não é dotada de finalidade, e a história – ele o sabe bem – não tem sentido. A única finalidade que persegue é a do desejo. Como não há Deus, não há, para ele, um Verbo que justifique sua militância: “seu único verbo é sua palavra, singular e frágil” (ib.id.). Ele sabe que nenhum combate é bom, nem partido algum é melhor.

“Não é triste. Não é resignado. Tem a coragem de seu desespero, e a alegria de sua força. No silêncio de Deus e no burburinho do mundo, assume até o fim a solidão de seu desejo” (ib.id.).


Toda política é, portanto, desejante: “a política é a coletividade dos desejos” (p. 148). Nem todo desejo é, todavia, político; só o é, quando, por efeito da ilusão, pretende reinvindicar um bem universal, isto é, quando transforma o que é subjetivamente desejado em objetivamente desejado. A política toma sua força na hipóstase ideológica de um desejo coletivo, que é uma vontade geral ou sentido da história. É aqui que o militante materialista e o militante idealista se encontram:

“O militante materialista vive então as mesmas ilusões de seu irmão-inimigo idealista: ilusão de ter razão (“somos o partido da verdade...”), de estar a serviço de valores supremos (“combatemos pela Justiça”) ou de representar o universal (o Povo, a Nação...), em suma, de combater o bom combate, no fundo o único legítimo, o único que um Deus, se houvesse algum, poderia compartilhar; não dá para imaginar um Deus indo contra “o sentido da história” ou querendo a desgraça da humanidade. Enfim, parece que o militante materialista não pode se impedir de pensar sua prática em termos de conceitos fundamentalmente idealistas” (p. 149)


Então, devemos concluir que o materialista, enquanto militante, é tão iludido quanto o idealista, na mesma condição? A resposta é: sim e não. O materialismo se defronta com um paradoxo inevitável: na medida em que o materialismo é efeito do desejo é, apesar disso, uma doutrina que supõe necessariamente haver algo além do desejo. Esse “além” é que justifica o desejo e é necessariamente um ideal (porque não existe objetivamente). O militante idealista compartilha essa crença na existência de um além; mas somente o materialista reconhece que essa crença é ilusória. É necessário crer, pois a ilusão é necessária. Por isso, o materialista está condenado a esta contradição: ele crê em algo que sabe ilusório e o afirma como tal. Ele é obrigado a se desilusionar, sem abrir mão de sua crença que reconhece ilusória. Novamente é Sponville que nos esclarece a condição do militante materialista:

“É para isso que lhe serve a sua filosofia: não para ele se desembaraçar dessa ilusão (já que lhe ensina, ao contrário, a necessidade desta), mas para colocá-la em seu devido lugar, isto é, pensá-la como ilusão necessária” (p. 150).


A lucidez é experienciada no momento em que reconhecemos ser a política nada mais do que “jogo de forças e de desejos, e não a emergência de uma verdade” (p.150). Lucidez materialista e niilista, a um só tempo, portanto.

3. A aurora de nossa mente ou o começo de nossa ilusão

Nosso cérebro tem a capacidade natural de produzir ilusões. É possível explicar a facilidade com que nos enganamos, com que nos iludimos ao longo da vida estudando o modo como se desenvolve a cognição humana. Nos primeiros anos de vida, no período que Piaget chamou de pré-operatório, o cérebro de uma criança se acha ainda imaturo cognitivamente, muito embora ela já experimente emoções que determinarão significativamente suas experiências futuras. Aos dois anos de vida, a criança não consegue perceber outro ponto de vista além do seu próprio. Essa fase caracteriza-se pelo predomínio do pensamento egocêntrico. A criança, nessa fase, não consegue assumir o ponto de vista alheio.
Seu pensamento compreende o mundo sensível como uma extensão de si. É comum que a criança não consiga se distinguir de outras pessoas e objetos. Ela costuma atribuir suas vivências pessoais a essas pessoas e objetos. O animismo começa nesse período. Não obstante a imaturidade do cérebro, a criança está em pleno desenvolvimento da aprendizagem sobre a realidade a sua volta. Como sua racionalidade só irá amadurecer algum tempo depois, ela se relacionará com o mundo de maneira intuitiva, emocional e egocêntrica.
Seu conhecimento do mundo funda-se, basicamente, nos sentidos. Trata-se de um conhecimento jamais submetido à reflexão. Ela aprende, mas não entende seu conhecimento. Este conhecimento é, para ela, incompreensível.
Nos primeiros anos de vida, o que fica registrado na mente da criança é uma vivência do mundo baseada em si e, ao mesmo tempo, esquecida para si. Essas primeiras impressões da infância jamais se apagam. As experiências subsequentes estarão na base de nossas crenças emocionais já formadas nesse estágio de desenvolvimento de nossa cognição.
Se, no decorrer da infância, aprendemos o que é mais básico para atuar no mundo com pouca ou nenhuma consciência, o que sucede alguns anos depois? Não deve surpreender-nos que não construímos uma visão de mundo nova, com base na realidade. Na verdade, nós racionalizamos aquilo em que já acreditávamos por força das nossas emoções. Em vez de ajustar nossas explicações às evidências, fazemos o contrário: ajustamos às evidências às nossas crenças preexistentes. Vale dizer de modo mais claro: explicamos a realidade, ajustando-a de modo que se acomode às nossas crenças prévias, e tomamos estas crenças como a realidade. Notemos que já estávamos comprometidos com essas crenças. Essa operação de ajuste da realidade às nossas crenças primeiras e forjadas em experiências calcadas sobre as nossas emoções infantis explica por que muitos de nós chegam a acreditar que os valores são objetivos, que deuses existem e nos amam.
Estamos programados para fazer julgamentos morais com base numa teoria do realismo moral, consoante nota o filósofo e neurocientista Joshua Greene:

“O julgamento moral, em sua maior parte, não é guiado por raciocínios morais, mas por intuições morais de natureza emocional. Nossa capacidade de julgamento moral é uma complexa adaptação evolutiva a uma vida intensamente social. Na verdade, somos tão bem adaptados a fazer julgamentos morais que, aos nossos olhos, o ato de fazê-los é bastante fácil, parte do “bom senso”. Como muitas habilidades de fazer julgamentos morais nos parece uma habilidade perceptível, uma habilidade, neste caso, de discernir imediata e confiavelmente fatos morais que independem de mentes. O resultado é que somos naturalmente inclinados à errônea noção de realismo moral. As tendências psicológicas que encorajam essa crença equivocada têm uma importante função biológica, e isso explica por que julgamos o realismo moral tão atraente, ainda que seja falso. Digamo-lo ainda outra vez, o realismo moral é um erro que nascemos para cometer”.
(Greene, 2002. apud. Cioran, 2011, p. 89, grifo meu).



quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

"Quem nunca na vida foi absolutamente só não saberá o que é a necessidade da filosofia" (Sponville)

                             



                             A minha filosofia
                  primícias de uma arquitetura


A produção deste texto é motivada pela necessidade que senti de assentar os alicerces sobre os quais um pensamento filosófico que me seja próprio possa, a longo prazo, edificar-se. Pretendo, neste texto, tão-somente dar a conhecer a estrutura das fundações. Trata-se de dar bases sólidas, de estruturar uma forma de pensamento que tem sido, há muito, uma espécie de lente com a qual percebo e interpreto o mundo, o real, a existência. O percurso de minhas reflexões será traçado com o objetivo basilar de dar a conhecer a coerência não só entre o meu estar-em-relação-com-o-mundo e as formas como eu compreendo este mundo, que não me são acessíveis senão nessa relação, mas também entre formas de representação, entre posições que foram, ao longo do tempo, edificando uma plataforma filosófica que se apresenta em reação às representações sociais que dão forma à mentalidade predominante numa época. Trata-se de uma plataforma filosófica refratária ao conformismo, aos sistemas de crenças dogmáticos, às formas de pensar que não vão além do estabelecido e que, por isso, o reproduzem como um dado natural, inalterável, em face do qual não resta senão manter-se num estado de resignação intelectual.
Filosoficamente, percebo-me como um materialista. Não basta, contudo, afirmar-me como tal, sem demonstrar em que medida isso é uma verdade, pelo menos, para mim. Esforçar-me-ei por fazer-me compreender. Para tanto, é preciso que se compreenda que, uma vez se assuma uma posição ateísta em face do mundo, necessário é que se reconheça o compromisso dessa posição com uma posição materialista. Não quero sugerir que o materialismo sempre foi uma forma de ateísmo, ou que todo ateu deve, necessariamente, ser materialista. Em primeiro lugar, Epicuro, reconhecido materialista, não era propriamente ateu (lançarei, adiante, algum olhar sobre o materialismo de Epicuro). Por outro lado, um ateu pode ignorar, durante toda vida, as posições materialistas e, por isso, pode sequer cogitar de que elas lhe estejam ligadas às formas de pensar o mundo como pressupostos. No curso de minha tentativa de assentar os alicerces de meu próprio pensamento filosófico, também procurarei sinalizar a filiação entre as posições ateísta e materialista.
Para mim – já que se trata de alicerçar minha própria perspectiva filosófica, cujo desenvolvimento adequado dependerá ainda de mais alguns anos de estudo -, a assunção do ateísmo está intrinsecamente ligada a uma posição materialista que, neste texto, trato de desenvolver.
Começarei, pois, apresentando uma definição de materialismo, colhida da obra Dicionário Básico de Filosofia (2010), de Danilo Marcondes e Hilton Japiassú. Pretendo, citando-a, tão-só situar o materialismo como problema de que me ocuparei doravante:

“Doutrina que reduz toda a realidade à matéria” (p. 181)


Ainda que a definição não nos esclareça muito sobre o que é o materialismo, ela nos permite inferir que o que chamaríamos de imaterial é rejeitado pelo materialismo. Assim, o materialismo nega a existência da alma ou da substância pensante cartesiana; nega também a realidade de um mundo espiritual ou divino, que existiria independentemente do mundo material. Aqui já se pode entrever sua relação com o ateísmo; mas ela se nos tornará mais clara ao longo do texto. No início da era moderna, o mecanicismo da física pode ser visto como uma variedade de materialismo, visto que busca explicar o real com base única e exclusivamente em mudanças sofridas quantitativamente pela matéria. O mecanicismo moderno sustenta que todos os fenômenos naturais devem ser explicados por alusão à matéria em movimento, entendendo-se por movimento toda modificação sofrida pelas coisas, que faz com que o mundo esteja num permanente devir.
Um dos problemas implicados no materialismo é a noção de matéria; mas deixarei para esclarecê-la numa seção mais adiante. Outro problema diz respeito à variedade de materialismos. O materialismo, nota Sponville (2001, p. 103) é uma tradição; por isso, não há apenas um materialismo, mas vários materialismos que, embora se sucedendo em intervalos de tempo extensos, revelam afinidades, solidariedades e pontos de contato.
Claro deve estar ao leitor que trato aqui do materialismo filosófico e não do materialismo na sua acepção trivial, como maneira de viver daqueles que valorizam apenas os prazeres físicos, os bens adquiridos com o dinheiro e o próprio dinheiro como signo de riqueza. Estando claro que trato do materialismo como doutrina filosófica, é urgente pensá-lo como um esforço crítico das ilusões idealistas, espirituais e religiosas. Os filósofos materialistas repensam o valor do corpo e dos seus prazeres. Se é verdade que eles também podem nutrir um ideal, não podem, contudo, se deixar iludir totalmente por ele. Para um materialista, o corpo comanda, enquanto a alma precisa ser criada.
O materialismo é uma filosofia que, elegendo como primeira a realidade do corpo, se desenvolve a partir dele. O materialismo pensa o mundo a partir do corpo (“tudo se faz no corpo como se não houvesse alma” (Sponville)). A noção de corpo aqui não se limita ao corpo humano, mas recobre toda substância material. Ser materialista é ser, em alguma medida, epicurista e antiplatônico. É, por um lado, não admitir a separação entre corpo e alma; é tratar a alma como uma substância material tanto quanto o corpo. Por outro lado, é também rejeitar a separação entre mundo sensível e mundo inteligível. O materialismo também se caracteriza por uma rejeição ao espiritualismo, embora não se reduza a isso.
Vale esclarecer o que é o espiritualismo. Trata-se da doutrina que afirma existir uma substância espiritual (a alma ou o espírito) independente da matéria, que, no homem, seria o princípio da vida. Mas o espiritualismo é uma forma de idealismo.
O materialismo erige-se e se desenvolve contrariamente a todas as filosofias que assumem a prioridade da alma sobre o corpo; nesse sentido, o materialismo é uma filosofia do corpo. Denominam-se materialistas os filósofos que afirmam que só existem seres materiais ou corpos. O materialismo é um monismo, conforme nos permite depreender a definição anteriormente referida. Isso significa dizer que o materialismo só admite uma espécie de substância, que é a própria matéria ou os corpos. Ele afirma a materialidade da alma, portanto, nega que ela tenha uma existência autônoma. Para um materialista, o pensamento resultaria de um movimento da matéria. Essa ideia não é, de modo algum, clara.
Retendo o principal até aqui, vale sublinhar que o materialismo é um monismo físico, porque entende existir apenas a matéria. Sob o rótulo de materialistas, podem-se reunir Epicuro, Demócrito, Hobbes, Diderot e Marx.


                              O materialismo de Epicuro: um esboço

Poder-se-ia objetar que Epicuro não deve ser incluído entre os materialistas, porque sua filosofia reconhece duas substâncias: a matéria e o vazio. Nesse tocante, ele segue a tradição dos atomistas da Antiguidade.
No entanto, como o vazio é nada (é um não-ser, por que se movem os átomos), segue-se que tanto para Epicuro quanto para os atomistas, só existe a matéria e nada mais. Claro é que não devemos esquecer a posição de Demócrito, para quem o nada existe tanto quanto algo. Mas, nesse caso, ainda é possível sustentar que a matéria recobre a totalidade do ser apenas, ainda que não esgote a totalidade de tudo (esse “tudo” inclui o vazio, o não-ser). Não estranhe o leitor o pleonasmo da expressão “totalidade de tudo”. Com ela, quero dizer que o ser, segundo essa interpretação, não corresponderia ao tudo, de modo que seria possível pensar que esse tudo inclui também o vazio.
Tome-se o problema da existência do pensamento à luz da doutrina materialista. Devemos ainda ter em conta Epicuro. Seria absurdo que um filósofo negasse completamente a existência do pensamento, já que, se o fizesse, negaria a si mesmo, além de pensar que não pensa, o que seria absurdo. O materialismo monista – vale frisar – não nega a existência do pensamento; nega a sua independência relativamente à matéria. O que um materialista nega é que o pensamento tenha existência autônoma. Trata-se, pois, de dizer não que o pensamento não existe, mas que ele é material como tudo o mais. O pensamento seria ele mesmo um corpo (posição dos estóicos), ou seria explicado por um “movimento sutil da matéria” (Epicuro) – ainda que essa ideia não explique nada.
Faz-se mister notar uma conclusão provisória:

São materialistas os filósofos que afirmam que tudo, exceto o vazio, é material. Nesse tudo, devemos incluir o pensamento.



                              A variedade de materialismos e a noção de matéria

Nesta seção, discutirei um problema que se revelará aporético ao termo da exposição. Lembro que a aporia é uma dificuldade lógica insolúvel. Não obstante, a compreensão dessa dificuldade ajudar-nos-á a fixar um lugar para o materialismo na história da filosofia e nos instrumentalizará para defender a posição materialista de ataques de adversários.
Há duas dificuldades que tratarei de expor e explorar: uma diz respeito à definição do próprio materialismo; a outra, à definição de matéria. Há vários materialismos, conforme já notei; e há várias opiniões acerca do conceito de matéria.
Essas dificuldades podem ser expressas nas seguintes alternativas: ou se deixa indefinida a noção de matéria e, consequentemente, também indefinido o próprio materialismo. Ou se define a matéria, não positivamente (o que suporia saber a sua natureza última, empresa esta a que renunciou, há muito, o materialismo), mas negativamente, ou seja, como não sendo pensamento ou espírito.
Acontece que, ao propor definir a noção de matéria de modo negativo, está-se a opor a matéria ao pensamento. Essa oposição não é autorizada pela definição tradicional de materialismo, cujo exemplo apresentamos anteriormente. Ora, se o materialismo é a doutrina que reduz a realidade à matéria, então não há lugar para a oposição entre matéria e pensamento, já que o próprio pensamento é corpo, forma de matéria. Para preservar o princípio de identidade, não se pode manter que haja diferença entre matéria e pensamento. Do mesmo modo, violar-se-ia o princípio de contradição se se afirmasse que tudo incluiria e, ao mesmo tempo, excluiria o pensamento. Vê-se, logo, que o materialismo seria uma anomalia lógica.
Uma primeira solução consiste em eliminar a oposição entre matéria e pensamento, afirmando que tudo é matéria e que a matéria a nada se opõe, exceto ao nada, que é o vazio. A oposição fica suprimida, pois a matéria não se pode opor ao nada. Sucede, contudo, que essa solução se nos demonstra imediatamente frágil, fazendo irromper nova dificuldade, qual seja, se a matéria não se opõe ao pensamento, então ela se torna sinônima do ser. Por conseguinte, o materialismo se apoiaria numa tautologia sem valor algum, segundo a qual tudo é do domínio do ser. É como se estivéssemos dizendo que a totalidade do ser é o ser. Sponville observa que o materialismo seria uma “espécie de pan-ontologismo (um monismo do ser), e cessaria por conseguinte de ser materialista” (p. 112).
Não há lugar para um materialismo monista radical: se existe apenas um tipo de ser (a matéria), este tipo de ser deve, necessariamente, encerrar o pensamento.
Pode-se resolver o problema, afirmando que é a matéria que pensa. A matéria e o pensamento não se distinguem como duas substâncias, mas como causa (matéria) e efeito (pensamento). Os marxistas e os materialistas do século XVIII estão de acordo nesse ponto. O espírito é, pois, o produto mais elevado da matéria. É a matéria que pensa (o cérebro, no homem, que pensa; a própria mente não seria mais do que uma função do cérebro, aquilo que ele faz); é a matéria que produz o pensamento, portanto. Eis o que se chama de primado da matéria.
Se nos detivermos a refletir sobre o problema, veremos que ele não é suprimido totalmente. De alguma forma, ele permanece. Senão vejamos. Uma vez que se admite que o pensamento é da mesma natureza que a matéria, ou seja, é material, segue-se que a matéria não produz nada além dela mesma. Assim, suprime-se o primado da matéria. Se a matéria é diferente do pensamento, suprime-se o monismo.
A aporia se instala: o materialismo chega ao seu limite. Ou só existe negando a si mesmo como monismo, caso em que terá de admitir, forçosamente, a oposição entre matéria e pensamento, ou se define como monismo, anulando-se como materialismo, caso em que não há mais primado da matéria. Lembro que só podemos falar em primado da matéria se houver lugar para o pensamento na doutrina materialista. A própria noção de primazia supõe a superioridade de um termo sobre outro.
Sponville nos fornece uma solução final. O materialismo é, segundo o autor, uma filosofia do combate. Ele supõe um adversário e se define em oposição a ele. Portanto, o materialismo não acredita nos sistemas filosóficos (entendidos como formas de pensamento que visam a atingir um saber sistemático, isto é, um saber que integra as questões da filosofia, da ciência e de vários tipos de saber numa totalidade articulada na qual as várias respostas oferecidas são vistas como diferentes facetas de um mesmo tipo de problema). Dizer que o materialismo não acredita nos sistemas é dizer que não acredita na construção de um saber totalizante do real, cujas regiões estão interligadas, de modo que uma parte remete, necessariamente, a outra. O materialismo pensa contrariamente; pensa na forma de confronto. Nas palavras de Sponville,

“O materialismo seria então contraditório (ou, se preferirmos, dialético) na mesma medida em que seria reativo. O dualismo seria seu terreno de luta (que ele compartilha necessariamente com o adversário) e o monismo, seu horizonte (que ele ainda não atinge)”.
(p. 118)


Do excerto de Sponville, segue-se que sua solução deve deixar claro que:

1) o problema da definição do materialismo não é, necessariamente, de ordem filosófica; porque coloca em questão o estatuto do pensamento. Assim, pode ser um problema para as ciências naturais;

2) o materialismo, como lugar de confronto, pode aceitar que o pensamento e o próprio pensamento materialista, às vezes, conheçam limites;

3) o materialismo reza que o substrato de tudo que existe não é da ordem do pensamento; por isso não é razoável sustentar que o pensamento deveria abranger tudo.

Em 3), fica clara a forma como o materialismo pode-se definir: em oposição ao idealismo. O materialismo não afirmaria dogmaticamente que o real se reduz à matéria, mas que, certamente, não se reduz ao pensamento.
O materialismo não aspira, de modo algum, a um saber absoluto; não se alicerça sobre a ideia de que o ser é completamente transparente ao pensamento, o que lhe permite reconhecer seus limites. Esses limites seriam, pois, formas de confirmação de sua plausibilidade.

“A ideia de um saber absoluto só tem sentido se o absoluto é da ordem de um saber; e é precisamente o que o materialismo rejeita e recusa”. (p. 119)


Está claro que o absoluto, para o materialismo, é incognoscível. Por isso, o materialismo é uma forma de pensamento que reconhece a finitude inerente a todo pensamento; reconhece-se como pensamento finito. O materialismo é um pensamento inacabado. O inacabamento de seu pensamento é justamente o que impede o término do movimento do próprio pensar: “o infinito – diz Sponville – não está no resultado mas no processo” (p. 119). Trata-se de um pensar que não conhece fim.



                              Síntese provisória

O materialismo é a doutrina que sustenta que tudo é matéria ou produto da matéria – exceto o vazio – e que, consequentemente, os fenômenos intelectuais, morais ou espirituais (ou assim supostos) têm realidade secundária e determinada. Nessa definição reúne-se um materialismo antigo ao materialismo marxista.
Por outro lado, dado que o materialismo se define em confronto, o idealismo – seu adversário -, em sentido lato, é toda doutrina que afirma ser independente, primeira e exclusiva a existência do pensamento, quer tomado como espírito subjetivo (Descartes, Bergson...), quer tomado como idealidades objetivas (Platão, Hegel...).
Compreendido dessa forma, deve-se distinguir, no materialismo, o que se segue:

a) um monismo ontológico, porque só existe uma substância, que é a matéria;
b) um realismo gnoseológico, porque a matéria é cognoscível, mas não se reduz ao conhecimento que podemos ter dela;

c) um relativismo teórico, porque não há valores absolutos (não há um Bem em si, um Belo em si...); porque todo valor é relativo a um corpo individual ou social ou à história.

O materialismo se situa, negativamente, em oposição ao dualismo e ao espiritualismo (deve-se entender que não há, para um materialista, nem mundo inteligível, nem alma imaterial). Assim, ser materialista é ser antiplatônico. O materialismo também se define em oposição ao ceticismo e ao criticismo (Kant); porquanto rejeita a ideia de que a realidade em si seja incognoscível. Um materialista não admite uma dimensão numênica do real (a coisa-em-si kantiana).
Por fim, o materialismo é incompatível com toda forma de religião fundada na crença num Deus imaterial, criador e legislador. Não se trata de opor o materialismo a qualquer forma de religião, pois que o próprio Epicuro não era ateu (ele julgava os deuses como seres materiais). O materialismo é, portanto, como sublinha Sponville, “um pensamento de recusa, de combate”. Na esteira de Lucrécio e de Marx, o materialismo é um esforço filosófico para suplantar a religião, a superstição, a ilusão em geral.
O materialismo é uma filosofia que busca explicar o espírito por recurso a processos materiais. Assim procedeu Marx, que explicou o fenômeno espiritual como produto de relações na base econômica, e Freud, que explicou o psiquismo pelas pulsões sexuais. O materialismo é um monismo pluralista (p. 121). Recusa a ideia de Um e assume como consequência da asserção de que “tudo é matéria” a proposição “tudo é múltiplo”.

Tendo em conta a coerência entre a assunção de uma visão materialista de mundo e a rejeição a certas filosofias idealistas, a cuja exposição tenho consagrado estas reflexões, notemos com Onfray (2008), que um materialista deve-se opor

a) à tradição platônica, transmitida pelo cristianismo. Nietzsche observou, a esse respeito, que o cristianismo é um platonismo para o povo;

E deve

b) dar razão a Demócrito em lugar de dá-la a Platão. A oposição ao platonismo e ao neoplatonismo cristão se expressa na forma de rejeição a uma filosofia de renúncia à existência; em suma, a uma filosofia que ensina:

“(...) as ideias, os conceitos puros que evoluem num mundo celeste, cultua uma potência demiúrgica e dá aos deuses o poder arquitetônico sobre o mundo; ensina a desviar-se do sensível, em proveito do inteligível, enfim transforma a existência em perpétua ocasião de renúncia”.
(p. 54)


Longe de instilar o pessimismo aborrecido, o materialismo se alinha bem com o hedonismo de um Hiparco, para quem a filosofia é uma oportunidade de sabedoria e reconciliação do si consigo mesmo, com os outros e com o mundo (Onfray, p. 78).




                     O que é a matéria?

As ciências da natureza nos dizem o que é matéria sem saber realmente o que ela é. Ondas ou corpúsculos? Corpo ou energia? Quais corpos? E qual energia? Quarks, léptons são as últimas realidades? É provável que a matéria seja inesgotável.
Para a filosofia materialista, importa pensar a matéria como tudo cuja existência independe do pensamento ou do espírito. A matéria é o fundo não espiritual do real. Ela carece de consciência, não tem memória, nem projeto, nem vontade. É o ser sem vida e inconsciente. É o todo que se oferece ao espírito na forma de silêncio e indiferença.
Definida assim a matéria, vê-se com nitidez a filiação do materialismo com o pensamento trágico, isto é, com a “lógica do pior”, através da qual a vida se revela sem mentira, na sua nudez verdadeira, e sem esperança, na sua irremediável fragilidade (certamente também sem alegria nem grandeza, “sobre um fundo de morte ou de nada” (Sponville, p. 132).
Na sua relação com o trágico, o materialismo não propõe uma salvação da morte (que seria a promessa da religião, ou uma forma de esperança), mas o tornar possível a realização plena do que vai morrer. Portanto, o sábio materialista vive desesperadamente a única vida possível e verdadeira; por isso o presente, para ele, é o próprio real. Por isso, ele vive o presente, e a morte, que é o fundo do próprio real, não é nada para ele. Lição materialista: o silêncio, o desespero (ausência de esperança) e o esquecimento; mas também a paz e o estímulo a viver. Todo materialismo afirma a vida, não sob a forma da esperança, da promessa ilusória, mas reconhecendo sua plenitude presente na própria impermanência a que todas as coisas estão destinadas. Afirma a vida não mascarando a morte, numa intransigente inversão valorativa: não é a certeza da morte que destitui a vida de importância; é a própria crença na eternidade além-túmulo que a torna depreciável. A inexorabilidade da morte torna a vida válida, na medida em que a percebemos como urgência que deve ser vivida no aqui e agora.

“Nascemos uma vez, não é possível nascer duas vezes, e temos de não ser mais para a eternidade: tu, portanto, que não és amanhã, tu adias a alegria; a vida perece pelo prazo; e cada um de nós morre atarefado”.

(Lucrécio, livro III)


Uma vez que o materialismo afirma o valor desta vida, uma vez que afirma que não há nada a esperar, que é urgente viver a presença plena do real, ele é compatível com uma ética da felicidade, à luz da qual a felicidade se situa no real (presente) como possibilidade da própria experiência humana. Trata-se de uma possibilidade emergente porque acessível a nós e urgente, porque jamais percebida como algo que devemos adiar para um além-mundo. Não projetar a felicidade para o futuro, mas encará-la como possibilidade presente; portanto, do próprio real.
No entanto, o materialismo, porque não se deixa seduzir pela ilusão, pelas esperanças vazias, reconhece a fragilidade tanto da vida quanto da felicidade. O real nos proporciona uma felicidade trágica – uma antítese que se impõe como consequência da relação do materialismo com o pensamento trágico. Uma vez que devolve a felicidade ao domínio do real, os materialistas, não podendo excluir, por isso, o trágico (já que o real o abriga tanto quanto a possibilidade de felicidade), buscam pensar os conflitos, as tensões, as contradições que permeiam a relação entre a felicidade como possibilidade do real e o trágico como dimensão que lhe é estruturante.
Não estão ainda amadurecidas as  reflexões que visem a demonstrar de que modo um pensamento materialista pode admitir a possibilidade da felicidade, ao mesmo tempo em que reconhece o trágico como dimensão estruturante do real. No entanto, a experiência parece nos assegurar que, apesar do trágico, a felicidade é possível a um grande número de pessoas. A mim, o trágico tanto quanto a felicidade é experiência que deve ser examinada em suas articulações, tensões com a fragilidade e efemeridade da vida.
Proponho que se reconheça que assim como não há momentos felizes (a linguagem aqui constitui uma fonte de engano), mas experiências de felicidades em circunstâncias determinadas, assim também não há acontecimentos trágicos em si, mas experiências do trágico. Trata-se de pensar o trágico não como atributo dos acontecimentos, mas como um modo de perceber e sentir o mundo. Um universo indiferente, silencioso, sem qualquer propósito ou significado em si não pode comportar o trágico, embora – o que não deixa de nos causar espanto - nos torne capazes de experienciá-lo como uma verdade para nós, mas inexistente para os demais entes. Evidentemente, se nossa consciência evoluiu de tal modo que nos permitiu também a experiência do trágico é porque o trágico é uma possibilidade do real, uma dimensão estruturante dele.  Mas o trágico só é uma ocorrência do real na medida em que nós o experienciamos como tal. A morte de milhares de pessoas num terremoto só é uma tragédia para nós, seres humanos, capazes de experienciá-la como tal. Uma natureza indiferente não reconhece o trágico.
O materialismo se harmoniza com o pensamento de Nietzsche num aspecto importante: na superação da noção de “mundo das aparências sensíveis”. Abolir o mundo sensível significa eliminar o equívoco do platonismo.
Finalmente, chamo a atenção para o fato de que a visão segundo a qual os valores são relativos, por exemplo, à história – de que um materialismo como o marxista nos é uma expressão fidedigna -  se afina com a obliteração da crença num mundo espiritual ou divino. Para um materialista, não faz sentido algum ver nos valores um fundamento supra-sensível. Na ausência de Deus como fundamento dos valores, resta ao materialista tomar o homem, no processo histórico, como o fundamento sem fundamento de todos os valores. A relatividade de todos os valores é matéria inteligível mesmo a uma consciência religiosa bem educada que, não obstante aceitá-la, pode – paradoxalmente – tomar Deus como fundamento absoluto de todos os valores.  E, nesse caso, se depõe o rigor exigido pelo trabalho do pensamento filosófico para estender-se sobre a mentalidade das pessoas o poder  das estruturas contraditórias de pensamento religioso.