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quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

“A ignorância é nosso orgulho epocal”. (Casanova)

 




Sobre ser erudito

“A ignorância é nosso orgulho epocal”.

Casanova

 

 

Entre os meus pares, sou conhecido por ser demasiado analítico, até mesmo prolixo. Meus colegas e professores da PUC-Rio o sabiam e até me permitiam tal exuberância de estilo. Depois que terminei minha longa temporada de estudos na PUC para ingressar no curso de filosofia na UERJ, era chegada a vez de os colegas e professores de lá conhecerem minha obsessão com o estilo de linguagem e, sobretudo, o meu cuidado com o cultivo do pensamento reflexivo. Depois de mais de 20 anos de estudos aturados, desde que ingressei em minha primeira graduação em 2001, ao longo dos quais cumulei conhecimentos, fiz amizades enriquecedoras e construí relações acadêmicas sem as quais minhas produções intelectuais não seriam possíveis, tenho hoje uma única grande ambição - a erudição. Não ouso saber tudo sobre tudo (o que é impossível, seja porque nem tudo me interessa, nem tudo sou capaz de conhecer, seja porque, como disse Foucault, noutro contexto, em que lembrava a inconveniência do ardor apaixonado da militância, “a finitude é devastadora”). A erudição não é mensurável, nem é um estágio estacionário. A erudição está sempre em devir. Nunca se perfaz. Ela é um horizonte. Do grego “horidzo”, que significa ‘limite’, o horizonte é um limite nunca alcançável. Nisto reside seu enigma: quanto mais caminhamos na direção do horizonte, mais ele se afasta, abrindo-nos mais terreno, novas possibilidades. Nossa existência é, portanto, sempre uma caminhada, que nunca se completa. A morte não é a realização da completude da existência, mas a interrupção definitiva da caminhada. É também por isso que a morte é trágica, é um “corte profundo”, uma violação da tendência natural da vida a viver; é um estupro predestinado.

A erudição não é signo de nobreza. Ela não deve ser título de distinção social. A erudição não deve oprimir, nem intimidar ninguém. Penso que o conhecimento e o pensamento devem ser caminhos para a liberdade, devem tornar possível a realização de novos modos de viver e de ser. Só a burrice julga ofensivos o pensamento e o conhecimento. Só a burrice os odeia, vocifera contra eles. Só ela quer amordaçá-los. O conhecimento não deve destinar-se à intimidação; não deve humilhar. Quem muito sabe deve disseminar o encanto e o desejo do saber, deve saber encantar aqueles que têm sede e fome de saber. Na aurora do século XVII , em plena Revolução Científica, o cientista e ex-Lorde-Chanceler Francis Bacon, ao declarar “Knowledge is power”, ou seja, “saber é poder”, dava testemunho da virada utilitarista que marcaria a grande transformação do saber no ocidente, desde então visto como um meio para a resolução de problemas. O saber passava a ser concebido como um estoque, um capital acumulado cujo fim era aumentar a capacidade do homem de dominar a natureza, tornando-a um produto a serviço de seu bem-estar e da melhoria de seu destino. Essa é a maneira como o homem moderno se relaciona com o saber ainda hoje. Desde o século XVI, a concepção utilitarista da Educação tem dominado a organização dos sistemas escolares. Se hoje o senso comum de nossa civilização capitalista toma como valioso o saber tecnológico-científico, o saber “prático” ou aplicável na prática da vida, é porque o capitalismo engendrou duas formas de poder intimamente ligados na sociedade: o poder da riqueza econômica e o poder do saber tecnológico, ou seja, o poder de aplicar os conhecimentos científicos para a obtenção de resultados práticos. Nas sociedades pré-capitalistas, a riqueza não era signo de poder. Foi só na civilização capitalista que a técnica pôde operar transformações sociais, porque ela passou a depender de investimento econômico. O sistema capitalista passou a ditar normas éticas e influenciar mentalidades e costumes, trabalho antes pelo qual eram responsáveis as organizações religiosas. Mas o capitalismo de hoje não é exatamente o mesmo que vigorava no tempo de Bacon. A fase neoliberal do capitalismo, com sua nova razão econômica (iniciada nos anos de 1980), tornou o saber um produto perecível e submeteu as competências, antes valorizadas no período fordista, a uma “destruição criativa”.

Erudição é uma palavra fora de moda, ou melhor, trilhar o caminho da erudição é uma escolha aparentemente fadada ao “fracasso” segundo os valores vigentes de nossas sociedades de mercado. O neoliberalismo ou a nova racionalidade econômica desinstitucionalizou a relação entre diploma, qualificação e profissão. (Parem , portanto, de culpar os estudantes e os estudiosos por seu suposto “fracasso”, parem de julgá-los acomodados ou “vagabundos”! ) Eu disse certa vez: “Estude, em vez de reproduzir os preconceitos correntes no senso comum”. E não pretendia ofender! E também não me arrependo de tê-lo dito! Eu sou um educador, sou professor! O saber deve ser partilhado e deve ser o valor maior a ser cultivado! Não obstante, o neoliberalismo tornou frouxo o vínculo entre o diploma e o valor pessoal reconhecido socialmente. Isso se deve, em parte, ao enfraquecimento das posições dos assalariados, que encontram cada vez menos segurança nas instituições e carecem cada vez mais das referências estáveis que, outrora, davam a eles valor profissional, pessoal e identidade. O título escolar e o diploma universitário perderam sua força simbólica, no atual estágio do capitalismo financeiro, também porque o saber, amplamente propagando-se, deixou de corresponder aos novos imperativos de adaptabilidade permanente e de reatividade imediata fixados pela empresa (o neoliberalismo exige trabalhadores flexíveis, adaptáveis, capazes de se reinventar, de inovar para atender às necessidades econômicas da empresa). O assalariado hoje experimenta uma profunda e persistente insegurança, que afeta não apenas o emprego, mas também o conteúdo da sua profissão. Essa insegurança dos assalariados é consequência do enfraquecimento do valor simbólico dos diplomas, da implementação de práticas destinadas a avaliar as competências que melhor se ajustam aos encargos profissionais e a influência cada vez maior das empresas na determinação dos conteúdos da formação dos futuros assalariados. A escola passa a ser vista como um simples meio para a formação de trabalhadores flexíveis. A tudo isso se soma a precarização do trabalho nas sociedades capitalistas neoliberais. O trabalho passa a ser cada vez mais uma mercadoria como outra qualquer, perdendo suas formas jurídicas e sua dimensão coletiva. (E a galerinha que, em uníssono, grita “mais trabalho e menos direitos trabalhistas!” dá testemunho de que aprendeu bem a lição de casa neoliberal! Está aprovada! Mas saibam que vocês ficarão entregues à vulnerabilidade das condições do mercado de trabalho!) Mas que importa se gritam pelo direito de continuar a serem mais explorados, e ainda em condições precárias ?

Mas, se me foi possível escrever aqui sobre tudo isso, é porque convivo assiduamente com os livros, que, se não me permitem ganhos econômicos, dão-me as possibilidades de compreender o mundo, a realidade histórica em que vivo, libertando-me da tirania do impessoal, do falatório das multidões que são burras, irracionais, que não cessam de reproduzir as opiniões estabelecidas, que se contentam em assumir como verdades inabaláveis as crenças comuns e falsas, que se acostumaram a viver na redoma do senso comum, abocanhando do mundo apenas os pedaços, os fragmentos que nela são processados para o consumo de seu modo de vida que, bem ajustado a uma ordem socioeconômica e mantido num estado de contínua alienação, a reproduz nas práticas comuns do dia a dia. O ideal de todo educador é estender o direito à participação na cultura letrada a todos; é cativar o interesse pela leitura como o único caminho para a formação da liberdade de autonomia  - em crianças, jovens e adultos.






O Mito brasileiro

 

 

O bolsonarismo é a expressão de mudanças profundas na política e na configuração de poder na sociedade brasileira. Um dos aspectos dessa profunda e nefasta mudança é o desenvolvimento e fortalecimento da antipolítica no Brasil como modo de governança. A antipolítica bolsonarista recusa a ideia de que o Estado e as políticas públicas devem ter um papel de destaque no cenário político, que então passou a ser dominado por discussões sobre corrupção e privilégios corporativos. No terreno da campanha anticorrupção, carro-chefe do movimento bolsonarista, o Brasil seguiu a trilha das experiências totalitárias. Tanto o nazismo quanto o stalinismo transformaram ideias como pureza racial ou pureza de classe em utopias que legitimavam a distorção do debate público e a repressão aos seus opositores. Nesse tocante, é preciso dizer que 1) a campanha anticorrupção que alavancou a eleição de Bolsonaro preencheu os requisitos de todo sistema totalitário: a separação entre os “puros” e os “impuros”; 2) essa separação foi associada à figura de um combatente da degradação moral e social (que até bem pouco tempo era o Juiz da 13ª vara da Justiça Federal Sérgio Moro).

O que vemos operar, nesse contexto de luta anticorrupção, é uma característica muito comum em nossa história política: a personalização da política pela crença generalizada de que todos os nossos maiores problemas podem ser resolvidos se soubermos escolher bem a pessoa do governante. Ainda persiste a crença, entre nós, de que só conseguiremos mudar o sistema político pela eleição de um Messias, de um Salvador da Pátria. Este ser imaculado deve se apresentar como um adversário declarado e vigoroso do sistema vigente. Animado por esse imaginário coletivo brasileiro centrado na figura mítica de um Líder que nos conduziria à terra prometida, o bolsonarismo acostumou seus apoiadores (acríticos) a julgar o sistema político apenas por sua dimensão moral, sem qualquer consideração pelos resultados que ele produziu politicamente. A opinião pública, muitos intelectuais e a grande mídia incorreram nesse mesmo erro. E fazendo-o, ignoraram (e ainda ignoram) que aceitam os elementos da antipolítica bolsonarista que, bem entendida, quer dizer, reação à ideia de que instituições e representantes políticos devem negociar e dar respostas a problemas concretos postos em debate no país. Essa antipolítica é também negação de atributos como negociação ou coalizão como partes do processo de governança. Pela via autoritária de um Messias que recusa o presidencialismo de coalizão, o próprio projeto anticorrupção se demonstrou não só inviável, mas uma mentira oportuna para se obter o poder. Uma sociedade sem corrupção continua sendo parte de um horizonte desejável e utópico no Brasil. E os escândalos envolvendo a família Bolsonaro provam isso.






“A LEITURA NOS TIRA DO SEDENTARISMO INTELECTUAL” (Moacyr Scliar)

                            

Ler não é simplesmente decodificar sinais. A leitura como decodificação de sinais escritos é a etapa de que se encarregam os professores da alfabetização. Esta é a primeira e fundamental etapa do desenvolvimento da competência da leitura; mas a competência de leitura fica amputada se não se desenvolver para além dessa etapa. A leitura como letramento, como prática de produção de sentidos para o texto e para o mundo é a atividade que, socialmente, se considera ser a mais importante ao longo da educação escolar. Saber ler, nesse sentido, envolve a mobilização de um vasto conjunto de conhecimentos e estratégias cognitivas, metacognitivas e interacionais (pragmáticas, discursivas) indispensáveis ao desenvolvimento de formas mais profundas de compreensão do texto e do mundo. Ler supõe a capacidade de estabelecer relações intertextuais, de imergir cognitivamente nos níveis implícitos de sentido, de atingir as camadas subjacentes de sentidos previstos para um texto. Ler mais, nesse sentido, amplia e aprofunda nossa compreensão, porque nos dota da capacidade de perceber os sentidos que se produzem nos silenciamentos que atravessam as palavras. A leitura é um processo complexo de ordem linguístico-sóciocognitivo-interacional, emocional, fisiológica que envolve aprendizagem e maturação. Então, quem lê muito e compreende pouco o que leu, na verdade, não chegou a ler, não atingiu ainda uma competência mais ampla e elaborada de leitura. O ponto importante é que não há receitas para aprender a ler, no sentido que dou ao processo de leitura. Mas é possível ensinar a ler, é possível desenvolver no indivíduo as habilidades necessárias para que ele venha a se tornar um leitor competente, um leitor capaz de ler para além do dito, para além do explícito e codificado na superfície textual. É possível educar a sensibilidade do leitor para que compreenda que a linguagem não é transparente, mas opaca, que os sentidos possíveis são muitos e não estão alocados nas palavras ou nas frases, ou no texto, mas os atravessam, tomam direções diversas, nem sempre previstas pelo produtor do texto, direções que levam a outros textos, a outras falas, a outros discursos... Ler é compreender como um objeto simbólico produz sentido, como esse objeto nos permite fazer a experiência do sentido, como esse objeto significa na interação com o sujeito interpretante, levando em conta os contextos sócio-históricos, ideológicos em que eles se encontram. Sim, a leitura estimula a criatividade e a imaginação, desenvolve a sensibilidade, complexifica o pensamento, mantém a saúde do cérebro, protegendo-nos contra doenças neurológicas. A leitura favorece melhor o desenvolvimento da inteligência. A leitura é experiência de formação de sujeitos autônomos, capazes de construir por si mesmos conhecimentos sem a mediação do professor . A leitura promove, enfim, a experiência de vida. Complexificando o pensamento, apurando nosso olhar sobre o mundo, a leitura nos dota da capacidade de reconhecer a complexidade do real e de lidar com essa complexidade. O mundo que se nos descerra na prática da leitura é um mundo muito mais complexo, multidimensional, plurívoco, significativamente mais profundo, do que o mundo que se nos dá a conhecer nas esferas restritas e limitadas da vida ordinária, onde se realizam as conversações face a face ou mediadas pelos aparelhos tecnológicos hoje à disposição de certo número de usuários socialmente privilegiados. Viver sem ler é tocar de leve a superfície das coisas, é acostumar-se a viver uma vida chapada à superfície do mundo, onde se instalam as vivências ordinárias sobre as quais se projetam as sombras do senso comum, que impedem que o mundo seja iluminado em toda a sua complexidade, em todos os seus níveis possíveis de significação. A leitura ilumina o mundo, retira-o da caverna do viver comum , para torná-lo morada do pensamento complexo, em suma.

 






O Brasil de uma nota só

 

Não me parece demandar tanta controvérsia dizer que o Brasil com Bolsonaro e sua trupe emburreceu mais. O Brasil ficou mais burro (e mais perverso) com Bolsonaro na Presidência, tanto na esfera do Estado quanto na esfera da sociedade civil. E aqueles que se cuidam mais “politizados” por incriminar o PT e seu fantasioso comunismo por todos os males seculares do país não fazem mais do que confirmar essa tese. Para os bolsonaristas, a política se resume a uma nota só: a corrupção, ou melhor, o combate à corrupção. Parece que, se conseguirmos resolver este mal que nos assola desde o período colonial, o Brasil se tornará o melhor lugar no mundo para viver. Desnecessário dizer que os bolsonaristas não fazem a mínima ideia de como pôr fim definitivo a este mal hábito dos políticos aqui e em outras partes do mundo. Eles não sabem porque, seguindo o hábito do seu Messias presidente (que confessou não ler um livro sequer há três anos), são inimigos dos livros, são refratários à cultura letrada. Se estivessem habituados a conviver com os livros, se, ao menos, se interessassem em compreender a realidade sociopolítica do país que dizem tanto amar, saberiam que a corrupção entre nós deita raízes num solo cultural que desde muito cedo foi assentado pela prevalência do favoritismo sobre a justiça, pela simbiose entre os grandes proprietários da riqueza privada e os agentes administrativos ou de governo, pela perpetuação de uma oligarquia que une entre si os agentes do Estado (e sua burocracia estatal), os potentados econômicos, as Forças Armadas e um serviço judiciário que, desde muito cedo, existiu para extorquir dinheiro. Mas os bolsonaristas, tão desabituados aos livros, necessários a uma participação política consciente, a tudo tratam de modo simplificado e superficial. A tendência à simplificação do pensamento é, aliás, uma de suas características mais flagrantes. Não por acaso são equiparados a bovinos (embora essa espécie de animais seja inteligente). Quem ousar levantar uma questão política num sofrível diálogo (quando é possível) com um bolsonarista, ouvirá dele duas coisas: PT e corrupção do PT (e de Lula, é claro). A política para Bolsonaro e seus apoiadores é uma forma de guerra e ódio, de combate incessante contra esses três grandes males de nosso país, a saber, PT, Lula e corrupção. Toda política bolsonarista se resume a esta “missão” militante-militar: destruir o PT - e com ele, é claro, o comunismo que nos ronda- , e pôr fim à corrupção. E ponto final. A política econômica do Governo, o capitalismo financeiro a que o Brasil é subserviente, as desigualdades socioeconômicas profundas de nosso país, o investimento em Educação e em Pesquisa, em Ciências e Tecnologia, as políticas públicas, a superação da “velha política” ( o que Bolsonaro não fez senão perpetuar) e tudo o mais que se queira levar em consideração como problemas para uma agenda política não têm qualquer relevância ou importância. Falta aos bolsonaristas o letramento político adequado e amplo para se ocuparem dessas questões mais complexas e importantes. A burrice é sempre simplificadora e cega para a complexidade do real. A burrice do Brasil de hoje é o reflexo de um passado longo e perverso que ainda não superamos e com o qual nada aprendemos.


 


quarta-feira, 15 de setembro de 2021

"Todos os seres vivos são membros de comunidades ecológicas ligadas umas às outras numa rede de interdependências" (Fritjof Capra)

 



LIVRANDO-ME

 

            Quando um livro se nos abre, um vasto e complexo mundo se abre também; mas este mundo que se abre em sua complexidade e vastidão não se põe ao sujeito leitor como um simples objeto a ser esquadrinhado, inspecionado, examinado, conhecido. O mundo que se abre, que se desvela no folhear das páginas de um livro, é um mundo como campo de possibilidades de experiências afetivas, cognitivas, linguísticas, dialógicas que nos inundam todo o corpo, até o profundo de suas camadas nervosas, sensoriais, emocionais. Livros não são objetos de consumo, os quais se deterioram no próprio ato de consumo. Livros são espaços de experiências cognitivas, afetivas, culturais dialogais. O mundo que se nos abre na abertura de um livro é um mundo que nos desabitua, que nos desloca, que nos retira do conforto do mundo comum cotidiano em que costumeiramente nos instalamos e em cuja superfície perambulamos, tagarelamos e vivemos a vida rala e rasa através das lentes do senso comum. Quão custoso me é externar minha paixão (páthos) pelos livros, minha afeição (philotés, philía) ao bem de que eles me dão regozijar! Quão custoso me é tornar inteligível ao outro esta minha cumplicidade fisiológica, biológica com os livros, este meu dispor-se afetuosamente a eles com a gratuidade e a alegria dos enamorados! Que fique, ao menos, claro que, para mim, os livros não são utensílios, objetos de que me sirvo para atingir fins determinados; a vida sem a leitura é, para mim, empobrecida, é uma vida esquálida, é uma vida atrofiada, uma vida desperdiçada em seu tempo finito, de uma longenvidade tão incerta; é uma vida amputada em suas capacidades de autopoiese; é uma vida deficitária, uma vida que se vive sob o modo da insuficiência; é uma vida que se arrasta, que se leva adiante por uma simples indisposição para com a morte. Que me perdoem se tomo aqueles que não comungam deste meu vínculo afetivo com os livros, que vivem divorciados da intimidade do convívio com eles, como miseráveis a mendigar e a ruminar as sobras de um mundo limitado, esquemático, simplificado pelas telas do viver comum; perdoem-me se os tomo por prisioneiros de um mundo visto pelas grades estreitas da cotidianidade fragmentada pela hiperinformatividade de nossas sociedades digitais. Pudera que todos, sem exceção, se tornassem leitores-amantes, que deixassem de ser meros consumidores de informação, de corpos-imagens, de vidas estranhas celebrizadas, do banal espetacularizado, do mundo das marcas-sonhos sem alma, para se tornarem habitantes de um outro mundo - mais vasto, mais complexo, mais profundo, mais vigoroso, mais potente, pleno de intensidades afetivas e ilhas de conhecimento: o mundo dos corpos-leitores.

 


DESCULPE-ME, VOCÊ NÃO É A COROA DA CRIAÇÃO

 

        A visão mecanicista de mundo da física newtoniana e a visão mecanicista da vida de Descartes há muito foram superadas. No século XXI, em que se tornam cada vez mais flagrantes os problemas sistêmicos que ameaçam a vida em nosso planeta, predomina, nas ciências físicas e biológicas, a visão sistêmica de mundo, calcada sobre uma ecologia profunda. Do ponto de vista sistêmico, as únicas soluções possíveis para os problemas de nosso tempo - energia, degradação do meio ambiente, mudança climática, segurança alimentar e financeira -, são soluções sustentáveis. Uma sociedade sustentável significa uma organização social cujas atividades econômicas, comerciais, tecnologias e estruturas físicas não ameacem a capacidade inerente da natureza de sustentar a vida. Contrariamente à metafísica ocidental, que com Descartes, no século XVII, entronizou a consciência como a parte distintiva e mais elevada do homem, a ponto de considerar os animais não-humanos como meras máquinas, a visão sistêmica de mundo e a ecologia profunda de que se nutre preconizam que a consciência e a cognição não são privilégios humanos. Na visão sistêmica da vida, desenvolvida por estudiosos como Humberto Maturana e Fritjof Capra, o ser humano, como todo organismo vivo, está imerso em interações mútuas com a totalidade da vida no planeta; o homem é um fio da teia complexa da vida. A dicotomia metafísica cartesiana entre “coisa pensante” e “coisa extensa” é puro devaneio idealista. Como ensina Maturana, a cognição é uma atividade intrínseca ao processo da vida, ela está implicada na autogeração e na autoperpetuação das redes vivas. Plantas, animais e seres humanos são dotados de cognição e interagem cognitivamente com o ambiente em que vivem. Assim, vida e cognição são inseparáveis: “toda a estrutura do organismo participa do processo de cognição, quer o organismo tenha ou não um cérebro e um sistema sistema nervoso”. A consciência é um fenômeno emergente; é um tipo especial de processo cognitivo que se desenvolve quando a cognição alcança certo nível de complexidade. A cognição é um fenômeno mais amplo do que a consciência. É um preconceito metafísico separar os organismos vivos entre os que possuem consciência e os que não a possuem. Como fenômeno emergente, a consciência foi se complexificando e se diferenciando apenas em termos de graus entre os organismos vivos. O que se segue vale tanto para nós, macacos pelados, quanto para outras espécies de animais e plantas: “ as interações de um sistema vivo com seu meio ambiente são interações cognitivas, e o próprio processo de viver é um processo cognitivo”. Seguem-se da visão sistêmica da vida alguns postulados que não podem mais ser ignorados:

1. O planeta Terra é um sistema vivo e autorregulador;

2. O mundo material é uma rede de interações, de padrões;

3. O cérebro, o sistema imunológico, cada tecido corporal e cada célula é um sistema vivo e cognitivo;

4. A evolução não é mais concebida como luta competitiva pela sobrevivência, mas uma espécie de dança cooperativa, na qual a criatividade e a constante emergência da novidade são forças propulsoras.

 




sexta-feira, 30 de outubro de 2020

"Para escrever, estar sempre um pouco aquém na expressão (mais do que além). Sem tagarelice, em todo caso" (Camus).

 




Pensamentos dispersos e outras impertinências

 

Os gregos denominavam Kairós a boa ocasião, o momento oportuno, a circunstância favorável; kairós é o tempo fugaz que deve ser aproveitado no momento certo, porque, senão, a ação pode não lograr êxito ou pode fracassar. Será este o momento oportuno, pois, para escrever? Hesito... O que é certo é que adiei, protelei, posterguei, procrastinei o início da escritura deste texto. Por alguns dias, me deixei arrastar por minhas obsessões, ou por uma delas, a saber, meu apego irrestrito à verbosidade, à pretensão ilusória de dizer “tudo” rompendo com a incompletude da linguagem (o que sei ser impossível!); essa obsessão pelo “cheio”, pelo “excesso”, que pretensiosamente saturaria as possibilidades de dizer (o que é uma ilusão!), me leva a consumir horas e dias a garimpar os livros, a encher folhas de papéis com excertos alheios, com comentários pessoais, a anotar tudo que me parece relevante, a transcrever trechos de livros diversos. Só este trabalho obsessivo-compulsivo é suficiente para tornar o resultado, para o qual aquele trabalho é um simples meio, uma empreitada hercúlea e desestimulante. Minha obsessão com a precisão da forma, com a fecundidade e a profundidade do conteúdo e com o refinamento do estilo é infensa aos sentimentos iniciais que me incitavam a escrever. O presente texto deve ser um sintoma de leveza na expressão e de intensidades anímicas, de tremores e terrores fisiológicos, de inquietações de meu espírito filosófico, de cumplicidade intelectual-afetiva com autores e seus pensamentos. A leveza na expressão significa renúncia ao academicismo estilístico. Basta! São desnecessárias mais justificativas! Apenas acrescento que este texto não versa sobre um assunto definido, não tem sequer uma ideia geral em que se pudessem apoiar seus arranjos sintáticos. Escreverei como um navegante à deriva no mar, que não sabe aonde chegará e ignora os reveses que o espreitam ao longo de um curso onduloso, tortuoso, tormentoso. O perigo do naufrágio é inevitável, inelutável. Não há rotas, não há qualquer sinalização de um começo. Escrevo para apascentar meu desespero congênito, que tem, ultimamente, se tornado mais agressivo, mais fustigante, mais espinhoso, mais insurreto. Aqui é necessário um esclarecimento: não me refiro ao desespero apenas no sentido de “desorientação perturbadora, grande aflição em face da perda de uma rede de referências, afetiva e axiológica, que dava sustentação à existência”; refiro-me, sobretudo, ao desespero como disposição afetiva que nos reconcilia com a crueldade do real. O desespero a que me refiro é renúncia a qualquer fé num sentido metafísico da existência, é também dispor-se para o viver reconciliado com o real, com o caráter trágico, ou absurdo da existência (como prefeririam os filósofos pessimistas, dos quais me sinto mais próximo intelectual e afetivamente). Como escreveu o poeta estadunidense David Thoreau, “a maioria dos homens vive uma existência de tranquilo desespero”. Esta é a minha primeira citação; e preciso dizer que não será a única; na verdade, por não ser um produto de um plano global de escrita, este texto se constituirá, predominantemente, como um tecido dialógico explícito e repleto de uma série de costuras polifônicas; citando autores e seus pensamentos, pretendo confrontá-los, alinhá-los, para compor minha fala como uma fala constitucionalmente polifônica. Meu discurso não tem em mim a sua origem – anotem isso!

É justamente esse “tranquilo desespero”, do qual está impregnada a existência da maioria dos seres humanos, que só conquisto, talvez, em alguns breves momentos em que me deixo estar fora do alcance do vigilante pensamento para entreter-me com a futilidade do mundo. Mas, na maior parte do tempo inutilizável de minha vida inempregável e ociosa – Baudelaire, aliás, escreveu, em seus Diários Íntimos, “ser um homem útil sempre me pareceu algo muito horrendo” - , tal “tranquilo desespero” me é tão estranho e desconhecido quanto estranhos são os rostos que se apinham e se confundem na multidão de indivíduos que, ignorando-se mutuamente, atravessam, cotidianamente, as  grandes avenidas de nossas metrópoles. O meu desespero é de outra natureza; é congênito, é efeito de um estado de crise permanente e parturejante (em grego, aliás, krisis se diz do momento decisivo, de súbita mudança); é, em suma, efeito de uma implacável indisposição para a existência comum e sua banalidade assombrosa. O romancista russo Vladimir Nabokov expressou aquilo de que o “tranquilo desespero” da maioria a protege: “nossa existência não é mais que um curto-circuito de luz entre duas eternidades”. Como eu entendo esse “tranquilo desespero”? Como uma espécie de mecanismo de defesa narcotizante que foi implantado em nós pela seleção natural como parte de nossa herança filogênica. A natureza trabalha no sentido de garantir a sobrevivência da espécie. Como ensina Schopenhauer, ela é indiferente à sorte dos indivíduos; mas precisa garantir que eles funcionem bem, para que dediquem sua vida à preservação da espécie. Não haveria vantagem evolutiva alguma se fosse grande o número de indivíduos que, existencialmente atormentados, aturdidos com a insignificância radical da existência, vindo a se encontrar, frequentemente, em condições de extrema tensão de seu mundo afetivo, pulsional, pusessem fim aos seus dias suicidando-se. Como observa bem Nietzsche, “não importa se contemplo os homens com olhar bom ou ruim, sempre os vejo ocupados numa só tarefa, todos e cada um em particular: fazendo o que ajuda à conservação da espécie humana. E não por um sentimento de amor a tal espécie, mas simplesmente porque nada, neles, é mais antigo, mais forte, mais inexorável, mais insuperável do que esse instinto – porque ele é essencialmente a linhagem e rebanho que somos”. Schopenhauer vem aqui fazer coro a Nietzsche: a maioria dos animais humanos se esforça diariamente em vista senão da “manutenção da existência mesma, manutenção obtida diariamente às custas de fardo incessante e cuidado constante, numa luta contra a necessidade e tendo a morte em perspectiva”. Ou ainda: “a vida individual transcorre numa luta incessante pela existência mesma; porém, a cada passo é esta ameaçada pela queda no abismo”.

 E por falar em suicídio, Nietzsche nos diz, em A Gaia Ciência, que “(...) o suicídio é uma ação perfeitamente natural e próxima, que, sendo uma vitória da razão, deveria suscitar respeito: e realmente o suscitava, naqueles tempos em que os grandes da filosofia grega e os mais valentes patriotas romanos costumavam recorrer ao suicídio”. E é também Nietzsche que sentencia: “Viver – é continuamente afastar de si algo que quer morrer”. “As religiõesainda é Nietzsche quem ensinasão ricas em expedientes contra a necessidade do suicídio: com isto elas se insinuam junto aos que são enamorados da vida”. Em geral e comumente, as pessoas se apiedam de um suicida; julgam-no um fracassado, um covarde, ou até mesmo um egoísta. Não o tenho nessa conta; se o suicida é egoísta por querer pôr fim a um sofrimento que se  lhe tornou intolerável e por não se preocupar com a dor que sentirão aqueles que o amam, após sua morte, são igualmente egoístas aqueles que, não querendo sofrer a dor da morte voluntária do amado, insistem em desejá-lo vivo de qualquer jeito. Na verdade, o suicídio é um ato que desperta em mim profunda admiração e respeito. O suicida rompeu, mediante um ato que Schopenhauer deveras não recomenda (mas isso não vem ao caso), a tirania da vontade de vida; isso sobre o qual Cioran, fazendo eco tacitamente ao próprio Schopenhauer, soube bem se interrogar: o apego irracional à vida que nos leva a prolongá-la a despeito da pressão das razões que nos convenceriam a pôr fim a ela. O suicídio é-me tentador; chego a flertar com ele em imaginação; mas sinto-me dilacerado por um congênito esgotamento que me demove de realizá-lo. Preferi, por fraqueza, escrever um livro em coautoria (ainda não publicado), para aproximar-me do ato sob um modo sublimado. Tornando-o tema filosófico, convertendo-o em objeto de reflexão filosófica, libertei-me de sua sedução, resisti às suas falsas promessas. Sem condenar o suicídio, estou convencido de que ele é bastante razoável como meio de nos libertar de um sofrimento intolerável, como um meio de nos aliviar de um sofrimento pesado e pungente que decorra de condições existenciais tão precárias, que tornam o viver irrespirável, insuportável. Por isso, a eutanásia é um ato de amor, de misericórdia, a despeito do que pensa a Igreja e seus prosélitos cagadores de regra. É verdade, no entanto, que “as religiões são ricas em expedientes contra a necessidade do suicídio: com isto elas se insinuam junto aos que são enamorados da vida (Nietzche). Os que se dizem enamorados da vida me parecem ou descaradamente ingênuos, ou são indecentemente hipócritas, mas também podem sofrer de uma imbecilidade crônica e irreversível (Tamanho fastio sinto só de lembrar que, neste país, a cada dia, se multiplicam aos borbotões, por outras razões, esses tipos humanos doentes, idólatras da imbecilidade oficial!). Mas o suicídio não pode ser e não é a salvação. É que não há Salvação. Não a creio possível! Como diz Bataille, “nada de salvação: ela é o mais odioso dos subterfúgios”. O que nos resta então? – perguntar-me-iam aqueles que resistem a dobrar-se diante dos sonoros apelos da experiência. Respondo: resta-nos ou viver como a maioria num tranquilo desespero, ou viver como combatentes de um desespero que se quer lúcido e controlado. Viver um desespero controlado é reconhecer que “a única verdade do homem, finalmente entrevista, é a de ser uma súplica sem resposta(Bataille). De fato, tem razão Bataille: “não somos tudo. Aliás, só temos duas certezas neste mundo: esta e a de morrer”.

Não me apetece muito o curso que tomaram estes desalinhos verbais. Acabei por me desviar assaz do que tinha em vista antes de pôr-me a escrever. Este texto carece de uma densidade lírica; não pretendo com ele elaborar um arrazoado filosófico. Estou de acordo, pelo menos em parte, com Nietzsche, quando diz "não quero converter ninguém à filosofia: é necessário, é talvez também desejável, que o filósofo seja uma planta rara. Nada me é mais repugnante do que a propaganda doutrinal da filosofia, como em Sêneca ou mesmo em Cícero. Filosofia tem pouco a ver com virtude.". Digo, em parte, porque não me repugna a filosofia helenística e seu ideal de sabedoria libertadora. Como sentir aversão às lições preciosas que podemos colher da pena de Sêneca, quando escreve ao amigo Lucílio: “Podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entenda que se morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já passou pertence à morte”? Novamente o tema da morte aparece como se me solicitasse que dele me ocupe. Da morte falarei depois. Estou em consonância com Nietzsche no tocante à crença de que ninguém pode ser convertido à filosofia; ensinar filosofia é tão sem sentido quanto ensinar língua materna. Mas Sêneca, como Epicuro, a quem aquele reconhece como um mestre, se fez tanto apelo à superioridade da vida filosófica, é porque sabia que a maioria dos homens, vivendo apartados da filosofia, vive na condição de escravos, sem o saber. Por isso, Sêneca evocava a injunção de Epicuro: “Consagra-te à filosofia se desejas ser verdadeiramente livres”.

A esta altura, sinto-me como um escritor que fracassou. Não consegui cumprir com o que prometi, se bem que nada prometi. Melhor será dizer que descumpri o intento que tinha de escrever pouco, de tornar o texto mais fluido, de expurgar sentimentos corrosivos, de me liberar dos efeitos nocivos de meus desertos. Mas, como dizia Nelson Rodrigues, “na vida, o importante é fracassar”. Ou como escreveu Cioran, “apenas uma coisa importa: aprender a ser um perdedor”. Sinto-me, portanto, coagido pela necessidade de ir até as últimas consequências de meu fracasso. Só levarei a termo este texto quando tudo que se assemelha a entulho represado puder ser escoado. Se o texto terminasse aqui, estaria amputado. Prossigo, então... E espero que, antes do término, eu consiga dar a este texto uma nervura mais sentimental, sem sentimentalismo piegas.

Não é nem de liberdade nem da morte que pretendo tratar. Limito-me a evocar, por meio do testemunho de autores, a pertinência desses temas. Camus, por exemplo, escreveu, em seus Cadernos: “a única liberdade possível é uma liberdade em face da morte. O homem verdadeiramente livre é aquele que, aceitando a morte como é, aceita ao mesmo tempo as consequências – isto é, a inversão de todos os valores tradicionais da vida. O “Tudo é permitido” de Ivan Karamozov é a única expressão de uma liberdade coerente. Mas é preciso ir até o fim da fórmula”. Mas uma liberdade total e irrestrita, se fosse possível ao homem, significaria sua autodestruição ou sua loucura derradeira e insuperável. A cultura, que é o lugar onde os hominídeos se fizeram “homens”, nasce de um interdito: a proibição do incesto. Daí em diante, a cultura tratou de colocar o homem sob a mira de um arsenal de interdições, de proibições e de valores falsificadores, a fim de educá-lo, moldá-lo, domesticá-lo, com o pretexto de “civilizá-lo” e protegê-lo, alimentando seu narcisismo ontológico, de algumas verdades aterradoras. E assim se fabricaram as ficções mais danosas, as mentiras que, em vez de libertar o animal humano, o tornou escravo, doentio, iludido; o homem tornou-se um animal fabulador e mentiroso; e em nome de suas mentiras, das mentiras que lhes foram inculcadas, o homem tornou-se o animal “mais periclitante” e cruel. Tem razão Schopenhauer: “Pois o homem não é apenas um animal vil e repugnante (digo isso a contragosto, quem dera a experiência não tivesse manifestado clara e repetidas vezes e não continuasse a fazê-lo) mas também danoso, volúvel, pérfido, ambíguo, feroz e cruel”. E pior: surpreendentemente, o homem se tornou um animal otimista! Não raro seu otimismo beira à completa falta de bom senso, a ponto de ignorar como sonâmbulos que ignoram, quando despertos, que vagueavam repetindo ações rotineiras, o que nos ensina Schopenhauer: “as pessoas comparativamente felizes o são na maioria das vezes apenas aparentemente, ou são, como ocorre no caso das pessoas de vida longa, raras exceções, cuja possibilidade teria de existir – ao modo da isca. A vida apresenta-se como um engodo constante, tanto nas pequenas quanto nas grandes coisas” Opondo-se veementemente ao otimismo, Schopenhauer notou que ele é “não apenas falso, mas também uma doutrina perniciosa. Pois ele nos apresenta a vida como um estado desejável e a felicidade do ser humano como a meta do mundo”. Mas como poderia ser desejável algo que, como notara Heráclito, aporta o nome de vida, mas sua obra é a morte?” É assim que se comporta a maioria dos seres humanos, diariamente: “a grande maioria dos homens suporta a vida sem muito resmungar, e acreditar então no valor da existência, mas precisamente porque cada um quer e afirma somente a si mesmo (...). Portanto, para o homem comum, cotidiano, o valor da vida baseia-se apenas no fato de ele se tomar por mais importante no mundo”. (Nietzsche).

Sinto-me, devo confessar, bastante indisposto para entabular qualquer conversa com quem se habitou a viver num autoengano relativamente à morte. Enfada-me o simples fato de ter de lhe chamar a atenção para o caráter banal e absurdo da morte (e da vida!). Para compor este texto, busquei fazer encontros fugidios com livros que li, pela primeira vez, no tempo em que ainda era graduando em Letras. Já se vão quase 20 anos... Dois, em especial, me comoveram por dar voz lírica à precariedade da condição humana e ao absurdo da existência. Trata-se dos livros A Hora da Estrela e A paixão segundo GH., ambos de Clarice Lispector. A Hora da Estrela é um livro sobre o desamparo característico da condição humana. Nele, descobrimos que contamos apenas com o consolo da linguagem para dar a ela algum sentido, frágil, para nutrir esse desamparo de uma dignidade sombria e indefinível. A narradora nos fala da banalidade da morte, depois que a protagonista Macabéa morre: “a morte é um encontro consigo. Deitada, morta, era tão grande como um cavalo morto. O melhor negócio é ainda o seguinte: não morrer, pois morrer é insuficiente, não me completa, eu que tanto preciso”. Noutro lugar, a narradora, como se saísse de um sono letárgico comum à vida diária, dá-se conta de que “só agora me lembrei que a gente morre”. Assim, vive o homem do cotidiano, o homem comum: vive sob o domínio do esquecimento de que pode morrer. Ele, definitivamente, é incapaz de uma experiência filosoficamente decisiva, que se formula nestes termos, para Clarice Lispector, em seu A paixão segundo GH: “toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão”. Revisitar, mesmo que de modo apressado e disperso, as páginas desses dois livros de Clarice Lispector trouxe-me lembranças aveludadas de um tempo passado prenhe de promessas de um futuro fértil de grandes colheitas. Mas o passado não é lembrado, não! Jamais! A memória tem por objetivo produzir continuamente novas experiências de pensamentos, emoções, a fim de desenvolver a personalidade e a inteligência como um todo. Engana-se quem pensa que há lembrança de informações contidas na memória. O que há é reconstrução dessas informações, de modo que o trabalho da memória não é reproduzir originalmente as experiências do passado, mas realizar uma reconstrução delas. Em outras palavras, o que é lembrado já foi interpretado pela memória. A memória é o sinal em nós de que estamos continuamente morrendo; de que o tempo vivido é um instante que sucumbe para dar lugar a um outro que, por sua vez, “morre”, para dar lugar a outro, e assim sucessivamente. O que chamamos de “presente” “morre” e se registra (se enterra) na memória – nosso primeiro cemitério, já destinado a nós em vida (daí também ter razão Fernando Pessoa: “somos defuntos adiados”). Aqui também vale a verdade: “tudo que vive tem de perecer”. Morrendo as vivências do presente, abre-se (e não “abrem-se”, como insistem impertinentemente os gramatiqueiros!) espaços para novas leituras da memória e para a produção de novos pensamentos e emoções. Enfim, a memória é sempre repetição da diferença, e nunca reprodução do mesmo! Penso, porém, a despeito do que pensa o senso comum, que é Bergson quem tem razão: tempo como memória, tempo e memória como duração; e o passado se prolonga no presente, jamais “morre”...

Filosoficamente falando, o que me incomoda nas pessoas em geral, nas que vivem uma vida anestesiada pelo jugo da esperança, é a presunção de saber o que é o mundo, o que é a existência e qual “o sentido” de nos encontramos aqui neste mundo. Elas simplesmente não reconhecem que “este mundo é dado ao homem como um enigma a resolver”, como nota Bataille. É extremamente difícil esclarecer as pessoas sobre o papel emancipatório, sobre o caráter desmitificador e libertador do pessimismo filosófico, já que elas se acostumaram, por força de suas experiências culturais que lhes inculcam crenças e representações coletivas que lhes dizem como o mundo “é” ou deve ser, a acreditar que o pessimismo se reduz a um estado de espírito assentado no sentimento e na crença de que tudo caminha para o pior; mas ao encará-lo de modo tão rasteiro, limitado e superficial, ignoram a profundidade de sua Lucidez. Também Einstein se admirava do caráter enigmático da vida: “o mistério da vida me causa a mais forte emoção. É o sentimento que suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência”. É bem verdade que Schopenhauer teve a pretensão de decifrar o enigma do mundo, que não é uma obra de um Deus criador, mas a objetividade de uma Vontade cega e eterna: “Desperta da noite da sem-consciência para a vida, a vontade encontra-se como indivíduo num mundo sem fim e sem fronteiras, entre inumeráveis indivíduos, todos se esforçando, sofrendo, vagueando; e, como possuída por um sonho agitador, precipita-se de novo na velha sem-consciência”. Como é possível que se ignore com tamanha impassibilidade e sonolência que “a vida da maioria das pessoas é breve e calamitosa”? Ou ainda que “tudo na vida nos ensina que a felicidade terrena está destinada a desvanecer-se ou ser reconhecida como uma ilusão”? Confesso ser a morte uma dos objetos de minhas obsessões. Quem diz não temer a morte me parece um farsante, um mentiroso, só desculpável se alegar que sofre de uma estupidez crônica. Estupidez que o impede de apreender fisiologicamente, de expor-se afetivamente como um ser orgânico cosmologicamente insignificante à dramaticidade e à tragicidade de sua condição mortal e à finitude de sua condição humana. Como diz Schopenhauer, “a morte decerto deve ser considerada como o fim propriamente dito da vida: no momento em que a morte se dá, decide-se tudo o que no curso inteiro da vida fora apenas preparado e introduzido. A morte é o resultado, o résumé da vida”. Quem vive tendo sempre em seu horizonte de vivências a finitude de sua condição humana encontra na perspectiva da morte, que é um evento constitutivo da dinâmica da vida, ocasião para instruir-se. Como diz Schopenhauer, a morte nos instrui na medida em que nos esclarece sobre aquilo que a vida mesma já buscava elucidar, a saber, que ela “foi algo vão, fútil, contraditório consigo mesmo”. Cioran comunga desse sentimento com Schopenhauer: “quanto mais vivemos, menos útil nos parece termos vivido”. Mas, por favor, não se apressem em tirar conclusões que desabonam essa perspectiva sobre as coisas. O pessimismo filosófico não é algo que se deve rejeitar sem alguma detida e paciente ponderação sobre suas lições. É preciso ruminá-las, à noite sobretudo quando os homens adormecem e a escuridão se estende sobre o mundo, silenciando-lhe o burburinho costumeiro, o falatório vazio. É na escuridão da madrugada que melhor contemplamos abismos, que as profundezas abissais da absurdidade do mundo se revelam (ah! Eu bem o sei!). Dizia Cioran que “ninguém alguma vez se persuadiu tanto como eu da futilidade de tudo, tal como ninguém terá tomado como trágicas tantas coisas fúteis”. Preciso, todavia, abandonar este ponto de minhas reflexões. Antes, contudo, vale frisar que as mentes mais lúcidas e sábias da humanidade reconheciam que a vida não vale muito, como reconhecia Sêneca, ao assinalar que “viver não é uma grande coisa (...) pensa que há muito tempo fazes a mesma coisa: comida, sono, libido – a vida se resume a isso”. Schopenhauer diz, por sua vez, com razão a meu ver, que “a vida é um negócio que não cobre os custos do investimento”. E acrescenta com a vocação poética que o torna proficiente no trabalho com as imagens que tingem de vivacidade o mundo literário: “ a nossa vida assemelha-se antes de tudo a um pagamento que alguém recebeu centavo por centavo de cobre, pelos quais deve, no entanto, dar uma quitação: os centavos de cobre são os dias; a quitação é a morte”. Embora Schopenhauer afirme que o sofrimento é a destinação da existência humana, ele também acredita que a própria vida é um processo de purificação e que a solução purificante é a dor. Sim, para Schopenhauer que, embora ateu, não deixou de incorporar em seu pensamento elementos da tradição mística cristã (e oriental!), “o sofrimento é de fato o meio de purificação, único através do qual, na maioria dos casos, o ser humano é salvo, isto é, abandona o caminho errado da Vontade de vida”.

Já que tenho procurado dar a conhecer meus agenciamentos, os autores e pensadores graças aos quais devo minha formação humana e intelectual, pois, como diz Libânio, “somos o que lemos, somos o que escrevemos, somos o que pesquisamos, somos o que ensinamos” – no que estou de acordo -, é, para mim, extremamente difícil não anuir ao que diz Schopenhauer neste excerto que tomo como uma máxima existencial: “num mundo em que pelo menos cinco sextos das pessoas são canalhas, néscias ou imbecis, é preciso que o retraimento seja a base do sistema de vida de cada indivíduo do outro sexto restante – e quanto mais ele se distanciar dos demais tanto melhor. A convicção de que o mundo é um deserto, em que não se pode contar com companhia, deve se tornar uma sensação habitual”. Nietzsche, por seu turno, pondera que “(...) no conjunto a humanidade não tem objetivo nenhum e, por isso, considerando todo o seu percurso, o homem não pode nela encontrar consolo e apoio, mas sim desespero. Se ele vê, em tudo o que faz, a falta de objetivo último dos homens, seu próprio agir assume a seus olhos caráter de desperdício. Mas sentir-se desperdiçado enquanto humanidade (e não apenas enquanto indivíduo), tal como vemos um broto desperdiçado pela natureza, é um sentimento acima de todos os sentimentos. – Mas quem é capaz dele? Claro que apenas um poeta, e os poetas sempre sabem se consolar”. Mas, como a maioria de nós não é poeta, talvez possamos encontrar algum consolo na sabedoria estoica de Sêneca, que nos ensina: “Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a realização de importantes tarefas”. Anotem: uma vida longa e plena não é mensurável cronologicamente, mas qualitativamente. Viver longa e plenamente é viver uma vida cujo fim é a sabedoria – é o que nos ensinou Sêneca. Reitero aqui o que já escrevi em outro lugar, porque é necessário enfatizá-lo: a brevidade é um conceito intensivo, de modo que uma vida será breve ou longa dependendo do modo como a vivemos. Ter uma vida longa, mesmo que venhamos a morrer com 30 anos, é ter uma vida intensa, isto é, uma vida ocupada consigo mesma. Uma vida dispersa que durou 100 anos é uma vida breve. Numa vida dispersa, numa vida desperdiçada, em tudo que eu  realizo, eu não me realizo. Ora, Sêneca censura o modo de vida do homem da multidão. A multidão é tudo que eu realizo sem me realizar. Na multidão, não somos quem somos e somos os outros; mas os outros não é ninguém. A vida escrava da multidão experimenta a brevidade de tudo; é vida que se perde a si mesma. Se eu vivo, vivo segundo o que acontece. A vida do sábio é vivida segundo o que acontece. Mas a maior parte dos seres humanos – ensina Sêneca – vive acordada como se estivesse dormindo.

Longe de acreditar que trazer sempre estampados no espírito o entendimento e o sentimento de nossa condição existencial cosmologicamente insignificante e desprovida de propósito seja um caminho descerrado para o desespero total e excruciante e para o perigo implacável do suicídio, cuido que, amparada e conduzida pela educação filosófica, tal atitude pode arrefecer, temperar nosso egoísmo habitual, nos libertar da tirania de nosso narcisismo e, mormente, nos descerrar o horizonte elucidativo à luz do qual nos podemos tornar criadores de hierarquias de valores que potencializem a vida, que nos orientem na determinação do que torna abundante e fecunda a vida, bem como nos instruam sobre como devemos evitar o desperdício do tempo de vida que temos, cujo instante do fim, sempre iminente, desconhecemos . Por isso, é preciso atender séria e demoradamente nas palavras de Hannah Arendnt: em relação ao universo, a Terra é um ponto; que importa o que nela acontece? Em relação à imensidão do tempo, os séculos são apenas instantes, e o esquecimento recobriria tudo e todos; que importa o que os homens fazem? No que se refere à morte, que é igual para todos, tudo o que é específico e distinto perde seu peso; se não existe nenhum além – e a vida após a morte, para Cícero, não é um artigo de fé, mas uma hipótese moral -, não tem a menor importância o que fazemos ou o que sofremos. (...) A filosofia é invocada para compensar as frustrações da política e, de uma maneira geral, da própria vida”.

Mesmo não estando completamente satisfeito – e como poderia estar, se o estado de insatisfação permanente é constitutivo de nossa condição humana? -, preciso operar uma digressão definitiva para dizer algumas palavras sobre as atividades de escrever, ler e pensar.

 

 

Escrever constitui uma questão importante para mim em dois sentidos: 1) no sentido de que, como lembra Sponville, “escreve-se sozinho, mas é para ser lido”; e 2) no sentido de que não creio que se possa ensinar a escrever com receitas “prontas”. Aprende-se a escrever escrevendo, o que não significa dizer que sejam vãos os esforços da escola e dos professores nas práticas de letramento. Suspeite sempre quando alguém promete que você conseguirá aprender a escrever bem seguindo certo conjunto de procedimentos que o orientarão na composição de um gênero textual ou de um tipo textual, na maioria das vezes um artigo de opinião ou outro gênero textual em que predominam tipos textuais argumentativos. Mas uma atividade de escrita só se aprende e se aperfeiçoa pela conjugação de duas atividades: ler e escrever. Ler, escrever e rescrever... A leitura é importante não só porque nos permite conhecer mais sobre o mundo e adquirir, como se diz comumente, mais vocabulário, mas também e sobretudo, porque, expondo-nos aos diversos gêneros textuais, permite-nos conhecer os diversos modos como eles se estruturam. Gabriel Perissé diz que “escrever muito e sempre é o único modo de aprender a escrever, de despertar o escritor que cada um é, dentro e a partir de suas circunstâncias e limitações”. Embora não seja tão otimista quanto o autor, pois não acho que exista um escritor em cada um de nós, acolho a sugestão dele de que é escrevendo muito que se aprende a escrever. Ainda segundo Perissé, “escrever é também uma fuga, mas uma fuga para a realidade! Amar as palavras é sinal de vitalidade”.

 Mas o primeiro sentido da questão é para mim o mais grave, o que se põe como motivo de minha constante indisposição e desânimo com a prática da escrita. A questão permanece a mesma ainda hoje, para mim: por que escrever, se não há uma comunidade de leitores que realmente lerá o que escrevo? Fernando Pessoa, em seu Livro do Desassossego, confessa que: “para mim, escrever é desprezar-me mas não posso deixar de escrever. Escrever é como uma droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo”. E ainda: “Escrever sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda”. E neste trecho seguinte encontro profunda ressonância de sentimentos: “pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me”. Eu só diria um pouco diferente: pasmo sempre quando acabo de escrever. Pasmo e desolo-me.

Concordo com Perissé, quando afirma que “escrever e viver são trabalhos que se entrecruzam”. Mas dele me afasto quando mantém que escrever é conhecer-se. Não acho que somos totalmente transparentes a nós mesmos (a julgar pelo que nos dizem os psicanalistas). Talvez, melhor seria dizer que, escrevendo, vamos perturbando o desconhecido, o suposto saber (que é um não saber) sobre o qual vamos formando um sentimento de “eu” ao longo da vida. Estou, no entanto, de acordo com ele em outras afirmações interessantes que faz sobre a atividade da escrita. No entanto, não posso ignorar que escrever não é fácil, como diz Drummond: “escrever hoje para mim é mais difícil do que quando eu tinha 20 anos”. Como Perissé, também penso que escrever é libertar-se. E isso, só, bastaria para justificar a prática da escrita. Também o essencial foi dito por Perissé, quando considera a relação entre ler, pensar e escrever: “O ler conduzirá ao pensar e o pensar conduzirá ao escrever. Ler e pensar. Escrevendo, pensar. Pensar e ler. Pensando, escrever.”. Georges Picard, por sua vez, se pergunta “é preciso ter algo a dizer para escrever?” e responde: “Eu mesmo inverti o sentido da fórmula, começando por notar que é preciso, antes de mais, escrever para ter algo a dizer”.

Não é tanto a atividade da escrita como técnica ou arte que me interessa; mas a escrita como vivência – a vivência da escrita. Nesse sentido, escrever é expor-se, mas também propor-se a ser legível e interrogado. Mario Quintana, em entrevista, disse, certa feita, que “eu nunca escrevi uma vírgula que não fosse confessional. Quando o camarada faz uma coisa cavada, por encomenda, não dá. Tem que ser um sentimento absolutamente sincero. Senão sentir nada, não deve escrever. Eu tenho tido períodos de deserto. Não vem nada e eu não escrevo”.

Perissé afirma que “ a leitura cura tudo se for leitura pensante. É bom para tudo, tudo ajuda, faz de tudo. Exercita-nos a memória recente, a conexão entre fatos e experiências passadas, a linguagem, a imaginação, a capacidade de prever, a capacidade de interpretar, a intuição.” Schopenhauer diverge, contudo. Para ele, “a leitura não passa de um substituto do pensamento próprio”.  Para ele, “uma pessoa só deve ler quando a fonte de seus pensamentos próprios seca, o que ocorre com bastante frequência mesmo entre as melhores cabeças”. Deveria dizer que, por princípio teórico, estou, nessa matéria, em desacordo com Schopenhauer? A leitura não é um substituto do pensamento próprio, porque não há, a rigor, um pensamento próprio. O pensamento reflexivo, que se constitui discursivamente, é sempre dialógico. O meu pensamento é sempre pensamento de um outro, um pensamento de que me aproprio reformulando-o, ressignificando-o na diferença, fazendo falar seus silenciamentos, dando espessura verbal aos seus implícitos.

Schopenhauer considera que existem três tipos de autores: os que escrevem sem pensar; os que pensam enquanto escrevem; e os que pensaram antes de pôr-se a escrever. Os mais numerosos, segundo o autor, são os primeiros: os que escrevem sem ter pensado antes, sem ter ponderado sobre o que escreveriam. Os mais raros são os últimos: os que pensam antes de escrever. Camus, por sua vez, considera que “para escrever, estar sempre um pouco aquém na expressão (mais do que além). Sem tagarelice, em todo caso”.

Mas, afinal, o que é pensar? Não se espante: nem todos são capazes de pensar verdadeiramente! Quando alguém, não habituado ao convívio com a filosofia, me pergunta para que serve o pensamento, eu fico tentado a lhe dizer que a pergunta em si não faz sentido, porque acompanho os gregos, para quem o pensamento tem seu fim em si mesmo. É o que nos ensinava Aristóteles. E como ensina Arendt, “todo pensar é um re-pensar”. Arendt acrescenta que “o pensamento está fora de ordem, interrompendo todas as atividades ordinárias, e sendo por elas interrompido”. E o pensamento está fora de ordem justamente porque “não produz qualquer resultado final que sobreviva à atividade, que faça sentido depois que a atividade tenha chegado ao fim.Mas como ousar dizer que nem todos pensam? É que o pensamento, no significado estritamente filosófico, como “contemplação do invisível, do que está para além das aparências”, “como atividade do intelecto em contraste com os sentidos”, como “visão direta do inteligível” (intuição), é de natureza diferente do pensamento que nos orienta na vida diária. Perissé tem razão quando diz que “pensar é virar a realidade do avesso, é “desrealizá-la”, recriá-la”. Pensamos para nos desabituar de nossas maneiras habituais, rasas, estereotipadas de “ver” o mundo, de significar as ocorrências do mundo. E Arendt, inspirando-se na tradição grega, observará que o pensar começa quando “dessensorializamos qualquer coisa que tenha sido dada aos nossos sentidos”. O pensamento tem como condição sine qua non o fato de ter um caráter niilizante, porque corrói aquilo que tomamos como evidências, nadifica as certezas, nadifica aquilo que consideramos como verdades sobre o mundo, subverte os códigos que fixam comportamento, que promovem e justificam toda sorte de violência (sobretudo, a violência simbólica). Como diz Libânio acertadamente, “a reflexão abala as evidências fáceis e não discutidas”.  O pensamento não se confunde com opinião de comentaristas de futebol,  tampouco com o falatório do impessoal, com os juízos de valor correntes, com a mera produção de atos de fala locucionários (proposicionais). Por isso, nem todas as ocasiões e modos de enunciação são propícias ao pensamento. As redes sociais, por exemplo, tendem a ser espaços onde colidem diversas opiniões, preconceitos, clichês, mas jamais – ou quase nunca – favorecem o exercício do pensamento. Para Arendt, o pensamento é busca do significado: “o pensamento pensa o significado. O pensamento não pergunta o que uma coisa é ou se ela simplesmente existe, porque sua existência é tomada como certa, mas o que significa para ela ser”. Pensar, para Arendt, é entrar no significado do acontecimento. E Deleuze diz  que “o modo do acontecimento é problemático. Não se deve dizer que há acontecimentos problemáticos, mas que os acontecimentos concernem exclusivamente aos problemas e definem suas condições”. “O acontecimento é, por si mesmo, problemático e problematizante”. Portanto, o pensamento pondera, pensa o significado da problematicidade do acontecimento. E acontecimentos, como pensavam os estoicos, não são corpos, mas são os incorporais, são efeitos, e não coisas ou estado-de-coisas.

E uma vez que o pensamento está fora de ordem, deve-se então concluir, com os gregos e com Arendt, “que pensar significa seguir uma sequência de raciocínios que eleva aquele que pensa a um ponto de vista exterior ao mundo das aparências e à sua própria vida”. Num mundo que é caos, como acreditava Nietzsche, ou absurdo, como pensavam Schopenhauer, Camus e Cioran, não podemos  recusar um fato que torna nossa condição humana desconcertante e assombrosa. Como diz Lya Luft, “o mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem”. Guardarmo-nos de acreditar que o mundo tem, em si mesmo, alguma ordem, alguma finalidade, algum sentido metafísico é já  começar a libertar-se daquele “tranquilo desespero” habitual que acostumou a maioria dos homens a não reconhecer que, como diz Cioran, “apenas tem convicções aquele que nada aprofundou”. E digo eu: aquele que nada pensou realmente.

 

É chegado o tempo de represar o fluxo verbal, evitando, assim, o esgotamento das forças do espírito e do corpo. Já posso sentir insinuar-se o gosto acre da desolação, da frustração por não ter conseguido externar os meus outros tantos declives e outras tantas nuances de minhas inquietudes, aflições, angústias, que tingem de nervura e coloração rubra os subterrâneos de minha alma. Este texto deveria ter sido destinado para falar de reminiscências, para acordar o poeta adormecido em mim, o poeta que um dia cuidei ser. Era para ser destinado à reflexão sobre a condição dos excluídos – condição esta da qual faço parte há oito anos-, dos que foram forçosamente postos à margem pela tirania do Capital e pela inaptidão da política para controlar a voracidade e os abusos do mercado. Como escreve Viviane Forrester, “um desempregado, hoje, não é mais objeto de uma marginalização provisória, ocasional, que atinge apenas alguns setores; agora, ele está às voltas com uma implosão geral, com um fenômeno comparável a tempestades, ciclones e tornados, que não visam ninguém em particular, mas aos quais ninguém pode resistir. Ele é objeto de uma lógica planetária que supõe a supressão daquilo que se chama trabalho; vale dizer, empregos.” Publicado, originalmente, em francês em 1996, este texto é bastante atual; mas quem se surpreender com sua atualidade é que não entende nada de capitalismo. Onde o capitalismo estendeu suas presas dilacerantes dificilmente nascerá igualdade e justiça. Mas fiquemos aqui com Pessoa, que nos legou esta nota de sabedoria: “Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento”. Ao que podemos acrescentar, citando Clarice Lispector: “viver é luxo”.