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domingo, 25 de setembro de 2016

"E que importância pode ter o fato de eu me atormentar, sofrer e pensar?" (Cioran)

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Eu e minha orientação filosófica

“Não tem que nos doer a transitoriedade das coisas terrestres ou a inexistência das celestes. Que tudo esteja destinado a perecer, que tudo seja vão e fugaz, que tudo careça absolutamente de valor e consistência, isso só pode nos provocar desgosto”.

(Cioran)


1. Primeiras palavras

“A filosofia – escreve Sponville – nada mais é do que a vida tentando se pensar”[1]. Mas que vida é esta – devemos perguntar – que se esforça por pensar a si mesma? Não se trata, naturalmente, da vida em geral, porque a vida se objetiva em organismos incapazes da experiência de pensamento. Somente uma forma de vida é capaz de se voltar reflexivamente sobre a própria vida: a vida humana. A filosofia é, então, o próprio modo de ser da vida humana que se exterioriza como questionamento sobre o que é isto: a existência. Ao afirmar que a filosofia não é outra coisa senão a vida se pensando a si mesma, Sponville nos chama a atenção para a relação intrínseca entre filosofia e vida. Por isso, mesmo que encontremos, na tradição, filósofos elaborando um pensamento que parece divorciado da vida, eles não deixaram de se ocupar, de alguma maneira, das dimensões do problema do viver. O que me interessa aqui não é tanto demonstrar a indissociabilidade entre filosofia e vida, mas elucidar o que entendo por vida à luz de minha orientação filosófica, cujas bases teóricas cumpre-me dar a conhecer ao leitor. Esclarecerei, em tempo, o que entendo por orientação filosófica.
Uma vez que este texto se destina à exposição das bases teóricas que dão corpo e sustentação a minha orientação filosófica, não estarei preocupado em justificar o conjunto de pontos de vista que a estruturam. Não estarei preocupado em examinar o conteúdo e as implicações de cada ponto de vista aduzido. Pretendo apenas lançar luzes sobre o caminho para o qual me sinto fisiologicamente arrastado na constituição de minha experiência filosófica de mundo.
Pensar filosoficamente a vida é ser tomado por uma experiência de viver que se realiza para além da ordem do viver comum. Como eu aceite a visão de filosofia de Pierre Hadot, segundo a qual a filosofia é exercício espiritual destinado a cunhar modos de ser, de tal modo que a filosofia é ela mesma um modo de vida, uma maneira de viver (ao menos é assim que, na opinião de Hadot, a filosofia antiga era experienciada)[2], não posso recusar-me de assumir que o exercitar-se na filosofia é apropriar-se de um modo específico de ser e viver, que difere radicalmente do modo de ser e viver do homem da cotidianidade mediana. A experiência com o pensamento filosófico funda um modo próprio de ser, metamorfoseia o eu daquele que se entrega a tal experiência.
Em consonância com a visão de Michel Henri, segundo a qual “a vida se sente, se experimenta a si mesma” e “a essência da vida reside na autoafecção”, assumo que a vida é fazer uma experiência contínua de si. Ao viver, o indivíduo vive-se numa relação de afecção com o mundo. Vivendo-se, o indivíduo se experiencia num movimento de autoconstituição que será expressão de certo modo de ser afetado fisiologicamente pelo caráter deveniente da vida. Portanto, não se trata aqui de pensar a vida como mero processo biológico que partilhamos com outras formas orgânicas, mas de assumir a vida como uma experiência singular do caráter deveniente do mundo sob o modo como somos afetados por esse caráter. Vida é vida que se sente. Por conseguinte, minha orientação filosófica é consequência de certo modo como eu sou afetado pelo caráter deveniente do mundo, como eu experiencio em mim a dinâmica da vida na condição de Dasein. Minha inclinação a um ou outro filósofo, a uma ou outra questão filosófica, enfim, a uma ou outra orientação filosófica é determinada, em última instância, pelo modo como sou afetado pelo caráter deveniente da vida.
Outra maneira de compreender a vida, que toma parte da constituição de minha orientação filosófica, encontro na pena de Schopenhauer, para quem a vida pode ser vista como um grande sonho. Tanto o sonho como a vida, nota ele, começam de improviso e, muitas vezes, terminam do mesmo modo. A dinâmica do viver se representa na consciência humana como uma sucessão de presentes, cada um dos quais não sendo senão signos da impermanência de nossas experiências. Este ponto que grafo marca o fim de um instante presente que dá lugar a outro instante presente que, no entanto, findará ao terminar de escrever este parágrafo.
Entendo, pois, por orientação filosófica um sistema de compreensão do mundo que, sendo, na verdade, expressão de uma cosmovisão, que se forma pela articulação de ideias, crenças, percepções, sentimentos e valores, orienta o indivíduo que a ela adere em suas relações com os outros e com a totalidade do mundo. A orientação filosófica expressa uma percepção profunda e totalizante do real. Seu aspecto teórico é indissociável de seu aspecto prático, no sentido de que, por ser uma orientação subsidiada pela contemplação filosófica do mundo, a orientação filosófica dá forma a um modo de ser, de pensar e de agir no mundo. Ela vai influenciar decisivamente nas nossas possibilidades de poder-ser. A adesão a uma orientação filosófica tem o peso de um compromisso com nosso ser mais próprio, de tal modo que assumi-la é expor-se a possibilidades sempre já dadas de conflito com outros modos de ser dos outros Daseins com os quais nos relacionamos. Aderir a uma orientação filosófica é fazer a experiência de ser fiel a si mesmo, tão cara a Nietzsche e condição indispensável ao autêntico exercício da filosofia. Deve-se assumi-la como a um destino, mesmo sob o preço da solidão. O filósofo não deve ter a pretensão de agradar a ninguém, de dizer aquilo que os outros querem ouvir, para isso existem os padres.



        2. As três grandes perspectivas de minha orientação filosófica

Minha orientação filosófica combina entre si três grandes pontos de vista, que são, ao mesmo tempo, consequência do modo como sou afetado pelo mundo e expressão da maneira como experiencio fisiologicamente o real.

1ª perspectiva: uma filosofia do desespero, que se assenta na renúncia à crença numa instância suprassensível, à qual se atribui o estatuto de fundamento do real. Essa filosofia insta-nos a querer apenas o real, a afirmar a vida com tudo aquilo que nela há de contradição, dor e sofrimento.

2ª perspectiva: uma filosofia da crueldade do real, que mantém ser a dor e o sofrimento inerentes à dinâmica da constituição da vida.

3ª perspectiva: uma filosofia de combate, que ataca, sem concessão, todas as narrativas, as doutrinas, as ideologias, os sistemas filosóficos que, afinados com uma pretensão messiânica, criam ídolos e/ou valores transcendentes que passam a dominar os homens, tornando-os escravos de suas crenças e de seu fanatismo. Uma filosofia de combate ataca todas as formas de idolatria que estão na origem dos atos atrozes, os quais  constituem o curso da história.

Da perspectiva 1, segue-se que:

a) Tudo que existe está destinado a perecer; o ser se reduz às aparências;

b) Tudo é vão e fugaz, e carece absolutamente de valor;

c) Eu sou um ser contingente, isto é, não necessário; todos os esforços, a labuta, os empreendimentos humanos são atravessados por uma radical nulidade e insignificância;

d) A vida é desprovida de sentido absoluto ou metafísico, e só se conserva como fenômeno irracional.  “Não sei por que vivo – escreve Cioran – e por que não cesso de viver (...) a chave provavelmente reside no fenômeno da irracionalidade da vida, que faz com que ela se mantenha sem motivo”.

e) O mundo e o homem existem sob o modo de uma absurdidade radical; tudo é gratuito. Tudo é desprovido de razão ou necessidade. O mundo se dá como contingência radical, e eu mesmo me apreendo como um ser igualmente contingente;

f) Nada do que existe está destinado a durar; tudo flui. O passado e o futuro não passam de abstrações da consciência; o presente é o próprio real, é a instância das aparências fugidias.

Da perspectiva 2, segue-se que:

a) viver é sofrer; nascer é começar a morrer;

b) a vida se desenvolve como um processo contínuo de geração e destruição implacável de organismos sem qualquer finalidade;

c) A felicidade positiva é uma quimera; só a dor é real (Schopenhauer);

d) A morte é constitutiva da dinâmica do viver e, no caso da vida humana, é constitutiva do modo próprio de ser do homem (finitude);

Somente a vontade cega e irracional pode explicar a razão por que a maioria dos homens preserva a sua existência. Essa vontade os impulsiona a buscar insaciavelmente o prazer que, no entanto, é débil, raro e efêmero. Por isso, estou de acordo com Schopenhauer, ao afirmar que “viver feliz somente pode ter o sentido de viver menos infeliz possível, ou, em poucas palavras, de viver de maneira suportável”.[3]

Da perspectiva 3, segue-se que a filosofia hoje deve se afirmar como filosofia da suspeita, dando novo vigor a um ceticismo engajado que se preocupe em questionar as bases sobre as quais se mantêm os impérios da crença que ameaçam as liberdades individuais e coletivas. À luz dessa filosofia de combate, a história é desprovida de qualquer sentido ou finalidade. Ela não é mais do que o desenrolar de acontecimentos em cujo curso os homens contendem para usufruir do poder e para perpetuar-se nele. A história não é mais do que a luta incessante entre os homens pela dominação sobre o próprio destino da humanidade. O homem é um fantoche daquilo que criou. Ele é um ser delirante: há nele uma força obscura que o impulsiona a aderir a uma verdade que se impõe pelo desejo de poder e de dominação.
Uma filosofia de combate se insurge contra toda pretensão (política, ideológica, filosófica, teológica) de melhoramento do homem; pretensão esta em cujo cerne repousa a crença no sentido da história e na possibilidade de progresso de toda a humanidade. Como advoga Cioran, a história não passa de uma sucessão de massacres. A história se desdobra na forma de enredos que abrigam promessas de felicidade e crimes inevitáveis. O homem, assim, ilude-se ao acreditar que ele é autor da história. Na verdade, é a história que o domina, que o abala, que faz dele um joguete do insolúvel e do intolerável. À proporção que se vão tramando os acontecimentos históricos, os homens vão-se neles enredando como uma presa que em vão tenta escapar da teia onde se encontra e onde seu destino será decidido.
Uma filosofia do desespero mantém que a morte é o nada absoluto ao qual o homem está destinado tão logo nasce. Mas, acompanhando de perto a lição de Heidegger, não precisa ela reduzir a morte ao estado definitivo e irremediável do homem. A morte deve ser pensada relativamente à finitude do Dasein. A finitude do Dasein recobre tanto a morte quanto a destinação do ser em sua abertura constitutiva. No horizonte da morte, a finitude diz respeito ao poder não mais ser do Dasein. Sendo a possibilidade mais própria do Dasein, a morte é um acontecimento sempre iminente em sua existência. Na medida em que o Dasein é um ser-para-a-morte, ele precisa lidar com a transitoriedade própria de suas possibilidades de ser. Nessa lida com suas possibilidades de ser, o real nunca se dá ao Dasein definitivamente, mas sempre limitado pelas suas possibilidades de ser e pelo movimento intrínseco de realização dessas possibilidades de ser. A morte é constitutiva do poder ser que o Dasein sempre é. A morte já está sempre dada como possível irrupção na vida fática do Dasein. Ela é seu poder não mais ser sempre iminente em sua existência.



          3. Uma filosofia ateísta
3.1. O acontecimento da morte de Deus

Uma filosofia do desespero é, necessariamente, uma filosofia ateísta. Ela deve assumir as consequências do acontecimento histórico da morte de Deus.
Para que se compreenda a semanticidade do acontecimento da morte de Deus, sem incorrer no equívoco de lê-la restritivamente como o anúncio da ruína da crença na existência do Deus cristão, devemos ter em conta o que nos diz Nietzsche sobre o conceito de Deus cristão, em Crepúsculo dos Ídolos (2006, p. 27). Escreve Nietzsche: “Todos os valores mais altos são de primeira ordem, todos os conceitos mais elevados, o ser, o incondicionado, o bem, o verdadeiro, o perfeito (...) são subsumidos “pelo estupendo conceito de Deus”. Portanto, Deus é o conceito que abarca todos os conceitos que, forjados na tradição ocidental, dizem respeito ao mundo suprassensível ou meta-empírico. Destarte, a morte de Deus significa, em suma, que o mundo supra-sensível esvaziou-se de sua força e poder de atuação sobre a vida e sobre as formas como o homem (pós)moderno dela se apropria enquanto autoafecção.
Deter-me-ei no esclarecimento da significatividade do acontecimento da morte de Deus anunciado por Nietzsche. Primeiramente, devemos ter em conta que, ao anunciar a morte de Deus, Nietzsche tinha vista o Deus teísta, que é o Deus metafísico cristão. Mas a morte de Deus não pretende significar que Deus não existe; trata-se, na verdade, de dessignificá-lo alijando dele sua base metafísica. A fim de que compreendamos o que significa dizer que Deus está morto, devemos, primeiramente, entender o modo como Deus foi compreendido pela tradição metafísico-cristã. Ora, Deus é o fundamento metafísico supremo do real; é fonte que legitima o comportamento humano; é a instância metafísica doadora de sentido à existência humana. Deus é o princípio de sustentação de tudo que é e, ao mesmo tempo, princípio de inteligibilidade última de todo ente. Deus é a unidade fundante da totalidade. Quais são, pois, os desdobramentos da morte de Deus? A morte de Deus significa:

1) a dissolução da metafísica e de seu poder de estruturação do pensamento e dos comportamentos do homem ocidental;

2) a crise dos sistemas dicotômicos de explicação do mundo, em cujo horizonte um dos elementos da dicotomia funcionava como princípio fundador e legitimador do outro (p. ex., ser x devir; essência x aparência, suprassensível x sensível, etc.).

3) a impossibilidade de pensar em instâncias metafísicas transcendentes como razões últimas do devir. Não há nenhuma realidade transcendente ao devir, a qual seria uma instância garantidora de sentido ao próprio devir.

Em suma, “a morte de Deus dissolve as metanarrativas metafísicas em geral”(Cabral, 2015, p. 68)[4].
O Deus cristão significa o suprassensível por excelência; é fonte criadora e fim de tudo e de todos os entes, sem, no entanto, submeter-se ao devir. O Deus cristão, na condição de criador, transcende toda a criação. Na medida em que esse Deus é uma forma monossêmica de constituição do divino, o significado cristão de Deus determinará a constituição de um corpo vital e condicionará um modo específico de ser do homem e do mundo. O acontecimento histórico da morte de Deus, exaurindo o monossemantismo do Deus metafísico-cristão, destrancará outros modos de ser possíveis. O que seria, então, sentir a vida na contemporaneidade que assiste à consumação do acontecimento da morte de Deus? É experienciar o sentimento de acosmia, ou seja, de pleno abandono num universo vasto, escuro e indiferente, onde não é possível mais encontrar qualquer fonte de sentido último para a existência humana e do próprio mundo; é também, ao menos para os que não buscam mais subterfúgios para escapar ao desespero total que se abre com a tomada de consciência de sua condição insignificante na imensidão cósmica, enfrentar o problema que consiste em explicar por que preferir uma existência absurda ao suicídio. Trata-se do maior problema que a filosofia pós-nietzscheana, ou a filosofia que se pretende ainda necessária em nossa época, deve enfrentar: o problema do suicídio, a que Camus aludiu como o único problema filosófico, deveras, sério. Este é o problema para cujo enfrentamento fui despertado à medida que se me tornava clara minha orientação filosófica. Posso dizer, tendo percorrido ainda um curto caminho da vida e da filosofia, que meu interesse pela filosofia resume-se no enfrentamento deste inquietante problema: por que preferir uma existência sem sentido e marcada profundamente por dores e sofrimentos injustificáveis, cujo início se deu sem razão e cujo fim se dará necessariamente num momento que ignoramos, ao suicídio?


           4. O amor

“Sem o amor, a existência de uma pessoa se mantém dramaticamente incompleta” (Leandro Konder)
Um dos meus temas favoritos para os quais dirijo o vigor de meu espírito é o amor. Sempre que topo com um livro que aborda seriamente – digo, filosófica, sociológica, antropológica, cientificamente – o assunto, procuro comprá-lo, com o interesse de me tornar um pouco menos vulnerável às suas ilusões. Intelectualmente, estou ciente das ilusões a que o estado de apaixonamento amoroso nos expõe, o que não significa que, na prática, eu não me deixe seduzir por elas. Tanto mais que, depois de uma decepção amorosa costumeira, dou-me conta de que me encontrava novamente como uma presa de seus tentáculos.
No que toca aos perigos a que somos expostos na experiência do amor-paixão, refiro apenas dois trechos, colhidos da obra Amor – um sentimento desordenado (2012), de Richard D. Precht. O primeiro trecho é o seguinte: “tudo que imaginamos saber sobre o amor é uma ideia sem um lugar real fora de nossa fantasia.” (p. 253). Nesse trecho, o autor nos adverte sobre o fato de que muitas de nossas representações da experiência amorosa são produtos da fantasia. Por exemplo, a ideia de que o amor é uma experiência de fusão com o outro, de unidade é simplesmente sintoma do desejo, sem que ela mesma tenha algum apoio empírico. O segundo trecho é o seguinte: “o amor não pode ser refutado, apenas decepcionado”. Nesse trecho, somos instados à compreensão de que, apesar de estarmos, na maioria das vezes, enredados em ilusões que produzimos sobre o amor e o amado, quando estamos tomados de amor, a própria experiência de amor não é, necessariamente, algo irreal, passível de ser falseada. O amor nos amarra às suas ilusões, mas nem por isso deixa de ser uma experiência fisiologicamente real e que, por ser real, tende a nos decepcionar.
A experiência amorosa de nossa era líquido-moderna, objeto de reflexão do sociólogo Zygmunt Bauman, pode ser descrita resumidamente na seguinte passagem de Precht: “o amor promove hoje relacionamentos que continuamente são desfeitos de modo unilateral. Se o céu se torna o inferno, podemos romper o vínculo”. (p. 254).
Considerando o que até então já li a respeito do amor, estou convencido de 1) que a pior ameaça ao amor é o ideal e 2) que o amor é um bem tão elevado que não devemos exigir muito dele o tempo todo.
Antes de encerrar, quero, no entanto, externar minha compreensão do amor à luz da visão trágica da vida.
O pensamento trágico, porque afirmador do acaso e do não-ser, segundo Rosset (1989), pensa o real, a vida, como uma experiência dotada de todas as características da festa: “irrupções inesperadas, excepcionais, não sobrevindo senão uma vez e que não se pode apreender senão uma vez”. (p. 127).[5] As ocasiões tanto da vida quanto da festa se dão em um tempo, em um lugar, para uma pessoa. O sabor dessas ocasiões é único, jamais repetível, o que torna cada instante da vida, consoante Rosset, repleto das características da festa, do jogo e do júbilo. Fruir a vida, destarte, depende de que nos apropriemos do kairós, ou seja, que reconheçamos o momento oportuno, o único possível que devemos saber fruir, aproveitar e gozar.
Ora, se a vida se experiencia também sob a dinâmica dos encontros fortuitos, de ocasiões que se nos abrem à fruição por acaso (já que não há Providência e o curso das coisas, portanto, não está predeterminado), a experiência do amor é ela mesma marcada pela gratuidade dos encontros imprevistos, indeterminados, que se dão no próprio movimento da autoexperimentação do viver, o qual carece de uma razão de ser. O acontecimento do amor se torna, portanto, mais importante quanto mais cientes estamos de sua gratuidade, tanto mais dispostos estamos a aceitar o fato de que o amor não nos é um direito que possamos reclamar, que o amor, como todo acontecimento da dinâmica do viver, é uma experiência da ordem do acaso; que não temos, por isso, garantia nenhuma de que o fruiremos. Jogados no mundo com a única garantia de nossa morte inevitável, o encontro amoroso, quando realizado, é suficiente para dividir a humanidade em dois grupos: o dos desgraçadamente felizes e o dos desgraçadamente infelizes. Mas o amor tanto quanto o grau de desgraça que acomete os homens é questão de sorte. Ao nascerem, todos os homens se tornam merecedores de uma única coisa apenas: o túmulo.




[1] COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 129.
[2] HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: Realizações Editora, 2014.
[3] SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ser feliz.  São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 60.
[4] CABRAL, Alexandre M. Morte e ressurreição dos deuses: ensaio de crítica ao monótono-teísmo metafísico-cristão. Rio de Janeiro: Viavérita, 2015.
[5] ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.
                                                                                     

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

"Toda existência é trágica na medida em que ela é vivida antes de ser pensada" (Rosset)

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             O trágico como anticonceito filosófico
            Prelúdios de uma sabedoria trágica


Explicar, do latim explicare (‘tornar inteligível’, ‘interpretar’, ‘justificar’) – esta é a tarefa a que me devoto com o intento de oferecer-me não só a oportunidade de alguma fruição de prazer mais gratificante, porque prolongado, como também reanimar o diálogo, prematuramente interrompido, com um colega que, tanto quanto eu, aprecia o curso criativo das conversações filosóficas.  É imprescindível dizer que este meu texto não pretende ser expressão de qualquer ensinamento. Cuido-me capaz de ensinar alguma coisa apenas na área do conhecimento em que me especializei e em que, portanto, obtive uma competência satisfatória. Não obstante, nesse domínio, estou continuamente aprendendo, visto que, no exercício do ensino, há sempre aprendizagem. Segue-se daí que ensinar é aprender não só o conteúdo ensinável, mas também aprender a ensinar o que é passível de ser ensinado.
Estando claro que nada posso ensinar, no domínio da filosofia (sobretudo, porque a filosofia não é ensinável), espero, portanto, que meu principal interlocutor, ao dar-se o trabalho de ler este texto, tome-o como um espaço necessariamente dialógico. Com a produção deste texto, ao longo da qual pretendo explicar minha escolha filosófica – meu modo de viver – espero descerrar um horizonte à luz do qual diálogos ulteriores possam ser possíveis e fecundos.
O momento em que se deu o estancamento do fio dialógico que dava consistência ao intercurso de nossas reflexões foi justamente o momento em que meu interlocutor rejeitou o caráter trágico da existência. A conversa foi entabulada com o meu interesse de consultar meu interlocutor sobre o proveito do exercício filosófico. Toda resposta que se elabore na tentativa de demonstrar que há algum valor neste exercício, ou que dele se pode extrair um proveito que não encontra par em qualquer outra forma de reflexão/ atividade pressupõe uma concepção do que é filosofia. A questão “o que é filosofia” é ela mesma problematizada pela própria filosofia; e são inúmeras as respostas oferecidas a ela. E todo aquele que se aproxima da filosofia, que a ela dedica seu tempo e sua atenção, terá, mais cedo ou mais tarde, de prestar esclarecimentos sobre o que entende por filosofia. Quero dizer que o exercício filosófico começa por uma compreensão das respostas oferecidas pela tradição à questão “o que é filosofia” num processo que envolve discussão das respostas e adoção por parte do iniciado na filosofia de uma concepção de filosofia (que não significa, necessariamente, mera apropriação) com base na qual uma forma de elaboração de pensamento filosófico que lhe seja própria possa ser trazida à luz.
Parece-me que é parte da maturidade filosófica de quem exercita a filosofia e se exercita, enquanto existente, na filosofia, a escolha de uma orientação filosófica que melhor testemunhará seu modo de viver. O filósofo não é apenas aquele que pensa e constrói sistemas; mas é, em essência, aquele que sabe viver e morrer em consonância com o seu sistema. Por conseguinte, o exercício da reflexão filosófica, a atividade própria do filósofo, se caracteriza, fundamentalmente, por uma perfeita harmonia entre o seu sistema de ideias e seu sistema de vida. Para os antigos, a filosofia é um modo de ser, uma escolha de vida. Originalmente, portanto, a filosofia é uma prática de vida destinada a cunhar modos de ser. Aos colegas que junto a mim se dedicam ao estudo acadêmico da filosofia, faço, pois, um apelo para que não se esqueçam jamais do vínculo necessário entre filosofia e modo de viver, para que, atendendo à recomendação de Aristóteles, experienciem a atividade filosófica como um exercício que se deve estender por toda a vida. Apelo, finalmente, para que não duvidem, por um instante sequer, de que a prática da filosofia visa à transformação radical do eu de quem a ela se dedica; no exercício filosófico, não só nossa visão de mundo se transforma, mas também é nossa personalidade que se metamorfoseia.
Evidentemente, a escolha a que não se deve esquivar aquele que pretende viver uma vida filosófica não é possível senão depois do contato com certo conjunto de orientações filosóficas. O contato com essas diversas orientações filosóficas é parte do estudo acadêmico da filosofia. Os estudantes de filosofia só poderão (talvez a maioria) escolher a orientação que melhor expressa uma coerência com seu modo de viver após ter entrado em contato com as diversas orientações filosóficas ao longo do curso de filosofia. Não só após o contato com elas; mas, sobretudo, após o convívio aturado com elas fora da sala de aula.
A escolha de uma orientação filosófica por quem se dedica ao exercício da filosofia constitui uma questão cujos desdobramentos interessam à própria filosofia. Sua pertinência deverá ficar aqui, no entanto, apenas sugerida e ensombrecida, porquanto não é sobre ela que estendo minha preocupação neste texto. Malgrado a necessidade de abandonar a questão, neste estágio de minhas reflexões, não posso silenciar sobre o fato de que meu encontro com a filosofia, que se deu há dez anos, quando do ingresso no mestrado em Estudos da Linguagem na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), foi e continua sendo profundamente marcado pelo lugar de tangência entre a filosofia trágica e a filosofia pessimista.
No esforço por reinstituir um espaço dialógico com meu interlocutor, devo preveni-lo de que a exposição que faço do tema do trágico como elemento caracterizador de uma orientação filosófica, denominada de filosofia trágica se desenvolverá não sem fraturas no tratamento das questões implicadas na compreensão da filosofia trágica. Ademais, a cada vez em que dou um investimento verbal à abordagem do tema, instauram-se, por força da natureza da linguagem, espaços de silenciamentos. Tal é a condição fundante da própria possibilidade de haver sentidos. Por maior que seja a extensão de um texto, por mais exaustivo que seja o tratamento dispensado a um objeto de pensamento, jamais é possível esgotar as possibilidades de dizer, de significar, de produzir sentidos. Será forçoso esclarecer a questão da significatividade do silêncio, por ora, apenas entrevista ao me referir à condição fundante da possibilidade de sentidos. O tema as formas do silêncio é desenvolvido no interior dos estudos da Análise do Discurso pela analista do discurso brasileira Eni Pucinelli Orlandi. Não obstante a limitação ao domínio do discurso, o modo como o tema se desenvolve mobiliza um exercício de pensamento claramente filosófico. Não reside nisso, contudo, o meu interesse por considerá-lo; se o faço, é porque pretendo demonstrar quão ilusória a crença em que, ao dizer, esgotamos as possibilidades de outros dizeres, de outros sentidos. Terminada esta etapa de minha exposição, atacarei o problema que consiste em precisar o que se entende por trágico quando se defende, filosoficamente, a posição segundo a qual a condição de todo ente, particularmente e de modo especial, do ente humano é uma condição trágica. A discussão desse problema envolverá a necessidade de definir a extensão semântica da palavra trágico e a de esclarecer o que faz de um pensamento filosófico um pensamento trágico. Creio em que a suspensão do diálogo com meu colega e interlocutor se deveu menos ao fato de ele ter rejeitado ser a existência constitutivamente trágica do que à suposição nossa de que estávamos de acordo no tocante ao significado da palavra trágico no contexto de nosso diálogo. Não só ele parecia assumir, de antemão, o conteúdo semântico de trágico, como também eu não dispunha das condições necessárias para iluminá-lo, para o que seria indispensável fazer alguma digressão que, possivelmente, nos distanciaria do escopo de nossas reflexões. Numa conversa informal, tal digressão não teria como consequência senão estorvar os próprios participantes.

1. As formas do silêncio

Todo dizer é expressão de uma relação necessária com o não-dizer. Há uma dimensão de silêncio que remete ao caráter da incompletude da linguagem. A incompletude da linguagem se prende ao reconhecimento:
a) da errância dos sentidos (a sua migração);
b) da vontade de um (da unidade, do sentido fixo); do lugar do non sense, o equívoco.

A incompletude da linguagem é o lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível. Portanto, a errância dos sentidos, a vontade de unidade, do sentido fixo, o lugar do non sense, o equívoco e a própria incompletude da linguagem (para a qual voltarei olhares mais adiante, a fim defini-la melhor) estão no cerne do funcionamento da linguagem.
Em seu As formas do silêncio (2007), Orlandi escreve: “As palavras transpiram silêncio” (p. 12). Há, pois, silêncio nas palavras. O silêncio é fundante: ele funda a possibilidade de sentido. O silêncio é um lugar de recuo onde se pode significar, a partir do qual o sentido faz sentido. Novamente, ouçamos Orlandi:

“O silêncio como horizonte, como imanência do sentido (...) aponta-nos que o fora da linguagem não é o nada mas ainda sentido” (p. 13).


O silêncio, pensado em sua historicidade constitutiva, não é ausência de som, mas é um acontecimento que atravessa as palavras, que existe entre elas, que indica que o sentido pode ser sempre outro. As palavras produzem silêncio; o silêncio “fala”; as palavras silenciam (p. 14).
O silêncio garante o movimento de sentidos. Dizemos sempre a partir do silêncio. Cada palavra enunciada “apaga” necessariamente outras palavras. Isso se dá porque o silêncio também é constitutivo do dizer. Assim, observa Orlandi

“O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à interpretação: tudo tem de fazer sentido (qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico” (p. 29-30).


Portanto, o silêncio não é falta. A linguagem é excesso. O silêncio não fala simplesmente; ele significa. No silêncio, o sentido é. (p. 32).

“A linguagem é conjunção significante da existência e é produzida pelo homem para domesticar a significação” (ib.id.).


O silêncio é disperso, e a fala o segmenta, o estrutura. O silêncio é o que torna possível a significação, todo dizer. O silêncio é presença, é “o elemento místico” (Wittgenstein). O sentido do silêncio não deriva do sentido das palavras. Nem o sentido, nem a linguagem são transparentes.
Não se pode não significar. O silêncio se relaciona, necessariamente, com a significação, e a linguagem é o movimento incessante das palavras para o silêncio e do silêncio para as palavras. É necessário insistir em que as palavras estão carregadas de silêncio. Por um lado, não podemos suprimir das palavras o silêncio; por outro lado, não podemos recuperar o silêncio só pela verbalização.
Por fim, retomando-se a noção de incompletude da linguagem, reitere-se que a incompletude é uma característica fundamental da linguagem. O fenômeno da incompletude da linguagem recobre a) o fato de serem diversas as formas de manifestação da linguagem; b) o fato de que o sentido está sempre em aberto; c) o fato de que o texto é multifuncional enquanto objeto simbólico. A incompletude repousa no fato de que o dizer é aberto. A crença numa “palavra final” é efeito de uma ilusão. O dizer não tem um início verificável; e o sentido toma múltiplas direções; está sempre em curso. A incompletude da linguagem decorre, portanto, do fato de que a própria linguagem é categorização dos sentidos do silêncio; é um modo de domesticá-los.
A linguagem também é opaca. A opacidade da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem interpretação. A opacidade ou não-transparência da linguagem consiste também na propriedade de o sentido poder ser sempre outro.
Tendo em vista o exposto, ao procurar aqui dizer o trágico jamais posso ter a pretensão de dizer tudo. Ademais, estando eu preocupado  tão-só em fixar-lhe um horizonte semântico mais preciso, a consideração que dele farei será marcada por fraturas, por rupturas, por saltos que se evitariam num tratamento que se pretendesse minucioso e articulado.

2. O filósofo trágico não é um pessimista

Filósofos como Lucrécio, Montaigne, Pascal e Nietzsche são reconhecidos como filósofos trágicos. A primeira questão que se nos apresenta ao sugerir a possibilidade de uma filosofia trágica consiste em definir o que significa tragédia. Sabe-se que tragédia é um gênero de expressão artística, particularmente marcante na história do teatro. No domínio da arte, a tragédia, segundo alguns teóricos, não recobre apenas adversidades, sofrimentos, iniqüidades, mas, principalmente, uma corajosa resistência ao destino. A tragédia deve, pois, expressar a reação a um evento, e não apenas o evento fatídico em si. Para alguns teóricos, a tragédia começa com a arte, que a vida imita. Com o tempo, o significado da tragédia foi estendido do domínio da arte para a vida, restando aqui um eco da arte, o qual foi silenciado quando a tragédia passou a caracterizar o modo de configuração da própria vida. Atualmente, para a maioria das pessoas, tragédia significa uma ocorrência da vida, caracterizada por dor, sofrimento, infelicidade injustificáveis. Isso, no entanto, não impede vários teóricos de argumentar que, na vida real, não existe tragédia, com base no pressuposto, deveras criticável, segundo o qual, na tragédia, enquanto manifestação artística, é sempre possível revelar o valor que a destruição libera. Segunda essa perspectiva, o sofrimento da vida real é passivo, horrível e indigno; ao contrário, na arte trágica, o sofrimento traz o selo do esplendor heróico da resistência, razão por que a arte é dotada de uma gratificação que falta à vida. Essa perspectiva buscará nos convencer, por exemplo, de que o Holocausto não foi uma tragédia, mas a morte da tragédia. No entanto, assentada na crença de que a tragédia se define por uma resistência heróica às condições adversas, essa perspectiva trai a si mesma, no momento em que não reconhece o fato de que houve uma heróica resistência de alguns judeus ao nazismo; além disso, certamente, muitas pessoas lutam bravamente contra enchentes, doenças, invalidez, genocídio, etc.
Não se pode ignorar o fato de que, a despeito da discrepância entre a tragédia como arte e a tragédia como modo de configuração da vida, grande parte das obras de arte trágica se construiu por meio da suposição segundo a qual a tragédia parece ser uma experiência real e não meramente um fenômeno estético.
Também não devemos perder de vista o fato de que a tragédia, de Hegel a Nietzsche, migrou para a especulação teórica. Desde então, a tragédia passou a ser uma Ideia majestosa, uma forma de contrailuminismo, uma teodiceia, mais do que uma questão de suplicio e aflição.
Na visão trágica de Nietzsche, por exemplo, o mundo é, essencialmente, caótico, ilegível, e o conhecimento trágico necessita da arte para tornar tolerável a própria existência. Esse conhecimento trágico supõe a percepção de que o mundo é desprovido de significado. No respeitante a Pascal, sua crítica ao racionalismo não é uma crítica à razão. Pascal não estava preocupado em denunciar os limites da razão. Na verdade, a crítica ao racionalismo levada a efeito por ele se orientou pelo interesse de fazer ver que o racionalismo deve sua impotência àquilo que se oferece à razão. O que se oferece à razão é, nota Pascal, irremediavelmente indiferente. Não se trata, portanto, para Pascal, de denunciar uma suposta fraqueza da razão, mas de demonstrar que o objeto da razão não é cognoscível. A razão, assim, está apta a conhecer, mas não se lhe apresenta nada para conhecer. A razão não pode pensar como uma natureza a existência, porque esta é uma não-natureza. Natureza aqui designa a constituição do ser cuja existência não resulta nem do acaso, nem da vontade humana. Natureza supõe uma totalidade ordenada. Pascal nega que haja tal totalidade ordenada; para ele, a existência não abriga qualquer razão oculta (lógos), nenhuma estrutura secreta, nenhum princípio do diverso inacessível ao conhecimento humano, em virtude de supostos limites da razão. À luz de tal perspectiva, nem as “verdades” nem os “erros” conduzem a alguma grande consequência filosófica. No tangente às primeiras, elas só acrescentam fatos a fatos; os erros, por sua vez, não estorvam nenhuma verdade. No seu livro Lógica do pior (1989), assinala Rosset:

“Se se busca o que resta de trágico nos cem mil mortos de Hiroxima após a intervenção da interpretação histórica, sociológica, política, militar, que resta? Cem mil mortos, ou seja, um morto como todos os mortos, algo de banal, de cotidiano, de silencioso, enfim, de trágico – desse trágico ao qual o espetáculo das maçãs no jardim convida já, de maneira mais imediata e simples. A morte em si mesma não é a priori trágica: não mais, em todo caso, do que a vida nem do que quer que seja, desde que esse algo resista à interpretação” (p. 65-66).


Esse trecho deve nos levar à compreensão de que o trágico está, por um lado, em toda parte, impregna a cotidianidade; e, por outro lado, é o próprio silêncio, ou seja, resiste a qualquer tentativa de interpretação. Ao se passar do silêncio para o pensamento do trágico, faz-se falar o trágico pela impossibilidade de interpretá-lo.
Considere-se a asserção que constitui o título desta seção: o filósofo trágico não é um pessimista.  É necessário reconhecer duas diferenças básicas entre uma filosofia trágica e uma filosofia pessimista. A primeira diferença diz respeito à suposição de que há “algo” (uma natureza ou o ser). O pessimista supõe que existe algo do qual afirma o caráter insatisfatório. O pessimismo filosófico baseia-se na afirmação do pior, a partir da suposição de uma certa ordem (natureza), de um certo sentido, cujo caráter incoerente não cessa de demonstrar. Para o filósofo pessimista, há uma totalidade ordenada que não pode ser legitimada. Há ordem, mas não há um “ordenador”. Donde se segue que a filosofia do “dado” (a filosofia pessimista) culmina com uma filosofia do absurdo.
Sabe-se que Schopenhauer, sendo um expoente da filosofia pessimista, procurou pensar o mundo por meio da postulação de um “dado”, que chamou de Vontade – uma Vontade cega, ilusória, repetindo-se mecanicamente. Embora desprovida de propósito, a Vontade permite superar o caos do mundo, a fim de lhe revelar sua ordem. Isso significa afastar do horizonte hermenêutico da filosofia pessimista o princípio do acaso.
O pensamento trágico, por sua vez, mantém que o que existe carece de “natureza”, de “ordem”, não é nem ser, nem objeto adequado de pensamento. Na filosofia trágica, não há a condição de possibilidade dos acontecimentos. Só há encontros, ocasiões, que não pressupõem jamais o recurso a qualquer princípio que transcende as perspectivas trágicas da inércia e do acaso. Por conseguinte, a filosofia do trágico é uma filosofia do acaso. O pensamento trágico afirma a insignificância radical de tudo que acontece. Aliás, o pensamento de Pascal, se examinado até as últimas consequências nos levará a uma verdade que se impõe irrecusável – “não sou um ser necessário”. Dizer que não sou um ser necessário significa reconhecer que eu, enquanto existente, poderia nunca ter existido. Em outras palavras, a minha existência não tem uma necessidade que me impede de sentir que eu poderia não ter existido. Não sou um ser necessário afirma correlativamente sou um ser contingente.
Cumpre ainda dizer – e, fazendo-o, silencio muita coisa -, que o pensamento trágico é aprobatório, embora não deixe de considerar o seu contrário, que é o suicídio. Aqui está a segunda diferença entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista: o pensamento trágico assente à existência; o pessimista, por outro lado, reconhecendo que a ordenação do mundo é má, não pode aprovar a existência.
A aprovação é o único ato disponível ao sujeito da ação, isto é, ao homem. Ou ele se solidariza com a sua viagem à semelhança de um passageiro de avião de uma grande empresa aérea, que não tem acesso aos comandos da direção (Pascal), ou a recusa pelo suicídio. No pensamento trágico, a aprovação é um privilégio justamente por seu caráter incompreensível e injustificável. O homem não carece de nada; e toda a alegria de viver é irracional. Essa alegria é experienciada no cotidiano sem que seja possível justificá-la. O homem é excesso; por isso o espanto do filósofo trágico: seu maravilhamento na alegria e na dor.
Não se deve estabelecer uma distinção absoluta entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista, se consideramos que tanto o primeiro quanto o segundo são duas lógicas do pior. Mas a lógica do pior de que é expressão o pensamento pessimista não tem relação com o pior da lógica trágica. No pensamento trágico, afirma-se a impossibilidade de um dado enquanto natureza constituída; no pensamento pessimista, há uma ordem já dada, reconhecida.
A título de conclusão, sem pressupor, no entanto, que esteja suficientemente esclarecida a significatividade da visão trágica da existência, insisto em que a verdade a que nos quer conduzir o pensamento trágico consiste em ver o mundo como obra do acaso ou do destino. Sendo obra do acaso, o mundo carece de uma natureza, isto é, de um princípio estruturador, ordenador, e a vida não é mais que um derivado, entre outros, da realidade fundamental da morte. É oportuno tornar clara uma relação que, embora aparentemente inusitada, elucida o horizonte a partir do qual o “drama ontológico” revelado pelo pensamento trágico é constitutivo da ideia de trágico. Trata-se de evidenciar a relação entre a festa e o trágico.
Em certo sentido, a relação entre a festa e o trágico pode ser estabelecida pelo fato de o pensamento trágico ser uma experiência filosófica de aprovação em função de uma busca do pior.  Ademais, essa relação se torna possível quando levamos em conta o acaso como regra de exceção e princípio da festa (Rosset, 1989, p. 129). Já no sentido que toca à constituição da própria lógica do pior, de que é expressão o pensamento trágico, a relação entre o trágico e a festa pode ser estabelecida se compreendemos que, sendo o mundo obra do acaso, se, por isso mesmo, o mundo carece de uma “natureza” (ou ser, essência), resta-nos senão viver num estado de indiferença em relação a tudo o que acontece e existe. Essa indiferença, contudo, não é a indiferença do tédio, estado em que esperamos o acaso com certeza, mas a indiferença que consiste em nada esperar, já que tudo é acaso. Indiferença da festa, portanto – se tudo é acaso, o mundo é uma festa. O mundo da festa é o mundo da exceção (ausência de regras ontologicamente fixadas). Nele, o acaso sobrevém sempre. Nele, o que acontece, o que existe apresenta as características da festa: irrupções inesperadas, excepcionais, irreproduzíveis; ocasiões que se apresentam uma única vez, num lugar e para uma pessoa. Ensinamento trágico: teoria do kairós (o tempo oportuno). Tudo que acontece deve ser apreendido no único momento possível. Cada instante vivido tem as características do jogo, da festa, do júbilo.
O pensamento trágico, como vimos, rejeitando a ideia de natureza, afirma ser o mundo obra do acaso. O acaso que tem em vista o pensamento trágico é o acaso original ou constituinte. O acaso é original porque recusa a ideia de natureza na origem de sua possibilidade, isto é, nesse caso, recusa a existência de uma natureza, a saber, uma totalidade ordenada, da qual irromperia, num tempo e lugar determinados, o acaso; ele é constituinte, porque é origem produtora de tudo que pode acontecer e que se reconhece sob o nome de natureza. O acaso original, portanto, é anterior a todas as formas de existência e impregna todo o modo de configuração vital.