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quarta-feira, 8 de abril de 2020

"As instituições não se reduzem ao simbólico, mas elas só podem existir no simbólico". (Castoriadis)


                                   Jornalista E Fotógrafo Dos Desenhos Animados Elementos, Notícias ...

                                    Discurso e poder
                         Uma abordagem sociocognitiva


A relação entre discurso e poder quase nunca é evidente para os usuários da língua em geral. Isso se deve, em parte, ao fato de que discursos veiculam relações de poder, muitas vezes, veladas.  De que modo o discurso constitui, legitima e reforça relações de poder? Essa é a questão basilar do presente texto. Pretendo responder a ela a partir da abordagem sociocognitiva do discurso proposta por Van Dijk. A fim de que a tarefa, a cuja realização me dedicarei, logre sucesso, cuido indispensável a definição prévia dos conceitos de discurso, cognição, contexto, e poder.
No tocante à compreensão do discurso, Dijk observa que o discurso é um fenômeno multidimensional. Assim, o discurso pode ser, segundo o autor:
a) uma totalidade formada de sequências significativas, ou seja, palavras ou sentenças (nesse caso, o discurso se identifica com o texto);
b) um ato de linguagem (asserção, ameaça, etc.);
c) uma forma de interação social (gêneros discursivos tais como conversa, telefonema, etc.);
d) uma prática social (palestra, por exemplo);
e) uma representação mental (um modelo mental, uma opinião, conhecimentos);
f) um produto cultural (uma telenovela).

Não obstante as múltiplas formas pelas quais o discurso se realiza, Dijk admite ser possível uma definição operacionalmente razoável de discurso.  Na esteira da abordagem sociocognitiva proposta por Dijk, o discurso é forma de ação  e interação social  situada em situações sociais das quais os participantes não são apenas falantes, escritores, ouvintes ou leitores, mas sobretudo atores sociais pertencentes a grupos e comunidades culturais. Destarte, o discurso não é um objeto autônomo. Não basta, portanto, analisá-lo tendo como escopo apenas a sua materialidade linguística (frases, textos, palavras). O discurso é resultado de uma interação social, histórica, cultural e politicamente situada. Por conseguinte, é necessário, para fins de análise, levar em conta as relações entre a materialidade linguística do discurso e as estruturas sociais,  tais como, por exemplo, a família, a escola, as corporações midiáticas, posições de poder, movimentos sociais, instituições governamentais, etc.
Uma vez que os participantes do discurso são atores sociais que pertencem a grupos específicos numa mesma cultura geral, o discurso jamais é neutro, mas é sempre cultural e politicamente marcado. Ora, do fato de que são social, cultural, histórico e politicamente situados os atores sociais, segue-se que eles não são completamente livres para usarem as construções discursivas como quiserem. As estruturas sociais condicionam a produção dos discursos produzidos pelos usuários da língua, mas não de modo direto. Em outros termos, as condições sociais, culturais, políticas e situacionais não influenciam diretamente a produção do discurso. A abordagem sociocognitiva do discurso proposta por Van Dijk esteia-se na tese segundo a qual as estruturas societárias ou situacionais só podem influenciar o discurso pela mediação das representações mentais dos sujeitos sociais. Vale insistir: os elementos da situação comunicativa não afetam diretamente a produção do discurso; na verdade, a relação entre a situação social (entendida como fragmento “demarcado espaço-temporalmente de mundos sociais possíveis” (Dijk, 2012, p. 45)) e o discurso só pode ser estabelecida pela intervenção da interface sociocognitiva. Portanto, é a definição, a interpretação, a representação ou a construção cognitiva da situação social, feitas pelos participantes do discurso, por meio de seus contextos sociocognitivos, que influenciam o modo como eles falam, escrevem, leem e compreendem. Antes de compreendermos como opera a interface sociocognitiva a partir da definição de contexto, cumpre esclarecer o que devemos entender por cognição, nos limites estritos da abordagem sociocognitiva proposta por Dijk.
Em consonância com a abordagem sociocognitiva do discurso, tal como proposta por Dijk, pode-se definir a cognição como o conjunto de várias formas de conhecimento que, não sendo totalizado pela linguagem, é de sua responsabilidade. A cognição recobre as atividades mentais associadas ao pensamento, ao conhecimento, à memória e à linguagem. Os processos cognitivos como a linguagem e/ou a significação não são tomados à margem das rotinas significativas da vida em sociedade.  Portanto, a cognição é resultado das nossas ações e de nossas capacidades sensório-motoras. A cognição é um fenômeno situado, o que significa dizer que não há limite claro entre o que acontece dentro e o que acontece fora da mente. A cognição é um efeito da relação complexa entre ações sociais e atividades mentais. As tarefas que realizamos conjuntamente com os outros constituem rotinas culturalmente determinadas que organizam os processos cognitivos dos indivíduos em conformidade com demandas sociais.
A interface sociocognitiva esteia-se na visão de que sãos os modelos de contexto que permitem explicar que o que controla o modo como falamos não é um ambiente social objetivo, mas nosso modo de compreender ou construir subjetivamente a situação social. Modelos de contexto são, portanto, a interface entre a sociedade, a situação social imediata (por exemplo, profiro uma palestra no auditório de uma universidade) e o discurso. Os modelos de contexto são modelos mentais. Embora formados a partir de experiências pessoais, os modelos de contexto baseiam-se em conhecimentos socioculturais e outras crenças socialmente compartilhadas. Os modelos de contexto encerram as propriedades sociais e cognitivas dos eventos comunicativos, tais como os papéis sociais dos participantes, suas intenções e conhecimentos.
Para Dijk, contextos são tipos especiais de modelos mentais. E modelos mentais são representações cognitivas de nossas experiências. Em certo sentido, os modelos mentais são nossas experiências, se entendermos que experiências são interpretações pessoais daquilo que acontece conosco. Tais experiências pessoais ou modelos mentais armazenam-se na Memória Episódica, a qual faz parte da Memória de Longo Prazo. Dijk evita, portanto, o contextualismo ingênuo característico das teorias sociolinguísticas. Elementos situacionais como gênero, classe social, etnia, idade, posição e poder não operam objetivamente nem deterministicamente sobre o discurso, ou seja, tais restrições situacionais não determinam diretamente o que um sujeito diz em dada situação. As estruturas sociais não se relacionam com o discurso de modo direto. Elas se relacionam com o discurso pela mediação (interface) do contexto sociocognitivo. Chama-se, pois, contexto sociocognitivo ao conjunto de conhecimentos, propósitos, expectativas, opiniões, crenças, bem como ao conjunto de todos os sistemas de conhecimento (enciclopédico, linguístico, comunicacional, etc.) armazenados na memória dos interactantes e que precisam ser mobilizados por ocasião da interação verbal. A ativação desse contexto será indispensável para que o curso interacional se desenvolva, se mantenha e atinja um bom termo.
O contexto, para Dijk, é um constructo cognitivo, é uma representação mental que os participantes do discurso fazem das propriedades relevantes da situação social na qual interagem e na qual compreendem textos falados e escritos. O contexto media as relações entre a estrutura social e o discurso. A concepção sociocognitiva de contexto não é determinista. Destarte, indivíduos diferentes podem falar de maneiras diferentes mesmo quando se encontram e uma situação social semelhante.  Isso é possível porque os participantes do evento discursivo têm representações mentais subjetivas das estruturas sociais. São as distintas representações mentais que eles têm que lhes conferem certa liberdade para fazerem suas escolhas temáticas, lexicais e sintáticas por ocasião da produção de seus discursos. Mas devemos atender no fato de que essa liberdade é relativa. Por outro lado, são essas representações mentais que permitem aos analistas do discurso reconhecer a relativa liberdade de que gozam os sujeitos e os condicionamentos sócio-históricos e linguísticos que regulam o comportamento discursivo deles.


Contexto é um modelo mental de uma determinada situação comunicativa


O contexto, à luz da abordagem sociocognitiva de discurso, é a representação social que os participantes do discurso fazem da situação comunicativa com base em seus esquemas mentais. Portanto, contexto não é o conjunto de elementos sociais extralinguísticos (ambiente social, papel social, idade, gênero, etc.) aos quais se relaciona o discurso, mas a representação mental que os participantes do discurso fazem desses elementos. Cumpre, doravante, elucidar o que são esquemas mentais.
O processamento do armazenamento da Memória Episódica e da Memória de Longo Prazo (ou memória semântica) se dá por meio de esquemas mentais. Os esquemas mentais são estruturas de conhecimentos preexistentes na memória. Assim, quando os interactantes produzem ou interpretam um texto, eles já trazem um conjunto de crenças e conhecimentos prévios (background) estruturados mentalmente. São esses esquemas mentais que funcionam como interface entre a estrutura social e o discurso. Dois tipos de esquemas mentais são relevantes para a produção e interpretação dos textos:

a) frames: constituem conjuntos de conhecimentos armazenados sob certo “rótulo”, sem que seja necessário ordenação entre eles. Recobrem um padrão de conhecimentos fixos, estabilizados na memória. São estruturas de conhecimentos mais gerais numa comunidade ou sociedade.
 Por exemplo, o frame Carnaval ativa em nossa memória uma série de conhecimentos. Se somos brasileiros, especialmente cariocas, pensamos em blocos de rua, Cordão do Bola Preta, Desfiles das Escolas de Samba, alegorias, fantasias, Marquês de Sapucaí, etc. Nós possuímos uma série de conhecimentos sobre esse frame. Assim também, o frame Show ativa uma série de saberes a respeito da experiência relativa a show em geral. Sabemos que há uma banda ou cantor, normalmente, que se apresenta; há o palco onde eles tocam; há um lugar próprio para a realização do espetáculo. Para participar do show como espectadores, precisamos comprar ingressos, etc.

b) scripts: recobrem conjuntos de conhecimentos sobre modos de agir estereotipados em uma dada cultura, incluindo-se aí modos de comportar-se  linguísticamente. São um tipo de esquema mental mais dinâmico, como, por exemplo, saber fazer um pronunciamento.

A língua dispõe de várias fórmulas de cortesia. Pensemos também nos rituais religiosos, como batismo. Quando vamos a um enterro, assumimos determinados comportamentos previstos culturalmente para essa situação. Dizemos “meus pêsames pelo falecimento de seu marido”, ou algo parecido; mas não “sinto muito por seu marido ter batido as botas”.
Se, por exemplo, o Presidente da República vai à Câmara dos Deputados fazer um pronunciamento, os frames ‘’Presidente da República’  e ‘Câmara dos Deputados’ e o script ‘fazer um pronunciamento’ são ativados na mente dos participantes do evento discursivo, de modo que eles vão buscar em sua memória os conhecimentos e as crenças que julgam relevantes para a escolha de estratégias de produção e interpretação textual para aquele evento em particular. Frames e scripts permitem aos sujeitos sociais a produção de inferências sobre as propriedades do episódio que não são imediatamente acessíveis. A inferenciação é uma atividade linguístico-cognitiva básica no processo de compreensão textual. Ao interagirmos socialmente por meio de textos, não nos limitamos a apreender os conteúdos proposicionais dos enunciados a que somos expostos, mas, a todo momento, estamos derivando deles, com base no diversificado conjunto de saberes de que dispomos, conteúdos implícitos. 
Os elementos que fazem parte de um esquema mental são armazenados na memória do indivíduo ao longo da vida e são prototípicos. Assim, temos uma ideia prototípica do que é um mamífero: um animal de sangue quente, com pelos, que amamenta. É devido a essa prototipicidade que ficamos confusos quando descobrimos que um mamífero como o ornitorrinco põe ovos e um mamífero como o morcego voa.
Os frames variam de acordo com a diversidade das comunidades socioculturais. Assim, pessoas que vivem em comunidades socioculturais diferentes terão esquemas mentais diferentes. As representações mentais são controladas pelos esquemas mentais, os quais são constituídos de conhecimentos e crenças arquivados na Memória de Longo Prazo. Conquanto as representações mentais feitas pelos participantes do discurso sejam subjetivas e únicas, elas também se constituem de grandes quantidades de conhecimentos e outras crenças socialmente compartilhadas. O conhecimento cultural, portanto, é a base de todas as crenças avaliativas, incluindo as opiniões, atitudes e ideologias socialmente partilhadas. Pessoas diferentes, que possuem posicionamentos ideológicos, muitas vezes, conflitantes, precisam compartilhar um conhecimento cultural geral no qual se baseiam tais posicionamentos. A existência de esquemas mentais diferentes explica por que as pessoas fazem diferentes representações cognitivas de um mesmo fenômeno social que, por isso, não é o mesmo fenômeno para pessoas diferentes.
Em suma, para Dijk, contexto é definido como constructo mental, que constituirá a ponte entre os elementos da estrutura social e o discurso, ou entre a situação social imediata e o discurso.

Poder e ideologia

Para Dijk, poder é controle social de um grupo (ou seus membros) sobre outros grupos (ou seus membros). Assim, discursos expressam relações de poder. O discurso produz e reproduz a dominação social, ou seja, o abuso de poder de um grupo em relação a outros grupos, mas também serve para realizar movimentos de resistência a tal abuso de poder. A maneira como os discursos expressam e sustentam relações de poder é através da veiculação de posições ideológicas. Por isso, é extremamente importante compreender o que são ideologias e como elas funcionam discursivamente.
Para Dijk, ideologias são crenças sociais gerais e abstratas que são compartilhadas por um grupo e que controlam e organizam as opiniões, as atitudes e os conhecimentos específicos desse grupo. A ideologia, segundo Dijk, é uma forma de cognição social, ou seja, a ideologia “é uma estrutura cognitiva complexa que controla a formação, transformação e aplicação de outros tipos de cognição social, tais como o conhecimento, as opiniões e as posturas, e de representações sociais como preconceitos sociais”. (Dijk, 2008, p. 48). Ideologias consistem em estruturas de normas, valores, metas e princípios socialmente relevantes que são selecionados e empregados de modo tal a favorecer a percepção, a interpretação e a ação nas práticas sociais que atendem aos interesses de um grupo como um todo. A ideologia dota de coerência as atitudes sociais, as quais, por sua vez, determinam as práticas sociais. É extremamente importante salientar que “todas as ideologias (incluindo as científicas) englobam uma (re)construção da realidade social dependente de interesses”. (ibid.).
O discurso desempenha um papel fundamental tanto na formação quanto na transformação das estruturas ideológicas. Por isso, o analista do discurso está interessado em examinar quem e mediante quais tipos de processos controla os meios ou as instituições de (re)produção ideológica, tais como os meios de comunicação e as instituições de ensino. As ideologias, enquanto cognição social, influenciam a construção social da realidade, as práticas sociais e a (trans)formação das estruturas sociais. Cada um dos elementos estruturais da ideologia (filiação, atividades, metas, valores, normas, posição, relações de grupo e recursos sociais) pode servir de base para a delimitação de um grupo. Assim, um grupo social é um conjunto de sujeitos que compartilham determinadas características que lhes dão o sentimento de pertencimento. Por exemplo, o elemento “valores e normas” mostra como as ideologias são sempre avaliativas. Segundo a orientação valorativa da ideologia, nosso grupo sempre está correto e é normal, ao passo que os outros sempre estão errados ou são anormais. Discriminam-se os elementos da estrutura ideológica, como se segue:

a) filiação: quem somos nós? De onde viemos? Como nós somos? Quem pode se tornar um membro de nosso grupo?

b) atividades: o que nós fazemos? O que se espera de nós? Por que estamos aqui?

c) metas: por que fazemos isso? O que nós queremos realizar?

d) valores e normas: quais são os nossos valores fundamentais? Como nós avaliamos a nós mesmos e aos outros? O que deve e não deve ser feito?

e) posição e relações de grupo: qual é a nossa posição social? Quem são nossos inimigos, nossos adversários? Quem é igual a nós e quem é diferente de nós?

f) Recursos: quais são os recursos essenciais de que nosso grupo dispõe ou precisa dispor? (poder econômico, poder político, cor de pele, civilização ocidental, etc.).

Nunca é demais lembrar que os discursos, sendo produzidos por sujeitos social, cultural, histórica e politicamente situados, jamais são neutros, mas sempre ideologicamente condicionados. Todavia, nem todos os sujeitos têm consciência desse fato, o que torna mais fácil o trabalho de manipulação das opiniões e das ações das outras pessoas.
Acresça-se que as ideologias vão sendo constituídas ao longo da vida das pessoas à proporção que elas se deixam afetar pelos discursos de seus pais, mães, professores, líderes religiosos, escritores, músicos, políticos, jornalistas, colegas, etc. A exposição a esses discursos vai influenciar a maneira como os indivíduos representam e/ou constroem os fenômenos sociais. A influência que esses discursos exercem está diretamente relacionada às posições de poder ocupadas pelos atores sociais que (re)produzem esses discursos, fato, aliás, óbvio quando se consideram mães, pais e professores, cuja autoridade é vista como natural por filhos e alunos. Destarte, os discursos formadores de ideologias são mais diretivos e explícitos em casa e na escola. Por outro lado, quando consideramos os discursos de jornalistas e escritores, a influência ideológica tende a exercer-se de modo mais sutil e velada, o que não significa dizer que tais discursos não sejam formadores de ideologias.
Importa, por fim, enfatizar que ter ou não consciência da orientação ideológica de um discurso é resultado dos esquemas mentais que as pessoas têm e que, integrados em um contexto sociocognitivo, mediam as relações que os atores sociais – participantes do evento discursivo - estabelecem entre o discurso e a estrutura social. O trabalho dos analistas do discurso contribui para tornar patentes as orientações ideológicas materializadas/veiculadas nos textos que circulam nas diversas esferas sociais de uso da língua. Tais orientações ideológicas, muitas vezes, não sendo óbvias para os leitores e ouvintes, podem ser decisivas para a manutenção da desigualdade e das injustiças sociais. As escolhas lexicais e sintáticas feitas pelos produtores de textos são sempre controlados pelos seus modelos mentais. Nem sempre essas escolhas são conscientes, mas, quando feitas pelas elites simbólicas (jornalistas, políticos, líderes religiosos, publicitários, escritores) -, elas são sempre conscientes.
Quando pensamos a relação entre poder e discurso, devemos, pois, assumir que poder é controle social do discurso dos outros. As pessoas não são livres para falar ou escrever quando, onde, para quem, sobre o que ou como elas querem; mas são parcial ou totalmente controladas por outras pessoas, grupos ou instâncias que gozam do poder de exercer controle, tais como o Estado, a polícia, a mídia ou uma empresa interessada na supressão da liberdade da escrita e da fala. O poder, como controle social do discurso dos outros, obriga também as pessoas a falar ou escrever como um grupo ou instância quer que elas falem ou escrevam.


Uma amostra de análise

Convém oferecer, doravante, um recorte de análise que vise a demonstrar como o discurso pode exercer controle sobre os modelos mentais de ouvintes e leitores. Van Dijk sugere que a análise comece levando em consideração as macroestruturas semânticas, ou significados globais, que são o tema ou tópicos discursivos. Essas macroestruturas semânticas são importantes porque elas são conscientemente escolhidas pelo produtor do texto. Elas expressam as informações subjetivamente mais importantes do discurso e marcam o conteúdo geral dos modelos mentais dos eventos. Tópicos ou temas são informações mais facilmente memorizadas pelos leitores. São caracteristicamente tópicos ou temas os títulos, os resumos e sumários.
Terminada a análise das macroestruturas semânticas, Dijk recomenda que o analista do discurso concentre sua atenção nas microestruturas semânticas ou significados locais, atualizadas pelas escolhas lexicais e sintáticas feitas pelo produtor do texto e também pelas relações entre conteúdos explícitos e implícitos, tais como as pressuposições, e por outros recursos imagéticos, tais como metáforas e metonímias. Os significados locais são o resultado da seleção feita pelos falantes/escritores de conhecimentos, crenças, ideologias constitutivas de seus modelos mentais. Ademais, tais significados influenciam diretamente os modelos mentais e, portanto, as opiniões e atitudes dos leitores e ouvintes.
Considere-se, para fins de análise, o seguinte texto, sem autoria específica, publicado pelo jornal Correio da Bahia, em 19 de abril de 2011.

Fernando Henrique comete erro de português em artigo

DESLIZE – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso cometeu um erro de português num artigo sobre o PSDB, distribuído a sites e blogs e publicado no endereço eletrônico do partido. O erro foi revelado ontem pela colunista Mônica Bergamo, do Jornal Folha de S. Paulo. No texto, FHC diz que “existe ou existiu até a pouco certa carga fiscal”. O correto é “existiu até há pouco”. O ex-presidente Lula cometia diversos erros de português em seus pronunciamentos. O que chama a atenção no caso de FHC é que ele é extremamente culto e estudado. O ex-presidente é sociólogo formado pela USP, já lecionou na Universidade de Paris e fala fluentemente diversos idiomas, como o francês e o inglês, além do português.


A fim de que fiquem claras as orientações ideológicas que atravessam o texto, é importante saber que o Correio da Bahia pertence à família do ex-senador Antonio Carlos Magalhães, falecido em julho de 2007. Esse jornal é um meio de comunicação à disposição de um grupo político de direita, afinado com grupos ruralistas e com outros grupos conservadores da sociedade brasileira. Um dia antes da publicação desse texto, FHC desafiara Lula para disputar uma eleição presidencial. Essas informações são relevantes porque fornecem pistas sobre que estruturas ideológicas são compartilhadas pelos editores do jornal.
Levando em conta, em primeiro lugar, as macroestruturas semânticas, é notável a preocupação do autor do texto com a correção linguística, o que revela a orientação linguística normativista do jornal. Essa preocupação do autor é a mesma que se expressa no patrulhamento linguístico das elites brasileiras. Após relatar o suposto “erro” linguístico cometido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o autor introduz, sem nenhuma razão aparente, uma informação sobre o ex-presidente Lula: “O ex-presidente Lula cometia diversos erros de português em seus pronunciamentos”. Sem deixar de ser curiosa, a menção aos erros de português cometidos pelo ex-presidente Lula não é por acaso. Ao lembrar que Lula “cometia diversos erros” em seus pronunciamentos quando era presidente, o autor do texto simplesmente aproveita a ocasião para desqualificar Lula. Como sabemos que o jornal Correio de Bahia é controlado por grupos de direita, conservadores, alinhados ideologicamente com as elites brasileiras, e que politicamente fazem oposição a Lula, o autor do texto reproduz essa oposição que é tanto política quanto de origem sociocultural. A expressão do compromisso do autor com o  posicionamento político-ideológico do jornal se torna inegável quando consideramos que, não fazendo mais qualquer referência a Lula, o autor passa a fazer valorações positivas de FHC.
Quando, num segundo momento, consideramos os significados locais, não podemos deixar de notar o uso de expressões valorativas como “extremamente culto e estudado” para caracterizar Fernando Henrique Cardoso. Expressões como estas não só assinalam avaliação positiva, podem, como acontece no texto, orientar o leitor a anuir às seguintes conclusões:

1. Se o erro de português cometido por FHC causa surpresa, os “diversos erros de português”  que Lula, supostamente, cometeu não surpreendem devido à falta de sua formação acadêmica;
2. Fernando Henrique Cardoso é um político mais competente que Lula.

Como se vê, o objetivo do Correio da Bahia é criar uma imagem negativa de Lula e uma imagem positiva de FHC, a despeito de este ter cometido também um suposto “erro de português”, que, aliás, é categorizado como “DESLIZE” (uma forma linguística que conota ‘atenuação, suavização’), o que reforça a ideia de que o que se considera “erro linguístico” depende da origem sociocultural do falante. A avaliação positiva de FHC, que se identifica com grupos de elite, e a construção de uma imagem negativa de Lula, que se identifica com as camadas populares, encenam, no âmbito ideológico, o velho embate etnocêntrico entre NÓS e os OUTROS.


O controle do discurso público: o discurso jornalístico

Hegemonia, conceito-chave do pensamento de Gramsci, designa o modo como um poder governante conquista o consentimento dos governados ao seu domínio. A noção de hegemonia recobre as ideias de ‘consentimento’ e ‘coerção’. Uma poderosa fonte de hegemonia política é a suposta neutralidade do Estado. A hegemonia caracteriza o fato de o poder de grupos dominantes integrar-se a leis, regras, normas, hábitos e a um consenso geral. Os grupos podem exercer maior ou menor controle sobre outros grupos, ou podem controlar certos grupos em situações específicas. Por seu turno, grupos dominados podem, em maior ou menor grau, aceitar, consentir, legitimar esse poder – até mesmo achá-lo “natural”-,  ou podem resistir a ele.
A Análise Crítica do Discurso (ACD) cumpre, como uma de suas preocupações, a tarefa de explicitar e explicar como os grupos que gozam de maior poder controlam o discurso público e como o discurso público passa a controlar a consciência de indivíduos e a ação de grupos (menos poderosos) e quais são as consequências sociais desse controle (por exemplo, desigualdade social, exclusão de minorias, etc.). O acesso à comunicação e ao discurso público, ou o controle exercido sobre essas instâncias, representa um importante recurso simbólico que define a base do poder de um grupo ou instituição.
A maioria das pessoas tem um controle ativo tão somente sobre as conversas cotidianas com membros de sua família, amigos ou colegas. A maioria delas tem controle passivo sobre, por exemplo, os discursos da mídia. Em muitas situações, as pessoas comuns são simplesmente receptoras passivas, em menor ou maior grau, de textos orais e escritos, produzidos, por exemplo, por seus chefes, professores e autoridades como oficiais de polícia, juízes, burocratas da previdência social ou auditores fiscais. Todas essas autoridades dizem em que a maioria de nós deve acreditar (ou não acreditar)  e o que podemos (ou não) fazer.
Por outro lado, membros de grupos e instituições sociais que gozam de maior poder – mormente as elites – detêm o privilégio do acesso mais ou menos exclusivo a um ou mais gêneros de discurso público, exercendo controle sobre esses gêneros. Destarte, os professores universitários controlam o discurso acadêmico; os professores de escola, o discurso educacional; os jornalistas, o discurso midiático; os advogados, o discurso jurídico; os políticos, o discurso da política e de outros assuntos públicos. Quanto maior for o controle dos agentes sociais sobre a maior quantidade de discursos, sobretudo os mais influentes, tanto maior será o poder exercido por esses agentes.
No que se seguirá, serão apresentadas algumas considerações sobre o poder da mídia, com especial destaque ao discurso jornalístico.
Não resta dúvida de que a mídia é um instrumento ou espaço de poder no mundo contemporâneo. Não resta dúvida de que ela desempenha um papel sobremaneira relevante na disputa pela hegemonia, na promoção de ideias identitários, na regulação e normatização de comportamentos, na administração da memória, na constituição da chamada opinião pública e na formulação de agenciamentos democráticos. Sim, a mídia é um poderoso dispositivo simbólico capaz de influenciar significativamente, de formas variadas, a vida cotidiana e a atuação política dos indivíduos – isto é, a maneira como eles agem, sentem, desejam, lembram, convivem e resistem. Entretanto, a mídia não é apenas um instrumento de dominação burguesa; é também uma instância de luta político-cultural, na qual se confrontam diferentes discursos, ideologias e forças sociais. Destarte, ao mesmo tempo que a mídia legitima e sustenta a ação coercitiva do Estado, moldando a vontade política da sociedade, ela oferece também um espaço dinâmico e dialógico de manifestações contra-hegemônicas, de expressão e encenação de vozes dissonantes de atores sociais interessados na criação de novas formas culturais de viver e na criação de uma nova ordem social.
Quando pensamos na influência da mídia na formação da opinião pública, devemos ter em conta que o que se chama de “opinião pública” é sempre um ponto de contato entre o consenso e a força. Os chamados órgãos formadores da opinião buscam captar e expressam o consenso da maioria, consenso este que justifica, legitima e dá sustentação ao poder e à ação coercitiva do Estado. O Estado, quando pretende tomar medidas impopulares, cria preventivamente a opinião pública que lhe é adequada, a fim de obter o consenso geral. Se é verdade que a Rede Globo e um jornal de grande circulação nacional como a Folha de São Paulo cumprem inegavelmente uma função de direção político-cultural, não se deve daí concluir que sejam meros porta-vozes dos interesses das classes dominantes. A Rede Globo, a Folha, o Estado de São Paulo, a Veja constituem um coletivo intelectual que se ocupa da formulação e da elaboração sistemática da ideologia indispensável à dominação do grande capital financeiro. Todas essas instâncias midiáticas modelam a opinião pública e criam o clima cultural favorável e indispensável às reformas liberais de um Governo, como por exemplo, às privatizações do Governo de Fernando Henrique Cardoso.
A mídia, como partido, “captura” as “paixões elementares” das massas, organiza-as e acomoda, com bastante eficiência, a visão de mundo da sociedade às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e aos interesses dos grupos de poder.
A maneira mais elementar e provavelmente mais fácil de o discurso jornalístico formar a opinião pública e expressar o consenso da maioria é reforçando a crença na objetividade do próprio discurso jornalístico. Como o homem comum acredita que usamos a língua para nos referir a um mundo externo de objetos que existem previamente e independentemente da linguagem e da percepção-cognição humanas, não surpreende que ele imagine que, diante de uma notícia que está lendo, ele está diante do que realmente aconteceu. Por acreditar numa relação especular entre a linguagem e o real, o homem comum crê que usamos a língua para falar de um mundo de objetos discretos previamente existente e que a função da língua é apenas fornecer descrições fiéis de estados-de-coisas no mundo. É preciso, no entanto, quebrar o encanto!
O homem, enquanto ser social, é construtor do mundo; e o homem é construtor do mundo porque ele é aberto para o mundo. Consoante ensinam Berger & Luckmann (2007, p. 142), “a experiência humana, ab initio, é uma exteriorização contínua”. Ao se exteriorizar, o homem constrói o mundo em que se exterioriza. No processo de exteriorização, o homem projeta na realidade seus próprios significados. O homem é produtor de significados, e estes significados não existiam antes do advento do homem. Para que fique clara a importância da linguagem no modo como experienciamos a realidade, devemos atentar para como Berger & Luckmann definem o que chamam de universo simbólico:

“O universo simbólico é a matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais. A sociedade histórica inteira e toda a biografia do indivíduo são vistas como acontecimentos que se passam dentro deste universo.” (ibid., p. 132).


Note que os autores ensinam que todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente experienciados como reais são produzidos por essa matriz criadora chamada “universo simbólico”. Ainda segundo os autores, “toda a realidade social é precária” e “todas as sociedades são construções em face do caos”. (ibid., p. 141). Os universos simbólicos, sendo sempre construções linguístico-cognitiva-sociais, recobrindo e totalizando a realidade humanamente dotada de sentido e o cosmo inteiro, proclamam o valor da existência humana – valor, no entanto, que inexiste fora desses universos simbólicos. Os universos simbólicos são as extensões máximas da projeção humana de significados na realidade. Quando eles são questionados e abalados quer por movimentos sociais contestatórios ou revolucionários, quer quando são ameaçados por epidemias e pandemias, a fragilidade da realidade social que eles sustentam é exposta. É o universo simbólico que integrará e unificará todos os processos institucionais. Graças a essa integração e unificação realizadas pelo universo simbólico, a sociedade inteira ganha sentido. Instituição e papéis particulares são legitimados por sua localização em um mundo compreensivelmente dotado de sentido. O universo simbólico ordena a história, o que significa dizer que ele localiza os acontecimentos coletivos numa unidade coerente que abriga o passado, o presente e o futuro. No que diz respeito à sua relação com o passado, o universo simbólico estabelece uma “memória” que é compartilhada por todos os indivíduos socializados na coletividade. O universo simbólico também constrói um quadro de referência comum para a projeção de ações individuais. Assim, o universo simbólico cumpre a função de ligar os homens com seus predecessores e seus sucessores numa totalidade dotada de sentido, possibilitando a eles transcender a finitude da existência individual e conferindo significado à morte individual. Finalmente, o universo simbólico permite que todos os membros de uma sociedade possam conceber-se como partes integrantes de um universo dotado de sentido, que existia antes de terem nascido e que continuará a existir depois de morrerem. É toda a comunidade empírica de seres humanos que é transportada para um plano cósmico e tornada majestática e ficcionalmente independente das vicissitudes da existência individual. Novamente é Berger & Luckmann que assinalam o papel fundamental da linguagem na fabricação social da realidade:

“A linguagem é capaz não somente de construir símbolos altamente abstraídos da experiência diária, mas também de “fazer retornar” estes símbolos, apresentando-os como elementos objetivamente reais na vida cotidiana. Desta maneira, o simbolismo e a linguagem simbólica tornam-se componentes essenciais da realidade da vida cotidiana e da apreensão pelo senso comum desta realidade. Vivo em um mundo de sinais e símbolos todos os dias.” (ibid., p. 61).


A linguagem constrói esquemas de classificação ou categorização para diferenciar objetos em gênero e número. A linguagem constrói campos semânticos ou zonas de significação linguisticamente circunscritas. Por exemplo, a soma das objetivações linguísticas referentes ao meu trabalho constitui um campo semântico que ordena de maneira significativa todos os acontecimentos da rotina que encontro em meu trabalho diário. Nos campos semânticos assim construídos, a experiência, tanto biográfica quanto histórica, pode ser objetivada, conservada e acumulada.
Contrariamente ao realismo ingênuo, o homem não se relaciona com um mundo povoado de coisas independentemente da linguagem e as quais seriam nomeadas pelas palavras, que funcionariam como espécie de “etiquetas” para essas coisas. O referente é um evento cognitivo, produto de nossa percepção moldada discursivamente. A práxis, definida como conjunto das atividades humanas que engendram não só as condições de produção, mas, sobretudo, as condições da existência de uma sociedade, modela a percepção/cognição e gera a significação do mundo. O indivíduo percebe o mundo e o capta intelectivamente através de “óculos sociais”. São através dos estereótipos da percepção, isto é, dos padrões ou modelos perceptivos que vemos a realidade e que fabricamos o referente. A língua une de modo indissociável percepção e cognição, impedindo o indivíduo de ver a realidade de um modo ainda não programado pelos corredores de estereotipação. Assim, nossa cognição está submetida a um processo de estereotipação contínuo, de sorte de que consideramos real e natural todo um universo de referentes e realidades fabricadas.
Todos os significados produzidos pelos universos simbólicos são socialmente construídos. Há uma íntima relação entre percepção, cognição, linguagem e cultura. São os sujeitos que constroem, mediante práticas discursivas e cognitivas, social e culturalmente situadas, as versões públicas do mundo. Segue-se daí que as categorias e objetos de discurso (os referentes) não preexistem às práticas discursivas e cognitivas, mas são elaborados nessas práticas e transformados segundo contextos.
Interpretar é necessariamente uma operação sociocognitiva por meio da qual o sujeito nunca constrói o sentido em si, mas sempre para outro sujeito. Destarte, toda experiência social é semiotizada: atua-se numa situação social investida de sentido e reconstruída pelos esquemas mentais dos interactantes.
As categorias cognitivas ou linguísticas não existem a priori como entidades ontológicas (coisas no mundo). Elas são construídas no processo de referenciação, por meio do qual objetos cognitivos e discursivos são construídos nas práticas intersubjetivas das negociações, das modificações, das ratificações de concepções individuais e públicas do mundo.
Tendo em vista o exposto, urge reconhecer que o discurso jornalístico não produz senão uma ilusão de objetividade. O mundo que nos é representado nas notícias ou nas reportagens é um mundo que passou por processos de edição, ou seja, um mundo redesenhado, redefinido num trajeto atravessado por milhares de filtros até aparecer no rádio, na televisão ou no jornal. A notícia, embora seja um produto real que pode ser lida ou vista, é sempre um símbolo, já que se põe no lugar de outra coisa. Não obstante, a famigerada objetividade do discurso jornalístico é alardeada por especialistas como um princípio ético que torna os gêneros jornalísticos práticas discursivas comprometidas com a “verdade”. Acontece que a crença na objetividade apaga a existência de um sujeito interpretante. Evidentemente, a objetividade do jornalismo é difundida pelos próprios meios de comunicação como garantia de credibilidade e como forma de manter a confiança de seu público, que espera saber o que é e o que não é verdade sobre o mundo. A suposta imparcialidade e neutralidade das informações veiculadas e a afirmada independência do repórter visam a assegurar que o produto midiático é um espelho da realidade. O jornalista seria, assim, responsável por produzir cópias fiéis da realidade.
O leitor, imaginando que está diante do que realmente aconteceu, ignora todo o processo de criação e seleção existente no ato de reportar um fato. Sem embargo, uma vez estejamos convencidos de que há uma complexa interação entre cognição-percepção, linguagem e práticas culturais na fabricação da realidade, o que chamamos de “fatos” são constructos sociocognitivos, em cuja base estão teorias, conceitos, sensações, sistemas, contextos, conhecimentos, linguagem. O discurso jornalístico não descreve ou retrata o mundo objetivo, o mundo aparente e externo à nossa consciência, mas fornece uma versão imagética do mundo, constrói a realidade segundo uma série de processos que culminam na fabricação do fato jornalístico. O jornalismo opera um tratamento simbólico da realidade, mas jamais um retrato do mundo.
Ao pretender relatar os acontecimentos do mundo, o discurso jornalístico discrimina objetos (fatos) já previamente selecionados e nomeados por uma pauta escrita (lista), uma teoria subjacente ou esquemas mentais. Depois de apurada, ou seja, depois que se ouvem possíveis testemunhas do ocorrido e que fontes tenham sido checadas, esta lista e todos os dados são usados para a redação de um texto – a notícia ou a reportagem -, que não sendo um retrato fiel da realidade, é um modelo, uma versão pública do real, cuja construção depende da interface linguístico-cognitiva. Não se trata de negar que exista um mundo externo à mente, mas de fazer compreender que as formas como experienciamos/percebemos o mundo são estruturadas pela linguagem. Vemos e distinguimos as “coisas” como são percebidas e categorizadas pela linguagem.
O discurso jornalístico trabalha tanto com fatos sociais quanto com fatos institucionais. Os fatos sociais dizem respeito a tudo que ocorre na vida em sociedade, a estruturas e contextos, a ambientes onde a atividade social humana acontece. Os fatos institucionais, por sua vez, pressupõem o consenso humano. Exigem uma instituição humana para existir. Por exemplo, para que um pedaço de papel seja considerado um dinheiro, é necessário que seres humanos concordem entre si em atribuir a ele a função de representar sistematicamente o valor de outras coisas em suas relações comerciais. Fatos institucionais não são naturais, mas criações, ficções humanas.
Do repórter que noticia determinado acontecimento até o telespectador/leitor que sobre esse acontecimento se informa, a “realidade” é submetida a vários processos de reconstrução, seleção, adaptação e edição, que tornam o produto final algo diferente e estranho à realidade “objetiva”. A objetividade aparente da informação é, por si só, um instrumento de legitimação de todo o processo de codificação. O leitor de um jornal, por exemplo, acredita estar recebendo um “retrato” da realidade sem distorções ou manipulações. Sob a aparência de se fazer um trabalho objetivo, ao noticiar apenas um fato tal como aconteceu, vela-se um poderoso aparelho ficcional (de invenção, de criação), mediante o qual a realidade é fragmentada, reunida, editada, adaptada e interpretada segundo a ideologia da instituição jornalística. Em suma, a notícia ou a reportagem não é a “realidade”, mas uma representação ou construção ficcional da realidade. Habitando os porões da vida cotidiana, o homem comum ignora que “a linguagem constrói (...) imensos edifícios de representação simbólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana como gigantescas presenças de um outro mundo”. (ibid.). Quando se trata de pensar em que medida a existência humana é dependente de uma rede simbólica tecida e mantida pela linguagem, convém sempre atentar para a lição de Castoriadis:

“Tudo o que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele. Os atos reais, individuais ou coletivos – o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a natalidade – os inumeráveis produtos materiais sem os quais nenhuma sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre não diretamente) símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica”. (Castoriadis, 1982, p. 142).




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A fabricação social da realidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
DIJK, van Teun A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.
____________. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2008.
OLIVEIRA, Luciano A. Van Dijk. In: OLIVEIRA, Luciano Amaral. Estudos do discurso: perspectivas teóricas. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.

sábado, 11 de agosto de 2018

"Quando se diz algo, alguém o diz de algum lugar da sociedade para outro alguém também de algum lugar da sociedade e isso faz parte da significação" (Orlandi).






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Fundamentos teóricos para a  formação do leitor à luz da Análise do Discurso



1. Análise do Discurso e suas rupturas


Em primeiro lugar, o que se pretende, na confecção deste texto, é lançar luzes sobre as condições indispensáveis à abertura de um horizonte problematizador da leitura que permita um contínuo exercício crítico da posição de todos nós, leitores e estudiosos de textos filosóficos, no momento mesmo em que nos debruçamos sobre esses textos com vistas  a alcançar a compreensão. De resto, uma enunciação sobre o acontecimento sócio-histórico de produção da leitura está plenamente justificado, quando levamos em conta que não é possível filosofar sem produção de discursos e que todo o trato com a filosofia é caracterizado pela produção e compreensão de textos. No que diz respeito ao contexto pedagógico em que a lida com textos filosóficos é fundamental para a formação do estudante de filosofia, temos notado que ainda persiste a crença famigerada entre professores (com algumas exceções) de que existe um único sentido para o texto, que é justamente aquele pretendido pelo filósofo que o produziu. De acordo com essa crença, durante a leitura, caberia ao aluno apreender esse sentido a fim de que alcance uma compreensão verdadeira do texto. Essa crença ilusória na existência de um único sentido para um texto tem como correlata a crença num sentido “correto” ou “verdadeiro” para o texto, o que, filosoficamente falando, é totalmente inconsistente com os postulados teóricos da Análise do Discurso. Não só não há um único sentido para um texto como também não cabe falar em “sentido verdadeiro” como aquele sentido pretendido pelo autor do texto,  quer porque todo dizer é atravessado por sentidos outros, que remetem a outros tantos dizeres dos quais o autor do texto em questão sequer está consciente, quer porque não há uma relação termo-a-termo entre linguagem, pensamento e mundo. Não há uma relação especular entre a linguagem e o mundo; o discurso não diz o mundo tal como ele é em si mesmo; mas constrói interativamente uma versão pública (mundo textual) do mundo.
Em segundo lugar, todas as elaborações teóricas que darei a conhecer aqui são indispensáveis à formação do leitor em geral. Espero que este texto seja, especialmente, proveitoso para os professores de português que, ao se ocuparem do ensino da leitura, sentem-se incomodados com a persistência com que o trabalho de leitura em sala de aula fracassa quando o consideramos como o estágio mais importante para a formação de um leitor crítico. Nossa hipótese para explicar esse fracasso calca-se no reconhecimento de que toda uma sorte de noções equivocadas e preconceitos, na medida em que ainda persistem no imaginário dos atores sociais envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, acabam por tornar turvo e nebuloso o caminho que os conduziriam à clareza no tocante ao que significa ser um leitor efetivamente competente.
As considerações que aqui se seguirão se inscrevem e encontram ressonância teórica no contexto do que se convencionou chamar Análise do Discurso – termo, aliás, que, embora correntemente usado no singular, não deve mascarar o fato de que existem diversas Análises de Discurso, as quais, por sua vez, só tenham talvez em comum não só o interesse pelos modos de funcionamento do discurso, mas também uma característica epistemológica importante, a saber, a de ruptura. A ruptura - marca essencial da constituição da Análise do Discurso - se faz, basicamente, como um corte epistemológico relativamente a uma teoria científica, filosófica ou linguística. Pode-se dizer, em suma, que a Análise do Discurso formula uma teoria da leitura que se institui em ruptura com a análise de conteúdo, com a filologia (e a hermenêutica), com os modelos formalistas em linguagem (estruturalismo e gerativismo), com as sociologias da linguagem, com a psicologia, sobretudo em sua versão cognitivista (que implica uma concepção de sujeito uno e consciente e que ignora a intervenção do inconsciente na atividade humana, mormente nas atividades linguísticas) e com a pragmática, cujo principal problema é supor que o sentido é produto da atualização das intenções de um falante. Nesse tocante, ao contrário da Pragmática, a Análise do Discurso não se interessa pelo contexto enquanto cenários institucionalizados. Ela não está preocupada em dar realce às regras que governam as relações entre os participantes de uma atividade numa situação de interação verbal, nem se preocupa com os scripts a serem seguidos por eles a fim de que sejam bem-sucedidos interacionalmente. Sabe-se que a Pragmática mantém que os interlocutores conhecem e seguem regras convencionais que organizam as relações entre eles numa dada situação sócio-interacional. A Análise do Discurso, por outro lado, não se interessa por tais contextos, por tais regras que, supostamente, são conhecidas dos participantes de uma interação verbal. Ela está preocupada com aquilo que justamente escapa ao conhecimento dos sujeitos quando eles falam: o fato de que cada um enuncia a partir de posições que são historicamente constituídas (fala-se como deputado de um partido, de uma frente, de situação ou de oposição, e diz-se o que se deve e se pode dizer, nessa condição). Assim, para a Análise do Discurso, o que confere sentido ao que um enunciador diz não é o contexto imediato ou os implícitos de um enunciado, mas as posições ideológicas a que está submetido e as relações entre o que diz e o que já foi dito da mesma posição, considerando-se, em geral, que ela se opõe a uma que lhe seja contrária. O que é posto em destaque, portanto, é o que se repete, eventualmente durante décadas.
De fato, é a maneira como a Análise do Discurso conceberá e problematizará o sujeito que constitui o ponto fulcral da radicalidade da ruptura que ela estabelecerá com relação às disciplinas mencionadas.
A Análise do Discurso surge na França, pelos idos dos anos de 1960. Seu principal expoente e fundador é Michel Pêcheux. Como seja um campo de estudos transdisciplinar, a Análise do Discurso se constitui teoricamente em constante e produtivo diálogo com outros campos do saber, entre os quais se destacam a Linguística, a Filosofia, a História e a Psicanálise. Quando levamos em conta a constituição da Análise do Discurso como um domínio teórico polêmico, dialogicamente entrelaçado com o campo de estudos da linguagem, três macrocampos de saber se apresentam como partes formadoras do que podemos chamar de a “coluna vertebral” da Análise do Discurso: o materialismo histórico, entendido como teoria das formações e transformações sociais; a Linguística, tomada como a teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação; e a teoria do discurso, que se ocupa da determinação histórica da produção dos sentidos.  O materialismo histórico, que constitui o método de interpretação histórica do marxismo, afirma a não transparência da História. A Psicanálise afirma a não transparência do sujeito. Finalmente, a Linguística afirma a não transparência da língua. Assim, a Análise do Discurso trabalha com dois deslocamentos paralelos: o de sentido e da própria língua em sua relação com a História. A Análise do Discurso trabalha com três modos de opacidade: a do sujeito, a da língua e a da História. O sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo na articulação da língua com a História, na qual intervêm o imaginário e a ideologia.
Não cabe, no presente estudo, evidentemente, empreender um levantamento cuidadoso das consequências teórico-metológicas daquela série de rupturas que entram a fazer parte da dinâmica de formação da Análise do Discurso. O que pretendo é lançar alguma luz sobre o modo como a Análise do Discurso elabora uma teoria do discurso que problematiza tanto o lugar do autor quanto o lugar do leitor, ao mesmo tempo em que abre um novo campo de reflexões sobre a prática de leitura. Ao se instituir como campo de conhecimento em total ruptura com outras áreas epistêmicas que se ocupam da questão do texto e da leitura, a Análise do Discurso buscará definir os conceitos de texto, discurso, sujeito e autor, articulando-os a uma teoria da leitura/interpretação inegavelmente filiada ao trabalho da desconstrução.  Esses e outros conceitos serão discutidos ao longo desta minha exposição. Escusa dizer que o que se seguirá se alinha com a vertente francesa da Análise do Discurso.

2. A leitura na visão da Análise do Discurso

A Análise do Discurso toma o texto como unidade constitutiva da materialidade do discurso. O texto é enfocado em sua discursividade, isto é, enfocado tendo em vista o modo como ele, em seu funcionamento, produz sentido. A análise do discurso preocupa-se em compreender como o texto se constitui em discurso e como o discurso se produz em função das formações discursivas, as quais, por seu turno, se constituem em função da formação ideológica que as determina. Todas as formações discursivas são constituídas de formações ideológicas que as governam. A formação ideológica constitui um conjunto complexo de atividades e representações, que não são nem individuais nem universais, mas que estão ligadas às posições de classes em conflito (Pêcheux & Fuchs 1990, p. 166. apud. Fernandes, 2013, p. 65). Os sentidos dependem do modo como as posições de sujeitos se inscrevem nas formações ideológicas.
O conceito de formação discursiva foi cunhado por Foucault, em Arqueologia do Saber (1969), para designar o domínio que, numa dada formação ideológica, a partir de uma posição social numa conjuntura histórica dada, determina o que se pode e deve-se dizer. É da formação discursiva que as palavras e os enunciados recebem seus sentidos. A formação discursiva refere-se ao que se pode dizer somente em determinada época e espaço social, ao que tem lugar e realização a partir de condições de produção específicas, historicamente definidas. A formação discursiva permite explicitar como cada enunciado tem seu lugar e sua regra de aparição, e como as estratégias que presidem à sua produção derivam de um mesmo jogo de relações; em suma, como um dizer encontra espaço num determinado lugar e época.
Foucault ensina que a formação discursiva torna possível a descrição, tendo em vista certo número de enunciados, de um sistema de dispersão. Além disso, ela permite definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) relativamente a objetos, tipos de enunciação, conceitos e escolhas temáticas. Uma formação discursiva não se limita a uma época apenas. No seu interior, se acham elementos que existiram em diferentes espaços sociais, e em outros momentos históricos, e que reaparecem sob novas condições de produção, tornando-se parte constitutiva de um novo contexto histórico e, consequentemente, possibilitando outros efeitos de sentido.
 O texto interessa à Análise do Discurso somente em função de ser uma parte de um arquivo (corpus). É sumamente importante ter em conta o seguinte: o texto não se confunde com o discurso. Enquanto o discurso é um acontecimento sócio-histórico, é um processo em aberto, o texto constitui uma superfície discursiva, uma manifestação aqui e agora de um processo discursivo específico. O texto é uma peça de linguagem, “uma peça que representa uma unidade significativa”. (Orlandi, 2007, p. 52). O texto é, para a Análise do Discurso, um objeto histórico, ou melhor, um objeto linguístico-histórico, de modo que todo texto é caracterizado por sua historicidade. Embora ele possa ser, para efeito de análise, considerado como um objeto com começo, meio e fim, não se pode perder de vista o fato de que todo texto tem relação com outros textos existentes, possíveis ou imaginários, com suas condições de produção, com sua exterioridade constitutiva (interdiscurso ou memória discursiva). O texto, portanto, não é o objeto final da explicação da Análise do Discurso; é tão só a unidade que lhe permite ter acesso ao discurso. A ordem do discurso se materializa no texto. Segundo Orlandi (ibid., p. 60-61),



O texto é, para o analista do discurso, o lugar da relação com a representação física da linguagem: onde ela é som, letra, espaço, dimensão direcionada, tamanho. É o material bruto. Mas é também espaço significante.


Em suma, como peça de linguagem, como objeto simbólico, o texto é objeto de interpretação. Mas ele é um momento do processo de discursividade. Nem é o ponto de partida, nem é o ponto de chegada da análise. O discurso, por seu turno, não tem origem e não tem unidade definitiva. É sobre o discurso de que o analista se ocupará: ele estará interessado em examinar o processo discursivo, que é o que faz o texto significar. Um texto é uma peça de linguagem e, como tal, é uma peça de um processo discursivo muito mais abrangente; por isso, quando se chega ao processo discursivo, o texto particular analisado deixa de ser uma referência específica para dar lugar à compreensão de todo um processo discursivo do qual o texto em análise e outros tantos desconhecidos são partes.
Mas o que é leitura à luz da Análise do Discurso? Resumidamente, podemos dizer que ela é um trabalho sócio-histórico que tem de levar em conta a incompletude da linguagem. Da noção de incompletude deduz-se duas outras: o implícito e a intertextualidade. Destarte, ler não é apenas levar em conta o que é dito, mas também, principalmente, o que está implícito, o que não está dito, mas está significando.
O leitor, assim, precisa compreender que o que não está dito pode estar sustentando o que está sendo dito; ele precisa ser capaz de apreender o suposto para entender o que está dito; ele precisa reconhecer aquilo a que o dito se opõe. Destarte, há relações de sentidos que se estabelecem entre o que um texto diz e o que ele não diz, mas poderia dizer, e entre o que ele diz e o que outros textos dizem. Essas relações de sentido evidenciam a intertextualidade.
Saber ler envolve a capacidade de perceber que os sentidos em um texto não estão necessariamente nele, mas resultam da relação desse texto com outros textos. Segundo Orlandi (2012, p. 13), “saber ler é saber o que o texto diz e o que ele não diz, mas o constitui significativamente”. A leitura deve evidenciar o modo como um objeto simbólico produz sentidos. Isso implica a compreensão de que o sentido sempre pode ser outro. Portanto, ler não é atribuir sentido, muito embora o sujeito, em face de um objeto simbólico, seja sempre instado a interpretar, a “dar” sentido. Sucede, contudo, que, ao falar ou escrever, o sujeito atribui sentido às suas próprias palavras em condições sócio-históricas específicas. Um dos efeitos da ideologia é assegurar a crença de que o sentido já está dado nas palavras – e não na inscrição das palavras em formações discursivas. É a própria historicidade dos sentidos e as condições de sua produção que se apagam, fazendo desaparecer a exterioridade que os constitui.
O sentido é produzido na relação do histórico (memória discursiva) com o simbólico, e a leitura deve evidenciar a materialidade linguística e histórica do sentido. Os sentidos são partes de um processo; realizam-se num contexto, embora não sejam limitados a ele. Eles têm uma historicidade, têm um passado e se projetam num futuro. Os sentidos são muitos – é verdade -, mas há sempre um sentido enunciável, legível, a partir do qual se produz um gesto de interpretação.
O termo gesto de interpretação constitui um termo técnico cunhado pela linguista e analista do discurso Eni P. Orlandi para designar o fato de que toda interpretação é um ato simbólico caracterizado pela inscrição do sujeito (e de seu dizer) em uma posição ideológica, que delimita uma região particular no interdiscurso, na memória do dizer. Acrescente-se que ideologia, nesse contexto teórico, não é ocultamento do real, mas um mecanismo de produção de uma interpretação necessária que atribui sentidos fixos às palavras. Por isso, o mecanismo ideológico não envolve uma falta, mas um excesso (Orlandi, 2007, p. 66). A ideologia é responsável pelo efeito de evidência do sentido. Por isso “(...) a evidência, em linguagem, é construção da ideologia. É a ideologia que passa por evidente aquilo que é objeto de interpretação: ou seja, só é assim, para aquele sujeito, naquela situação, com aquela memória, tomado pelos efeitos do imaginário que o convoca”. (ibid., p. 150).


2.1. Leitura e interpretação

Para a Análise do Discurso, interpretar não é atribuir sentido, mas expor-se, na lida com o texto, à opacidade da linguagem e do texto, ou melhor, é “explicitar o modo como um objeto simbólico produz sentidos, o que resulta em saber que o sentido sempre pode ser outro” (Orlandi, 2007, p. 64). Ler é, portanto, saber que o sentido sempre pode ser outro. Não há sentido sem interpretação. E o sujeito é sempre sujeito da interpretação e sujeito (estar assujeitado) à interpretação.
Orlandi distingue, entretanto, entre leitura e interpretação. Para a autora, a interpretação é uma noção mais ampla. A leitura, por sua vez, é função da interpretação. Os gestos de interpretação são constitutivos tanto da leitura quanto da produção do sujeito falante, já que, quando fala, o sujeito também interpreta. Para dizer, ele tem de inscrever-se no interdiscurso, tem de filiar-se a um saber discursivo (memória discursiva). Em vista do exposto, o objetivo do analista é determinar que gestos de interpretação estão constituindo os sentidos e os sujeitos em suas posições.




2.2. O sentido, a historicidade do texto e a exterioridade constitutiva

Os sentidos são produzidos na relação do histórico (memória discursiva) com o simbólico, e a leitura deve evidenciar a materialidade linguística e histórica do sentido. Os sentidos são partes de um processo; realizam-se num contexto, embora não sejam limitados a ele. Eles têm uma historicidade, têm um passado e se projetam num futuro. Os sentidos são muitos – é verdade -, mas há sempre um sentido enunciável, legível, a partir do qual se produz um gesto de interpretação.
O sentido de uma palavra ou expressão equivalente é efeito da substituibilidade das expressões cujo conjunto produz ou pode produzir um efeito de referência, isto é, pode produzir a identificação de objetos do mundo a partir de uma perspectiva que, no entanto, jamais é objetiva. O efeito de sentido nunca é o significado de uma palavra; mas o sentido de uma família de palavras que se relacionam entre si metaforicamente. O sentido é, portanto, função de uma dupla de significante/palavra em relação mútua de substituibilidade, mas apenas em cada discurso historicamente dado. Quando considerado no nível do enunciado, o sentido obedece ao mesmo princípio de substituibilidade: o sentido de um enunciado decorre de sua substituibilidade por enunciados equivalentes na mesma formação discursiva. As palavras não tem sentido em si mesmas; seus sentidos derivam das formações discursivas em que elas figuram. A produção de sentido está intimamente ligada à relação parafrástica entre sequências tais, que a família parafrástica dessas sequências constitui uma matriz do sentido. Assim, dado um enunciado como O Brasil precisa voltar a crescer, seu sentido está ligado à relação parafrástica que esse enunciado estabelece com outros equivalentes como O Brasil precisa voltar a gerar renda, O Brasil precisa voltar a gerar empregos, etc.
Creio estar suficientemente claro que, na Análise do Discurso, o discurso não se identifica com a fala, nem com a língua. O discurso, tal como definido pela Análise do Discurso, é um acontecimento sócio-histórico; é, segundo Orlandi (2007), efeito de sentidos entre interlocutores. Tanto o locutor quanto o interlocutor, participantes da atividade discursiva, estão sempre afetados pelo simbólico. Aqueles efeitos de sentidos são consequência das relações entre sujeitos simbólicos que participam do discurso, em condições sócio-históricas dadas. Os efeitos de sentidos se realizam como consequência do fato de esses sujeitos serem situados sócio-historicamente e de serem afetados pelas suas memórias discursivas, as quais, por sua vez, são memórias sociais. As memórias discursivas fundam um espaço que se apresenta como condição de possibilidade do funcionamento do discurso. Esse espaço constitui um corpo sócio-histórico-cultural. (Fernandes, 2007, p. 59-60). O conceito de memória discursiva será definido quando eu me debruçar sobre o conceito de interdiscurso. Desde já, noto que memória discursiva e interdiscurso são conceitos correlatos, sinônimos.
língua não é meramente um código entre outros. Não há separação entre emissor e receptor, como postula uma clássica Teoria da Comunicação. Tampouco a língua é mero instrumento de comunicação. Ao usarmos a língua, não só comunicamos, como também não comunicamos. A língua é, fundamentalmente, uma prática social, e os participantes dessa prática social atuam interacionalmente na produção de significados. O que eles fazem, quando envolvidos nas práticas linguísticas, é produzir discurso. Portanto, o funcionamento da linguagem põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela História, num complexo processo de constituição desses sujeitos e de produção de sentidos.
O texto é caracterizado por sua historicidade. Falar em historicidade do texto é apreender seu acontecimento como discurso, seu funcionamento, o trabalho de sentidos que ocorre nele. Trata-se de pensar a temporalidade interna do texto, ou seja, sua relação com a exterioridade constitutiva, segundo o modo como ela se inscreve no texto. Essa exterioridade não é a exterioridade histórica da qual o texto é um produto; essa exterioridade determina o texto internamente. Não é algo que está lá fora e que se reflete no texto. Não se vai da História (acontecimentos, eventos) para analisar o texto, mas se parte do texto enquanto materialidade histórica, com suas marcas. Destarte, compreender a materialidade do texto é compreender como a matéria textual (historicidade do texto) produz sentidos.
Não se está negando que há uma relação entre a História fora do texto e a historicidade do texto, que é a trama de sentidos nele, mas essa relação não é direta, nem imediata, nem de causa e efeito. Essa relação é complexa e demanda, a fim de que possa ser explorada, a compreensão do funcionamento do texto.


2.3. A história de leituras do leitor e a história de leituras do texto

Segundo Orlandi (2008, p. 42), “em geral, (...) há vários fenômenos de variação que podem estar contidos na afirmação de que a leitura tem uma história”. Ainda segundo a autora, “(...) há leituras previstas para um texto, embora essa previsão não seja absoluta, uma vez que sempre são possíveis novas leituras dele”. (ibid.). Orlandi refere-se a dois entre os elementos que podem determinar a previsibilidade das leituras de um texto:

1) Os sentidos têm a sua história, isto é, há sedimentação de sentidos, segundo as condições de produção da linguagem;

2) um texto tem relação com outros textos.


A consequência mais importante que se pode depreender de 1) é que as leituras já feitas de um texto “dirigem, isto é, podem alargar ou restringir a compreensão de texto de um dado leitor”. (ibid., p. 43). A previsibilidade da história da leitura é recoberta pelas leituras historicamente produzidas para um texto e repertório de leituras de sujeito-leitor sócio-historicamente situado.
Mas é também a história ou o contexto sócio-histórico que, se, por um lado, responde pela previsibilidade de sentidos, por outro lado, constitui o próprio horizonte de pluralidade de leituras possível. O histórico é marcado, portanto, por essa ambiguidade: “porque é histórico, muda, porque é histórico, permanece. (ibid., p. 46). Se há uma relação dinâmica entre as leituras previstas para um texto – domínio de relativa coerção sobre o leitor - e as novas leituras possíveis, como fixar o limite, inegavelmente difícil, entre “aquilo que o leitor não chegou a compreender, o mínimo que se espera que seja compreendido (limite mínimo) e aquilo que ele atribui indevidamente ao texto, ou seja, aquilo que já ultrapassa o que se pode compreender (limite máximo)”? (ibid.).
O que está em questão aqui é a determinação do limite entre uma leitura parafrástica, a saber, aquela que se caracteriza pela reprodução do sentido dado pelo autor e uma leitura polissêmica, a qual se define como produção de múltiplos sentidos para o texto. O critério adotado por Orlandi consiste “na observação da história” (ibid., p. 44), ou seja, na observação da relação da leitura com as suas histórias: a história de leituras do leitor e a história de leituras sedimentadas de um texto. Assim, “uma leitura não é possível e/ou razoável em si mas em relação as suas histórias”.(ibid.). A consequência teórica que se segue daí é, segundo Orlandi (ibid., p.45), a polissemia, “ou seja, [o fato] de ser próprio da natureza da linguagem a possibilidade da multiplicidade de sentidos”. 


2.4. O Sujeito em Análise do Discurso


Desde já, é necessário rechaçar um possível equívoco: o sujeito de que trata a Análise do Discurso não é o sujeito cartesiano, ou seja, como uma consciência unitária e transparente a si mesma, e suposta como existente independentemente do corpo. Esse sujeito cartesiano é um “eu” a-histórico, senhor de si, cuja existência é postulado pelo pensamento. O sujeito de que trata a Análise do Discurso é um sujeito sócio-histórico. Este sujeito não se confunde nem com o autor nem com o indivíduo empírico que produz um texto. Trata-se de uma posição-sujeito ou forma-sujeito  constituída na relação com o simbólico na História. O sujeito é discursivo e descentrado (não é a origem do seu dizer), porquanto afetado pelo real da língua e pelo real da História. Ele não exerce controle sobre o modo como língua e História o afetam. Por isso, o sujeito funciona pelo inconsciente e pela ideologia.
Portanto, não há falante, nem locutor, nem emissor para a Análise do Discurso. Há sujeito, mas o sujeito é clivado, isto é, não é uno; o sujeito é assujeitado, isto é, não é livre e não está na origem do seu discurso. O sujeito são sujeitos na história. Não há sujeitos da história. Não há Sujeito Transcendental, não há Ego Cogito. Segundo Althusser, não há sujeito que seja livre e constituinte da história. Pêcheux dirá que os sujeitos acreditam que utilizam os discursos, quando, na verdade, são seus “servos”, assujeitados, seus “suportes”.
A Análise do Discurso – serei enfático – rompe com a concepção de sujeito uno, livre, caracterizado pela consciência, ou seja, sem inconsciente, sem ideologia. O sujeito não é a origem do que diz.
O assujeitamento do sujeito não é quantificável. Ele diz respeito à natureza da subjetividade, à qualificação do sujeito pela sua relação constitutiva com o simbólico – se é sujeito pelo assujeitamento à língua, na história. Não se pode dizer senão na condição de ser afetado pelo simbólico, pelo sistema significante. Não há nem sentido nem sujeito, se não houver assujeitamento à língua. Para dizer, o sujeito submete-se à língua. Sem esse assujeitamento, ele não pode subjetivar-se. Portanto, com Althusser, devemos dizer que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. Na interpelação do sujeito pela ideologia, critica-se a constituição do sujeito e do sentido. Não há sujeito como origem ou causa de si e o sentido literal é uma ilusão (a ilusão da literalidade).
O sujeito deve sua instituição à interpelação ideológica (Althusser). O sujeito não é o centro do seu dizer, de modo que ele se caracteriza por duas formas de esquecimento: 1oesquecimento – o sujeito se constitui pelo esquecimento da formação discursiva que o determina. Só há sujeito pela sua inscrição na formação discursiva. É devido a esse esquecimento que o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz; 2o esquecimento – o sujeito esquece que há outros sentidos possíveis. Nesse caso, ao formular o seu dizer, vão-se construindo cadeias parafrásticas de tudo aquilo que ele poderia dizer, mas não disse. Quanto mais operamos formulações tanto mais silenciamentos se deixam vazar de nossas palavras. Esses silenciamentos compreendem o domínio do formulável (eles também dizem). Esse esquecimento segundo acarreta a ilusão da relação termo a termo entre o dizer, o pensar e a realidade.
A linguagem é lugar do equívoco, isto é, o equívoco é a falha da linguagem na história. A possibilidade de falha é constitutiva da ordem simbólica. O equívoco é o fato de discurso, pois que o discurso é que articula entre si sujeito, língua e História. A ordem do discurso é resultado da articulação entre a ordem da língua, a ordem da história e seu funcionamento.
O que se chama de “equívoco”, em Análise do Discurso, não é um acontecimento da ordem do formulável, da ordem da relação entre as palavras e as coisas, mas equívoco enquanto constitutivo da relação entre o sujeito e o simbólico, ou seja, sua relação com a ideologia e com o inconsciente. Nesse sentido, o equívoco é que faz com que alguém que fale acredite separar aquilo que é sujeito à interpretação daquilo que não o é. Na verdade, há sempre interpretação. Reitero, pois: há sempre interpretação e faz parte da ilusão imaginária do sujeito crer-se como a origem do sentido, projetando-se sobre a literalidade e imaginando que só alguns sentidos são sujeitos à interpretação, enquanto outros seriam evidentes, literais.  Todo gesto de interpretação é um ato simbólico de intervenção no mundo (Orlandi, ibid., p. 84). É uma prática discursiva, linguística-histórica e ideológica.  Todos os gestos de interpretação são constitutivos tanto da leitura quanto da produção de um sujeito falante. Sempre que fala, o sujeito também interpreta. Sempre que diz, ele tem de inscrever-se no interdiscurso, tem de filiar-se a uma memória discursiva. Em suma, a interpretação é o espaço do possível, da falha, do equívoco, do efeito metafórico, do trabalho da história, do significante, enfim, é trabalho do sujeito.
Retomando-se a contribuição do materialismo histórico para a constituição do campo de estudos da Análise do Discurso, deve-se reter que há o real da História, de sorte que o homem faz história, mas ela não lhe é transparente. Conjugando a língua com a História na produção de sentidos (os sentidos são produto do trabalho de uma relação determinada do sujeito com a História), os estudos do discurso se ocupam com a dinâmica da forma material, que é a forma encarnada na história para produzir sentidos. Essa forma é de natureza linguístico-histórica. Esclarecendo os elementos que estão em jogo no trabalho do analista do discurso, cumpre sublinhar: a) o sentido não é o conteúdo semântico das palavras; b) a História não é um contexto, um enquadramento de acontecimentos; c) o sujeito não é a origem de si e nem está na origem do que diz. A Análise do Discurso está, portanto, preocupada com a ordem do discurso, na qual o sujeito se define por meio de sua relação com o sistema significante dotado de sentidos, sua corporeidade, sua historicidade (Orlandi, 2007, p. 49). O sujeito é, assim, sujeito significante (que significa), é sujeito histórico (ou seja, material). Esse sujeito, conforme mostrei, é uma posição-sujeito, isto é, ele se define como “posição”, porque é um sujeito atravessado por diferentes “vozes”, por diferentes discursos, numa relação, submetida a regras, com a memória discursiva (o interdiscurso). Esse sujeito só existe por sua relação com uma formação discursiva, a qual, por sua vez, mantém relação com as demais formações discursivas. Portanto, o sujeito de que se ocupa a Análise do Discurso é um lugar de significação que se constitui historicamente, vale dizer, pelo interdiscurso: “o discurso não é um conjunto de textos, é uma prática. Para se encontrar sua regularidade não se analisam seus produtos, mas os processos de sua produção” (Orlandi, 2008, p. 55).
Uma vez que não se separam forma e conteúdo, a Análise do Discurso visa a compreender a língua não só como estrutura, mas, sobretudo, como um acontecimento. Da reunião da estrutura e acontecimento, resulta que a forma material (linguístico-histórica) é considerada como o acontecimento do significante (língua) num sujeito afetado pela História. É importante destacar que as palavras que usamos no trato cotidiano com a língua já nos chegam carregadas de sentidos, dos quais ignoramos a origem de constituição. Não obstante, elas significam em nós e para nós.


2.4.1. As representações imaginárias

Quem enuncia A, tem de responder a perguntas implícitas como “quem sou eu para lhe falar assim?”, “quem é ele para eu lhe falar assim?”. Ao enunciar A, o enunciador constrói uma imagem de seu enunciatário, e este, por sua vez, constrói uma imagem do enunciador, e ambos constroem uma imagem daquilo sobre o qual falam. O quadro, no entanto, é mais complexo, porquanto o enunciador faz uma imagem da imagem que o enunciatário faz do próprio enunciador, e o enunciatário faz uma imagem da imagem que o enunciador faz do enunciatário. Essas imagens, para Pêcheux, devem ser tomadas como representações imaginárias, ou seja, os lugares do enunciador e do enunciatário tais como são representados nos processos discursivos em que são colocados em jogo. Se um professor, por exemplo, se dirige a seus alunos, não se deve considerá-los como indivíduos concretos, pessoas, mas como posições historicamente constituídas em sociedades em que essas funções se circunscrevem a certas regras e às quais se chega através de um conjunto de procedimentos. As representações imaginárias resultam de um processo social, ideológico, e não são simplesmente imagens que um locutor faz do outro.


2.5. As formas do silêncio, a incompletude e a opacidade da linguagem

Todo dizer é expressão de uma relação necessária com o não-dizer. Há uma dimensão de silêncio que remete ao caráter da incompletude da linguagem. A incompletude da linguagem se prende ao reconhecimento:

a) da errância dos sentidos (a sua migração);
b) da vontade de um (da unidade, do sentido fixo); do lugar do non sense, o equívoco.
incompletude da linguagem é o lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível. Portanto, a errância dos sentidos, a vontade de unidade, do sentido fixo, o lugar do non sense, o equívoco e a própria incompletude da linguagem (para a qual voltarei olhares mais adiante, a fim defini-la melhor) estão no cerne do funcionamento da linguagem.
Em seu As formas do silêncio (2007), Orlandi escreve: “As palavras transpiram silêncio” (p. 12). Há, pois, silêncio nas palavras. O silêncio é fundante: ele funda a possibilidade de sentido. O silêncio é um lugar de recuo onde se pode significar, a partir do qual o sentido faz sentido. Novamente, ouçamos Orlandi:

“O silêncio como horizonte, como imanência do sentido (...) aponta-nos que o fora da linguagem não é o nada mas ainda sentido” (p. 13).


O silêncio, pensado em sua historicidade constitutiva, não é ausência de som, mas é um acontecimento que atravessa as palavras, que existe entre elas, que indica que o sentido pode ser sempre outro. As palavras produzem silêncio; o silêncio “fala”; as palavras silenciam (p. 14).
O silêncio garante o movimento de sentidos. Dizemos sempre a partir do silêncio. Cada palavra enunciada “apaga” necessariamente outras palavras. Isso se dá porque o silêncio também é constitutivo do dizer. Assim, observa Orlandi



“O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à interpretação: tudo tem de fazer sentido (qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico” (p. 29-30).


Portanto, o silêncio não é falta. A linguagem é excesso. O silêncio não fala simplesmente; ele significa. No silêncio, o sentido é. (p. 32).


“A linguagem é conjunção significante da existência e é produzida pelo homem para domesticar a significação” (ib.id.).


O silêncio é disperso, e a fala o segmenta, o estrutura. O silêncio é o que torna possível a significação, todo dizer. O silêncio é presença. O sentido do silêncio não deriva do sentido das palavras. Nem o sentido, nem a linguagem são transparentes.
Não se pode não significar. O silêncio se relaciona, necessariamente, com a significação, e a linguagem é o movimento incessante das palavras para o silêncio e do silêncio para as palavras. É necessário insistir em que as palavras estão carregadas de silêncio. Por um lado, não podemos suprimir das palavras o silêncio; por outro lado, não podemos recuperar o silêncio só pela verbalização.
Por fim, retomando-se a noção de incompletude da linguagem, reitere-se que a incompletude é uma característica fundamental da linguagem. O fenômeno da incompletude da linguagem recobre a) o fato de serem diversas as formas de manifestação da linguagem; b) o fato de que o sentido está sempre em aberto; c) o fato de que o texto é multifuncional enquanto objeto simbólico. A incompletude repousa no fato de que o dizer é aberto. A crença numa “palavra final” é efeito de uma ilusão. O dizer não tem um início verificável; e o sentido toma múltiplas direções; está sempre em curso. A incompletude da linguagem decorre, portanto, do fato de que a própria linguagem é categorização dos sentidos do silêncio; é um modo de domesticá-los.
A linguagem também é opaca. A opacidade da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem interpretação. A opacidade ou não-transparência da linguagem consiste também na propriedade de o sentido poder ser sempre outro.

2.6. Ideologia

Desde já, deve-se frisar que a ideologia, no contexto teórico da Análise do Discurso, não é uma forma de ocultamento de conteúdos, mas um mecanismo de produção de uma interpretação necessária que atribui sentidos fixos às palavras. Por isso, o mecanismo ideológico não envolve uma falta, mas um excesso (Orlandi, 2007, p. 66). A ideologia representa a saturação do sentido, o efeito de completude, o qual, por sua vez, é responsável pelo efeito de evidência (do sentido).
A ideologia funciona pelo equívoco e se estrutura sob o modo da contradição. Quanto mais centrado o sujeito, mais cegamente ele está preso a sua ilusão de autonomia ideologicamente constituída. É que o sujeito é descentrado, disperso; o sujeito é uma posição-sujeito; muitos dizeres o atravessam, sem que ele tenha consciência disso. Quanto mais certezas acredita ter, menos possibilidade de falhas. A ideologia não afeta o sujeito no conteúdo; ela o afeta na estrutura pela qual o sujeito e o sentido funcionam. Isso significa dizer que a ideologia não é X, mas reside no mecanismo imaginário de produção de X, sendo X um objeto simbólico. Isso decorre do fato de que não há sentido se a língua não se inscrever na História. A ideologia não é, portanto, ocultação; ela é produção de evidências.
Pêcheux propõe uma teoria materialista dos processos discursivos, na qual se articulam três noções:

a) a de discursividade;
b) a de subjetividade;
c) a da descontinuidade ciência/ideologia.

Destarte, ele propõe: a) uma teoria do discurso como teoria da determinação histórica dos processos de significação; b) uma teoria não subjetivista da subjetividade/ c) uma teoria da prática política como prática de produção de conhecimento que reflita sobre as diferentes formas pelas quais a necessidade cega se torna necessidade pensada e modelada como necessidade.
Pela ideologia, afetado pelo simbólico, o indivíduo é interpelado em sujeito. É assim que podemos dizer que o sujeito é ao mesmo tempo despossuído e mestre do que diz. Uma teoria da materialidade do sentido deve mostrar que o sujeito se constitui afetado pelo simbólico na história. Essa constituição do sujeito pelo simbólico na história se dá sob o modo da ilusão que tem o sujeito de ser senhor de si e de seu dizer, de ser fonte de seu dizer. A relação do sujeito com a língua é parte de sua relação com o mundo. Essa relação é social e política. Por conseguinte, é o Estado com suas instituições e relações materializadas na formação social que lhe corresponde, que individualiza a forma-sujeito histórica e produz diferentes efeitos nos processos de individuação do sujeito na produção dos sentidos. É assim que o sujeito não é a unidade de origem, mas o resultado de um processo, um constructo, que tem no Estado sua instância produtora. Consoante ensina Orlandi (2012, p. 107),

Uma vez interpelado em sujeito, pela ideologia, em um processo simbólico, o indivíduo, agora enquanto sujeito, determina-se pelo modo como, na história, terá sua forma individualizada concreta: no caso do capitalismo, que é o caso presente, a forma de um indivíduo livre de coerções e responsável, que deve assim responder, como sujeito jurídico (sujeito de direitos e deveres), frente ao Estado e aos outros homens. Nesse passo, resta pouco visível sua constituição pelo simbólico, pela ideologia. Temos o sujeito individualizado, caracterizado pelo percurso bio-psico-social. O que fica de fora quando se pensa só o sujeito, já individualizado, é justamente o simbólico, o histórico, o ideológico que torna possível a interpelação do indivíduo em sujeito.



A discursividade deve ser, pois, compreendida como efeito material da língua na história – língua, ipso facto, sujeita ao equívoco. A conversão do discurso em texto representa a correlação do sujeito com a função-autor.

2.7 A função-autor

Está claro que o que interessa à Análise do Discurso é compreender como as posições-sujeito se constituem e constituem sentidos na sua relação necessária com o simbólico e a História. O autor é apenas uma função assumida pela sujeito sob o modo da ilusão de ser a origem do que diz. Segundo Foucault (2008, p. 26, grifos meus): “o autor, não entendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”. Para Orlandi (ibid., p. 69), “ o autor já é uma função da noção de sujeito”. O autor é uma função-autor que se realiza toda vez que o sujeito se representa na origem do que diz, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não-contradição e fim. Em suma,



“o que caracteriza a autoria é a produção de um gesto de interpretação, ou seja, na função-autor o sujeito é responsável pelo sentido do que diz, em outras palavras, ele é responsável por uma formulação que faz sentido” (Orlandi, 2007, p. 97).



2.8. Interdiscurso (memória discursiva)

interdiscursividade recobre o entrecruzamento de diferentes discursos, produzidos em diferentes momentos na História e a partir de diferentes lugares sociais. Todo discurso é constituído de diferentes enunciados que o antecedem e o sucedem, e que integram outros discursos. Correlato ao fenômeno da interdiscursividade, o interdiscurso ou memória discursiva é a instância da repetição histórica, porque inscreve o dizer no repetível (interpretável) enquanto memória constitutiva (interdiscurso). Esta memória é uma rede de filiações de dizeres que faz a língua significar. Destarte, sentido, memória e História se entrecruzam no interdiscurso.
O interdiscurso é aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente da formulação de um discurso dado. É a memória discursiva, o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído, o já-dito que está na base do dizível e que dá suporte a toda tomada da palavra. O pré-construído supõe uma oposição entre algo anteriormente estabelecido com o que está sendo construído por ocasião do discurso. O pré-construído é, portanto, a marca num enunciado de um discurso que o antecede. Nesse sentido, o pré-construído se prende inextricavelmente à noção de interdiscurso (o já dito). Há duas coisas importantes que devemos ter em conta nessa noção: a) ela sugere uma imbricação (sobreposição parcial) entre discursos e entre formações discursivas exteriores e anteriores; b) ela também sugere a instabilidade da oposição entre o interior e o exterior de uma formação discursiva.
O interdiscurso põe em movimento dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada. O interdiscurso, em suma, é o conjunto de dizeres já ditos e esquecidos que determina o que dizemos. Para que nossos enunciados tenham sentido, é necessário que já tenham sentido (em outros lugares, em outras formações discursivas).
Tendo ficado claro que o interdiscurso é o próprio espaço de inscrição da memória de dizeres, que a memória discursiva expressa a inscrição da língua na História, levo a termo este texto, referindo as palavras de Orlandi (2010, p.18), que definindo o interdiscurso, sublinha a relação deste com a formação discursiva:



O interdiscurso determina a formação discursiva. E o próprio da formação discursiva é dissimular na transparência do sentido, a objetividade material contraditória do interdiscurso que a determina. Essa objetividade material contraditória reside no fato de que algo fala sempre antes em outro lugar e independentemente. O interdiscurso é irrepresentávelEle é constituído de todo dizer já-dito. Ele é o saber, a memória discursiva. Aquilo que preside todo dizer. É ele que fornece a cada sujeito sua realidade enquanto sistema de evidências e de significações percebidas, experimentadas. E é pelo funcionamento do interdiscurso que o sujeito não pode reconhecer sua subordinação-assujeitamento ao Outro, pois, pelo efeito de transparência, esse assujeitamento aparece sob a forma de autonomia. (grifos meus).






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2008.


ORLANDI, E. P. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas, SP: Pontes, 2007.
________________. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2012.

PÊCHEUX, Michel. Análise do discurso. (org) Eni P. Orlandi. Campinas, SP: Pontes, 2011.