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quarta-feira, 28 de agosto de 2013

"A gramática emerge do uso da língua; ela se constrói nesse uso e se revela na dinâmica da língua em uso" (BAR)

                                   



                       A gramática que não aprendemos
                                     Redescobrindo os fatos
                                           
  PARTE 1

Já se contam quase dez anos, desde que eu me diplomei em Letras; desde então, o curso de minha vida acadêmica não cessou. Da graduação para o mestrado, deste para uma especialização em Português como segunda língua para estrangeiros; e desta para o doutorado cujo encerramento se aproxima, não houve intervalos. Ao longo desse período, não só meu repertório de saberes teóricos se ampliou, mas também meu olhar sobre a língua/linguagem tornou-se mais apurado. A paixão pelo estudo da linguagem continua a mesma, exceto pelo fato de estar mais madura. Os apaixonados são suscetíveis de se decepcionar. As salas de aula decepcionam, muitas vezes. As frustrações põem-nos um freio aos nossos deslumbramentos acadêmicos. Acho que acontece com quase todos que optam pela carreira acadêmica: depois de anos de estudo, deixamos as salas de aula ansiosos por aplicar nossos conhecimentos em outras salas de aula. Se não ocorrer que apareça alguém que nos advirta, saberemos, por experiência própria, que nem tudo que aprendemos na universidade é imediatamente aplicável na prática pedagógica. Há coisas que pertencem apenas ao universo teórico ou ao universo dos especialistas, não se prestando a uma pragmatização pedagógica. Mas não nego que a sólida formação teórico-metodológica do professor é indispensável e desejável para que seu trabalho em sala de aula seja tanto mais eficiente quanto proveitoso para os estudantes.
Ao longo de toda a minha formação acadêmica, uma questão persistente em minhas meditações sobre a linguagem e com a qual me debato incessantemente é a que diz respeito ao modo como ainda se ensina português em nossas escolas. Inquieta-me, especialmente, a manifestação do preconceito linguístico, tão arraigado em nossa cultura, mas largamente ignorado pela maioria esmagadora da população brasileira. Enfada-me o dar-me conta da insistência com que as pessoas policiam o comportamento linguístico umas das outras. Infelizmente, o senso comum de nossa sociedade reduz o fenômeno linguístico a simples questões sobre o equivocadamente chamado uso correto da língua. Decerto, essa tradição tem uma longuíssima história, da qual já me ocupei em um de meus textos e que não retomarei aqui, porquanto o tema deste texto é outro. Antes de atacá-lo diretamente, gostaria de dizer algumas palavras mais sobre a realidade do ensino de língua materna. Cinjo-me a destacar aí o modo como nossos alunos vêem a gramática. Não os culpo por isso; na verdade, se eles a veem desta forma, é porque é assim que ela lhes é apresentada. Então, eles a veem como uma disciplina que abriga lições sobre a estrutura e funcionamento da língua, tomada em si e por si mesma (isto é, sem vincular-se a contextos reais de uso) e lições sobre as regras do “bom uso da língua”. Há, pois, duas atitudes básicas que norteiam o ensino da língua (que acaba reduzido, deve-se frisar, ao ensino da gramática): uma descritivo-formalista e outra normativo-prescritivista. Essas atitudes são, evidentemente, assumidas pelo professor, quando trabalha a gramática com a única preocupação de ensinar nomenclaturas, descrever a estruturação e funcionamento interno das unidades linguísticas, em geral, apresentadas em frases descontextualizadas e, ao mesmo tempo, quando se dedica a ensinar as formas de uso de prestígio, por exemplo, a forma “correta” de fazer concordar o verbo com seu sujeito (cf. nenhuma das pessoas foi encontrada), a forma “correta” de ligar o verbo ao seu complemento (ir ao cinema, preferir alguma coisa a outra coisa...), etc.
Permito-me uma digressão. Recentemente, com a oficialização do Novo Acordo Ortográfico (na verdade, nem tão novo assim), muito por força da mídia, ganhou força a crença de que, com a unificação da ortografia, o português sofreria uma mudança. Clara está a confusão comum de língua, que é uma realidade primordialmente oral, que varia e muda, sem que, para tanto, seja necessária qualquer medida legislativa, com ortografia. A língua não se presta à mudança por meio de leis, acordos ou decretos. A variação e mudança são fenômenos inerentes a todas as línguas do mundo. As línguas variam e mudam no tempo e no espaço, e isso acontece, em última instância, porque são faladas por seres humanos em sociedades cujas condições também variam e mudam. As línguas variam e mudam para atender às diversas necessidades, igualmente mutáveis, dos seres humanos que as falam. Não é necessário muito esforço ou instrumentalização teórica para que nos apercebamos de que o português falado aqui no Brasil congrega usos bastante variados. Não se fala do mesmo modo na cidade do Rio de Janeiro e no Ceará ou no Rio Grande do Sul, por exemplo. Mesmo dentro de um mesmo território, a língua varia entre as comunidades de fala. Que fique bem claro: o fato de, por exemplo, deixarmos de grafar o trema não significa que houve uma mudança na estrutura e funcionamento da língua portuguesa. Certamente, o português mudou e prosseguirá com o seu destino irrefreável, que é a mudança incessante. Ele varia e continuará variando, tendo em conta as formas como ele é usado. A ortografia é um fato de escrita, resultante de uma convenção garantida por lei e passível de ser modificada por decreto assinado pelo Presidente da República; mas a língua, enquanto realidade comunicativa que se expressa, originalmente, como fala, não pode ser alterada por meio de dispositivos legais de qualquer tipo. Espero que eu tenha conseguido desfazer a confusão, que se acha na origem daquela crença, entre a ortografia, que é um sistema artificial de regras para grafar corretamente as palavras, e a língua, que é um sistema de comunicação, produto da faculdade natural da linguagem, cujo domínio de realização é, por excelência, a oralidade.

       Voltando a considerar o ensino de gramática, quero, pois, reforçar a ideia de que as pessoas, em geral, concebem gramática como um conjunto de regras para o bem falar e escrever. É esse o sentido que se deduz de expressões como “cometer pecados contra a gramática”, “cometer erros gramaticais”, “desrespeitar a gramática”, etc. Sem ter consciência disso, o senso comum reproduz a concepção de gramática cujo desdobramento remonta ao trabalho dos gramáticos alexandrinos do século III a.C, qual seja, a de uma disciplina que fornece as normas que devem ser seguidas por todos os falantes que pretendam expressar-se numa variedade linguística socialmente prestigiada. Nesse sentido, o conceito de gramática se limita ao seu caráter normativo.
Não obstante, a gramática é um componente da língua, ou melhor, é o próprio sistema de regras da língua. Mas não das regras de uma das variedades da língua apenas, mas das regras que governam a estruturação e o funcionamento das unidades linguísticas no sistema como um todo. Embora, para usar uma língua, não seja bastante apenas o conhecimento da gramática dessa língua, o seu uso o pressupõe. Assim, embora não seja suficiente apenas o domínio da gramática do inglês para falar essa língua, o seu uso pressupõe esse domínio. Para falar inglês, eu preciso dominar o sistema de regras que me permite construir enunciados em inglês.
A gramática, portanto, é o sistema de regras e princípios que governa a construção dos arranjos linguísticos. Ela é o mecanismo organizacional da língua. Ela compreende os (sub)sistemas sintático, morfológico e fonológico. A definição que propus exclui do domínio da gramática a semântica e as unidades linguísticas (morfemas, palavras, orações, frases). Trata-se de uma decisão que satisfaz propósitos situados e que não pretende representar uma “verdade” aceita por todos os especialistas. Há quem inclua a semântica no domínio da gramática, bem como as unidades linguísticas. Outros excluem da gramática a fonologia, em virtude de  restringirem aquela às unidades significativas, que são abrigadas pelo domínio morfossintático. Na visão desses estudiosos, a gramática se identifica com a morfossintaxe.
Deixando de lado pormenores teóricos, importante é perceber que é a gramática que nos fornece as instruções para produzir um enunciado como (1):

(1) Os brasileiros falam português.

Considerado o domínio fonológico, a gramática nos diz, entre outras coisas, que toda sílaba em português é constituída de uma vogal. A gramática do português não permite que haja sílabas destituídas de vogal. A vogal é o elemento central e básico da sílaba. Sílabas há que se constituem apenas de uma vogal, como em “abade” (a-ba-de). A gramática também é responsável por estabelecer padrões silábicos, de modo que uma estrutura como “CVC” (consoante-vogal-consoante) é prevista pelo sistema da língua portuguesa, como se observa em “car-ta”. Por outro lado, a gramática do português não autoriza o uso inicial do /s/ desacompanhado de uma vogal. No inglês, temos “spring” (pulo), mas, em português, temos “escada” (mas não “*scada”). Em “escada”, sabemos que “es” forma uma sílaba, mas não “sc” ou “esca”.
Do ponto de vista morfológico, marcamos o plural do substantivo e dos seus determinantes com “-s” ou com uma das variantes “es”, “is” (cf.  mares, papéis). O verbo “falar”, na terceira pessoa do plural, nas variedades de prestígio, recebem um “-m”. Do ponto de vista sintático, a gramática da variedade de prestígio do português instrui-nos a concordar o verbo em número e pessoa com o sujeito (cf. Eles falam). De modo mais geral, a gramática determina princípios de estruturação que são mais rígidos, no sentido de que não autorizam variação. Por exemplo, em (1), aceitamos a precedência do artigo ao substantivo, donde a aceitabilidade de “os brasileiros”. Mas uma sequência como “brasileiros os” não se verifica em nenhuma variedade da língua portuguesa. A gramática faz restrições quanto às combinatórias possíveis no interior do sintagma nominal. Assim, por exemplo, o artigo admite a combinação com o numeral, que lhe vem posposto, como em “os três rapazes”, mas não “*três os rapazes” (o asterisco indica agramaticalidade). O uso do artigo é incompatível com o do pronome demonstrativo no sintagma. A seleção de um implica a exclusão do outro. A gramática do português autoriza as construções “os rapazes” ou “estes rapazes”, mas não nos permite produzir “*os estes rapazes” ou “*estes os rapazes”. A impossibilidade da co-ocorrência do artigo com o demonstrativo parece estar ligada à função semântico-pragmática dessas formas. Mas eu não vou explorar essa questão aqui.
Preciso dizer que o projeto deste texto era mais ambicioso do que o está sendo sua realização. Antes de me por a escrevê-lo, detive-me a estudar para sistematizar uma série de conhecimentos acerca do papel e importância da linguagem na própria existência do homem como ser social. Meu intento era demonstrar como o estudo da linguagem pode ser interessante e fascinante, certamente mais interessante do que a forma como ele se desenvolve em nossas salas de aula. Como eu não pretenda enfadar meu leitor, visto que, se eu cumprisse totalmente com o projeto, a extensão desse texto ultrapassaria os limites da conveniência, deixarei para tratar da questão sobre o papel que desempenha a linguagem na existência do homem num outro texto. Por ora, limito-me a observar que a língua ou linguagem (não faço distinção aqui) é muito mais do que um instrumento de comunicação. É para rejeitar essa visão instrumentalista da linguagem que planejei, inicialmente, escrever este texto. Mas adiarei a realização desse intento, reservando, para tanto, outro texto. A esse outro texto, destinarei questões atinentes à relação entre linguagem e cultura, entre linguagem e realidade, entre linguagem e cognição. Nesse texto, também apresentarei, em linhas gerais, os interesses e postulados da chamada Linguística Cognitiva.
Antes de levar a cabo esta exposição, proponho que consideremos a seguinte questão, que não parece encontrar oportunidade para ser explorada em nossas salas de aula. Por que formamos palavras? Sabemos que o português dispõe de vários processos formação de palavras. Uma grande parte da aquisição do vocabulário de uma língua depende da capacidade que temos de por em prática os mecanismos que nos permitem derivar novas palavras a partir de palavras previamente existentes no léxico da língua. Assim, com base na palavra “real” formamos a “realizar”, pelo acréscimo do sufixo “-izar”. Já “realizar” serve de base para a formação de “realização”, pelo acréscimo de “-ção”. Retomemos a pergunta: por que formamos palavras? As duas primeiras razões podem ser formuladas da seguinte forma:

1. Formamos uma palavra nova para poder aproveitar o significado de uma palavra já existente;

2. Formamos uma nova palavra para a usarmos num ambiente sintático que exige uma classe gramatical diferente.

Uma das razões por que formamos uma nova palavra baseia-se no reconhecimento da função sintática a que serve essa operação. Assim, temos “X realizou Y”, em que o verbo “realizar” estabelece uma relação entre “X” e “Y”, na qual “X” é o agente e “Y” o resultado ou objeto da ação de realizar. Sabemos que os verbos denotam ação, processos, eventos ou estados e sabemos que eles são as formas, particularmente, apropriadas para realizar a predicação. Na predicação, devemos distinguir dois planos ou domínios: um sintático, o qual encerra a aplicação de propriedades a termos (essa relação é estabelecida pelo verbo); outro semântico, no qual se instaura um “estado-de-coisas”, que constitui uma representação linguístico-cognitiva de uma ‘cena’ do mundo, no interior da qual os participantes desempenham determinados papéis semânticos. A predicação realiza um estado-de-coisas. Por exemplo, o verbo “comprar” estabelece uma estrutura relacional (predicação) que prevê dois elementos obrigatórios: X (agente) e Y (objeto). Podemos formalizá-la como se segue: X comprar Y. Essa estrutura assume uma representação ou atualiza um estado-de-coisas que pode ter a forma de “Meu tio comprou um carro novo”. Essa frase descreve um “mundo” em que uma entidade “meu tio” realiza um tipo de ação (comprar) que implica a aquisição de um objeto (“um carro novo”). Estou simplificando a descrição. Importa ver que o significado do verbo prevê uma estrutura de predicação, que representa um “estado-de-coisas”.
Sucede que, nos verbos, a denotação é indissociável da predicação. Assim, “comprar” tanto denota um tipo de ação, como representa essa ação na forma de uma predicação, de uma relação entre termos ou propriedades que está prevista na própria significação desse verbo.
Vamos considerar os casos abaixo:

(2) O furacão devastou a cidade.
(3) A devastação da cidade (pelo furacão) foi terrível.

Observamos que, em (2), usamos o verbo “devastar”; e, em (3), a forma derivada “devastação”.  Produzimos “devastação” em virtude das exigências sintáticas que se depreende do uso dessa forma. Em outras palavras, notamos que, em (2), a forma verbal prevê dois espaços que são preenchidos por “o furacão” e “a cidade”: X devastou Y. Além dessa exigência, o verbo descreve uma ação que se representa relativamente a dois participantes. Essa ação é situada no tempo. Os dois participantes são “o furacão”, que é o ‘desencadeador’ da ação; e “a cidade”, que é o ‘objeto afetado’. Cognitivamente, o verbo “devastar” descreve uma ação ou evento, situada no tempo, na qual um participante modifica intensa e completamente a forma do outro.
O verbo “devastar” não admite a não-ocorrência de qualquer um dos elementos que o acompanham, como se vê em:

(4) *Devastou a cidade.
(5) *O furacão devastou.

Para aproveitarmos o significado de “devastar” num ambiente sintático como o de (6), necessário se faz transformar essa forma verbal num substantivo correspondente:

(6) DET____ do SN...

Leiamos: DET, determinante, e SN, sintagma nominal.

(6) pode integrar a estrutura complexa de (6a):

(6a) A devastação da cidade     (pelo furacão) foi terrível.
         DET  _____       deSN

Naquele ambiente sintático, não caberia a forma verbal:

(6b) *O/A devastar da cidade...

O uso do infinitivo poderia ocorrer desacompanhado do pré-determinante, caracterizando uma situação intermediária:

(6c) Depredar o patrimônio público é crime.
(cf. Vândalos depredaram o patrimônio público)

No entanto, mesmo com o infinitivo, o agente pode ser inferido. É notável o fato de que a forma nominalizada (devastação) é destituída das exigências relacionais previstas pelo verbo. Ou seja, enquanto o verbo requer a presença dois elementos X e Y, a forma “devastação” não os exige, embora os admita. Senão, vejamos:

(7) A devastação (da cidade) (pelo furacão) foi terrível.
    A devastação foi terrível.

As duas razões por que derivamos “devastação” de “devastar” foram aqui ilustradas. Por um lado, sentimos a necessidade de aproveitar o significado do verbo “devastar” para efeito de denotação (para denotar uma ação ou evento). Por outro lado, verificamos que o ambiente sintático faz exigências quanto à forma da palavra que deve preenchê-lo. Nesse caso, foi preciso adequar a forma verbal a um ambiente sintático que exige um substantivo.
Uma terceira razão por que formamos palavras se liga à necessidade de recuperarmos, por referência anafórica, o significado de uma proposição anterior. Veja-se o exemplo abaixo:

(8) O governo resolveu cortar os gastos com a saúde pública. A resolução desagradou especialmente os que mais precisam dos hospitais públicos, ou seja, a maioria da população brasileira.

A forma “resolução”, formada pelo acréscimo de “-ção” ao verbo “resolver”, “encapsula” toda a proposição precedente e sublinhada.

É preciso notar que ilustramos as razões por que formamos novas palavras tomando como referência o processo de formação de substantivos a partir de verbos. Nesse caso, há derivação com mudança de classe gramatical.
É claro que também formamos palavras para acrescentar à base um novo significado, caso em que não se verifica mudança de classe gramatical. Por exemplo, podemos derivar substantivos de substantivos, pelo acréscimo de “-inho” (livro/livrinho; casa/casinha; caneta/ canetinha).
Todas as razões apontadas aqui para formar novas palavras podem ser consideradas de segunda ordem, se comparadas com a principal razão por que formamos palavras, qual seja, evitar a sobrecarga da memória. O mecanismo da língua sempre busca atingir o máximo de eficiência, o que aumenta sua flexibilidade, seu dinamismo, com o mínimo de esforço. É essa flexibilidade que nos disponibiliza um grande número de unidades básicas de comunicação, sem que, para delas nos servir, precisemos sobrecarregar nossa memória com esses elementos. Os processos de formação de palavras permite-nos ampliar nosso repertório de recursos de expressão com base num material lexical já disponível, pelo acréscimo de unidades que constituem um conjunto limitado, sem que precisemos criar uma nova palavra a cada nova necessidade de comunicação.
Finalmente, acrescento que as formações em “-ção” são mais produtivas, seguidas das formas em “-mento”. Isso se deve especialmente ao fato de esses sufixos serem destituídos de especificação semântica, que acabaria por restringir as possibilidades de combinação deles com diferentes bases. O sufixo “-ção” é muito produtivo com formas terminadas em “-izar”. Dão testemunho dessa alta produtividade as formas atuais “tucanização”, “mexicanização”, “favelização”, “dolarização”. O sufixo “-mento” também é produtivo, especialmente se comparado com a baixa produtividade do sufixo “-da”. As formações deverbais em “-da” (saída, entrada, chegada, partida) são, via de regra, menos produtivas, em virtude de resultarem de verbos de movimento. Essa especificação explica seu baixo potencial produtivo.
No entanto, formações em “-da” são largamente usadas nas variedades menos prestigiadas do português, indicando, geralmente, atenuação da ação do verbo, caso em que “-da” se usa com verbos-suporte, geralmente “dar”. Vejam-se os exemplos abaixo:

(9) dar uma saída/ dar uma passada/ dar uma lida/ dar uma estudada/ dar uma enxugada


                  
                                        




terça-feira, 1 de março de 2011

O ensino de língua portuguesa numa orientação funcionalista


O ensino de língua materna tem como objetivo precípuo (senão único) desenvolver a competência comunicativa dos falantes; no entanto, esse objetivo não pode ser atingido sem o reconhecimento de que todos os falantes nativos, independentemente de seu grau de escolaridade, de sua classe social, da origem cultural, de suas experiência de mundo, de sua idade, sexo, etnia, etc., sabem a sua língua materna, ou seja, possuem uma competência nessa língua. Por competência lingüística, portanto, entende-se o conhecimento intuitivo e implícito das regras gramaticais pelas quais os falantes nativos são capazes de produzir e interpretar sentenças em sua língua materna. Evidentemente, é uma definição simplista ademais, já que o conhecimento lingüístico é, decerto, muito mais complexo; todavia, mantenho-a com estar de acordo com a proposição chomskyana (1965). Fique claro que o conhecimento lingüístico do falante nativo consiste não só num conhecimento operacional (“capacidade de produção de sentenças gramaticais”), mas também num conhecimento avaliativo, por que julga certas construções como aceitáveis (isto é, produzidas de acordo com as regras da gramática1 de sua língua nativa) e rejeitam outras.

1. Veja-se no texto seguinte uma discussão sobre os conceitos de gramática.


A competência comunicativa consiste não só na capacidade de o falante codificar e decodificar as expressões lingüísticas, como também na capacidade de utilizar essas expressões de modo adequado aos fins comunicativos, nas mais diversas situações de interação. Destarte, não basta ao falante o conhecimento (implícito) das regras de sua língua para que ele seja bem-sucedido nas várias situações comunicativas, ele precisa utilizar suas produções lingüísticas de sorte, que possa participar do evento comunicativo. Em suma, dispensando-se pormenores, a competência comunicativa é a capacidade de o falante utilizar sua língua adequadamente para fins comunicativos. Com ser a língua um instrumento de comunicação fundamental na vida dos homens, cujo uso reflete, inclusive, a estratificação social, justo é que o ensino de língua portuguesa leve em conta o domínio da norma padrão como um dos meios possíveis para que o falante seja bem-sucedido interacionalmente e não o único meio  possível.
Intentando cumprir o objetivo do ensino de língua materna, proposto no limiar deste texto, será necessário ter em conta que não se poderá privar os aprendizes da apropriação de formas e usos lingüísticos prestigiosos sócio-culturalmente e, tampouco, não se poderá ensinar a língua dita padrão, especialmente em sua modalidade escrita, em detrimento de variedades não-padrão da língua falada ( e também escrita – muito embora, tradicionalmente, associe-se a idéia de língua padrão à de língua escrita, ignorando o fato de que há textos escritos vazados em variedades não-padrão, bem como há textos falados vazados em variedades padrão). O professor, concordante com a proposição aqui apresentada, esforçar-se-á por permitir aos alunos o acesso ao maior número de variedades lingüísticas possível, bem como a utilização adequada delas nas diversas situações de interação, atendendo às diversas demandas sócio-comunicativas.
Reitere-se que a escola tem por objetivo permitir o acesso dos aprendizes à norma padrão, mas, consoante propõem estudiosos como Sírio Possenti, Marcos Bagno, entre outros, não mais ensinará um padrão de língua ideal, fazendo abstração de outras variedades. Em primeiro lugar, o professor terá de reconhecer que muitas formas e usos prescritos pelas gramáticas normativas são arcaicos, portanto, não encontram repercussão no uso atual da língua. Em segundo lugar, não poderá valorizar a variedade padrão em detrimento das variedades não-padrão. Também não poderá ignorar o fato de os pontos de vista dos gramáticos serem, muita vez, conflitantes, isto é, as interpretações sobre as construções que devem ser recobertas pela norma padrão, muita vez, são divergentes.
A competência textual diz respeito à capacidade de o usuário da língua distinguir um texto coerente de um aglomerado de frase, bem como à capacidade de ele operar sobre o material lingüístico, na produção dos seus textos, realizando operações de paráfrase, resumo, ou reconhecendo a completude ou incompletude deles, ou ainda atribuindo-lhes um título adequado, a partir do qual os produz.
Há que reconhecer outrossim outras capacidades que intervêm no uso que os falantes nativos fazem de sua língua. Citem-se as seguintes:

a) a capacidade epistêmica: capacidade pela qual o usuário constrói, conserva e explora uma base de conhecimento estruturado, podendo derivar conhecimento das expressões lingüísticas, arquivar adequadamente esse conhecimento e lançar mão dele quando da interpretação de expressões lingüísticas ulteriores;
b) a capacidade lógica: valendo-se de princípios lógicos, ou seja, do raciocínio, o falante é capaz de extrair parcelas de conhecimentos de outras parcelas de conhecimento que mantém em sua memória;
c) a capacidade perceptual: o usuário se vale de suas percepções para derivar conhecimento; o conhecimento adquirido pela aplicação de sua capacidade perceptual é empregado para interpretar as expressões lingüísticas;
d) a capacidade social: diz respeito ao saber sócio-culturalmente transmitido graças ao qual o falante usa sua língua de acordo com as normas sócio-comunicativas vigentes. Ou seja, o falante sabe o que dizer e como dizer, numa determinada situação de interação.




  Tais capacidades se inter-relacionam, do que decorre a produção de um output, que pode ser importante para que as demais capacidades possam atuar.
Reconheça-se, contudo, que, a fim de levar a efeito o objetivo fundamental do ensino de língua portuguesa a falantes nativos – a saber, desenvolver a competência comunicativa desses falantes -, o professor deverá ter em conta uma outra concepção de língua, ou seja, não poderá entender apenas a língua como um sistema de signos desvinculado da realidade sócio-cultural e histórica dos seus falantes e também como “algo” estranho a eles (a saber, como uma realidade que desconhecem, que lhes é tão “misteriosa” e que deve ser “aprendida” mediante prática de exercitação contínua e exaustiva no ensino formal). O professor deve, portanto, ter em conta que a língua é um produto sócio-cultural, que varia ao longo da história de uma sociedade, que acompanha e se adapta às condições materiais e espirituais de vida dessa sociedade, que serve, entre outras funções, à função comunicativa, ou seja, permite aos membros de uma sociedade a comunicação entre si, etc. A rigor, numa perspectiva funcionalista, o professor deve entender a língua como lugar de interação, atividade social de negociação de significados, mediante a produção de textos, na qual se envolvem interactantes situados social e culturalmente. Ademais, o professor deve considerar a língua como uma propriedade cognitiva, como um conhecimento “inscrito” na mente humana e, mais propriamente, deve encarar a linguagem como uma faculdade da mente que permite aos seres humanos interpretar e estruturar a realidade do mundo, tornando-a ‘dado’ de consciência. Assim é que cada língua refletiria, a priori, uma dada visão de mundo, ou seja, deixaria entrever uma codificação (ou “recorte”) peculiar do mundo relativamente a um determinado grupo sócio-cultural. Assim também é correto dizer que o estudo das línguas pode contribuir para se entender melhor como se estrutura e funciona a mente humana. Disso se segue uma fascinante discussão sobre a inter-relação entre pensamento e linguagem, da qual não me ocuparei aqui, muito embora, como desperte bastante interesse nos estudiosos da linguagem (filósofos, gramáticos e lingüistas) há séculos, deve-se tê-la sempre em conta. Dessa questão tem-se ocupado especialmente a lingüística cognitiva.
Do exposto desse último parágrafo, depreende-se que deve estar consciente o professor de português da variação lingüística, a saber, deve ter em conta a pluralidade e diversidade inerente às línguas. Sabe-se, há muito, que o português constitui um “balaio de variedades lingüísticas”; não existe, pois, uma só língua portuguesa no Brasil. No Brasil, falam-se muitas variedades de língua portuguesa, e não há razões empíricas para a hierarquização dessas variedades, segundo parâmetros avaliativos de espécie alguma: certas formas e usos lingüísticos são considerados “ruins” ou “errados”, em virtude de uma avaliação de ordem social (e ideológica); a sociedade é que, servindo-se de parâmetros de ordem diversa (e não-lingüística!), classificam certas expressões lingüísticas como “certas” ou “cultas” e outras como “erradas”, “ruins” ou “incultas”. É consabido que, especialmente na realidade sócio-cultural brasileira, há uma relação intrínseca entre usos lingüísticos e inserção social: os usos lingüísticos desprestigiados e condenados relacionam-se às classes menos favorecidas economicamente; e os usos prestigiosos constituem marcas das classes mais prestigiosas, isto é, dominantes. Nesse tocante, diz-se, comumente, que a língua é um fator de estratificação social.
No tocante ao conceito de variação lingüística, convém ao professor familiarizar-se com as noções de registro e de dialeto.  Luiz Carlos Travaglia, em seu livro Gramática e Interação: uma proposta para o ensino de gramática (2003), reserva um capítulo em que nos apresenta uma lição sobre variação lingüística. À página 42, refere os dois tipos de variedades lingüísticas, a saber, os dialetos e os registros. Os dialetos são variedades da língua que se definem nas dimensões territorial, geográfico (ou regional) e social (nesse caso, chamam-se socioletos) e se dão em função dos usuários da língua. Os registros, a seu turno, são variedades que ocorrem em função do uso que se faz da língua, de tal sorte que a variação depende do receptor, da mensagem e da situação. Assim é que, ao se referir ao falar nordestino em face ao falar sulista, por exemplo, consideram-se, pois, dois dialetos diferentes. Da mesma sorte, quando se observa o comportamento verbal de uma determinada classe social, em contraste com o comportamento verbal de outra classe social, leva-se em conta a existência de dois dialetos sociais ou socioletos. A variação aqui ocorre em função da esfera sócio-cultural ocupada pelos usuários da língua. A gíria, por exemplo, que se define como um uso da língua próprio de um grupo social – uso por que esse grupo social se identifica e por que se “protege” da influência de outros grupos – constitui um tipo de dialeto social. No âmbito social, a variação pode dar-se em função de parâmetros como idade, sexo e função dos usuários da língua.
No tocante aos registros, importa considerar três tipos de registros: grau de formalismo, modo e sintonia. O grau de formalismo diz respeito à adequação do emprego das expressões lingüísticas às diferentes situações de interação, para atender às necessidades sócio-comunicativas esperadas. Há, pois, no grau de formalismo, uma escala de formalidade que se estende do registro familiar ao registro oratório, na modalidade oral, e do registro pessoal ao hiperformal, na modalidade escrita. A variação de modo diz respeito à oposição entre língua falada e língua escrita, de tal sorte que esta é entendida como um sistema específico, diferente do sistema da língua falada. A sitonia é um tipo de registro que orienta o uso para o ajustamento ou reformulação dos textos produzidos pelo falante, em virtude de ter em conta conhecimentos prévios sobre o seu interlocutor. Esses conhecimentos relacionam-se ao status social do interlocutor, o qual determina a seleção e o emprego dos recursos lingüísticos (não se fala com um garçom da mesma forma como se fala com um médico, por exemplo); à tecnicidade dos conhecimentos do interlocutor acerca de um determinado assunto (o professor de língua falará sobre um determinado assunto de modo diferente, caso esteja em uma conferência perante especialistas ou esteja em presença dos pais de seus alunos, etc.); à cortesia, que diz respeito à dignidade do interlocutor ou ao formalismo exigido pela situação. Por exemplo, num enterro, espera-se que alguém diga algo como (1), mas não como (2) e (3):

(1) Meus sentimentos pelo falecimento de seu marido.
(2) Meus sentimentos por seu marido ter batido as botas.
(3) Então, quer dizer que o velho abotoou o paletó de madeira?

Finalmente, cumpre mencionar a variação na dimensão da norma, que se refere ao uso lingüístico em consonância com um padrão de linguagem de prestígio. Nesse tocante, ao nos comunicarmos, tendemos a apreciar de modo positivo ou negativo as produções lingüísticas de nosso interlocutor. Consoante ensina Travaglia (2003:57), “usamos uma determinada variedade lingüística porque a julgamos apropriada para falar com aquele(s) ouvinte(s) em particular”. Essa variedade pode ser social, geográfica ou um registro técnico, cortês, etc.
Claro está que a exposição apresentada aqui do conceito de variação lingüística e de suas variedades é bastante sucinta; conveniente, contudo, para efeito de nossa proposição. Cumpre dizer, por fim, que o conceito de dialeto difere do conceito de registro, na medida em que este se refere à suposta influência do interlocutor na seleção e no uso dos recursos lingüísticos adequados a satisfazer às necessidades sócio-comunicativas em uma determinada situação, e aquele se refere ao uso da língua pelo falante, numa esfera geográfica, regional ou social. Os termos registro e variedade são empregados, normalmente, para denotar o mesmo conceito; variedade, muita vez, vale por dialeto. Comumente lê-se “dialeto regional”, “dialeto social” em face de “variedade regional” ou “variedade social”, etc.
Em que pese à confluência terminológica, convém ter em conta o seguinte conceito de variedade, colhido da obra Sociolingüística: uma introdução crítica (2002: 177):
“ sistema de expressão lingüística que pode ser identificado pelo cruzamento de variáveis lingüísticas (fonéticas, morfológicas, sintáticas, etc.) e de variáveis sociais (idade, sexo, região de origem, grau de escolarização, etc.)”.