Uma proposta de leitura
Ensinar português é desenvolver o letramento
Sobre moluscos e homens
Rubem Alves
Piaget,
antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas
sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes.
Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que
habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem
dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no
artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem
conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro
detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu
interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos
humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget
não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que
passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”.
Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens,
somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de
predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente
inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu
corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas
maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam,
tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se
abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A
natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e
inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos
de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E
digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa
força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos,
concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O
desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico,
desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento
fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos
as conchas que a natureza não nos deu.
O
corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se
aprende são ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por
aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas
para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória
ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o
pensamento. E nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que
os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação
a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há
que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não,
ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela
precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao
contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de
penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os
ditos “programas” escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos
podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a
aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais que estão acontecendo
no momento ( insisto nessa expressão “no momento” – a vida só acontece “no
momento” ) da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas.
Explicaria também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa recusa em
aprender. Explicaria sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai
faltar... Recordo a denúncia de Bruno Bettelheim contra a escola: “Fui forçado
(!) a estudar o que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender –
e aprender à sua maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar
vida a um conhecimento morto. Sòmente os necrófilos se excitam diante de
cadáveres.
Acontece,
então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória
fraca. Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega
conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como
um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar
passar o inútil e guardar o util e prazeroso. Se foi esquecido é porque não
fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais ( inclusive os
vestibulares ) que se fazem para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem
resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a água ainda não
escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois
do esquecimento haver feito o seu trabalho. O aprendido é aquilo que fica
depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento,
tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no escorredor de
macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de
macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de
cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor de português se saia
bem em matemática, física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido
que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria.
Então, por que essa violência que se faz sobre os estudantes?
Ah!
Piaget! Que fizeram com o seu saber? Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso
que os educadores voltem a aprender com os moluscos...
Proposta de leitura
Em seu
mais recente e monumental trabalho que ostenta o título de Gramática Pedagógica do Português Brasileiro (2011), o linguista
Marcos Bagno reitera sumariamente o que tem sido consenso entre os
especialistas, no tangente aos objetivos das aulas de português na escola. À
página 29, lemos:
“Ler, escrever e refletir sobre a
língua. Essas três tarefas – que no fundo são uma só: desenvolver o letramento – constituem toda a missão da
escola no que diz respeito à educação em língua materna. Não há tempo a perder
com outras práticas que já se comprovaram absolutamente irrelevantes e inúteis
para se cumprir essa missão”.
(grifo no original)
Essas
“outras práticas irrelevantes” a que se refere o autor dizem respeito à forma
como o português vem sendo tradicionalmente ensinado e estudado nas salas de
aula de nossas escolas, a saber, como um objeto de estudo cujas partes
constitutivas devem ser reconhecidas e classificadas. Exemplos dessas práticas
são a elaboração de atividades em que se solicita ao aluno o reconhecimento do
complemento verbal e de sua classificação em objeto direto, objeto
indireto, complemento relativo, complemento circunstancial, etc. O
material linguístico oferecido aos alunos e sobre o qual eles se debruçam em
sua tarefa enfadonha e despropositada de dissecação da língua e taxionomia
de suas unidades constitutivas consiste em um conjunto de frases ou criadas
pelo próprio professor, ou extraídas de textos, ou colhidas de coletâneas de exercícios de gramática; em qualquer caso, trata-se de
frases descontextualizadas, e não de unidades
de comunicação. Trata-se de fragmentos de linguagem – eu diria, de cadáveres linguísticos – exauridos de
sua funcionalidade, porque desvinculados do todo linguístico a que se
integravam (texto) e dos contextos (socio-ideológicos, político, cultural,
cognitivo) na base dos quais funcionavam.
Já há
muito, os estudiosos da linguagem (os linguistas) advogam a necessidade de se
desenvolver um ensino de português focado na leitura e produção de textos, bem
como na reflexão sobre o funcionamento da língua em textos. Evidentemente, a mudança de foco exigirá do professor
também uma mudança de pressupostos, quer no que diz respeito ao que significa
ensinar língua materna a falantes nativos dessa língua, quer no que diz
respeito a um conjunto de conceitos teóricos, dentre os quais destaco o de gramática (essa mudança no olhar sobre a língua/ linguagem, a gramática, o texto redunda numa mudança de metodologia, evidentemente). O professor deverá fazer-se a
pergunta: o que é saber gramática?
Para responder à questão de modo adequado à sua proposta de ensino, deverá
romper com a visão tradicional e vulgar de gramática e reconhecer nesse termo a
designação de um conhecimento inato e intuitivo que habilita todo ser humano
normal a falar uma língua.
Novamente,
vale notar a lição de Bagno, ao considerar o conhecimento gramatical do falante
nativo:
“Saber gramática é muito mais que
rotular. Saber gramática é algo tão entranhado em cada pessoa que é
simplesmente impossível falar, ouvir, ler, escrever ou refletir sobre a lingua
sem ativar esse conhecimento gramatical intuitivo e poderoso (...)”.
(p. 30)
Note-se
que o autor refere-se à gramática como “um conhecimento intuitivo e poderoso”.
A gramática é, assim, esse sistema de regras e unidades que, inscrito em nossa
mente/cérebro na forma de conhecimento, nos habilita a fazer uso normal de
nossa língua. É claro que o saber usar uma língua, seja nossa língua materna, seja
uma língua estrangeira, envolve muito mais do que saber operar com sua
gramática. Mais do que deter uma competência linguística o falante nativo é
possuidor de uma competência comunicativa, a qual se relaciona a outras formas
de competência que são ‘ativadas’ quando ele se envolve nas mais diversas
práticas discursivas ao longo da vida. Uma discussão sobre essa inter-relação
de competências extrapola os limites deste texto. É forçoso que eu apresente,
então, o objetivo a que destino esta nova composição verbal.
Proporei
uma leitura do texto Sobre moluscos e
homens, de Rubem Alves, que faz eco (polifonia e intertextualidade) a outro
texto do mesmo autor, chamado de Quando
as mãos perguntam, a cabeça pensa. Este último se acha em http://www.rubemalves.com.br/quandoasmaosperguntamacabecapensa.htm.
O
leitor não iniciado nos estudos da linguística (talvez, a maioria de meus
leitores) pode ter encontrado certa dificuldade na compreensão do que vim
dizendo até aqui, já que iniciei este texto tendo em conta um público-alvo
familiarizado com as questões que apresentei. Todo autor constrói uma hipótese
sobre o leitor, bem como este o faz em relação ao autor. Quando participamos de
qualquer evento interacional pela linguagem, contamos com uma série de
conhecimentos que supomos partilhados, em alguma medida (embora nunca totalmente),
com nosso(s) interlocutor(es).
Situando a discussão na modalidade escrita – e considerando-se a relação entre autor-texto-leitor -, muitos saberes e crenças que possuímos não serão codificados linguisticamente, ou seja, não serão explicitados na superfície de nossos textos, mas assumirão o status de informações implícitas, que devem ser recuperadas por meio de um complexo trabalho de inferenciação pelo leitor. Quer nas atividades linguajeiras no domínio da oralidade, quer no domínio da escrita, estamos sempre interpretando, ou seja, produzindo uma “suposição de intenção” (Charaudeau, 2010: 31). Estamos, assim, a todo momento, formulando hipóteses sobre o conhecimento de nosso interlocutor; sobre seus pontos de vistas em relação aos seus próprios enunciados. Assim também procederá nosso interlocutor em relação a nós.
No
momento em que se dá o processamento
textual ( termo que recobre ‘o processo linguístico-cognitivo durante o qual representações mentais são construídas na memória com base no texto’), o
leitor lança mão de várias estratégias.
Segundo Koch (2002: 50), estratégia “é uma instrução global para cada escolha a
ser feita no curso da ação”. Destarte, o processamento textual é estratégico, porque,
durante a atividade de interpretação, os leitores “realizam simultaneamente
vários passos interpretativos finalisticamente orientados, efetivos,
eficientes, flexíveis e extremamente rápidos” (Koch: 2006: 39).
Para o
processamento textual, o leitor recorre a três grandes sistemas de conhecimento
armazenados em sua memória, que serão acessados por ocasião da produção de
sentido. São eles: o conhecimento linguístico, o enciclopédico e o interacional.
O conhecimento linguístico recobre o saber
sobre o léxico e a gramática da língua. A compreensão de um texto depende,
parcialmente, de que o leitor seja capaz de compreender o significado das
palavras e sua adequação ao tema ou aos modelos cognitivos ativados; e de reconhecer as relações lógico-semânticas
e discursivas estabelecidas entre os componentes da superfície textual
(coesão).
O conhecimento enciclopédico (ou conhecimento de mundo) compreende todos
os saberes adquiridos pelo leitor ao longo da vida, quer informalmente, que
formalmente por concurso de sua escolarização. O conhecimento de mundo inclui
também saberes relacionados a práticas e valores de nossa sociedade ou grupo,
bem como saberes propriamente individuais, como o de preparar um bolo com base
na receita da vovó.
O conhecimento sociointeracional inclui os
saberes sobre as formas de interação por meio da linguagem. Trata-se de saber,
por exemplo, com base nos atos de fala verbalizados, quais os objetivos ou
propósitos de um falante/ autor. O conhecimento sociointeracional se desdobra
em conhecimento comunicacional,
conhecimento metacomunicativo e conhecimento
superestrutural. Todos esses subtipos são controlados por outro
conhecimento denominado de procedural.
O conhecimento procedural (de proceder) encerra procedimentos ou rotinas na
base dos quais aqueles sistemas de conhecimentos são ativados quando do
processamento textual. A cada um dos sistemas corresponde um conhecimento
procedural.
Não
poderei aqui deslindar as questões envolvidas neste aglomerado de conceitos
teóricos. Basta ao leitor reconhecer a complexidade envolvida no processo de
compreensão textual.
Diversas
são as concepções de texto, já que diversas são as perspectivas teóricas à
luz das quais ele foi considerado. Para os meus propósitos, adoto a perspectiva
sociocognitivo-interacional, segundo a qual o texto é um lugar de interação
e de constituição de sujeitos sociais (os interlocutores). Há no texto uma
grande variedade de implícitos, que são recuperados pelo leitor quando este
ativa seus modelos cognitivos (que
constituem blocos de conhecimentos estruturados em sua memória).
Trago à
cena as palavras da linguista Ingedore Koch, em Ler e compreender os sentidos do texto (2006), que nos elucida
sobre a concepção sociocognitivo-interacional de língua:
“Fundamentamo-nos, pois, em uma
concepção sociocognitivo-interacional de língua que privilegia os sujeitos e seus conhecimentos em processos
de interação. O lugar mesmo de interação (...) é o texto cujo sentido “não
está lá”, mas é construído, considerando-se, para tanto, as “sinalizações”
textuais dadas pelo autor e os conhecimentos do leitor, que, durante todo o
processo de leitura, deve assumir uma atitude “responsiva ativa”. Em outras
palavras, espera-se que o leitor, concorde ou não com as ideias do autor,
complete-as, adapte-as, etc., uma vez que “toda compreensão é prenhe de
respostas e, de uma forma ou de outra, forçosamente, as produz”. (BAKHTIN,
1992: 290)”
(p. 12)
(grifo no original)
Vejamos
como se vai desenvolvendo o processo de interação entre autor-texto-leitor. Vou
ignorar a discussão sobre o status do
autor, ou seja, sobre ser ele ou não um constructo teórico relevante. O fato é
que, na perspectiva do leitor, o autor é aquele que garante a possibilidade de
reconhecimento de uma unidade de sentido para o texto.
O texto
em que repousa minha análise, já apresentado ao leitor, é de autoria do
filósofo, educador, psicanalista, teólogo e escritor Rubem Alves. Saber um
pouco sobre o percurso acadêmico do autor é fundamental para o reconhecimento
das perspectivas que ele assume ao desenvolver o tema de seu texto.
Cumpre
notar que nenhum texto espelha o mundo,
mas o reconstrói. Isso significa
dizer que o texto constrói um modelo de
mundo, um mundo que é textualizado
(um mundo textual), segundo a perspectiva do autor. O autor, ao produzir seu
texto, não diz o mundo tal como é, mas tal como ele, autor, o pensa, o entende,
o representa. O autor é um feixe de olhares sobre o mundo; a ele compete
estruturar esses olhares de modo a constituir seu projeto de sentido.
Importa, para efeito de compreensão da relação entre texto e mundo, perceber
como o autor se relaciona com o mundo que ele trata de textualizar. Isso ficará
bastante claro durante a leitura que realizarei do texto.
Mãos à
obra.
Começando do começo.
Os
estudos em Linguística Textual tendem a alertar para o fato de que o título de
um texto é um elemento importante no processo de construção de sentido. É o
título que desencadeará expectativas no leitor a respeito do tema a ser
tratado. Apoiando-se no título, o leitor poderá formular hipóteses sobre o conteúdo
do texto. Claro é que nem sempre o título o permite, dada a sua vagueza.
Títulos metafóricos são menos transparentes e tendem a dificultar a tarefa de
antecipação temática pelo leitor. Quando o título é pouco ou nada explicito em
relação ao tema, resta ao leitor deduzi-lo no limiar da leitura. Em geral, os
primeiros parágrafos são suficientes para esclarecê-lo sobre o tema.
Parece
que o título do texto de Rubem Alves está entre aqueles que não nos fornecem pistas sobre
o tema inicialmente. O título - sobre moluscos
e homens - nos suscita, na verdade, muitas questões sobre a relação entre
molusco e homem, sobre o porquê do interesse do autor por essas duas espécies
de seres vivos que não parecem guardar qualquer relação relevante. Considerando-se
o que sabemos sobre Rubem Alves, entre outras coisas, que não é especialista em
biologia, o tema nos parece, inicialmente, insólito. Há uma razão para que
moluscos e homens sejam temas de interesse para o autor, a despeito das
notáveis diferenças entre eles. Decerto, homens e moluscos diferem muito, quer
em aparência, quer nas formas como se relacionam com o mundo. Será mesmo? Senão
vejamos.
Um dos
subtipos encerrados no conhecimento interacional é o conhecimento superestrutural. De que se trata essa forma de
conhecimento? Basicamente, o conhecimento superestrutural é aquele que permite
ao leitor identificar um texto como pertencente a um gênero, mas também é
aquele que permite ao leitor reconhecer vários tipos de texto (narrativo,
descritivo, argumentativo, expositivo e injuntivo).
Os
gêneros textuais são constituídos de sequências tipológicas de texto, ou tipos textuais. Os gêneros podem
apresentar, geralmente, dois ou mais tipos de textos. Quando se verifica vários
tipos de texto, tem-se uma heterogeneidade
tipológica.
Os tipos
textuais são sequências linguísticas que sinalizam a atitude que toma o
enunciador no próprio trabalho com a língua. Intimamente ligados à intenção do
enunciador, os tipos textuais são reconhecidos na observação de seus aspectos formais. Por exemplo, o tipo argumentativo se caracteriza, do ponto de vista propriamente linguístico, por vasto uso de articuladores discursivos (conjunções subordinativas, coordenativas, adverbiais textuais, etc.); do ponto de vista lógico-discursivo, por inserção de uma tese, articulação de argumentos e conclusão.
O texto
de Rubem Alves é um exemplar do gênero artigo
de opinião, que pode ser definido considerando-se seu plano de composição -
no interior do qual distinguimos um conteúdo e um estilo -, bem como a função a que serve. Do ponto de
vista de sua composição, um artigo de opinião versa sobre um tema de relevância
social, cultural ou política; apresenta um estilo de linguagem mais ou menos
formal, dependendo do grau de escolarização do público-alvo. Além disso,
compreende um número maior de sequências do tipo argumentativo (largo uso de
operadores argumentativos, explicações, justificações, asserções, etc.). No que tange
à funcionalidade, o artigo de opinião apresenta o ponto de vista do enunciador
sobre um dado assunto. Ao produzir seu artigo, o autor procurará defender seu ponto
de vista pelo encadeamento de argumentos e justificações, visando a influenciar
seu leitor, ou seja, a causar a adesão
dele ao seu ponto de vista.
Há que
se notar que o artigo encerra, inicialmente, uma longa sequência do tipo
narrativo. O autor nos conta sobre o interesse intelectual de Piaget por
moluscos, antes de o estudioso empreender suas pesquisas em psicologia. Não sejamos, contudo,
ingênuos na suposição de que o autor se limita apenas a narrar o interesse de
Piaget por moluscos. Também não podemos acreditar que o autor tão-só descreve o
comportamento dos moluscos. Subjacente à prática de relatar/descrever, há uma
intenção argumentativa, já que a argumentatividade é intrínseca ao uso da linguagem.
Mesmo um autor de romance, ao instaurar um narrador, faz com que este revele
sua perspectiva dos fatos, dos valores, das ideologias de sua época. Ainda que
não explicitamente, o narrador, narrando os acontecimentos, buscará influenciar
o leitor de alguma maneira, buscará convencê-lo de suas opiniões, pontos de
vista sobre um fato social, político ou cultural. Veja-se o famoso romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, em
que o autor instaurando o narrador-personagem Bentinho, supostamente, vítima da
infidelidade amorosa de Capitu, expõe seu ponto de vista acerca do tema
socialmente polêmico traição. Deixando a traição de Capitu em suspeita,
delegando ao leitor a decisão por culpá-la ou inocentá-la de ato escandaloso
para os padrões morais à época, Machado pretendeu nos convencer de que o
sentimento de traição pode aflorar como pura e simplesmente consequência do
desejo amoroso, que é desejo de possuir o outro, de torná-lo jurisdição do
coração. A traição não precisa se consumar, necessariamente, para nos causar
perturbação. Basta a suspeita para que a dúvida e o remorso (porque Bentinho
rompe com a amada sem ter provas de sua traição) façam seu trabalho na alma.
Machado também nos quer convencer de que a verdade nunca pode ser plenamente
alcançada e de que o que chamamos de realidade é apenas aquilo que nos revela o
ponto de vista de um sujeito. Claro é que a argumentação – vale insistir – não
se nos demonstra superficialmente. Machado constrói uma narrativa e não um
tratado de algum tipo, mas isso não o impede de defender sua visão de mundo
através de suas personagens.
Sendo
um artigo de opinião e servindo a uma função eminentemente argumentativa, o
leitor pode esperar certa forma de organização de suas unidades. Essa
organização inclui uma tese ou proposição que se pretende sustentar por meio do
encadeamento de argumentos, justificações, explicações, provas, fatos, etc. A
tese não foi explicitamente enunciada e precisa ser deduzida.
Poderíamos
dar-lhe a seguinte forma: é preciso
que se faça ver na escola uma pedagogia que estimule o pensamento dos alunos e
o desejo de aprender aquilo que tem utilidade vital. Creio que essa é
uma proposição que o autor assumiria. A fim de que se desenvolvam práticas
pedagógicas em que se ensine aquilo que excita o pensamento, é preciso
reconhecer certas características do ser humano.
O autor
procede então a uma comparação entre os moluscos e os seres humanos. Chega a
considerar os seres humanos como um “tipo específico de molusco”. Reconhece que
tanto os homens quanto os moluscos são seres provenientes da natureza. No
entanto, a natureza, se, por um lado, programou os animais para todos os atos
de sobrevivência, dando-lhes um corpo que constitui uma extensão do meio
natural; por outro lado, deu aos homens um corpo frágil e não capacitado para a
sobrevivência. O homem se distancia da natureza, quando do desenvolvimento do
pensamento. Na verdade, o grande salto do ser humano foi o desenvolvimento da
linguagem, que lhes permitiu pensar. Seja como for, o pensamento é a força
humana em benefício da sobrevivência. Lembre-se que aos animais é o corpo que serve
de uma ferramenta para a sobrevivência; os homens se valem de outra ferramenta,
chamada “pensamento”.
Veja-se
que, ao categorizar o homem como um tipo de molusco, ao representar o corpo
como ferramenta de sobrevivência do animal e o pensamento como ferramenta de
sobrevivência dos seres humanos; ao assumir que a natureza habilitou o animal
para ser bem-sucedido em suas experiências, dando-lhe um corpo adequadamente
construído para este fim, legando aos seres humanos, em contrapartida, um corpo
ineficiente para a sobrevivência, o autor constrói um modelo de mundo
textualmente fundado. Nesse mundo textual, a natureza é provedora; o corpo é uma ferramenta; o
conhecimento, uma concha; o pensamento assemelhado a um pênis; o ato sexual
categorizado como conhecimento, etc.
A natureza proveu tanto os animais quanto os
seres humanos daquilo que é indispensável à sobrevivência. A carência de um
corpo geneticamente programado para ser bem-sucedido na árdua tarefa de
sobreviver foi compensada com a formação de um cérebro com dimensão e propriedades
tais que permitiu, no homem, o desenvolvimento do pensamento.
Penso
ser necessário, de agora em diante, lançar olhares sobre a forma do texto, de
modo a fazer ver como as unidades linguísticas presentes na superfície textual
servirão de pistas para que o leitor produza um sentido para o texto. Toda
escolha linguística cumpre uma função. Também o autor, ao compor seu texto,
produz sentido. Evidentemente, o autor espera que o sentido pretendido por ele
seja reconstruído ou recuperado pelo leitor. No entanto, o autor é incapaz,
evidentemente, de controlar os sentidos possíveis que o leitor poderá produzir.
Também é certo que o leitor não pode produzir qualquer sentido. Na verdade, seu
trabalho interpretativo será limitado ao plano de sentidos proposto pelo texto.
O texto, insisto, prevê alguns sentidos, mas exclui outros. Muitos sentidos são possíveis, mas nem todos.
Veja-se,
por exemplo, o uso de adjetivos valorativos. O autor usa vários deles. Seguem-se
algumas ocorrências abaixo:
“Os
moluscos são animais fascinantes”
“...
constroem conchas duras – e lindas!
– (...)”
“Seus
corpos são ferramentas maravilhosas”.
Sabemos
que o autor instaura um Eu-enunciador, que se encarrega de construir a
argumentação a fim de sustentar seus pontos de vista. Esse enunciador aprecia,
deprecia, rejeita, expõe, contrapõe, etc., e o faz por meio de marcas linguísticas que servem a essas
funções. Os adjetivos em negrito sinalizam para a atitude de valoração do
enunciador sobre os referentes “moluscos”, “conchas” e “ferramentas”. Essas e
outras ocorrências similares ou análogas nos permitem dizer que o referente (objeto de discurso) ‘corpo’, quando ligado ao animal, é valorado positivamente; quando ligado ao
homem, é valorado negativamente. Note-se que o enunciador se refere ao corpo
dos seres humanos como um “corpo molengão e inadequado”.
Quando
se chama atenção do aluno sobre o uso dos adjetivos, especialmente os de função
valorativa, faz-se um exercício de reflexão sobre o funcionamento da língua,
sobre a gramática em uso. Veja-se outro exemplo em que uma forma linguística,
uma vez considerada em seu funcionamento no texto, pode suscitar reflexões
sobre o funcionamento da língua, deixando de servir como um mero objeto para
identificação e classificação. Veja-se o trecho abaixo:
“Alguns há que, diante dessa inteligência
flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho. Ele é
inteligente. (...)”.
Destaco
a ocorrência do pronome indefinido ‘alguns’. Ao invés de solicitar ao aluno que
dê nome a essa palavra segundo o modelo de classificação tradicional das
palavras, mais vale chamar-lhe a atenção para a função discursiva que essa
forma linguística cumpre nesse ponto do texto. Em primeiro lugar, o aluno
deveria ser levado a pensar sobre o referente desse “alguns”, ou seja, quem são
as pessoas referidas por “alguns”? O aluno-leitor não teria dificuldades para
ventilar hipóteses sobre os potenciais referentes. Assim, “alguns” poderia
compreender ‘professores’, ‘pedagogos’, ‘pais’, ‘psicólogos’, ‘colegas de
turma’, etc. Todas essas expressões são candidatos possíveis a referentes da
forma “alguns”; talvez, umas mais do que outras. A segunda questão é pensar no
porquê de o autor ter escolhido usar ‘alguns’, ao invés de uma dessas
expressões ou todas elas. Com que finalidade o autor escolheu usar “alguns” e não
“professores” ou “muitos professores”, ou “alguns professores”, por exemplo?
Uma resposta possível é sugerir que o autor preferiu não comprometer seu ethos (imagem de si) na identificação de
segmentos que tendem a avaliar pejorativamente um aluno desestimulado. Ele se resguarda da contestação de sua
denúncia, ele prefere não expor sua "face" (imagem de si socialmente delineada para a qual uma pessoa, durante uma interação face-a-face, reclama aprovação), deixando a cargo do leitor imaginar a que segmentos ou grupos de
pessoas ele se refere. “Alguns”, ao contrário de “professor” ou “pedagogo”, não
nomeia, não permite identificação de grupos, classes, indivíduos. Em suma, usando "alguns", o autor não se compromete em responsabilizar categorias ou indivíduos determinados pela prática de rotulação discente.
Voltemos
aos adjetivos. Precedendo o enunciado encetado por “alguns”, há outro enunciado
no qual figura uma sequência de adjetivos. Reproduzo-o abaixo:
“...
Sem excitação a inteligência permanece pendente,
flácida, inútil, boba, impotente”.
De
passagem, gostaria de lembrar que a riqueza da linguagem é tal, que há muios fatos linguísticos que podemos considerar. No
enunciado anteriormente referido, em que se acha a forma “alguns”, também
valeria avaliar o uso da palavra “burrinho”, forma de valor pejorativo
(muito embora o sufixo atenue a carga de pejoratividade - cf. burro e burrinho,
em “Ele é burro” / “Ele é burrinho”.).
O enunciado referido acima se acha num parágrafo do texto em que o autor enfoca a noção
de pensamento e inteligência no domínio da sexualidade. O autor faz uma leitura
sexualizada da função do pensamento e da inteligência. Assim, o pensamento
precisa ser excitado para se desenvolver e produzir conhecimento. Também a
inteligência precisa receber excitação, para que se envolva na aprendizagem. Os
adjetivos “pendente”, “flácida” e “impotente” são representativos do campo
semântico ‘ato sexual’. Todos, contudo, são passíveis de caracterizar o
‘pênis’.
A
focalização do tema aqui é psicanalítica. O recurso à imagem da sexualidade
masculina, a referência à disfunção erétil, à inutilidade do pênis, quando da
denúncia da ineficácia de um ensino que não estimula a inteligência, têm o
propósito de fazer ver a impossibilidade de usufruir o prazer. Transferindo
esse plano de leitura para o domínio da pedagogia - e nele considerando o papel
da inteligência no processo de ensino-aprendizagem-, ficará claro que, sem
possibilidade de experimentar o prazer, a inteligência não se mostra disposta a
progredir (ela, como o pênis, torna-se impotente). Ela não deixa, contudo, de se fazer presente, porque “recusa [sic.]
a ficar excitada por algo que não é vital”. Ora, concluiremos que da mesma forma que fazer sexo é
uma atividade vital e prazerosa, deve sê-lo também o processo de
ensino-aprendizagem, não sem antes haver a excitação do pensamento e da
inteligência.
O autor
sugere que a frustração experimentada por um homem que não consegue consumar
uma relação sexual é até certo ponto comparável à frustração experimentada pelo aluno cuja
inteligência não é estimulada. Embora não tenha explicitado esta ideia, ele
permite-nos entrever que a aprendizagem deve ser uma atividade prazerosa. A
busca pelo conhecimento tem de nos oferecer prazer. Isso é um pressuposto, que
se insinua quando chegamos ao penúltimo parágrafo.
Não
posso levar adiante este texto. Claro está a complexidade envolvida na
compreensão integral de um texto. Há muitos níveis de análise a ser considerados.
Há muito para explorar. Pense-se em fenômenos como dialogismo, polifonia,
intertextualidade, que constituem fatos discursivos que excedem os limites do
texto. Pense-se na configuração da rede referencial por meio da anáfora e
catáfora. Pense-se nos diversos procedimentos de coesão seqüencial. Pense-se
nas funções dos operadores argumentativos que, encadeando os enunciados entre
si, sinalizam a orientação argumentativa do discurso (mas, então, assim...).
Certamente,
este texto de Rubem Alves teria de ser trabalhado em muitas aulas, a fim de que
se conseguisse analisá-lo mais satisfatoriamente, a fim de que ao aluno fosse dada a possibilidade de tornar-se um leitor mais eficiente na tarefa de interpretação e compreensão textual.