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sexta-feira, 14 de setembro de 2012

"Apenas o conhecimento salva" (BAR)





O percurso da lucidez
Para a construção de uma consciência
emancipada da religião


 
Este texto é dedicado à exposição do percurso intelectual que todo aquele que esteja interessado no esclarecimento sobre os fatos e as bases ideológicas que tornam a tenacidade de suas crenças religiosas consequência do obscurecimento da consciência e da ignorância alimentada pelos outros significativos que estão na origem e no curso ininterrupto de nossa socialização (pais, avós, tios, professores, sacerdotes, etc) pode trilhar.  Decerto, as expressões “obscurecimento da consciência” e “ignorância” podem soar ofensivas a potenciais leitores cristãos deste blog; no entanto, em tempo, se verá que elas são apropriadas para expressar o efeito de um longo processo de formação de consciências dependentes engendrado pelos mecanismos doutrinários religiosos.
Aproveito o ensejo para apresentar o primeiro livro de nosso percurso, do professor e ex-sacerdote católico, Marcelo Da Luz – Onde a religião termina (2011). Nesta obra, o leitor encontrará uma série de temas implicados no fenômeno religioso, muito embora o autor destine suas críticas majoritariamente à tradição cristã, em especial ao catolicismo.  Entre os temas, se acham as falácias do discurso religioso, o antiuniversalismo das religiões, a delegação à autoridades religiosas da responsabilidade pela interpretação do mundo, o mito de Jesus Cristo, “Deus” encarnado, a santidade como ideal nocivo à vida humana.
Para que tenhamos a noção do quão invasivo é o trabalho de lapidação da consciência pela prática de doutrinação religiosa, vale atentar para o seguinte excerto colhido do capítulo terceiro, no qual Marcelo Da Luz trata do fenômeno a que ele chama “terceirização das escolhas existenciais”:

“Este autor, ex-pregador do evangelho, admite ter trabalhado ao modo de lavador de cérebros. Desde a catequese mais elementar até os enunciados prenhes de conteúdos teológico-espiritual, todo o trabalho do educador religioso consiste na progressiva instalação de sinapses neofóbicas em si e nos ouvintes. Formação religiosa é expressão a ser tomada literalmente: os indivíduos têm suas mentes presas à fôrma dos dogmas repetidos ad nauseam. Tal formação os impede de olharem para o fundo de si mesmos, sem medos, disfarces, escapismos, fantasias ou regressões infantis, e os transforma em robôs existenciais, cumpridores de ritos, repetidores de fórmulas e antagônicos a qualquer outra nova perspectiva.”

(p. 74)


Particularmente interessante é ver que o autor, em vários momentos, reconhece ter exercido o papel que ora trata de criticar – o que prova ser possível aos mais ferrenhos doutrinados a emancipação intelectual da religião, não sem antes superar uma série de fobias.  Ao se ocupar da natureza da consciência religiosa, o autor argumenta que ela é produzida para tornar-se infensa à argumentação (o que não surpreende, já que disso depende a sua conformação e obediência):

“A perspectiva antiuniversalista da consciência religiosa transforma-a num ser defensivo, cuja fortaleza não é o exercício argumentativo, mas a pseudossegurança do dogma. Uma desconcertante inversão ocorre no processamento mental do Homo religiosus: a crença (ideia a priori) e o símbolo substituem a experiência da realidade. Essa inversão é notória, por exemplo, na obsessão dos católicos pelos sacramentos, rituais em que os supostos símbolos da vida substituem o próprio viver. Desse modo, os religiosos passam a evitar uma série de oportunidades e experiências, levados pelo injustificável temor de ver os fatos contradizerem suas crenças sobre a realidade”.

(p. 178)
(grifo meu)

No tocante à natureza simbólica da religião, remeto o leitor ao livro de Rubem Alves O que é religião? (1999). Limito-me a notar que o símbolo pode recobrir outras formas sígnicas (como os signos linguísticos). No entanto, em stricto sensu, o símbolo é um objeto material ao qual se atribui uma ideia abstrata. É nesse sentido que ele foi empregado pelo autor. Assim, por exemplo, a cruz, no catolicismo, simboliza a “salvação” (pelo menos era esse o significado de que falava o padre durante a missa). Uma consulta no Dicionário de Símbolos  mostra-nos que as noções de “sofrimento” e “triunfo” estão entrelaçadas em sua simbologia. De qualquer modo, sempre achei indecoroso associar à cruz a ideia de “salvação” ou “triunfo”, por razões que não carecem ser explicitadas, pois óbvias. Os judeus, até onde eu sei, me parecem mais sensatos, ao associar à cruz a ideia de morte ou maldição. Decerto, a cruz é, na perspectiva dos judeus, um escândalo. Pode-se imaginar quão incompreensível é para um judeu a adoração de um homem pregado numa cruz.
Importa-me, a esta altura, fazer ver ao leitor que, uma vez tomando o símbolo o lugar das vivências da realidade, o crente religioso é envolvido numa atmosfera de fantasia. Assim, a hóstia e o sangue não apenas simbolizam, respectivamente, o corpo e o sangue de Cristo, mas são o próprio corpo e sangue de Cristo. Por fim, a ideia de que os fatos contradizem as crenças não é levada em conta pelos religiosos. E não é porque eles resistem a confrontar suas crenças com as ocorrências do real. No que toca à noção de crenças, particularmente, de crença religiosa, a contribuição de Sam Harris, em A morte da fé (2009), não pode ser ignorada. O autor destina um capítulo para tratar da “natureza da crença”. Nele, Harris definirá crença, à luz de uma abordagem neurocientífica. Leiamos, com atenção, o excerto em que o autor apresenta-nos a definição de crença:

“(...) parece incontestável afirmar que todos os estados de ordem cognitiva mais elevada (dos quais as crenças são um exemplo) são de certa forma derivados da nossa capacidade de ação. Em termos adaptativos, a crença foi extraordinariamente útil. Afinal, é acreditando em várias premissas sobre o mundo que podemos prever eventos e considerar as consequências prováveis de nossas ações. As crenças são princípios de ação: seja lá o que forem em termos cerebrais, elas são os processos pelos quais o nosso entendimento do mundo (seja correto ou equivocado) é representado e disponibilizado para orientar o nosso comportamento”.

(pp. 58-59)
(grifo meu)

Vale acompanhar a argumentação do autor que se orienta pela intenção de nos fazer entender, ao cabo, que as crenças religiosas não representam nenhum estado-de-coisas atestado no mundo. Assim, ao tratar das convicções, o autor nos ensina que “no momento em que admitimos que nossas convicções são tentativas de representar estados do mundo, percebemos que elas devem se relacionar corretamente com o mundo para serem válidas” (p. 71).
Que os seres humanos sejam resistentes a mudar de ideia, a assumir outras perspectivas contrárias às que vêm mantendo durante muito tempo é fato já reconhecido em psicologia e neurociência. Lembra Harris que “somos conservadores nas nossas convicções, no sentido de que não acrescentamos nem subtraímos algo do nosso estoque delas sem que haja razão para isso” (p. 69). Claro é que há pessoas que abandonam suas convicções ou crenças mais arraigadas, mas é preciso que se sintam motivadas a fazê-lo; é preciso que isso lhes represente algum benefício.
Harris prosseguirá nos mostrando que, epistemologicamente falando, toda crença ou convicção precisa representar o nosso saber a respeito do mundo, o que implica crer que uma afirmação seja verdadeira, mas crer na veracidade de uma afirmação não é o mesmo que desejar que ela seja verdadeira. E, como ensina Da Luz, não é porque desejo que seja verdadeira que ela será verdadeira.
Convém, agora, retomar a obra de Marcelo Da Luz.

Na seção intitulada de A indústria da dependência, ainda no capítulo terceiro, o autor refere-se às autoridades religiosas como “funcionários do sagrado” e delas no diz o seguinte:

“O funcionário do sagrado possui, supostamente, o conhecimento para se chegar à salvação, e por suas mãos passam os poderes de perdoar, abençoar, condenar e explicar, em nome de “Deus”, as vicissitudes da vida humana. Sequiosos, devotos acorrem à recepção dos serviços sagrados, garantia de salvação. Os planos estão já revelados, as interpretações oficiais, estabelecidas; os modelos a serem seguidos, disponíveis; os meios necessários, instituídos. Ao fiel basta aquiescer a essa ordem de coisas. Nesse esquema, o poder é exterior ao indivíduo, a salvação vem sempre de fora. O crente não tem outra opção senão terceirizar as escolhas existenciais”.
(ênfase minha)

(p. 79)


O leitor interessado na leitura deste livro tomará conhecimento dos bastidores da fé; das estratégias discursivas empregadas no esforço para manipular os fiéis e promover a “lavagem cerebral” em larga escala. E saliento, de passagem, que essa expressão, tão comumente usada nas conversações cotidianas, entre aqueles que se opõem às práticas adestradoras dos “funcionários do sagrado”, foi empregada pelo próprio autor. O livro constitui um cenário de muitas e diversas questões, uma das quais me parece notável e podemos apreendê-la no seguinte passo, em que Da Luz nos ensina sobre a invenção de Satanás:

“As primeiras gerações cristãs reconstruíram o conceito de Satã à imagem de seus principais inimigos: os judeus resistentes à crença em Jesus. Pouco mais tarde, o processo de demonização atingirá também os pagãos, em função da intolerância cristã em relação aos politeísmo e à liberdade de pensamento. Finalmente, Satã será encontrado entre os hereges – cristãos dissidentes cujas diferentes interpretações das mesmas crenças ameaçaram o poder dos clérigos politicamente mais fortes. Do ponto de vista histórico,  a aterrorizante figura do demônio – habitante permanente do imaginário medieval e ainda hoje base do apelo á força presente em muitos discursos cristãos – foi apenas produto da mente sectária, cujo funcionamento enxerga no outro, no diferente e no desconhecido, a ameaça do inimigo mortal”.

(pp. 183-184)
(ênfase no original)


Destaquei em negrito a expressão “do ponto de vista histórico” com a intenção de sinalizar para o fato de que o autor nos fornece uma explicação histórica para o surgimento da figura de Satã e  sua perpetuação no imaginário popular ainda hoje. Assim, a fantasia encontra arreio no real histórico e se despe da veste de “realidade trans-histórica”. Compreendida no âmbito histórico, a fantasia passa a ser plenamente explicável e compreensível. Ao final de cada capítulo, o autor nos oferece um “megaproblema” – a saber, uma questão inquietante sobre a qual ele nos convida a pensar. Destaco o megaproblema do último capítulo do livro (capítulo 17), por acreditar que ele expressa o essencial a respeito do Deus forjado pela tradição monoteísta ocidental:

“A ideia de “Deus” arquitetada pelas grandes religiões é sempre uma interpretação contaminada de antropomorfismos e anseios humanos a respeito da suposta causa primeira. A verdade quanto à identidade do princípio originário do Universo permanece inacessível à experiência terrestre da consciência. Tal verdade independe tanto dos desejos, sonhos e esperanças, quanto do número de crentes. O fato dos credos religiosos exercerem ostensiva influência sobre a vida das pessoas, infundindo-lhes consolo e alento em muitas situações, não os torna verdadeiros em si mesmos. A consolação traz alívio momentâneo, sob o preço do autoengano”.

(p. 351)

Preciso deter-me um pouco neste trecho. Vale notar, de início, que o autor rebaixa Deus à categoria de ‘ideia’, deixando de encará-lo como um ‘ser transcendente’ que pré-existe ao mundo e aos homens e  que os transcende. Deus é produto da mente humana. E nisso estaria de acordo Feuerbach. Aliás, é conhecida a tese do filósofo alemão, segundo a qual Deus não é senão a essência do homem projetada para fora de si. Deus é forjado na cisão do homem em si mesmo. Mais adiante, discorrerei um pouco sobre a contribuição de Feuerbach.
Para bilhões de pessoas no mundo, Deus é a chave do mistério da vida. No entanto, basta prestarmos atenção nos atributos que a definição de Deus encerra para que concluamos, sem muito esforço, que a ideia de Deus recobre a noção de um Ser superior a que se atribuem qualidades humanas, embora superlativizadas. As qualidades de amoroso, bondoso, poderoso, diligente, justo, ciente são caracteristicamente humanas, mas idealizadas numa escala de potência infinita na forma de Deus (daí ser Deus infinitamente amoroso, bondoso, poderoso... e onisciente). A atribuição de qualidades humanas às divindades dá-se o nome de antropomorfismo. Por isso, Deus é que foi criado à imagem e semelhança dos homens, e não o contrário. Vale insistir neste fato!
Também acho que a ponderação que Da Luz faz neste trecho é condizente com a minha atitude em face do Mistério. Como ateu, não pretendo dizer a última palavra sobre o que está na origem e no fim da vida. Eu não sei, mas tenho fortes razões para afirmar não se tratar de um Deus, tal como representado na tradição monoteísta (judaísmo, cristianismo e islamismo).
Prossigamos em nosso percurso.
Trago à cena Ludwing Feuerbach (1804-1872), filósofo alemão do século XIX, cujas ideias exerceram decisiva influência no pensamento de Karl Marx. Tendo em conta o que escrevi a respeito do antropomorfismo do Deus judaico-cristão, cuido ser pertinente referir uma passagem de A Essência do Cristianismo (2009) em que Feuerbach é bastante claro, ao corrigir a inversão ideológica operada pela tradição monoteísta, ao conceber Deus como criador e o homem como criatura:

“(...) a especulação religiosa também considera os dogmas separados do contexto no qual eles somente têm sentido; ela não os reduz criticamente à sua verdadeira origem interna; antes transforma ela o derivado em primitivo e inversamente o primitivo em derivado. Deus é para ela o princípio; o homem vem depois. Assim distorce ela a ordem natural das coisas! O princípio é exatamente o homem, depois vem a essência objetiva do homem: Deus”.

(p. 134)

Neste trecho, percebemos a tentativa de desconstrução da inversão ideológica, que toma Deus como princípio e o homem como derivado; Deus como o criador; e o homem como sua criatura. Mais adiante, Feuerbach considerará a alienação religiosa, quando escreve “(...) o homem cria Deus, sem saber e querer, conforme a sua imagem” (id.ib.). Os homens se alienam no sentido de que, não compreendendo Deus como projeção de sua própria essência para fora de si, entendem-no como um Ser que os transcende, que é exterior e independente.
A essência de Deus é a autoconsciência do homem. Deus é a essência do homem objetivada. Na verdade, a leitura do seu mais importante trabalho A Essência do Cristianismo (2009) nos permitiria saber que Feuerbach identifica Deus ao homem. Há várias passagens -  no capítulo 11, por exemplo, em que o autor trata do mistério da providência e da criação - que expressam essa identificação de Deus com o homem. Assim, lemos, à página 124, “a personalidade de Deus é a personalidade do homem libertada de todas as determinações e limitações da natureza”. Na página seguinte, encontramos também

“Concedei também que o vosso Deus pessoal nada mais é que a vossa própria essência pessoal, que ao crerdes e demonstrardes o supra e extranaturalismo do vosso Deus nada mais credes e demonstrais do que o extra e supranaturalismo de vossa própria essência”.

Dada a vaguidão que o conceito de “essência” pode suscitar ao espírito do leitor, convém precisá-lo, na perspectiva de Feuerbach. Para o autor de A Essência do Cristianismo, a essência humana é a consciência, tomada no sentido que ele qualificará de “rigoroso”, a saber, a capacidade que os seres humanos têm de tomar para objeto de pensamento o próprio gênero.  Segundo o filósofo, os seres humanos são capazes de se colocar no lugar do outro, e isso é possível porque eles tomam o gênero para objeto de sua consciência. Ao contrário, embora os animais tenham sentimento de si, são incapazes de tomar o gênero para objeto de si mesmo. Concluirá Feuerbach que, nesse sentido, eles carecem de consciência.

“(...) tem o animal apenas uma vida simples, mas o homem uma dupla: no animal é a vida interior idêntica à exterior – o homem possui uma vida interior e uma exterior. A vida interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a sua essência. O homem pensa, isto é, ele conversa, fala consigo mesmo. O animal não pode exercer nenhuma função de gênero sem um outro indivíduo fora dele; mas o homem pode exercer a função de gênero do pensar, do falar (porque pensar e falar são legítimas funções de gênero) sem necessidade de um outro (...)”.


(pp. 35-36)

Gostaria de referir este último trecho do trabalho de Feuerbach, em que se expõe a definição de Deus como mero objeto de pensamento:

“Deus como Deus, i.e., como um ser não finito, não humano, não determinado materialmente, não sensorial, é apenas um objeto do pensamento. É o ser transcendente, sem forma, intocável, sem imagem – o ser abstrato, negativo; só é conhecido pela abstração e a negação (via negationis). Por quê? Porque não é nada a não ser a essência objetiva do pensamento, a capacidade ou atividade em geral, que se a chame como se quiser, pela qual o homem se torna consciente da razão, do espírito, da inteligência. O homem não pode crer, supor, imaginar, pensar em nenhum outro espírito (i.e., porque o conceito de espírito é meramente o conceito de pensamento, de conhecimento, de inteligência, qualquer outra forma de espírito é um fantasma da fantasia) a não ser a inteligência que o ilumina, que atua nele. Ele nada mais pode fazer que abstrair a inteligência das limitações de sua individualidade”.

(pp. 64-65)

Não é difícil imaginar quão polêmica foi a vinda a lume desta obra de Feuerbach no século XIX. Esta e outras expressões da definição de Deus, numa abordagem da religião como antropologia, não parece encontrar paralelo em nenhuma outra publicação. Acabo de encontrar um enunciado, que consta da Apresentação do tradutor, que exprime sucinta e claramente a tese da argumentação de Feuerbach. Sei bem que já me referi a ela anteriormente, mas gostaria de estampá-la aqui, por nos deixar a salvo das dúvidas:

“O homem projeta em seus deuses todos os seus anseios, amores e sentimentos mais elevados e profundos. O home retira de si a sua essência mais elevada e mais nobre para adorá-la fora de si como Deus”.
(p. 7)
(grifo meu)
 


Dois outros livros se destacam por nos permitir estudar o contexto socio-histórico em que surgiu e se desenvolveu a fé cristã. O leitor poderá compreender como o cristianismo pôde alcançar o status de religião predominante no mundo ainda hoje lendo o trabalho do historiador Paul Veyne – Quando nosso mundo se tornou cristão [312-394] (2011) – livro em que o autor destaca o papel decisivo do imperador Constantino na consolidação da então pequena e nova seita dentro do imenso Império Romano. Constantino converteu-se sinceramente ao cristianismo e criou as condições favoráveis ao progressivo desenvolvimento da profissão de fé cristã, não sem permitir que os cultos pagãos continuassem a ser praticados. Constantino, nesse tocante, foi assaz tolerante. Isso, no entanto, não o impediu de considerar o cristianismo como a única religião portadora da verdade, relegando as crenças pagãs ao plano da fantasia. Assim, esclarece-nos o autor:

“Constantino, dizíamos, deixou em paz os pagãos e seus cultos, mesmo depois de 324, quando a reunificação de Oriente e Ocidente sob sua coroa o tornou todo-poderoso. Naquele ano, ele dirige proclamações a seus novos súditos orientais, depois a todos os habitantes de seu império. Escritas num estilo mais pessoal do que oficial, saem da pena de um cristão convicto, que proclama que o cristianismo é a única boa religião, que argumenta nesse sentido (as vitórias do príncipe são uma prova do verdadeiro Deus), mas que não toma nenhuma medida contra o paganismo: Constantino não será um novo perseguidor, o Império viverá em paz. Melhor ainda, ele proíbe formalmente a quem quer que seja de acusar o próximo por motivo religioso: a tranquilidade pública deve reinar; dirigia-se, sem dúvida, a cristãos excessivamente zelosos, prontos a agredir os templos pagãos e suas cerimônias”

(p. 23)

E nosso itinerário pode ainda incluir uma visita ao  trabalho O Livro negro do cristianismo – dois mil anos de crimes em nome de Deus (2007). Não nos impressionemos com o título. O livro não é sensacionalista; ao contrário, inclui, de forma suscita, um sem número de episódios em que o cristianismo engendrou caça às bruxas e aos hereges, Inquisição, escravidão, colonialismo, apóio a ditaduras européias e sul-americanas, pedofilia, entre outros fatos escandalizantes.  Devido a limites de espaço e de tempo, não citarei passagens deste livro. A sua leitura nos faz refletir sobre a conveniência de seguir um corpo de dogmas que serviu a tantos crimes ao longo da história.  Também nos leva a questionar o silêncio de Deus em face das tragédias perpetradas em seu nome. Não é possível fechar as páginas deste livro sem que nos visite a mente a inquietante certeza de que a História, mormente quando exibiu suas faces mais sangrentas, se fez a despeito da suposta onipresença de Deus. 


Outro livro que merece nossa apreciação, enquanto leitores ávidos de uma compreensão satisfatória da história cristã, é o livro Evangelhos Pedidos (2008).  Neste trabalho, o autor tratará das descobertas de evangelhos que não entraram para o cânone dos textos sagrados. Também o tema das falsificações dos textos sagrados, que será retomado em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010) e que estivera presente em O que Jesus disse? O que Jesus não disse? (2006),  encontrará abrigo nas reflexões do autor. 


Uma passagem interessante se topa na seção As variedades do Cristianismo antigo, na qual nos conta o autor a respeito da ampla diversidade de crenças cristãs:

“A ampla diversidade do Cristianismo primitivo pode ser vista acima de tudo nas crenças teológicas abraçadas por pessoas que se viam como seguidores de Jesus. Nos séculos II e III havia, é claro, cristãos que acreditavam em um único Deus. Mas havia outros que insistiam haver dois. Alguns diziam que havia trinta. Outros declararam que havia 365.”

(p. 18)

E prossegue:

“Nos séculos II e III, havia cristãos que acreditavam que Deus criara o mundo. Entretanto, outros acreditavam que esse mundo tinha sido criado por uma divindade subordinada, ignorante. (Por que outro motivo seria o mundo tão cheio de miséria e dificuldade?) E ainda outros cristãos pensavam que era pior do que isso, que este mundo era um erro cósmico criado por uma divindade má como um lugar de prisão, para capturar os humanos e submetê-los à dor e ao sofrimento”.

(id.ibid.)


Os antigos cristãos me parecem mais sensatos. Não obstante a crença em que o mundo tem de ter um criador, não acreditavam que esse criador era dotado de sabedoria e benevolência infinitas. Eles, ao menos, reconheciam que a crença na existência de tal ser é incompatível com a quantidade esmagadora de evidências do sofrimento em escala mundial. No entanto, as interpretações desses segmentos foram sobrepujadas pela compreensão dos proto-ortodoxos, que detinham o poder ideológico e político. Ora, como poderiam estender seu domínio sobre os cristãos leigos, se o Deus que criou o mundo fosse maligno ou ignorante? Quem ia querer adorar divindade com tais qualidades? Foi necessário forjar um Deus grandioso (disso nos fala Veyne, em seu Quando o mundo se tornou cristão, livro a que me referi anteriormente), providente, justo e bom. O sofrimento poderia ser explicado pelo domínio de Satanás sobre o mundo, como propunham os autores do Apocalipse. A esse respeito, o leitor pode ler O Problema com Deus, obra também de Bart. D. Ehrman (2008). Neste livro, o autor,  que exercera o cargo de pastor numa igreja evangélica, justifica o abandono da fé, quando reconheceu que “o problema do sofrimento se tornou o problema da fé” (p. 13).  Trata-se de um livro que nos envolve do início ao fim. O objetivo do autor foi investigar as respostas dadas pelos autores bíblicos ao problema do sofrimento. Vale acompanhar a exposição e argumentação desenvolvidas nas duzentas e quarenta e três páginas deste trabalho impactante.


Os dois livros já mencionados, em que Ehrman se dedica a nos ensinar sobre a fabricação da bíblia e suas contradições (Quem Jesus foi Quem Jesus não foi?; O que Jesus disse? O que Jesus não disse?) também têm o mérito de capturar o leitor logo nas primeiras linhas. Em Quem Jesus foi?, lemos, no capítulo Quem escreveu a Bíblia?, uma revelação que a mim soou como uma estrondosa evidência de que a tradição que bilhões de pessoas no mundo seguem está baseada em uma farsa:

“Embora evidentemente não seja o tipo de coisa que os pastores costumam contar às suas congregações, há mais de um século existe um forte consenso de que muitos dos livros do Novo Testamento não foram escritos pelas pessoas cujos nomes estão ligados a eles. (...)”
(p. 118)

Neste livro, aprendemos, entre tantas outras coisas, sobre a falsificação dos quatro Evangelhos que constam do cânone. Em outras palavras, descobrimos que os Evangelhos segundo Marcos, Mateus, Lucas e João não foram escritos por eles. Surpreendente é o que nos revela Ehrman a seguir:

“Essa visão de que o Novo Testamento contém livros escritos sob nomes falsos é ensinada em praticamente todas as grandes instituições de ensino superior por todo Ocidente, com exceção de faculdades fortemente conservadoras. É a visão ensinada em todos os grandes livros sobre o Novo Testamento utilizados nessas instituições. É a visão ensinada em seminários e faculdades de teologia. É o que os pastores aprendem quando se preparam para o ministério. E por que isso não é mais conhecido? Por que as pessoas nos bancos das igrejas – para não falar das pessoas nas ruas – não sabem nada sobre isso? Seu palpite é tão bom quanto o meu.”

(p. 154)


Citarei, abaixo, alguns trechos do livro O que Jesus disse?, em que Ehrman discorre sobre o trabalho dos copistas no longo processo de fabricação das escrituras sagradas.  Mais precisamente, o trecho refere-se à prática de cópias de manuscritos do Novo Testamento. Estamos no segundo capítulo da obra, intitulado de Os copistas dos escritos cristãos primitivos. À página 67, na seção Dificuldades para saber qual é o texto original, observa Ehrman:

“Mudanças de todos os tipos foram feitas nos manuscritos pelos copistas que os copiaram. Examinaremos com mais pormenores os tipos de mudanças num capítulo posterior. De momento, basta-nos saber que realmente foram introduzidas mudanças e que elas eram generalizadas especialmente nos primeiros duzentos anos em que os textos foram copiados, época em que a maioria dos copistas era de amadores. Uma das principais questões com que a crítica textual precisa se haver é como reconstruir o texto original – o texto tal qual o autor o escreveu -, diante da circunstância de que os nossos manuscritos são tão coalhados de erros. O problema é agravado pelo fato de que, uma vez introduzido, o erro pode se encaixar firmemente na tradição textual, muito mais firme que o original”


No tocante à carta aos Gálatas, que não fora escrita por Paulo, mas ditada por ele a um copista – o prova a presença de um pós-escrito acrescentado por ele mesmo Paulo, com o objetivo de assegurar aos destinatários que ele, Paulo, foi o autor da carta, observa Ehrman que tal prática era comum na Antiguidade. Tendo sido ditada a carta, surge o problema de saber se Paulo a ditou longamente, palavra por palavra, ou se fez uma exposição básica de sua doutrina, deixando ao copista a tarefa de completar as lacunas. Tendo em conta essa dificuldade com que têm de lidar os estudiosos, escreve o autor:

“Suponhamos, contudo, que o copista tenha captado as palavras de modo 100% correto. Se múltiplas cópias da carta foram feitas, podemos estar seguros de que todas as cópias são também 100% corretas? É, no mínimo, possível que mesmo que tivessem sido todas copiadas na presença de Paulo, uma palavra ou duas aqui ou ali pudessem ser alteradas em uma ou outra das cópias. Se fosse esse o caso, o que ocorreria se apenas uma das cópias tivesse servido como cópia da qual todas as cópias subsequentes fossem feitas – depois, no século I, no século II, no século III, e assim por diante? Nesse caso, a cópia mais antiga que constituíra a base de todas as cópias subsequentes da carta não era exatamente o que Paulo escrevera, ou quisera escrever”.

(p. 69)


À proporção que o leitor avança na leitura do livro, não custará a ele chegar à conclusão de que a grande maioria dos escritos que compõem o Novo Testamento são produto de falsificações. O que figura na bíblia e que chegou até nós, passados mais de 2.ooo anos, são cópias de cópias. Dos 27 livros que compõem o Novo Testamento, 19 são produto de falsificações, como se depreende do seguinte trecho de Ehrman, em Quem foi Jesus?:

“Agora retorno à minha pergunta original: quem escreveu a Bíblia? Dos 27 livros do Novo Testamento, apenas oito quase certamente foram escritos pelos autores aos quais são tradicionalmente atribuídos: as sete inquestionáveis epístolas de Paulo e o Apocalipse de João, que poderia ser classificado como homônimo, já que não alega ter sido escrito por um João específico; isso era reconhecido até mesmo por alguns autores dos primórdios da Igreja”.
(p. 153)
(ênfase minha)


O leitor que prosseguisse na leitura saberia que há controvérsia no tocante à autoria dos textos 2 Tessalonicences e 1 Pedro. Aqui as posições se dividem entre os que acreditam que tais textos foram escritos pelos autores a que eles são referidos, respectivamente, Paulo e Pedro, e os que lançam sérias dúvidas quanto a serem estas pessoas seus autores. Por outro lado, os estudiosos estão de acordo quanto ao fato de os livros 1 Timóteo e 2 Pedro não terem sido produzidos pelos autores cujos nomes se estampam nas páginas. Ou seja, não foi Timóteo que escreveu 1 Timóteo, tampouco Pedro que escreveu 1 Pedro.
Tendo tomado conhecimento da problemática em torno da verdadeira autoria dos textos sagrados, também – assim creio – não será custoso ao leitor concluir que a Bíblia foi produzida pelas mãos de muitos homens. A Bíblia é um livro humano. Gostaria, de passagem, referir um trecho bastante elucidativo da posição de Ehrman, um dos maiores especialistas nos estudos do Novo Testamento. Nesse excerto, o autor retoma a razão por que abandonou a sua fé, bem como expõe a conclusão inevitável a que chegou após longos anos de estudo da Bíblia:

“Portanto, não abandonei a fé cristã por causa dos problemas inerentes à fé propriamente dita nem porque me dei conta de que a Bíblia era um livro humano ou que o cristianismo era uma religião humana. Tudo isso é verdade – mas não foi o que desmontou minha aceitação do mito cristão. Eu abandonei a fé pelo que considerei (e ainda considero) ser uma razão distinta: o problema do sofrimento no mundo”.

                                                                (p. 298)
(grifo meu)

Note-se que Ehrman refere-se ao cristianismo como um mito ou um conjunto de mitos. Outros tantos autores assim compreendem as religiões, de maneira geral, e o cristianismo, particularmente. O próprio Marcelo Da Luz se reconhece hoje como agente comprometido com a desconstrução “[do] mundo de fabulas e falácias onde se assenta o pensamento religioso” (p. 122). Não se pode ter certeza absoluta da existência histórica de Jesus, conquanto para autores como Ehrman Jesus, enquanto profeta judaico apocalíptico que viveu na Palestina do século I, provavelmente existiu. As dificuldades ligadas à certeza da existência de Jesus consistem em que as únicas fontes disponíveis que nos permitem conhecer a vida de Jesus são os quatro Evangelhos, textos impregnados de inconsistências. Assim, adverte-nos Ehrman, na mesma obra:


 
“(...) o problema é que os Evangelhos estão repletos de discrepâncias e foram escritos décadas após o ministério e a morte de Jesus, por autores que não tinham testemunhado pessoalmente nenhum dos acontecimentos da vida dele”.

(p. 159)


Volvemos à consideração do cristianismo como um conjunto de fábulas. O trecho a seguir, tomado a Marcelo Da Luz, esclarece-nos sobre a influência das mitologias pagãs na construção da narrativa do sacrifício de Jesus. Não está em questão a crucificação de Jesus (embora seja possível levantar suspeitas sobre a prática de crucificação entre os romanos naquela época). No link abaixo, há uma reportagem divulgada na revista Época, em que um teólogo qualifica a crucificação de Jesus como uma “história baseada nas tradições católicas e em ilustrações antigas”.

O que está em questão é a construção da significação teológica do sacrifício e morte de Jesus. Acompanhemos as palavras do autor:

“O antropólogo francês René Girard tornou-se célebre pela teoria explanatória da violência religiosa, segundo a qual as comunidades primitivas, a fim de não se autodestruírem pela rivalidade e inveja de seus indivíduos, ritualizavam a morte de um forasteiro, em quem era depositada toda a culpa ao modo de bode expiatório. A tradição judaica, no entanto, paulatinamente refinou essa prática, substituindo seres humanos por animais, vítimas inocentes levadas ao altar da imolação. Dessa forma, segundo o cristianismo, Jesus ocupa o papel do cordeiro justo e sem mancha, vítima perfeita, cujo sangue é derramado a fim de aplacar a ira de “Deus” todo-poderoso. Esse bizarro discurso – predominante na história do pensamento cristão – aproxima sobremaneira o cristianismo às antigas religiões pagãs praticantes do sacrifício humano”.

(p. 134)


Um discurso bizarro – escreve o autor. Por que bizarro? Porque, se examinado cuidadosamente, ele nos parecerá repugnante ao coração e ao intelecto. Ao coração, porque Deus se satisfaz com a morte de um inocente. Este inocente tinha de morrer para que Deus se acalmasse e não viesse a destruir o mundo (mais uma vez). Ele mesmo envia ao mundo seu próprio filho para morrer, não sem antes experimentar dor e sofrimento atrozes. E a dor, o sofrimento e a morte deste infeliz e inocente judeu serviu à salvação de toda humanidade da ira de Deus, que estava insatisfeito com os maus comportamentos de suas criaturas. Mas a mesma doutrina ensina que Deus é infinitamente misericordioso e, portanto, está sempre disposto a perdoar, o que nos obriga a perguntar: por que então não perdoou aqueles que estavam perpetrando atos maus, poupando o próprio filho do martírio?
Pensemos na história tendo como base o comportamento humano. Um pai pode sacrificar-se para salvar a vida do próprio filho. Certamente, muitos pais e mães estão dispostos a morrer pelo próprio filho. Nesse sentido, realmente, estamos diante de um sacrifício em favor da salvação de um outro a quem muito amamos. Nada semelhante há na narrativa do sacrifício e morte de Jesus. Deus não se sacrifica para salvar a humanidade, o que seria absurdo em se tratando de uma divindade, que, por definição, desconhece sofrimento e morte. Mas insisto em que Deus não se sacrifica; faz melhor: envia o seu filho amado para se sacrificar em favor da sobrevivência de toda a humanidade, porque ele, Deus, estava muito zangado com a forma como os homens vinham se comportando. (estou ignorando o dogma segundo o qual  Jesus é o próprio Deus que se fez carne para a expiação dos pecados dos homens, porque isso complica mais ainda essa esdrúxula história; mesmo que Deus, transmutado em Cristo, tenha morrido, ele, segundo a crença, não morre, porque ressurge no terceiro dia após sua morte – mas isso é matéria de fé, porque o fato é que Jesus, uma vez pregando contrariamente às convicções de certa classe do poder judaico, preparou o caminho de seu próprio autosuicídio (ver. Da Luz, p. 135)).


Como não se afigurar em nossa alma a ideia de um Deus sádico? Jesus, o filho de Deus, nos salva da ira de seu Pai; portanto, nos salva do próprio Deus, que estava insatisfeito com os nossos pecados. Tendo poder suficiente para resolver o problema que o incomodava, Deus envia seu filho para morrer e, assim, evitar que se eliminem todos os seres que habitam o planeta. Uma solução, no mínimo, pouco engenhosa vindo de uma divindade de tal magnitude. Deus é, assim, sádico e cúmplice do assassinato do próprio filho. Que pai, sabendo que o filho correria risco de vida,  o mandaria resolver um problema que ele mesmo, pai, teria condições de resolver sozinho? Mas a história bíblica ainda é pior. Deus estava presciente dos acontecimentos funestos que envolveriam a vida do filho; o sacrifício e morte de Jesus estavam previstos no plano maquiavélico de Deus! Só faz sentido falar em salvação pela morte se há um sacrifício verdadeiro de alguém pela sobrevivência de outrem. O pai que se lança para evitar que o filho seja alvejado por um projétil, deixando o peito exposto ao impacto, assume o risco de morrer para salvar o filho. O plano de Deus, sendo não só repugnante é também falho. Ainda hoje, os homens se veem às voltas com as dificuldades decorrentes de sua natureza. Ainda hoje, matam uns aos outros; guerreiam, cultivam a discórdia, discriminam; fomentam a competição, engordam na alma a ganância, etc. Em suma, nossos problemas continuam conosco.
A respeito da prática de sacrifício, comum nas religiões pagãs de povos primitivos, pode-se ler sua lógica em O livro das religiões:

“Se um indivíduo cometeu um crime contra os deuses e despertou a sua ira, deve ser punido. Para apaziguar os deuses e evitar uma vingança, ele pode fazer um sacrifício de expiação. A oferenda – por exemplo, um animal sacrificial – substitui o culpado e é punida no lugar dele”.

(p. 31)

Que belo exemplo de justiça! Veja-se como os deuses pagãos eram produto de antropomorfismo, ou seja, eles eram dotados de qualidades humanas, demasiado humanas. Embora fossem dispostos a fazer o bem aos homens que os adoravam, proporcionando-lhes, por exemplo, boa colheita, podiam também irar-se contra eles, submetendo-os a uma temporada de fome.  Também o Deus judaico-cristão era capaz de odiar e punir. O Deus do Antigo Testamento era ciumento; não lhe apetecia o culto a outras divindades. Vale notar também que a prática de render oferenda é uma estratégia de barganha de que se valem os religiosos para obter benefícios de suas divindades.
Tenho de pôr um ponto final neste texto. Por isso, deixarei de considerar um pouco do conteúdo de livros igualmente importantes como o de Christopher Hitchens – deus não é Grande (2007).
Que benefícios intelectuais nosso percurso nos acarretou? Vimos que podemos aprender muito sobre o modo como a fé católica penetra na consciência dos crentes, com Marcelo Da Luz; podemos aprender com Feuerbach que a religião é um fenômeno antropológico; podemos também aprender, com Ehrman, sobre as contradições que se acham na Bíblia, sobre a história da fabricação deste que é o livro mais vendido e lido do mundo; podemos ainda estudar o contexto sócio-histórico em que o cristianismo lançara suas raízes, de tal sorte que seremos levados a concluir, corretamente, que o Deus que nossas sociedades ocidentais herdaram foi forjado num tempo remoto por pessoas que viveram sob o domínio dos romanos no Oriente Médio. Trata-se de um Deus que foi plasmado na História, que foi forjado por uma ideologia que rezava ser a crença no poder infinito desse Ser transcendente a única forma de escapar, ou, ao menos, resistir ao jugo dos dominadores. Portanto, uma ideologia da submissão, da obediência cega a uma autoridade transcendente. Uma ideologia que trataria, com o tempo, de arrebanhar bilhões de seguidores.





sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

"A revelação não se dá pela fé; mas pela reflexão filosófica" (BAR)

                               

                                    Por que milhões se enganam?

Decerto, a ninguém agrada ser enganado. E muitos de nós nos revoltamos quando descobrimos que estávamos sendo enganados. Por exemplo, é o caso de quem vai a um médico para buscar tratar-se de alguma enfermidade e depois descobre que esse médico fraudou seu próprio diploma. Confiamos nele como alguém que detinha a competência necessária ao exercício da medicina; dispensamos-lhe nossa (porque acreditamos que seu comportamento era a expressão de conhecimentos sólidos que adquiriu ao longo dos anos em que cursou medicina). E, num instante, cai pesadamente sobre nós o desencanto: a farsa foi descoberta! Sentimo-nos iludidos; o que acreditávamos não era real (desilusão!). Aquele homem de jaleco branco diante de nós não era um médico, era um farsante, um velhaco. Alguns de nós nos culpamos, e nos perguntamos “como pudemos ser tão ingênuos, tão crédulos?”.
Não é custoso ver que viver em sociedade exige que estabeleçamos relações assentadas em confiança. Ela não só é importante para assegurar a validade dos modelos de referência na base dos quais nossas vivências se desenvolvem mas também para que estejamos motivados a estabelecer acordos, compromissos, fazer promessas, traçar planos que poderão ser cumpridos. Por um lado, nós compartilhamos, em nossa cultura, com os outros modelos de realidade - confiamos estar num consultório médico, diante de um médico, por exemplo; confiamos estar numa sala de aula aprendendo sobre História diante de um professor devidamente capacitado para tanto - ; por outro lado, qualquer forma de agregação humana exige certo grau de confiança para que as necessidades de grupo sejam satisfeitas. A confiança é o que nos resta em face da consciência de que não podemos sempre conhecer verdadeiramente as pessoas.
  A condição básica para que tenhamos confiança é a falta de informação plena. Por exemplo, confiamos que tanto o engenheiro que elaborou a estrutura de nosso prédio (a planta) quanto os operários que trabalharam em sua construção detinham a competência necessária ao empreendimento.  Se não fosse assim, como poderíamos viver sossegados sob um teto? Não temos escolha senão confiarmos, já que, como assinala Giddens, em As consequências da Modernidade (1991),

“(...) não haveria necessidade de se confiar em alguém, cujas atividades fossem continuamente visíveis e cujos processos de pensamento fossem transparentes, ou de se confiar em algum sistema cujos procedimentos fossem inteiramente conhecidos e compreendidos”
(p. 40)

Para Giddens, a confiança une fé à crença; mas desta última se distingue, visto ser a crença uma atitude que afirma com certo grau de probabilidade ou certeza a realidade ou verdade de um dado estado-de-coisas. Comparada à crença, a confiança é, concluirá Giddens, cega.
Eu não descerei a pormenores no tocante ao conceito de confiança. Quero apenas mostrar que a confiança surge no momento em que nos vemos destituídos de conhecimentos ou informações importantes que poderiam nos dar alguma segurança nas nossas ações ou nas tomadas de decisão. Temos, em geral, boas razões para confiar em que nossos policiais foram preparados para a garantia da ordem pública. Sabemos, no entanto, que o grau de nossa confiança pode declinar sensivelmente sempre que tomamos conhecimento de casos de corrupção na corporação, quando, por exemplo, policiais se envolvem em negociatas com traficantes de droga, ou quando descobrimos que entre eles há homicidas. Como não podemos, no entanto, supervisionar a formação desses homens, como ignoramos muito sobre como são realizadas as provas e o treinamento destinado a capacitá-los, resta-nos confiar em que o serviço que nos é prestado e pelo qual pagamos satisfará as nossas necessidades de segurança. Quando isso não se verifica, desconfiamos e tendemos a protestar, reivindicar fiscalização ou reforma na instituição.
Tendo em vista o exposto, passarei, doravante, a me ocupar com o desenvolvimento do tema deste texto. Tratarei aqui de um engano; antes, porém, de fazê-lo, preciso ancorar meus pensamentos em alguns trechos colhidos da obra Quem Jesus foi, quem Jesus não foi? (2010), de Bart. D. Ehrman. O primeiro que merece nossa atenção é o trecho em que o autor apresenta-nos o tema de seu livro. Em negrito, destaco os fragmentos a que devemos dispensar atenção acurada:

“Este livro, portanto, não é sobre minha perda de fé. É, porém, sobre como certos tipos de fé – especialmente sobre a fé na Bíblia como se ela fosse algo historicamente inequívoco e a Palavra inspirada por Deus – não se sustentam à luz do que nós, como historiadores, sabemos sobre a Bíblia. Os pontos de vista que apresento neste livro são matéria comum entre os acadêmicos. Não conheço um só estudioso da Bíblia que vá aprender qualquer coisa neste livro, embora eles possam discordar de certas conclusões aqui e ali. Teoricamente, os pastores também não deveriam aprender muito com ele, já que este material é amplamente apresentado em seminários e faculdades de teologia. Mas a maioria das pessoas nas ruas e nos bancos das igrejas nunca ouviu isto antes. Isso é uma vergonha, e chegou o momento de fazer algo para resolver esse problema”.
(p. 31)

Já escrevi um texto, que postei neste blog, em que me ocupei com o que penso ser uma revelação dramática, a saber, dos 27 livros do Novo Testamento, 19 são produtos de falsificações. Exceto as sete epístolas atribuídas a Paulo (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filemon), bem como o Apocalipse de João (conquanto não se tenha certeza sobre quem foi esse João), os demais textos (total de 19) se distribuem em três grupos: 1. textos cujos autores não são as pessoas que alegam ser (O João do Evangelho não é o João discípulo de Jesus, outra pessoa escreveu usando o nome João; Mateus não escreveu o texto   Mateus); 2. textos cujos autores têm o mesmo nome de uma personalidade conhecida (o livro de Tiago foi escrito por alguém que se chamava Tiago, mas o autor não alega ter sido Tiago, irmão de Jesus); 3. textos cuja autoria é falsa, também chamados “pseudepigráficos”.
Antes de iniciar a produção deste texto, estava eu envolvido na leitura de mais um capítulo do livro de Ehrman, e tendo deparado com o excerto abaixo citado, apressei-me em expor os pensamentos que se desnudarão à consciência do leitor, à medida que avançar na leitura. Ehrman, no referido trecho, aponta-nos a dificuldade que mesmo os estudiosos acadêmicos têm de admitir que os textos fabricados do Novo Testamento são fraudes. Leiamos com atenção:

“Ainda hoje, muitos estudiosos relutam em chamar os documentos forjados do Novo Testamento de fraudes – afinal, é da Bíblia que estamos falando. Mas a realidade é que, por qualquer definição do termo, e é isso que eles são. Um grande número de livros dos primórdios da Igreja foi escrito por autores que alegaram falsamente ser apóstolos para enganar os leitores e fazê-los aceitar seus livros e os pontos de vista que representavam”.
(p. 154)

Chamo atenção para o trecho “afinal, é da Bíblia que estamos falando”. O articulador discursivo “afinal” introduz um enunciado que encaminha para uma conclusão que se pretende consensual. O raciocínio pode ser compreendido, se distinguirmos suas partes da seguinte forma:


Premissa explícita – “Ainda hoje, muitos estudiosos relutam em chamar os documentos forjados do Novo Testamento de fraudes”
Pressuposto – A Bíblia é infalível e não questionável (senso-comum) (afinal)
Conclusão – A Bíblia não pode ser questionada.

O articulador “afinal” introduz um enunciado que encaminha à conclusão “a Bíblia não pode ser questionada”, ou seja, a Bíblia, como produto da “mente” de Deus não pode ser considerada fraudulenta. Como símbolo de poder, a Bíblia revestiu-se historicamente de uma impermeabilidade à crítica. Desqualificá-la como fraude é atrair para si reações virulentas do poder eclesiástico secular e de seus subordinados. O enunciado introduzido por “afinal” diz implicitamente “a Bíblia não pode ser questionada”. A sua "áurea sagrada" (entenda-se por "áurea sagrada" um valor atribuído pela ideologia dominante, pelo poder da Igreja primitiva) a protege contra qualquer suspeita!
Outro trecho, logo abaixo deste, será ilustrativo do engano que incide sobre milhões de pessoas no mundo que abraçam o cristianismo. Elas se enganam porque não têm consciência de que o livro que tanto adoram e no qual confiam para determinar seus valores, dirigir suas ações e revelar "verdades" eternas sobre o mundo é produto de uma fraude. E, diga-se de passagem, fraudes eram muito comuns no mundo antigo (embora fossem desaprovadas) (v. Bart, p. 132).
Os ateus têm razão ao criticar duramente pastores e padres que, de forma maliciosa, mantêm seus correligionários na ignorância, ludibriando-os, se beneficiando à custa de sua credulidade e ingenuidade. Façamos nossa crítica em forma de denúncia: denunciemos uma exploração não só econômica (sempre que nos damos conta do grande enriquecimento das igrejas), mas também intelectual. O poder é mais forte quando não pode ser questionado; isso significa dizer quando não é dado saber àqueles que se submetem às autoridades. É mais fácil legitimar o poder, que se apresenta como aceitável, pela simples manutenção da ignorância sobre suas bases. 
Leiamos as seguintes palavras de Ehrman:

“Essa visão de que o Novo Testamento contém livros escritos sob nomes falsos é ensinada em praticamente todas as grandes instituições de ensino superior por todo o Ocidente, com exceção de faculdades fortemente conservadoras. É a visão ensinada em todos os grandes livros sobre o Novo Testamento utilizados nessas instituições. É a visão ensinada em seminários e faculdades de teologia. É o que os pastores aprendem quando se preparam para o ministério.
E por que isso não é mais conhecido? Por que as pessoas nos bancos das igrejas – para não falar das pessoas nas ruas – não sabem nada sobre isso? Seu palpite é tão bom quanto o meu.”

(id.ibid.)

O nosso palpite, que é o do autor também, é que simplesmente a visão de que os textos do Novo Testamento são produto de falsificações ou fraudes, embora conhecida dos pastores e  dos padres que outrora frequentaram as aulas dos seminários, não é ensinada aos crentes que sentam nos bancos das igrejas. E o engano  envolve o indivíduo desde a infância. É lamentável que crianças, adolescentes e jovens sejam estimulados a ler a Bíblia de modo devocional e sejam levados a acreditar que estão diante de textos autênticos, textos que, segundo creem, lhes revelarão verdadeiramente a “Voz de Deus”. Não é isso, definitivamente, que eles revelam. Eles revelam as vozes de muitos homens (um leitor familiarizado com os estudos linguísticos, dirá comigo, os textos são polifônicos, embora a polifonia se dê em meio a fraudes). Os textos são produtos das visões que muitos homens tinham sobre a identidade de Jesus, sobre seus ensinamentos, sobre os acontecimentos ou superstições em torno de sua vida (por exemplo, o significado da crucificação, da sua morte, da Ressurreição, etc). E estes homens não foram aqueles que o acompanharam. Eram homens que viviam em outras regiões, que partilhavam de um código cultural diferente e que, quase certamente, detinham um grau maior de instrução e conhecimento de grego (língua em que a Bíblia fora escrita originalmente e cujo conhecimento escapava aos verdadeiros apóstolos, que eram indivíduos ignorantes e falantes de aramaico).
Não é intenção de Ehrman levar o seu leitor a deixar de acreditar em Deus. Ele escreverá, à página 30, “Eu decididamente não acho que a crítica histórica leva necessariamente à perda de fé”. Isso parece ser verdade, quando ele nos dá testemunho de que há entre seus colegas acadêmicos, que se dedicam ao estudo histórico-crítico das Escrituras, aqueles que conservam sua fé e atuam em igrejas. No caso de Ehrman, sua fé deixou de ocupá-lo quando não mais conseguiu conciliar a crença em um Deus que é amoroso e bondoso com a evidência do sofrimento em larga escala no mundo. Disso ele tratará no seu instrutivo livro O Problema com Deus, onde busca discutir as respostas dadas pelos autores bíblicos à questão de por que há tanto sofrimento no mundo. Esses autores se esforçaram por dar explicações para o fato de que sofremos, a despeito de haver, como criam, um Deus bondoso e providente.
Dizer que uma análise histórico-crítica da Bíblia não leva necessariamente ao ateísmo não implica dizer que ela não leve. Ela pode levar ao ateísmo, caso o leitor já esteja habituado a assumir uma atitude filosófica diante do mundo. Dela já tratei em outro texto. A atitude filosófica é uma atitude crítico-reflexiva, assentada no questionamento, na busca pela verdade. Ela quer saber e, para tanto, indaga: o que é?,  como é?,  por que é?, para que é?.
A complexidade do fenômeno religioso excede os limites deste texto. Sob muitos aspectos, a fé religiosa tornou-se insustentável para mim. O caminho para questioná-la foi, entretanto, aberto pela filosofia. Descobri que a atitude filosófica era incompatível com a atitude de fé. A adoção do ateísmo por mim é, portanto, fundamentada em leituras aturadas, no convívio com livros de filosofia e outros. Quando assumimos a atitude filosófica, quando aprendemos com a filosofia a pôr em discussão nossas crenças comuns, nossas opiniões correntes, nossas visões de mundo antes insuspeitáveis, torna-se dificultoso continuar a conformar-se às formas como a realidade se nos apresenta.
É com as palavras de Betrand Russell, em Os problemas da filosofia, citado por Marcondes, em A Filosofia: o que é, para que serve? (2001), que dou a saber ao leitor o valor da filosofia quando o descobri em minha vida:

“O valor da filosofia deve ser procurado em sua própria incerteza. O homem que não tem nenhum conhecimento de filosofia atravessa a vida aprisionado aos seus preconceitos provenientes do senso comum, das crenças habituais de seu tempo e de sua nação, e das convicções que cresceram em sua mente sem a cooperação ou o consentimento deliberado da razão. Para tal homem, o mundo tende a tornar-se definitivo, finito, óbvio; os objetos comuns não lhe trazem questões e as possibilidades desconhecidas são desdenhosamente rejeitadas. Ao contrário, tão logo começamos a filosofar, descobrimos que mesmo as coisas mais cotidianas nos trazem problemas para os quais só podemos dar respostas muito incompletas. A filosofia, embora incapaz de nos dizer com certeza qual é a resposta verdadeira para as dúvidas que ela própria levanta, é capaz de sugerir muitas possibilidades que ampliam nossos pensamentos e os libertam da tirania do hábito
(...)”

(pp. 14-15)

A filosofia é uma atividade em aberto; é uma forma de discurso que coloca em dúvida seu próprio significado. A filosofia questiona a si mesma. Não há uma filosofia, mas muitas filosofias, já que filosofia não é o que resulta da atividade de pensar, mas a própria forma dessa atividade; filosofia é ação que se realiza com o pensamento, com o logos (discurso, palavra).
 Um filósofo não se define como aquele que é versado em diversas filosofias. Todo homem pode ser filósofo quando assume a atitude filosófica. A competência de um filósofo não se mede pelos conhecimentos que têm da História do pensamento filosófico. Mesmo que eu seja um especialista no pensamento de Descartes, que tenha lido e relido suas obras e produzidos dissertação, tese e artigos sobre seu pensamento, não seria eu ainda um filósofo. Filósofo é aquele que não se limita a viver como se a realidade fosse algo já dado, pronto, acabado; ele se posiciona diante dela como quem a toma como um problema a ser investigado e compreendido. Ele é quem reflete, argumenta, discute. No exercício de sua atividade, importam mais as questões que levanta do que as respostas que possa vir a obter para elas. Afinal, as respostas sempre poderão vir a ser questionadas e revisadas. Importa, na atividade de filosofar, o modo como as questões são formuladas, o modo como argumentamos sobre elas; são pois, os caminhos de reflexões que abrimos que são caros na definição do que é ser filósofo. Ele não é o sábio, não é o erudito; é, como ensinou Sócrates, aquele que reconhece sua ignorância, mas munido do espírito questionador, ávido pelo saber, busca remover o véu dessa ignorância, busca pôr em xeque suas próprias convicções, bem como as crenças provenientes do senso-comum. Filosofia é sinônimo de libertação, portanto incompatível com sistemas dogmáticos, incompatível com crenças infundadas.
Não é a Bíblia que deve ser matéria nas salas de aulas de nossas escolas; mas a filosofia!