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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

"O homem afirma em Deus o que nega em si mesmo" (Feuerbach)

                                        

        
                                Enquanto bilhões dizem Amém...


                                                     I

No ocidente, o cristianismo se desenvolveu com base na crença na exterioridade de Deus em relação ao homem e ao mundo. Daí para a ideia de Deus como uma projeção, atualmente desacreditada, bastou um passo curto.
Na medida em que fizeram de Jesus o único avatar, os cristãos desenvolveram uma concepção exclusivista da verdade religiosa. Jesus foi considerado a encarnação primeira e definitiva da Palavra de Deus, de tal sorte que outra Revelação futura se tornava desnecessária.
Não foi sem escândalo que os cristãos viram surgir na Arábia do século VII um profeta que preconizava ser portador de uma revelação direta do Deus que os próprios cristãos adoravam. Esse profeta trouxe consigo uma nova Escritura. Essa versão do monoteísmo, que se tornaria conhecida como islamismo, angariou, de modo muito rápido, milhares de adeptos no Oriente Próximo e no Norte da África.
Como, nessas regiões, não se verificava a influência do helenismo, não custou aos adeptos da nova fé abandonar a doutrina grega da Trindade, com a qual o cristianismo ortodoxo expressava o mistério de Deus. O idioma árabe não se prestava à formalização de uma tal concepção trina de Deus, e os adeptos islâmicos puderam adotar uma noção mais semita da divindade.
Se você é cristão, não pode aceitar outra revelação de Deus senão a que se deu por intermédio de Cristo; se é judeu, não poderá aceitar Cristo como o Messias; se é islâmico, deverá assumir que a Revelação definitiva de Deus se deu através da figura do profeta Maomé.
Enquanto nenhuma das partes que julga dispor do privilégio da Revelação de Deus não consegue determinar quem tem razão, Deus permanece sendo um mistério transparente e uma evidência oculta para os que se habituaram a dizer simplesmente Amém.

                                                 
                                                    II

Se você não está disposto a desacostumar-se, muito provavelmente não se entregará à filosofia. Se você vive confortavelmente amparado no sistema de crenças com o qual se habitou, desde tenra idade, a ver o mundo, provavelmente se contentará em dizer aquilo que a maioria gosta de ouvir. Se, além disso, nutre fortes convicções religiosas, muito provavelmente se agradará de dar a conhecer aos que concordam com você em sua cosmovisão o que acredita ser a verdade sobre a identidade de Jesus. Julgará, por força do hábito, que é relativamente simples determinar e revelar o Jesus histórico – afinal, a Bíblia encerra os quatro Evangelhos que nos dão testemunho de quem foi Jesus.
Por estar tão acostumado (ou acostumada) a reproduzir a herança de sua tradição religiosa – e crendo que, ao fazê-lo, satisfaz suas necessidades espirituais, - sequer desconfiará de que é extremamente difícil saber, com segurança, quem realmente foi Jesus e o que ele fez. Uma das razões para essa dificuldade repousa no fato de que os quatro Evangelhos canônicos estão repletos de contradições. Outra razão diz respeito ao fato de eles terem sido escritos décadas após o ministério e a morte de Jesus – e pasme-se! -, sem que seus autores tenham testemunhado os acontecimentos relatados. É isso mesmo: os autores dos quatro Evangelhos não foram testemunhas oculares; as pessoas às quais se atribuiu a autoria não foram seus verdadeiros autores. Os textos foram escritos entre 35 e 65 anos depois da morte de Jesus por pessoas que não o conheceram; pessoas que sequer falavam o idioma que ele falava, e que viveram em outro país.

A despeito disso, a verdade de Jesus fez carreira, pondo em movimento legiões de mentirosos.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

"Pensar sobre Deus é pensá-lo como entidade do discurso" (BAR)

                                                      
                                            


                              A natureza trina de Deus
                               Um retorno às raízes históricas



“No seu trabalho, o historiador não parte dos fatos, mas dos materiais históricos, das fontes, no sentido mais extenso deste termo, com a ajuda dos quais constrói o que chamamos fatos históricos. Constrói-os na medida em que seleciona os materiais disponíveis em função de um certo critério de valor, como na medida em que os articula, conferindo-lhes a forma de acontecimentos históricos. Assim, a despeito das aparências e das convicções correntes, os fatos históricos não são um ponto de partida, mas um fim, um resultado. Por conseguinte, não há nada de espantoso em que os mesmos materiais, semelhantes nisto a uma matéria-prima, a uma substância bruta, serviram para construções diferentes. E é aí que intervém toda a gama das manifestações do fator subjetivo: desde o saber efetivo do sujeito sobre a sociedade até as determinações sociais mais diversas”.

(Adam Schaff)


O texto de Adam Schaff que serve de epígrafe se topa na contracapa do seu livro História e Verdade (1983) e sua apresentação se impõe para chamar a atenção do leitor sobre o que significa servir-se do testemunho histórico na tentativa de edificar alguma construção de verdades. Ainda que o historiador se sirva de materiais históricos disponíveis para atingir, em seu trabalho, algum sentido de verdade, essas fontes, por si mesmas, não lhe dão a verdade. O historiador sempre trabalha sobre esses materiais históricos, construindo uma versão da verdade histórica. Os fatos históricos são sempre produtos do trabalho do historiador sobre esses materiais históricos. Os fatos históricos não são dados de antemão. A subjetividade do historiador está imiscuída nesse trabalho de construção dos fatos históricos. Como os fatos históricos são o resultado desse trabalho de elaboração sobre os materiais históricos acessíveis a um historiador, um mesmo conjunto de materiais históricos pode conduzir outro historiador à construção de fatos históricos distintos. É sempre bom lembrar que a história não é linear: há sempre retrocessos, rupturas e influências mútuas entre os acontecimentos, em diferentes épocas e lugares. As relações de causa e efeito entre os acontecimentos históricos é uma projeção da razão humana. É o homem que atribui aos fatos históricos certa forma lógica, certa ordem e coerência. É razoável dizer que a consciência histórica, enquanto atividade reflexiva sobre a história, é sempre um fenômeno que se constrói num porvir; o sentido da história, enquanto produto do trabalho de reflexão do homem sobre o passado, é construído num olhar retrospectivo, isto é, no espaço de tempo categorizado como futuro. O sentido da história não se faz acessível imediatamente aos homens em cada instante em que se desenrolam suas ações. Eles mesmos quase sempre não se reconhecem como os verdadeiros agentes históricos. Enquanto fazem a história, produzem as condições que lhe turvam a consciência desse fazer: eles creem, assim, que a história se desenvolve por uma força própria, ela mesma depositária de sentido, ou pela atividade de deuses.
Nesse trabalho de elaboração pelo historiador sobre os materiais históricos disponíveis, intervém certo critério de valor e certa forma de articulá-los. A forma de acontecimentos históricos é produto de certo modo de articulação dos materiais históricos disponíveis sobre o qual recai o trabalho do historiador. Em suma, o historiador jamais narra simplesmente os fatos passados, jamais conta o que aconteceu no passado, mas reconstrói o passado, na medida em que confere certa forma (estrutura) aos acontecimentos passados. Se há um trabalho narrativo do historiador, esse trabalho é, em seu desenvolvimento mesmo, uma forma de interpretação (entenda-se reconstrução, ordenação, pela atribuição de sentidos) dos acontecimentos do passado.
Gostaria de que o leitor tivesse em conta o que aqui se disse sobre o trabalho do historiador durante a leitura deste texto. Dois pressupostos estarão a sustentar o edifício das reflexões, a cujo trabalho de construção me lanço:

1º pressuposto: o conceito de Deus é resultado de um trabalho de construção sócio-histórico e ideologicamente determinado, ao longo do qual intervieram inúmeras disputas apaixonadas com vistas a determinar qual das interpretações, então em disputa, era a interpretação correta.

2º pressuposto: as disputas que se desencadeavam na tentativa de determinar a natureza de Deus, embora se pautassem pela suposição de que Deus é dotado de uma realidade transcendente à história, se revelam, à luz de um exame histórico-crítico, disputas sobre qual deveria ser o significado “correto” de um objeto-de-discurso, em cujo processo de significação e ressignificação intervém o domínio do histórico.

No tangente ao pressuposto primeiro, preciso esclarecer que emprego o termo ideológico para caracterizar um sistema de crenças, de ideias e valores que produzem uma falsa consciência da realidade, em virtude da qual os homens acreditam que as ideias existem independentemente das condições sócio-históricas em que elas são produzidas. A própria consciência, no trabalho de falsificação da realidade pela ideologia, não se percebe como produto sócio-histórico, mas como existindo independentemente dessas condições. Assumo, portanto, o que nos ensinou Marx sobre a ideologia. A ideologia é, em suma, o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido) pelo qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Quanto ao segundo pressuposto, convém dizer que um objeto-de-discurso é sempre um referente construído e reconstruído na atividade discursiva, sem que seja necessário que ele tenha um objeto correspondente no mundo extra-mental. Objetos-de-discurso constituem entidades que se originam de uma construção mental, e não de um mundo sensível. É no discurso que esses objetos são postos, delimitados, transformados, desenvolvidos, etc. (Neves, 2006). Por isso, parece-me que Deus pode ser reduzido a um objeto-do-discurso, já que, no quadro de uma hermenêutica da suspeita, “Deus” deve revelar-se tão-só como entidade do discurso, o que não significa negar-lhe a influência sobre a vida prática daqueles que o consideram como fonte última de todo sentido possível. Mesmo, nesse caso, Deus não deixa de ser um objeto manipulado, em práticas discursivas, pela cognição humana, cujo desenvolvimento é sempre da ordem do social.
A fim de ilustrar o conceito de objeto-de-discurso, considerem-se as seguintes frases abaixo:

(1) Esse menino precisa tomar juízo.
(2) Esse moleque precisa tomar juízo.
(3) Esse aborrecente precisa tomar juízo.

Nas três frases, o SN (sintagma nominal) sujeito é categorizado de modos distintos. Há três formas distintas de referenciação. Em (1), a lexicalização “menino” é “neutra”, quando comparada às lexicalizações de (2) (moleque) e (3) aborrecente. Nesses dois últimos casos, as categorizações incluem um traço de pejoratividade. As três expressões descritivas se referem a uma mesma entidade categorizada de modos distintos. O uso do demonstrativo “esse” pressupõe a possibilidade de identificação dessa entidade pelos interlocutores. Para que uma referenciação seja bem-sucedida, é necessário que o conhecimento do referente seja acessível ao interlocutor, quer por ser pressuposto como partilhado com ele, quer por pistas textuais mapeadas no processo de leitura. Nos três casos, a entidade supostamente existe no mundo extralinguístico, mas isso não tem importância quando se considera a referenciação e os objetos-de-discurso. Os usuários da língua, ao produzir um discurso, negociam um universo de discurso do qual falam. O mundo do discurso não espelha o mundo real. Referenciação implica interação e intenção, de modo que, na referenciação, ou seja, no processo pelo qual os interlocutores constroem e reconstroem continuamente uma rede de objetos-de-discurso, importa considerar se eles referiram-se a uma entidade cuja identidade pretenderam ou não definir. O referente é um objeto construído no e pelo discurso. Todos os objetos de conhecimento são objetos de discurso (Marcuschi, 2007).
Quando se diz “Deus é o criador do universo”, a expressão definida “o criador do universo” é uma categoria em que se coloca o referente designado por “Deus”. Trata-se de uma categoria cognitivamente estabelecida. O uso do artigo definido “o” supõe a unicidade desse Deus criador, ou seja, ele é o único Deus responsável pela criação do universo, e não há outro. Se a frase é produzida por uma pessoa que nasceu e se desenvolveu numa sociedade cujos valores, costumes, formas de viver estão calcados sobre a tradição judaico-cristã, as expressões “Deus” e “o criador do universo” ativará  uma série de conhecimentos, produzidos e disseminados nessa cultura da qual depende sua constituição como sujeito histórico -  conhecimentos estes indispensáveis à compreensão do enunciado. Por exemplo, essa pessoa interpretaria “Deus” como um deus pessoal e único, um deus que é pai, de quem se acredita enviou seu único Filho para salvar a humanidade, etc. Se, no entanto, esse mesmo enunciado fosse produzido por um hindu, aquelas expressões ativariam outros conhecimentos como parte de seu background cultural. Nesse caso, por exemplo, Deus referir-se-ia a Brahma, que é o deus criador do universo no hinduísmo, deus que tem uma esposa, chamada Sarasvati, etc. Como os enunciados são sempre produtos sócio-históricos, seus modos de recepção variarão segundo essas condições.
Em suma, a discursivização ou textualização do mundo não se reduz a um processo de elaboração de informações; ela é um processo de (re)construção da própria realidade. A referenciação é uma atividade sócio-interacional-cognitiva através da qual se vão construindo objetos-de-discurso.

Os acontecimentos que se vão impor à meditação, doravante, se estendem entre os séculos I e IV E.C (da Era Cristã)


1. Contextualização: Por volta de 320 E.C.

Considere-se, em princípio, o seguinte passo de Armstrong, colhido de Uma história de Deus (2008). O trecho se reporta ao século IV E.C.

“Por volta de 320, uma ardente paixão teológica tomou conta das igrejas do Egito, Síria e da Ásia Menor. Marinheiros e viajantes cantavam modinhas proclamando que só o Pai era o verdadeiro Deus, inacessível e único, mas o Filho não era nem coeterno nem incriado, pois recebeu a vida e o ser do Pai” (p. 147).



Antes de me ocupar com o desenvolvimento das questões que mais diretamente me interessam, gostaria de retomar o que expus sobre o conceito de referenciação e objetos-de-discurso, tendo em vista a necessidade de ilustrá-los mais uma vez, com base no referido excerto. O texto de Armstrong não deve ser concebido como resultado de encadeamentos de informações objetivas sobre estado-de-coisas num tempo passado determinado, mas como um processo interacional de construção de sentidos e de uma versão da realidade. Compreendamos de que modo a realidade é construída no texto. Tomemos as expressões “uma ardente paixão teológica”, “o Pai”, “o verdadeiro Deus”, o “Filho” (outras poderiam ser consideradas). Essas expressões introduzem objetos-de-discurso, a partir dos quais se constroem predicações (atribuição de relações, propriedades). Assim, por exemplo, de “uma ardente paixão teológica” diz-se que “tomou conta das igrejas do Egito, Síria e da Ásia Menor”. A expressão “uma ardente paixão teológica” categoriza certo modo de ver/interpretar o interesse pela igreja por uma questão teológica determinada. O referente “uma ardente paixão teológica” é introduzido no discurso e fica ativo na consciência do leitor. O enunciado “uma ardente paixão teológica tomou conta das igrejas do Egito, Síria e da Ásia Menor” representa um estado-de-coisas (uma espécie de cena do “mundo” lingüística-cognitivamente construída), no interior do qual duas entidades são predicadas: “uma ardente paixão teológica” (sujeito) e “das igrejas do Egito...” (objeto). As expressões definidas “o Pai” e o “Filho” pressupõem que os referentes são partes do conhecimento de mundo do leitor; elas remetem, respectivamente, a “Deus” e a “Jesus Cristo”. “O Pai” é categorizado como “o verdadeiro Deus”. Essas diferentes formas de categorizar os referentes vão ter efeito sobre a construção da argumentação. Note-se que “o verdadeiro Deus” é qualificado como “inacessível” (incognoscível) e “único”. Ora, o que se fez foi construir uma representação cognitivo-discursiva do referente descrito com a expressão “o Pai”. As expressões descritivas “o Pai” e “o verdadeiro Deus” denotam propriedades que permitem identificar o referente cognitivo que representa o Ser transcendente e criador do universo. Note-se que, quando se trata de explorar a noção de objetos-de-discurso como entidades postas no e pelo discurso, não escapamos de recorrer a contínuas categorizações do referente, cuja existência ou não no mundo extra-mental não tem importância.  
Se pedíssemos a alguém que reescrevesse o texto, o que teríamos como resultado seria mais do que uma nova versão do texto, mas sobretudo uma outra versão do mundo textualmente construída. Quem estivesse selecionando, no processo de reescrita, suas próprias palavras e modos de encadeá-las, estaria construindo seu modo próprio de perceber/compreender/ ordenar o mundo.
As expressões que destaquei ativa uma série de conhecimentos de mundo no leitor. Ao ler o texto, ele reconhece, com base nesse conjunto de conhecimentos, que “o Pai” é uma forma de categorizar o “Deus” judaico-cristão. Ele sabe também que “o Filho” categoriza Jesus Cristo. Com um pouco de atenção, ele infere que “uma ardente paixão teológica” (que já encerra rastros de autoria, pela presença do adjetivo “ardente”) diz respeito a uma questão que envolve a relação entre “o Pai” e “o Filho” e que, em última instância, é o problema de como determinar a natureza desse “Filho”.
Prossigamos, no entanto. Havia quem, naquele tempo, dissesse que o Filho provinha do nada; outro dissertava sobre a distinção entre a ordem criada e o Deus incriado. Havia pessoas que afirmavam ser o Pai maior que o Filho. Consoante observa Armstrong: “As pessoas discutiam essas questões abstrusas com o mesmo entusiasmo com que hoje discutem futebol” (ib.id.).
O presente texto, portanto, versa sobre o processo pelo qual se foi construindo uma representação de Deus que se tornou a compreensão correta da natureza de Deus, pelo menos para os católicos. Esse processo culminou na doutrina da natureza trina de Deus. Mas até que se tenha chegado a desenvolvê-la, sucederam muitas disputas em torno de qual seria a interpretação “correta”. Dois personagens se destacam nesse cenário: o presbítero de Alexandria chamado Ário e seu rival Atanásio, bispo de Alexandria. Outros atores sócio-históricos, cuja influência nesse processo foi significativa, serão trazidos à cena, muito embora o foco de minha atenção recaia sobre a disputa entre Ário e Atanásio cujas visões estavam no centro das calorosas discussões no interior da Igreja cristã primitiva.
O período de tempo a que se reportam as reflexões que serão desenvolvidas se estende entre os séculos I e VI E.C., tempo em que a fé cristã avançava no mundo romano-helenístico.

2. O Desafio de Ário

A controvérsia sobre a natureza de Jesus e sobre sua relação com Deus foi animada ainda mais por Ário, famoso professor cristão de Alexandria, Egito, do século IV. Ário lançou um desafio que os bispos julgaram impossível ignorar. Esse desafio consistia na questão: Como Jesus Cristo poderia ser Deus do mesmo modo que Deus Pai?
Ário não negava a divindade de Cristo, a quem chamava “Deus forte” e “Deus pleno”, mas considerava blasfêmia pensar que ele era divino por natureza. Ário alegava que o próprio Jesus disse que o Pai é maior que ele. A controvérsia se acirrou tanto que exigiu a intervenção do imperador Constantino, o qual convocou um sínodo em Nicéia, na atual Turquia, a fim de que a questão fosse debatida.
Embora hoje o nome de Ário esteja ligado à heresia, naquele tempo era difícil dizer que ele estava errado.
Orígenes, padre e eminente pensador, nascido por volta de 185 em Alexandria, defendia uma doutrina semelhante à de Ário. Segundo Orígenes, o Deus único e uno preexiste à pluralidade das coisas. Retoma-se aqui o problema do uno e do múltiplo no platonismo. Orígenes deu ênfase à unidade que, para ele, precedia toda a multiplicidade. Por isso, também precedente é a unicidade e simplicidade de Deus. Deus é a única e suprema realidade, é puro espírito, o que significa que é inteiramente imaterial. Também Deus é pura razão e origem de toda a razão, eternidade precedente ao tempo e absolutamente transcendente, incognoscível e incomensurável, e eternamente necessário.
A época de Orígenes é marcada, como se sabe, pelo encontro da fé cristã com a filosofia grega e, por consequência, pelas insistentes tentativas de aperfeiçoamento conceitual da fé cristã em Deus. É claro que o clima intelectual da Alexandria já não era o mesmo desde os tempos de Orígenes. As pessoas já não estavam tão seguras de que o Deus de Platão podia conciliar-se com o Deus da Bíblia. É nesse ambiente de efervescência e suspeita teológicas que Ário e Atanásio passariam a sustentar doutrinas surpreendentes para qualquer platônico. Eles consideravam que Deus criara o mundo a partir do nada (ex nihilo), e buscaram basear sua posição nas Escrituras. É preciso acentuar, com Armstrong, a originalidade da visão desses teólogos:

“Na verdade, o Gênesis não diz isso. O autor sacerdotal sugere que Deus criou o mundo a partir do caos primordial, e a ideia de que Deus tirou todo o universo de um vazio absoluto era inteiramente nova (p.148)”.


Essa ideia era estranha não só ao pensamento grego, como também não ocorreu a pensadores como Clemente e Orígenes, aos quais a teoria platônica da emanação agradava.
Compreendamos a visão de Ário. O problema que preocupou os primeiros cristãos e, particularmente, Ário, é o da relação entre o Pai (Deus) e o Filho (Jesus). As discussões que se seguiram daí culminaram no estabelecimento da doutrina da Trindade, conhecida hoje por cristãos católicos (não que todos os fiéis católicos a compreendam ou com ela se importem).
No século IV, Ário propunha uma doutrina que diferia da doutrina aceita pelos cristãos proto-ortodoxos, os quais já haviam logrado êxito na quase completa eliminação de outras heresias, como a dos ebionitas, a dos marcionitas e de outros tantos grupos gnósticos. Era quase unânime, nas esferas da Igreja, a aceitação da doutrina segundo a qual Jesus era, de fato, divino, embora houvesse apenas um Deus. Mas, se só existia um Deus, como poderia também Jesus ser Deus?
A solução dada por Ário fora embasada no Novo Testamento e em pensadores cristãos anteriores. Ela consistia em dizer que Cristo era um ser divino, mas estava subordinado ao Deus Pai em poder e essência. Na origem, havia apenas um Deus único, mas Deus, nos primórdios, criara um segundo ser divino, seu filho Jesus Cristo, por intermédio do qual Deus criou o universo. Cristo (o Lógos) se fez humano na encarnação.
A visão de Ário supõe que, em um tempo passado e distante, Cristo não existia. Ele passou a existir em um dado momento por obra de Deus. No entanto, posto que fosse divino, não era igual a Deus Pai, porquanto era o Filho, condição esta que o subordinava ao Pai.
O Pai e o Filho não eram da mesma substância (ousia), mas eram semelhantes em substância. Vou pormenorizar essa ideia; antes de fazê-lo, porém, preciso dizer que essa visão foi assaz popular na época, ainda que houvesse alguns teólogos cristãos que dela discordassem. Veremos que o oponente mais conhecido foi um jovem diácono da igreja de Alexandria, chamado Atanásio. Ele, juntamente de outros teólogos, argumentara que Cristo tinha a mesma substância de Deus Pai e que eles eram totalmente iguais, e que jamais houve um tempo em que Jesus inexistia.
O Evangelho segundo João afirma que Jesus era o Lógos. O Lógos foi o instrumento de que se serviu Deus para criar todos os seres. Portanto, todos os seres diferiam totalmente de Deus. Ário sustentava, por isso, que Jesus não era Deus por natureza, embora tivesse sido promovido ao status divino pelo próprio Deus. Jesus diferia de todos nós, porque fora criado diretamente por Deus e porque serviu de meio para que Deus criasse todas as outras coisas. É preciso reter a ideia de que a divindade não era inerente a Jesus, segundo acreditava Ário. Ela era uma recompensa de Deus.
Ora, se Deus era Pai, então o Filho era anterior ao Pai e não poderia ser da mesma substância do Pai. Mas Ário estava convencido de que os cristãos foram salvos e divinizados por Jesus. Jesus lhes abriu o caminho. Jesus viveu uma vida humana perfeita; se não tivesse sido humano, concluía Ário, não haveria esperança alguma para nós. Ele tinha de ser humano, ou melhor, perfeitamente humano, para que fosse um modelo a ser imitado. Era na contemplação da vida humana e perfeita do Filho que os cristãos se tornariam divinos. Imitando Jesus, eles se tornariam “perfeitas criaturas em Deus”.
Deve-se sublinhar que, enquanto Ário situava Jesus no mundo criado, Atanásio o situava no mundo divino. Ário se preocupou em enfatizar a diferença essencial entre o Deus único e todas as suas criaturas. Ário era um homem muito versado nas Escrituras e se valeu de uma grande quantidade de seus textos para endossar sua doutrina. Para ele, Cristo, o Verbo, era apenas uma criatura como nós, ou seja, era humano.
Segundo o livro dos Provérbios (8: 22), Deus criou a sabedoria já no início: “O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos, desde então, e antes de suas obras”. A Sabedoria, de acordo com esse texto, foi o agente da criação. Essa mesma ideia se topa em João (1:3) – “Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do foi feito se fez”. Em João, lemos que O Verbo estava com Deus no início.


3. A visão gnóstica no século IV

No século IV, os cristãos comungavam da visão gnóstica do mundo, à luz da qual este mundo era inerentemente imperfeito e frágil. Esse mundo – mundo que habitamos – era separado de Deus por um abismo.. O cosmo era frágil e totalmente dependente de Deus. Isso está no cerne da doutrina da criação ex nihilo. Deus e os homens eram muito diferentes. Deus criara do nada abissal cada um dos seres que habitam o mundo e podia, quando quisesse, abandoná-los.

“Não havia mais uma grande cadeia grande cadeia do ser eternamente emanando de Deus; não havia mais um mundo intermediário de seres espirituais que transmitiam o mana divino ao mundo (Armstrong, p. 148)”.


A ascensão de homens e mulheres na cadeia do ser a Deus não poderia se dar por esforços próprios deles. Apenas Deus, que os criara a partir do nada, poderia garantir sua eterna salvação. Somente Deus que lhes conservava a existência é que podia salvá-los da morte eterna.


4. A figura salvífica de Jesus Cristo

Os cristãos estavam convencidos de que Jesus Cristo os salvou quando de sua morte e ressurreição. Estavam certos de que, graças a Jesus, eles haviam se livrado da extinção e de que, um dia, viriam a tomar parte da existência de Deus, que é o Ser e a Vida. Cristo lhes permitiu ultrapassar o abismo que se interpunha entre eles e Deus. Mas havia um problema: De que modo o fez Jesus?
Cristo, o Verbo, afinal, pertencia ao reino divino ou à frágil ordem criada? Em suma, a questão que perturbava Ário e Atanásio, particularmente, era a de determinar a natureza de Jesus.


5. A visão de Atanásio

Atanásio, bispo de Alexandria e opositor de Ário, era menos otimista no tangente à capacidade humana de conhecer verdadeiramente a Deus (entenda-se: participar da substância de Deus). Ele via a humanidade como inerentemente frágil, já que proviemos do nada e retornamos ao nada quando pecamos.
É tão-somente por meio de seu Lógos que Deus dá ao homem a graça da salvação. É porque  só Deus é o Ser perfeito que o homem se livra da aniquilação. O Lógos não poderia contribuir para salvar o homem, se fosse ele mesmo, Lógos, humano. Segundo Atanásio, o Lógos se fez carne para nos dar vida. Descera ao mundo perecível e corruptível para nos ofertar uma parte da imortalidade de Deus.
Na reunião em Nicéia, em 20 de maio de 325, os bispos, preocupados em resolver a crise, não estavam todos de acordo com Atanásio. A maioria deles preferiu adotar a posição intermediária entre Atanásio e Ário. Não obstante, Atanásio conseguiu impor sua doutrina. Sob a vigilância do imperador, apenas Ário e dois tenazes companheiros se negaram a assinar o credo. Destarte, a doutrina da criação ex nihilo se tornou oficial, não sem a ressalva de que Cristo não era uma simples criatura ou éon (emanação de Deus). O Pai, o Criador; e o Filho, Redentor, eram o mesmo (Armstrong, p.151).
A verdade é que unanimidade fora sempre estranha à história do desenvolvimento dos cristianismos primitivos. Constantino se agradava do acordo, conquanto nada soubesse de questões teológicas. Após o concílio de Nicéia, os bispos persistiam em ensinar o que ensinavam antes, e a crise prolongou-se por mais sessenta anos (Armstrong, p.152).
Atanásio enfrentou dificuldades para tornar seu credo aceitável, não por acaso foi exilado cinco vezes. A que se devia – vale perguntar – a dificuldade para tornar sua doutrina aceitável? Em parte, a dificuldade repousava sobre o termo grego homoousion (“feito da mesma substância”). Tratava-se de um termo que acarretava muita controvérsia, dado que não era atestado nas Escrituras e tinha uma conotação materialista.
Ademais, a doutrina de Atanásio ignorava muitas questões importantes. Por exemplo, conquanto declarasse que Jesus era divino, silenciava sobre como o Lógos poderia ser “da mesma substância” do Pai sem ser um segundo Deus.

5.1. A contribuição de bispo Marcelo

Em 339, coube aos bispo Marcelo, de Ancira – amigo fiel de Atanásio – dar uma solução ao problema, afirmando que o Lógos não podia ser um ente eterno. O que era, pois, o Lógos? Segundo Marcelo, era tão-somente uma qualidade interna de Deus. Em vez do termo problemático homoousion, Marcelo sugeriu o termo homoiousion, que significa “de natureza semelhante”. Muitos cristãos estavam, no entanto, tenazmente convencidos da essencialidade da divindade de Cristo. Tal como Marcelo, eles temiam que se dissolvesse a unidade divina. Marcelo parecia acreditar que o Lógos era apenas uma fase temporária: ele emergira de Deus na criação; fez-se carne em Jesus e, uma vez completando a redenção, tornaria a integrar a natureza divina, de modo que o Deus Uno fosse completo.
Marcelo acabara por convencer Atanásio de que suas visões eram conciliáveis. Os que sustentavam ser o Lógos da mesma substância e os que sustentavam que ele era semelhante em natureza com o Pai eram irmãos, que só discutiam sobre terminologia. Essa saga manobra ideológica de Marcelo visava claramente a consolidar uma aliança de poder no interior da Igreja. Ao delimitar sua posição político-teológica, Marcelo identificava, ao mesmo tempo, um adversário em comum: Ário. Era Ário que devia ser promovido à condição de adversário, pois que era ele quem afirmava que o Filho era completamente distinto do Pai e que tinha uma natureza também diferente. O leitor talvez esteja, a esta altura, convencido de que todos os debates eram infrutíferos, conforme nos assinala Armstrong, “para alguém de fora, essas discussões teológicas são pura perda de tempo: ninguém consegue provar nada em definitivo e a disputa só cria dissensão” (p. 153). De fato, mas, prosseguindo Armstrong, “para os participantes, esse debate nada tinha de árido, mas abordava a natureza da experiência cristã” (ib.id.).
Àrio, Atanásio e Marcelo concordavam, no entanto, na ideia de que Jesus trouxe ao mundo algo novo e não mensuraram esforços para dar conta disso, por recurso a conceitos simbólicos. Somente por meio de símbolos se poderia alcançar realidades inefáveis.
A tendência dogmática, tão profundamente marcante na história cristã, viria a exigir a adoção de símbolos corretos ou ortodoxos.

“Essa obsessão doutrinária, única do cristianismo, podia facilmente levar a uma confusão entre o símbolo humano e a realidade divina. O cristianismo sempre foi uma fé paradoxal: a poderosa experiência religiosa dos primeiros cristãos superava suas objeções ideológicas à infâmia de um Messias crucificado. Agora, em Niceia, a Igreja optaria pelo paradoxo da Encarnação, apesar de sua visível incompatibilidade com o monoteísmo” (ib.id.).


Espero, pois, esteja claro que grande parte da Igreja cristã, à época, estava dividida no tocante à questão de determinar se Jesus era da mesma substância que o Pai ou se era apenas de  “substância similar”. Historiadores posteriores notaram, com alguma ironia, que a Igreja estava dividida apenas pela letra “i”: homoousias ou homoiousias.


5.2. Os teólogos de Capadócia e a Igreja cristã ortodoxa oriental

 A dúvida acossava ainda os cristãos: se só existia um Deus, como o Lógos poderia ser divino?
Três eminentes teólogos da Capadócia, no leste da Turquia, apresentaram uma solução que acabou por satisfazer a Igreja ortodoxa oriental. Eram eles Basílio, bispo de Cesária (329-79), seu irmão Gregório, bispo de Nissa (335-95), e seu amigo Gregório de Nazianzo (329-91).
Os capadócios eram profundamente espirituais e muito se agradavam da especulação filosófica; todavia estavam convencidos de que somente a experiência religiosa poderia solucionar o problema de Deus.
Esses teólogos eram versados em filosofia grega e, portanto, não encontraram dificuldade em constatar uma diferença fundamental entre o conteúdo factual da verdade e seus aspectos mais vagos.
Platão estabelecera uma oposição entre a filosofia, fundada na razão e, por isso, demonstrável, e o ensinamento, não menos importante, irredutível à demonstração científica. Aristóteles, por seu turno, havia notado que as pessoas iam aos cultos dos mistérios não para aprender (mathein), mas para experimentar (pathein). Inspirado em Aristóteles, Basílio fez a mesma distinção num sentido cristão. Para Basílio, havia dois tipos de ensinamentos: dogma e kerygma. Trata-se de ensinamentos essenciais à religião. Kerygma é o ensinamento ministrado pela Igreja ao público. Ele se baseia nas Escrituras. Dogma, a seu turno, representa a verdade bíblica em seu sentido mais profundo, somente apreensível pela experiência religiosa e exprimível pela forma simbólica.
Destarte, foi gestada a crença de que, a par da clara mensagem dos Evangelhos, havia um ensinamento secreto ou esotérico transmitido pelos apóstolos. Os símbolos litúrgicos e os ensinamentos de Jesus ocultavam um dogma que expressava uma compreensão mais elaborada da fé. Logo, a distinção entre esotérico e exotérico seria indispensável à história de Deus. Judeus e muçulmanos – não só cristãos – também desenvolveriam uma tradição esotérica.
O que Basílio queria mostrar é que nem toda verdade religiosa podia ser expressa e definida pelos cânones lógicos. A ideia de doutrina “secreta” significava irredutibilidade à explicação lógica, e não conhecimento privado de iniciados. Como todas as religiões se ocupam de uma realidade inefável, que transcende os conceitos e as categorias do entendimento humano, é de se esperar que o discurso produzido sobre ela seja confuso.
Portanto, segundo Basílio, as Escrituras encerram um significado espiritual nem sempre explicável. É preciso frisar o que separava fundamentalmente a Igreja cristã ocidental da Igreja cristã oriental. No ocidente, a Igreja cristão construiu sua teologia com base no kerygma; na Igreja ortodoxa grega, por outro lado, toda considerável teologia era silenciosa ou apofática. Segundo o entendimento de Gregório de Nissa, o conceito de Deus é um mero simulacro, uma falsa imagem, um ídolo. Jamais revela Deus. Deus em sua essência é incognoscível. Portanto, os cristãos deviam eliminar de sua fé quaisquer conceitos.
Quando nos debruçamos sobre a história dos estudos dos primórdios do cristianismo, encontramos a oposição entre a ortodoxia (a crença certa) e a heterodoxia (crença diferente). A heterodoxia, quando em confronto com a ortodoxia, era vista como heresia. Evidentemente, todos se consideravam ortodoxos, ou seja, todos achavam que estavam certos. Quando as pessoas supõem que suas crenças estão erradas, em geral, se apressam a abandoná-las pelas crenças corretas.
O desenvolvimento do cristianismo fez proliferar as tentativas de elucidar a natureza de Jesus. O problema – vale reiterar – que preocupava os pensadores cristãos consistia em explicar como Jesus podia ser divino, se havia um único Deus. Grande parte dessas tentativas, em que pese sua aceitação periódica, acabou por ser rejeitada. Para alguns cristãos proto-ortodoxos, elas eram plenamente aceitáveis; para outros, no entanto, eram heréticas (Ehrman, 2010, p. 275)
Retomando a posição de Atanásio, após muitas disputas que se estenderam durante o século IV e, mesmo parecendo certa a vitória de Ário, foi a visão de Atanásio que atraiu a unanimidade entre os  Pais da Igreja. A posição de Atanásio viria a se tornar, portanto, a posição ortodoxa.
No que consistia a visão de Atanásio sobre o problema atinente à natureza de Deus? Ela consistia na afirmação de que há três pessoas em Deus. Elas não são diferentes entre si. No entanto, cada uma delas é igualmente Deus. Todas as três são seres eternos.Todas são feitas da mesma substância de Deus. Eis o que se consagrou chamar a doutrina da Trindade.
No texto do Catecismo da Igreja Católica (2000), registra-se o seguinte no tocante à doutrina da Santíssima Trindade:

A Trindade é Uma. Não professamos três deuses, mas um só Deus em três pessoas (...) As pessoas divinas não dividem entre si a única divindade, mas cada uma delas é Deus por inteiro: “O Pai é aquilo que é o Filho, o Filho é aquilo que é o Pai, o Espírito Santo é aquilo que são o Pai e o Filho, isto é, um só Deus por natureza (p. 76 – ênfase no original).


Faz-se mister salientar que essa doutrina não se encontra explicitamente no Novo Testamento. Nem mesmo no Evangelho segundo João, no qual Jesus é retratado como divino. Aí é discutível a ideia de que três pessoas formariam uma única substância. Escribas posteriores ficaram atônitos com tal lacuna, o que os levou a inserir, em pelo menos um ponto, uma referência explícita à Trindade (1 João 5: 7-8).
Como se vê, a Trindade é uma invenção cristã posterior, que se assenta, segundo Atanásio e outros pensadores cristãos que com ele concordavam, em passagens das Escrituras, muito embora, na verdade, não apareça em nenhum dos livros que compõem o Novo Testamento. Em seu Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010), Ehrman nota que:

“Em três séculos Jesus deixou de ser um profeta apocalíptico judeu para se tornar o próprio Deus, um membro da Trindade. O cristianismo inicial é decididamente impressionante” (Ehrman, p. 280).



Doravante, concentremos nossa atenção nos capadócios, a fim de, esclarecendo a relação deles com Atanásio, mais clara se torne a posição deste último.
Os capadócios estavam muito interessados – diria até, ansiosos – por explorar a ideia de Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade.
Os fiéis estavam embaraçosos com relação ao Espírito Santo. Eles não sabiam o que era, afinal, o Espírito Santo. Seria Deus ou algo mais?
Paulo afirmou que o Espírito Santo renova, cria e significa; todavia, todas essas atividades competem exclusivamente a Deus. Segue-se daí que o Espírito Santo tem de ser divino, e não um ente ou criatura.
É então que os capadócios buscam em Atanásio uma fórmula que lhe aproveitou na disputa com Àrio. Com essa fórmula, postula-se que Deus possui uma essência única (ousia), inacessível ao nosso conhecimento, e três expressões (hypostases) pelas quais ele se torna conhecido.
Por ousia, entende-se, desde os gregos (especialmente, em Platão e Aristóteles), “substância” ou “essência”. Por hypostases, as formas exteriores do objeto. A hypostasis significa expressão exterior da natureza interior a alguém. Assim, Deus só é acessível à experiência humana na forma de hypostases e permanece incognoscível como ousia. Em outras palavras, os homens só conseguem conhecer a Deus por meio de suas manifestações na forma do Pai, do Filho e Espírito, mas não são capazes de conhecer a essência de Deus.
Os capadócios viam uma diferença importante entre ousia e hypostasis. A ousia de um objeto é o que o faz ser o que ele é (sua essência); por seu turno, a hypostasis, é o objeto visto de fora. Por vezes, os capadócios usaram o termo prosopon para designar o que designava hypostasis. Originalmente, prosopon significava “força”, mas logo agregou vários significados. Por exemplo, por prosopon podia-se entender a expressão facial indicativa de um estado de espírito, ou ainda um papel ou personagem que o indivíduo assume conscientemente.
Hypostasis e prosopon passaram a significar também o eu individual tal como aparece ao observador. Por conseguinte, ao sustentarem que Deus é uma ousia em três hypostases, os capadócios queriam dizer que Deus em si mesmo é Uno, porque há apenas uma autoconsciência divina. No entanto, no momento em que dão aos homens uma pálida experiência de si, Deus o faz na forma de três pessoas. O si mesmo de Deus permanece inacessível aos homens.
Destarte, segundo Gregório de Nissa, as hypostases Pai, Filho e Espírito não devem ser identificadas com o próprio Deus, uma vez que são apenas três termos que se usam para falarmos das energeias (atos) pelas quais ele se deu a conhecer. Esses termos têm valor simbólico, já que servem para a expressão, em imagens, do inefável. Cabe, então, atentar para a lição de Armstrong, abaixo:

“Os homens têm experimentado Deus como transcendente (o Pai, oculto em luz inacessível), como criativo (o Logos) e como imanente (o Espírito Santo). Mas essas três hypostases são apenas vislumbres da Natureza Divina, que está muito além da imagística e da conceitualização. A Trindade, portanto, não deve ser vista como um fato literal, e sim como um paradigma que corresponde a fatos reais na vida oculta de Deus” (p. 158).



6. Considerações finais


Um estudo de Deus que o tome como objeto-de-discurso, como objeto cognitivo, à luz de uma hermenêutica da suspeita, ajuda-nos a compreender que Deus não se revela ao homem como Ser, porque não é senão um conceito/referente construído pela produção de textos que são formas de cognição social. O conceito de Deus é produto de elaborações da cognição humana, sócio-historicamente determinadas. É a própria instituição religiosa que dispõem de todo um aparelho ideológico-simbólico e de agentes especializados (teólogos e bispos) aos quais delega o poder de, servindo-se desse aparelho, fabricar, não sem dissensões e disputas, o conceito de Deus.
Dizer que Deus é Pai, que Deus é o Ser Único é produzir formas de categorizá-lo, a saber, é produzir operações pelas quais damos formas cognitivas a um referente que não existe fora do discurso. Essa categorização é uma operação cognitivo-discursiva e não se assenta, de modo algum, na posse do conhecimento de Deus como ser em si, origem de tudo, realidade transcendente. O único conhecimento de Deus possível, se considerarmos os pressupostos aqui adotados, é o conhecimento de Deus como objeto-de-discurso que enfeixa e expressa uma tradição sócio-histórica determinada, estruturada em valores, práticas discursivas e outras produções culturais, como as artísticas.
Na qualidade de referente, a saber, na qualidade de entidade do discurso, Deus é hipostasiado na fala dos homens, isto é, os homens falam dele como se falassem de uma substância que, embora oculta, necessariamente existe para além de toda história e antes da emergência de qualquer discurso sobre ela. Nesse caso, sem se darem conta disto, eles já estão transitando pelo terreno da ideologia, caso em que a consciência não se reconhece como produto de condições sócio-históricas.



sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

"Conta-me a tua história e te direi quem tu és" (BAR)

                                            
                          

                             Retorno às origens históricas
                                     A atuação dos profetas




Intróito

Por volta de 2.000 a.C, quando a Babilônia ascendeu ao poder na Mesopotâmia, Marduque era o deus mais importante da região. O maior templo babilônico fora erigido para a adoração dele. Seus adoradores chamavam-no o grande  Senhor, o senhor do céu e da terra, e acreditavam que seu poder repousava sobre sua sabedoria, com a qual governava o povo da terra, assistia os bons e punia os maus.
Entre os hindus, Visnu é uma divindade muito popular, considerada como o protetor ou sustentador do universo. Ela dá vida ao criador, Brama. Visnu se completa com o deus Xiva, chamado “o destruidor”. Xiva recria o que destrói. Reúne em si oposições tais como vida e morte; tempo e eternidade, etc. Brama, Visnu e Xiva têm cada qual uma esposa. Essas esposas são também deusas e se apresentam com nomes diversos, muito embora possam ser sintetizadas na forma de uma Grande Deusa, chamada Mahadevi.
Huitzilopochitli era a deusa da guerra e do sol nascente entre os astecas; a ela eram ofertados sacrifícios humanos com o objetivo de obter vitória na guerra e de garantir o contínuo reaparecimento do Sol para iluminar a civilização.
Os gregos e romanos também tinham seus deuses. Afrodite (nome grego) e Vênus (nome romano) eram deusas do amor; Hera (nome grego) e Juno (nome romano) eram rainhas dos deuses. A lista de deuses e deusas poderia ser estendida indefinidamente. Decerto, o número de deuses fabricados pela existência humana ao longo da história é incalculável. Dado esse inegável espectro de deuses, cuja enumeração resultaria num esforço pouco recompensador a quem quer que se atrevesse a fazê-la, persiste a questão: por que se deveria acreditar que o único deus existente é o Deus legado a uma grande parte do mundo pela tradição monoteísta desenvolvida às margens do Crescente Fértil, há 14.000 a.C? Que evidências há que sustentem a crença de que apenas o Deus judaico-cristão é candidato ao Absoluto? Por que razões os adeptos dos três grandes monoteísmos (judaísmo, islamismo e cristianismo) devem desqualificar como irreais um Visnu, um Xiva ou um Marduque?
Em meu país, diariamente, as pessoas falam em Deus, proferem essa palavra para designar o Ser Único Pessoal, Criador e Providente que, embora atemporal e transcendente, existe (sem se aperceberem de que o conceito de existência implica a noção de espaço e tempo). Não é, contudo, de problemas lógicos de que me ocuparei. Quero dizer que essas pessoas falam num Deus que tem uma materialidade histórica. Toda vez em que elas pronunciam a palavra Deus, elas silenciam, sem que o saibam, os demais deuses, ou seja, relegam-nos ao abismo silencioso da imaginação ou da ficção, de modo que afirmar “Deus existe” é assumir que “Visnu não existe”, “Marduque não existe”, e assim por diante. Toda enunciação é um acontecimento sócio-histórico e seus protagonistas são sujeitos sociais, que dizem de um dado lugar socioideológico (histórico). Todo aquele que, por exemplo, no Brasil, professa sua crença em Deus ou declara sua fé na Bíblia, faz ecoar uma longa e densa espessura socio-histórico e discursiva cujas vozes ganham acentos mais ou menos nítidos em sua fala. A palavra Deus é atravessada por muitas vozes e seu proferimento, a cada vez, é uma via por onde se deixam ouvir essas vozes, ainda que para a maioria dos crentes elas sejam como brumas numa longa estrada que se lhes estende interminável.
Há muito, como ateu e filósofo, penso os deuses como entidades históricas; e creio em que todas as tentativas de negar-lhes esse estatuto são tendenciosamente ideológicas. Pensar os deuses como entidades históricas não é, de modo algum, negar-lhes o estatuto de objetos da imaginação ou da razão, visto que tanto a imaginação quanto a razão se produzem e se desenvolvem historicamente. Ora, quem imagina e quem raciocina é o homem; e o homem é um ser histórico. Logo, a imaginação e a razão só existem como produtos de processos históricos.
Não se deve, contudo, tomar por sinônimos os dois modos de compreender os deuses, quais sejam, “deuses como entidades imaginárias” e “deuses como entidades históricas”. O problema em reduzir os deuses a entidades imaginárias é supor que eles sejam criados por um devaneio, por uma fantasia humana desvinculados das necessidades, dos anseios, das condições sócio-históricas. A fim de evitar essa suposição equivocada e simplista, penso ser mais acertado pensá-los como entidades históricas, por razões que tratarei de desenvolver neste texto. Pensá-los como entidades históricas não exclui o pensá-los como produtos da imaginação ou da razão humana. A qualificação histórico não só é mais abrangente, como também mais complexa, pois que deve recobrir a dimensão da práxis. É Marx quem nos ensina sobre ela, mas deixarei para mais adiante a consideração do pensamento marxista no que tem de relevante ao desenvolvimento deste texto.
Necessário é explicitar um pressuposto, de cuja aceitação dependerá não só o interesse do leitor por esse texto, mas também a compreensão do projeto argumentativo de que ele, texto, é uma realização verbal. O pressuposto tem a seguinte forma: a palavra Deus não designa uma espécie de ser sobrenatural, mas tão-só uma Ideia (no sentido de Kant). Vou começar esclarecendo o que Kant entendia por Ideia (com maiúscula, por sua semelhança com as Ideias platônicas), numa seção primeira. Antes de fazê-lo, porém, preciso trazer à cena a maneira como Locke compreende as afirmações do teísmo. Marx, Kant e Locke (aos quais poderia reunir Feuerbach) são pensadores representativos da concepção moderna de Deus. Devo lembrar, no entanto, que, enquanto Marx e Feuerbach eram ateus, Kant e Locke não o eram. Locke tentou argumentar em favor da existência de Deus postulando para ela uma base empírica. O próprio conceito de Deus deve ser desenvolvido num enquadramento empírico, o que significa dizer que os predicados atribuídos a Deus devem resultar de ideias provindas da Sensação e da Reflexão. Mas essas ideias, acrescenta Locke, devem ser projetadas ao infinito, a fim de que venham a constituir um conceito de Deus que responda aos requisitos que o argumento cosmológico exige. As consequências da compressão de Kant e de Locke não tardaram a ser sentidas: ela dava uma grande margem ao ataque de duas frentes ateológicas ou ateístas: o racionalismo e o empirismo. Desse tema não posso, contudo, me ocupar aqui.


1. Kant e as Ideias da Razão

No esforço de fixar os limites da razão e de estabelecer as condições de possibilidade do conhecimento, Kant observou que a razão humana tende, naturalmente, a ultrapassar o domínio da experiência sensível e se deter em conhecer objetos, que só são conhecidos, na verdade, como conceitos, os quais, por si mesmos, são insuficientes para determinar um objeto real correspondente. Assim são os conceitos de alma, Deus, mundo, eternidade, etc. Para Kant, a razão presume deduzir a existência de tais objetos, que são transcendentes, de simples ideias. O criticismo kantiano consistia, em grande medida, em tornar a razão consciente de seus próprios limites.
Aqueles conceitos, aos quais falta um objeto real correspondente, Kant chamou ideias, porquanto se assemelham às Ideias platônicas e porquanto se constituem em representações globais ou incondicionadas de entidades apenas logicamente pensadas, supostas como existentes enquanto númeno (coisa-em-si) e como fundamento das aparências sensíveis.
Sem pretender pormenorizar o valor que o conceito de Ideia tem no sistema de Kant, cinjo-me a notar que, consoante se pode depreender do que se expôs até aqui, para Kant, Deus não é objeto de conhecimento, embora possa ser para o pensamento. Deus pode ser pensado, mas não conhecido. Em outras palavras, Kant nega à razão a possibilidade de alcançar um conhecimento de Deus. O Ser Supremo que chamamos de Deus é, na visão de Kant, apenas um ser da razão. Kant pôde, assim, desferir duros golpes aos argumentos físico-teológico, que deduz a existência de Deus da existência deste mundo tal como o conhecemos; cosmológico, que conclui de uma existência qualquer a existência de Deus; e o ontológico que, fazendo abstração da experiência, deduz a existência de Deus de meros conceitos.
Em Kant, a ideia está para a razão assim como o conceito está para o entendimento. O entendimento é a faculdade do conhecimento, que opera com base em conceitos. Conhecer é ligar conceitos, para Kant. O que se une em conceitos é a diversidade do sensível dada pela faculdade da sensibilidade. As ideias, que são propriedades da razão, não são destituídas de valor. Kant atribui à razão duas funções: a de tornar as ideias especulativas instrumentos metodológicos através dos quais se avalia o progresso da experiência; e a de negar o caráter contraditório de ideias cosmológicas como liberdade e necessidade, reinterpretando o conceito de objeto, que é, ao mesmo tempo, fenômeno e coisa-em-si (númeno). As ideias de liberdade e necessidade podiam, assim, ser aplicadas à prática moral. Não se trata de tomá-las como objeto de conhecimento, mas como condições para prática moral.
Por fim – mesmo ciente de que muitas lacunas ficaram por ser preenchidas -, parece-me importante observar que Kant entendia o conhecimento como uma ação teórica complexa de identificação objetiva que atribui ao sujeito um papel agentivo na elaboração do material do conhecimento, segundo certas condições subjetivas a priori que são as faculdades e suas respectivas formas. Assim, pela sensibilidade, o objeto do conhecimento é dado ao entendimento. A sensibilidade é a faculdade das intuições. As intuições puras são o espaço e o tempo. Intuição, em Kant, nada tem que ver, portanto, com pressentimento; em Kant, intuições são as formas como os objetos afetam nosso espírito. Só há intuições exteriores. A intuição pura é uma forma a priori  da sensibilidade, que permite unificar o sensível e a recepção das percepções. Ou seja, todo objeto passível de conhecimento tem de se dar na forma de intuições puras (o tempo e o espaço são internos à consciência humana, em Kant). Espaço e tempo dependem unicamente da forma de nossa intuição, da constituição subjetiva de nosso espírito. Nem o espaço nem o tempo são conceitos empíricos derivados de experiências exteriores. O espaço é a priori; sua representação é a condição mesma da possibilidade de fenômenos. O espaço é uma intuição pura; é uma forma a priori da sensibilidade. O tempo também é uma intuição pura; ele não existe nas coisas; mas é a condição formal a priori de todos os fenômenos. Para Kant, a única realidade do tempo é ele ser uma condição subjetiva da percepção dos fenômenos. Claro está que Kant não pensa o espaço e o tempo como realidades objetivas.
Duas implicações serão retidas aqui, com base na compreensão kantiana de Deus como ideia da razão: a primeira é que Deus não pode ser objeto de conhecimento; a segunda é que, como ideia, o signo Deus não tem um referente real identificável. Como ideia, a razão pode pensá-lo, pode especular sobre ele, mas não pode determinar-lhe a natureza e não pode assegurar sua existência.
Pode-se, agora, estender a compreensão de Ideia de Kant acrescentando-lhe o ingrediente histórico: a ideia, tal como a entende Kant -  uma entidade da razão -  é dotada de uma materialidade histórica. É sobre essa materialidade histórica que esse texto versa. É chegado o momento em que o materialismo marxista deve ser trazido ao itinerário discursivo.


2. O materialismo de Marx: um breve recorte


Apresentarei, em linhas gerais, o materialismo histórico Posteriormente, assinalarei a ideia central desse materialismo, sobre a qual farei repousar o que se seguirá na seção posterior.
O pensamento de Marx se nos apresenta como um “novo” materialismo. Esse materialismo é um materialismo da práxis. A práxis é relação dialética homem-trabalho-natureza. Na práxis, o homo faber, modificando a natureza no processo de trabalho, modifica a si mesmo. Materialismo histórico é o termo que Engels empregou (posteriormente, Lênin) para designar o método de interpretação histórica proposto por Karl Marx, segundo o qual os acontecimentos históricos devem ser fundados em fatores socio-econômicos (técnicas de trabalho e de produção; relações de trabalho e produção). O materialismo histórico está fundado na perspectiva antropológica, à luz da qual o homem ou a natureza humana é constituída por relações de trabalho e de produção, estabelecidas pelo próprio homem com vistas à satisfação de suas necessidades. O materialismo histórico é um materialismo da práxis. A noção de prática recobre a atividade determinada por condições materiais independentes dela; no entanto, modificáveis por ela.
O materialismo de Marx é devedor do Idealismo de Hegel, ainda que se tenha desenvolvido em reação a ele. Do idealismo, o materialismo marxista herdou a tese de que é a atividade humana que produz as condições sociais de existência; e do materialismo antigo, a tese de que as condições e as circunstâncias cumprem um papel determinante. No materialismo marxista, a noção de prática recobre a atividade como uma dimensão fundamental da existência humana. Marx concebe a história como uma ciência autêntica e pretende que ela seja estudada do ponto de vista de uma “concepção materialista da história” (Ideologia Alemã, pp. 38-42). O materialismo marxista foi mais um projeto do que uma doutrina. Como materialismo histórico, advogava que a história deve ser estudada relativamente à sua base real, qual seja, econômica. Assim, evitava-se concebê-la como um processo de desenvolvimento de ideias abstratas.
Duas ideias precisam ser esclarecidas, a esta altura. A primeira diz respeito à dimensão histórica do materialismo. Ele é histórico porque a produção historicamente diversa da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida social, política e espiritual. A tese central do materialismo histórico é, pois, a seguinte: as condições materiais da prática são determinantes das formas de manifestação da consciência. Mas o caráter determinante das condições materiais não é absoluto, visto que as próprias condições são produzidas pela práxis, que é ação histórica. Só são materiais também relativamente, porque a prática que as modifica na história não só é condicionada pela base material, como também por fatores ideais. Contrariamente ao idealismo, o materialismo histórico assume que a natureza humana e as formas históricas das sociedades são determinadas pelas relações concretas de trabalho, diversas e mutáveis. Esse materialismo rejeita a crença de que o “Espírito” seja o Sujeito da história, ou o princípio organizador da totalidade social.
A ideia de materialismo sublinha o fato de que a infra-estrutura (a base econômica), a dimensão material determina os fenômenos da superestrutura (a qual recobre as manifestações intelectuais, artísticas, políticas e jurídicas). O materialismo é histórico porque a formação da infra-estrutura e do modo de produção são historicamente determinados, ou seja, determinados pela práxis.
Marx, todavia, não sustentava que a infra-estrutura fosse o único domínio determinante dos fenômenos da superestrutura, do aparecer social. Se, por um lado, a base econômica determina a produção das ideias e das representações, essa produção incide sobre a atividade material do homem, e os fatores da superestrutura podem tornar-se determinantes das lutas históricas.
No manuscrito de 44, Marx defende que, se a história é o próprio ato gerador consciente do homem, e, embora seu nascimento se dê conscientemente, ela tende a se suprimir como ato gerador. Isso significa reconhecer que os indivíduos não mais percebem suas ideias, concepções, crenças inscritos numa história. Destaco esta passagem a fim de que o leitor infira dela a tese fulcral que procuro desenvolver neste texto: os indivíduos, em todas as épocas, que disseminam sua crença em Deus não mais reconhecem que essa crença se inscreve historicamente e se lhes foi incutida no intercurso de práticas históricas (basicamente, pelas práticas socioeducativas diversas).
Creio necessário depreender do que expus nesta seção as implicações necessárias ao que se seguirá. Mas, antes, vale dizer que a matéria de que fala Marx é a matéria social, ou seja, as relações sociais entendidas como relações de produção, o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como pensam e interpretam essas relações. A matéria do materialismo histórico-dialético é, portanto, os homens produzindo, em condições determinadas, seu modo de se reproduzirem como homens e de organizarem suas vidas como homens. Cumpre notar, de passagem, que a produção é imediatamente consumo, e o consumo é imediatamente produção. Cada um é imediatamente o seu oposto.
Considerem-se as implicações do materialismo marxista para a discussão que se desenvolverá, adiante, sobre a materialidade histórica da Ideia de Deus.

1a) Se as ideias, concepções, crenças, representações, a própria consciência são produtos das práticas socioeconômicas, são produzidas nas relações de produção historicamente determinadas, segue-se daí que a Ideia de Deus é também reflexo de condições socio-históricas determinadas;

2a) Se, como sustentava Marx, os indivíduos não percebem que suas ideias, crenças e concepções têm uma inscrição em processos históricos determinados, segue-se daí o fato de eles conceberem Deus como um Ser a-histórico, atemporal, transcendente, cujo conhecimento (eles creem) lhes é dado naturalmente;

3a) Com Marx, podemos dizer que Deus é um fato histórico marcante das sociedades ocidentais, na medida em que foi fabricado e é reproduzido por uma instituição ideológica.


Preciso insistir em que o conhecimento a que me refiro, em 2), não é o conhecimento de Deus como fenômeno, como objeto de experiência; trata-se do conhecimento de Deus como Ideia. Eles facilmente podem ser levados a crer que a própria Ideia de Deus se lhes afiguram por pré-disposições de sua constituição humana psico-neurológica.
Embora não me seja possível deter-me a discorrer sobre o conceito marxista de ideologia, necessário é destacar-lhe dois aspectos: a abstração, a saber, o conhecimento de uma realidade tal como se oferece à nossa experiência imediata, como algo dado, feito e acabado, que apenas classificamos, ordenamos, sem nunca nos perguntar como tal realidade foi concretamente produzida; e a inversão, que consiste em tomar o resultado de um processo como se fosse seu começo, em tomar o efeito pelas causas, as consequências pelas premissas, o determinado pelo determinante. Para Marx, sendo abstração e inversão, a ideologia situa-se e permanece vinculada ao plano do aparecer social.


3. De volta às raízes históricas: O papel dos profetas

A noção de materialidade histórica da Ideia de Deus recobre as condições sociais, ideológicas, culturais e econômicas que configuravam o Antigo Oriente Próximo há 14.000 a.C., condições nas quais a ideia de Deus foi surgindo aos poucos.

Em Uma história de Deus (2008), Karen Armstrong oferece-nos passos que ilustram a noção de materialidade histórica da Ideia de Deus. Vejamos dois deles:

Parece que a ideia de Deus guarda extraordinária semelhança com ideias de religiões que se desenvolveram de maneira independente. Quaisquer que sejam nossas conclusões sobre a realidade de Deus, a história dessa ideia deve dizer-nos alguma coisa importante sobre a mente humana e a natureza de nossa aspiração”.
(p. 12)

“Apesar do teor secular de grande parte da sociedade ocidental, a ideia de Deus ainda afeta a vida de milhões de pessoas. Pesquisas recentes mostram que 99% dos americanos dizem acreditar em Deus: resta saber a qual “Deus” se referem, entre muitos em oferta”.
(ib.id.)



Os seguintes excertos ilustram a noção de materialidade histórica da ideia de Deus:

1)       Sua filiação com ideias de religiões que se desenvolveram de modo independente;
2)       Sua relação com a mente humana e com as aspirações da natureza humana;
3)       A diversidade de deuses em oferta.


A materialidade histórica da ideia de Deus abriga a visão de que essa ideia surgiu e se desenvolveu gradativamente em condições sócio-históricas determinadas. É um Deus cuja história se inicia e se desenvolve no deserto, um Deus que era sentido como uma dor física; um Deus que infundia cólera e euforia em profetas; um Deus que supostamente “falava” do cume de montanhas. A história desse Deus está impregnada de trevas, de desolação, crucificação e terror: “a experiência ocidental de Deus parece particularmente traumática” (Armstrong, p. 12).
Como se verá, em tempo, o Deus em cuja existência mais de dois bilhões de pessoas no mundo acreditam (http://www.origemedestino.org.br/blog/johannesjanzen/?post=54) é imanente à história. Somente no nível ideológico ele pode ser concebido como ser absoluto e transcendente.
Antes de discutir o papel desempenhado por alguns profetas para o desenvolvimento da ideia de Deus, convém fazer ver o que nos ensina o filósofo Régis Debray, em seu Deus: um itinerário (2004). Debray destaca a importância da invenção do alfabeto ou da escrita para a perpetuação da ideia de Deus. Assim, escreve o autor:

“(...) sem o alfabeto, bomba metafísica com efeitos retardados, nada de Deus”.
(p. 97)

Deus e a escrita se desenvolveram juntos. No Crescente Fértil, ao longo de dois milênios antes de Cristo, sucederam muitas migrações, invasões, mudanças de dinastia, que punham em movimento a limpeza étnica. O povo hebreu foi o único que, pelo uso da escrita, “transformou a desgraça em valor” (p. 97)
Ora, a invenção da escrita e o seu uso são um fato constitutivo da materialidade histórica da ideia de Deus. A escrita contribuiu significativamente para que o Deus dos hebreus sobrepujasse seus concorrentes, Marduque e Amon Rá (deus egípcio), que, consoante nota Debray, se acham, hoje, exibidos como peças de museus de arte. À vitória sobre os deuses vizinhos se seguiu a adesão cada vez mais ampla a Javé: o Deus de Abraão, de Isac e Jacó “continua a por em movimento, nas ruas, milhões de crentes” (p. 96).
A atemporalidade de Deus, a instituição de sua soberania, o sentido mesmo de universalidade que carregava se deveram à possibilidade de a memória interior poder externar-se em rolos e caracteres.

“A presença de Deus – a saber, as Escrituras – não existiria como um sensível não-sensível (...), sem a operação que consiste em por o interior para fora e em espacializar emissões  vocais para lhes conferir atemporalidade”.
(p. 96)


Assim, conclui Debray que a história de Deus é história escrita.

Passo, agora, a considerar a emergência do Deus hebreu num contexto físico-geográfico e no modo de subsistência nômade. Começo notando que o Deus Único “fala” no deserto, se “manifesta” aos errantes, aos pastores. O deserto é um lugar em que os que lá habitam e vagam vivem à volta com tentações, vivem entregues à glória do Deus imortal.
O profeta exalta a ascese. Cada povo fabrica deuses à própria imagem (Debray, p. 73). Destarte, um povo de pastores cria um grande pastor celeste com vistas a conferir coesão e independência à comunidade, pastor que é representado, no plano terrestre, por profetas ou monarcas, por um Moisés e um Davi. Debray nota que era muito comum metaforizar os poderes pastoris, nas sociedades antigas da região do Egito e da Assíria (p. 75). O povo hebreu parece ter se utilizado do sistema de metáfora, adequando-o à experiência de pastores de pequeno rebanho. Por isso, “Deus é o pastor do seu povo” (p. 73)
A esta altura, necessário se faz chamar a atenção do leitor para a relação determinista entre as condições sócio-econômicas e o desenvolvimento da ideia de Deus. A concepção de Deus se desenvolve em condições de vida baseadas no modelo pastoril, no cuidado com o rebanho, fonte de alimentação para o povo. Deus, à semelhança do pastor, tem por missão reunir o gado, impedindo que ele se disperse (p. 73).

“Ele [Deus] prometeu uma pastagem às suas ovelhas – a Terra Santa -, mas o curral vem depois do rebanho, que primeiramente deve guiar e salvar, cuidando da sua alimentação e da sua segurança com atenta compaixão”. (p. 73)

Jeová é para o homem aquilo que o homem é para os animais de cuja criação se ocupa: um pastor cuja forma de dominação é benevolente, de modo que “apesar de deter toda a autoridade, não deve abusar dela”. (ib.id.)
O deus pastoril é um deus-movimento, um deus para o qual o deslocamento é uma necessidade (p. 75). O ambiente torna-se uma personagem santa. É nesse sentido que o deserto é também um componente da materialidade histórica da ideia de Deus. Somente quando o deserto deixa de ser apenas um espaço geográfico para ser interpretado pelo povo como um ambiente revestido de uma significação especial é que se pode considerá-lo um aspecto da materialidade histórica da ideia de Deus. Jesus, decerto, é uma personagem dessa história, considerada a vida e a via; seu adepto sempre um estrangeiro em marcha (Santo Agostinho) e Deus “um caminho a viver, interminável”(p. 75).
Expansionismo e monoteísmo estão afinados. O nomadismo pastoril prossegue ofensivamente. As conquistas históricas, no primeiro milênio, são marcadas pelo avanço anônimo e permanente de cavaleiros nômades sobre a planície de agricultores. Todos os avanços monoteístas se deram por meio de agitações de populações no Crescente Fértil. Dessa expansão fizeram parte invasões de bárbaros, deslocamento de tribos e deportações.
Conforme veremos, quando considerarmos a atuação de alguns profetas na história do desenvolvimento da ideia de Deus, a intolerância para com a adoração de outros deuses marcou significativamente a atuação de alguns deles. Essa intolerância concorreu para o estabelecimento da fé num único deus verdadeiro. Ela foi indispensável à conquista da soberania de Javé. Dois eminentes arqueólogos em atividade – Finkelstein e Silberman -  patenteiam, em A Bíblia não tinha razão (2003), os esforços despendidos por representantes da elite religiosa do século VII na tentativa de consolidar a soberania de Javé. Deve-se lembrar que todo soberano necessita de um lugar para reinar e esse lugar era o Templo de Jerusalém. Atentemos para as palavras dos autores:

“Em reação ao ritmo e ao alcance das mudanças levadas a Judá do exterior, os líderes do século VII, em Jerusalém, governados pelo rei Josias – décima sexta geração de descendentes do rei Davi – declararam que todos os traços de adoração estrangeira eram um anátema e, na verdade, a causa das desgraças que ocorriam em Judá. Eles iniciaram uma campanha enérgica de purificação religiosa no território do reino e ordenaram a destruição dos santuários rurais, declarando-os fontes do mal. Dali em diante, o Templo de Jerusalém, com seu santuário, o altar e os pátios internos que circundavam no alto da cidade, seria reconhecido como o único lugar de adoração para o povo de Israel. Com essa inovação, nasceu o monoteísmo moderno. Ao mesmo tempo, as ambições políticas dos líderes de Judá cresceram: tais ambições pretendiam fazer do Templo de Jerusalém e do palácio real o centro de amplo reino pan-israelita, a realização do lendário reino unificado de Israel, de Davi e Salomão.”
(grifos meus, pp. 12-13)


Farei uma digressão, a fim de elucidar a importância desta passagem para a compreensão da materialidade histórica da ideia de Deus. Os trechos destacados em negrito mostram-nos que as práticas históricas são sempre práticas dotadas de significado, ou melhor, práticas interpretadas pelos seus agentes. Por conseguinte, os modos como os homens interpretam os eventos que vivenciam são também constitutivos da trama histórica. Não só as transformações, as mudanças ocorridas ao longo da história do desenvolvimento da ideia de Deus são integrantes da materialidade histórica dessa ideia, mas também os modos como as ocorrências são interpretadas pelos protagonistas dessa história. Notemos que os líderes judaicos viam a adoração a outros deuses como uma maldição, como uma traição do próprio povo contra o Deus hebreu. Ademais, eles pensavam que a causa das agruras vividas pelo povo em Judá (reino do sul) era a adoração do povo a outros deuses. Javé era um deus exclusivista. É interessante ver que a “purificação religiosa” não descrevia outra coisa senão a eliminação total da adoração de outros deuses; além disso, “purificação” supõe que a adoração a outros deuses, prática comum e persistente até então entre os antigos hebreus, era vista como imunda, maculada. A instituição do Templo de Israel como único local de adoração para o povo de Israel não só pretendia atender à centralização do poder da fé em Javé e à consolidação de sua vitória sobre os demais deuses; o Templo era símbolo do desejo de expansão do poder político das autoridades israelitas; ele sinalizava a intenção de estabelecer um reino unificado. O desenvolvimento da ideia de Deus não pode ser separado, portanto, das ambições políticas de uma pequena elite de sacerdotes interessada em conservar-se no poder e em fortalecê-lo.
Retomemos a importância do deserto como nascedouro da soberania de Deus. O deserto é inimigo do pluralismo. É o lugar onde o Uno se alça ao Todo; onde o outro se torna um inimigo e “um Buda de pedra”, “um sacrilégio” (p. 81). O deserto fomenta uma mentalidade peculiar, que consiste na recusa do político, na ignorância do Estado e na desobediência à lei civil. O deserto é o lugar onde o individualismo rebelde floresce, onde a hostilidade a toda forma de autoridade constituída se acentua e a solidariedade tribal se fortalece. O nômade reconhece a propriedade, mas ignora a fronteira, que pode ser sempre expandida segundo as medidas das forças atuantes. Assim, o poder de Deus deve fazer-se sentir por toda parte. Sua soberania supranatural, supranacional, sem fronteiras, causa escassez de recursos e lança os homens ao abandono. As contradições são inerentes à existência no deserto, guiada pelo Deus único: a crueldade caminha com a hospitalidade; o homicídio, com o sacrifício. O Deus cioso do deserto cuida criminoso renegá-lo. Lembra Debray que “diante do bezerro de ouro, Jeová exige dos seus que ‘matai, cada qual, a seu irmão, a seu amigo, a seu parente’ (Ex. 32, 28)” (p. 82).
O deserto insurge-se contra a vida na cidade.O absolutismo se opõe ao fetichismo: se o povo citadino ora  diante de estátuas, os homens do deserto se apressam a po-las abaixo. Assim, procederam Moisés, Calvino e seus seguidores. Eles decapitaram estátuas de pedra, símbolos de santidade para os que, diante delas, lhes prestavam culto. Todos iconoclastas que disseminavam a intolerância em nome das Sagradas Escrituras.



3.1. Os profetas

Desde o Sinai, os profetas acalentavam o ideal de justiça social. Esse ideal estava tacitamente presente no culto de Javé. A história do Êxodo conta que Deus estava ao lado dos fracos e dos excluídos. Sucede, contudo, que os israelitas, na época em que viveu Amós, eram castigados por Javé por serem eles também opressores.
Amós era um pastor que vivia originariamente em Técua. Sua atividade se inicia por volta de 752 a.C. Não havia, ainda, no Oriente Médio, uma ideologia religiosa coesa (Armstrong, p. 78). Em seu culto, Javé era vivenciado como uma realidade transcendente. Sua humanização, no entanto, dependia de sua proximidade com os homens. Quanto mais próximo dos homens mais humanizado se tornaria.
Quando os babilônios invadiram Judá, levaram o rei e vários israelitas ao exílio e dominaram Israel, em 587 a.C. Jeremias pregava nesse tempo e, seguindo a tradição de atribuir emoções humanas a Javé, fez com que Deus lamentasse sua própria aflição e desolação. O Deus de Jeremias lamentava o fato de não mais ter um Templo onde era adorado. Esse Deus sentia-se desolado, desorientado, ofendido e abandonado pelo seu povo (Armstrong, p. 78). A raiva de Jeremias não era senão a raiva do próprio Javé.
Chamo a atenção do leitor para as formas como a ideia de Deus vai-se modificando. O Deus de Jeremias sofria um processo de antropomorfismo. Era um Deus mais humanizado. Segundo Armstrong,

“Quando pensavam no homem, os profetas automaticamente pensavam em “Deus”, cuja presença no mundo parecia indissociável de seu povo. Com efeito, Deus depende do homem para atuar no mundo – uma ideia que se tornaria muito importante na concepção judaica do divino”.
(p. 78)


Tendo sempre em mente o fato de que a confecção deste texto está calcada sobre o pressuposto de que Deus é uma Ideia no sentido kantiano, a compreensão da dependência de Javé relativamente ao homem deve ser depurada de pregnância ideológica. É claro que os profetas não compreendiam Deus como uma ideia, de modo que essa dependência não deve ser interpretada como subordinação de Deus ao homem, mas como participação por Deus na condição humana. Os homens sentiam a atuação de Deus em suas experiências e emoções. Ocorre que o pressuposto por nós assumido modifica a isotopia inscrita no excerto citado. Isotopia, em Análise do Discurso, é o termo empregado para designar a recorrência de um dado traço semântico ao longo de um texto. A isotopia determina planos de leitura para o texto e permite explicar por que todo texto é passível de muitas interpretações, ao passo que não admite todas as interpretações. A isotopia filtra, por assim dizer, os sentidos autorizados pelo texto. Ela controla as interpretações dos textos plurissignificativos.
Quando se assume “Deus” como Ideia que não designa um ser ou ente identificável na realidade, deve-se interpretar a dependência a que o excerto citado faz alusão como consequência lógica: se Deus é uma Ideia pensada pelo homem, então essa ideia só tem influência sobre a vida humana na medida em que os homens  atribui a ela um valor em suas práticas históricas concretas. A dependência de Deus relativamente aos homens, nesse sentido, ilustra a materialidade histórica da ideia de Deus. É somente quando a consciência religiosa, sob efeito da ideologia (no sentido marxista), pensa Deus como um Ser independente da práxis (ainda que nela atuante) – práxis que é  histórica -, como Realidade Transcendente e primeira, que esse Deus deixa de ser produto socioideológico da práxis humana na história. Mas é sempre importante enfatizar que a ideologia é produzida nas condições materiais de existência, de sorte que a própria consciência que pensa Deus como Realidade independente da práxis é produto de tais condições. A consciência religiosa, tomada  como reflexo de relações sociais concretas na história, representa para si a relação entre Deus e o homem de modo invertido, o que produz, como resultado, o apagamento, na memória, da materialidade histórica da ideia de Deus.

Tendo os babilônios conquistado Israel, Javé se demonstrou mais satisfeito e disposto a salvar seu povo e a conduzi-lo de volta para casa; afinal, a dominação babilônica ensinou uma dura lição aos israelitas.
Ezequiel estava entre os primeiros deportados para Tel Aviv em 587 a.C, durante a dominação babilônica. Ele teve uma visão de Javé que o derrubou de fato. Depois dessa visão, o sacerdote Ezequiel viu-se obrigado a disseminar a palavra de Deus entre os filhos rebeldes de Israel. No trecho abaixo, Armstrong nos dá a saber a singular trajetória desse profeta:

“Sua singular trajetória mostra claramente como o mundo divino se tornara estranho para a humanidade. O próprio Ezequiel foi obrigado a se tornar um sinal dessa estranheza. Com frequência, Javé ordenava-lhe que adotasse umas atitudes esquisitas, que além de separá-los dos seres humanos normais, apontavam as agruras de seu povo nesse período e, num nível mais profundo, mostravam que Israel tornava-se um estranho no mundo pagão”.
(p. 80-81)


A história do desenvolvimento da ideia de Deus se confunde com a saga de um povo que lutava incessantemente pela sua independência, pela construção de uma identidade nacional. Armstrong assinala que entre as coisas estranhas que Ezequiel tinha de fazer por ordem de Javé estava a ingestão de excrementos.
Se Ezequiel encarnava a radical descontinuidade do culto de Javé, a visão pagã, por outro lado, celebrava a continuidade que acreditava haver entre os deuses e o mundo natural. Ezequiel não se agradava disso: as religiões pagãs, para ele, eram um tipo de imundície. Quando, numa de suas visões, visitou o Templo de Jerusalém, se deparou com o povo de Judá adorando deuses pagãos. Armstrong nota que “o próprio templo se tornava um lugar apavorante com figuras de serpentes contorcendo-se e de outros animais repulsivos pintadas nas paredes” (p. 81)
Não é surpreendente que os israelitas, vivendo em condições sócio-históricas profundamente marcadas por dominações estrangeiras, se dedicassem ao culto dos deuses dos povos dominadores. No tempo de Ezequiel,  mulheres choravam pelo deus sofredor Tamuz (dos sumérios, conhecido pelos egípcios como Osíris). Outros israelitas adoravam o sol.
Javé, enciumado e desejoso de atenção, instigou israelitas como Ezequiel a perceber que os reveses da história se estruturavam e se explicavam na base de uma lógica mais profunda. Os reveses sinalizam uma justiça que se encontrava nas profundezas dos acontecimentos.

“Ezequiel tentava encontrar um sentido no mundo cruel da política internacional”.
(p. 82)


Não é custoso ver a fonte donde a referida lógica estendeu seu alcance de modo a estruturar as formas como as consciências cristãs, ainda hoje,  compreendem as ocorrências do mundo. A ideia de que mesmo dos acontecimentos mais aterradores é possível extrair um sentido benéfico ou positivo encontra raízes na Bíblia, como ilustra a compreensão de Ezequiel. Essa mentalidade perdura até os dias de hoje entre nós.

Vejamos como a ideia de Deus se modifica nos autores do Primeiro e Segundo Isaías.

Os israelitas exilados na Babilônia cuidaram não ser correto praticar sua religião fora da Terra Prometida. Os cânticos a Javé não podiam ser entoados em terras estrangeiras. Os que estavam insatisfeitos com essa impossibilidade se contentaram, por alguns momentos, com a ideia de atirar contra as pedras bebês babilônicos (Armstrong, p. 82).
Um novo profeta, cujos oráculos  e salmos foram, posteriormente, acrescentados aos de Isaías, pedia calma aos mais revoltados entre os israelitas. O acréscimo desses textos deu origem ao Segundo Isaías.
No exílio da Babilônia, alguns judeus começaram a adorar os antigos deuses babilônicos, ainda que outros tenham desenvolvido uma nova consciência religiosa. Naquele tempo, o Templo de Israel estava em ruínas e, impedidos de participar de suas liturgias, os hebreus só tinham Javé. Foi graças ao Segundo Isaías que Javé foi declarado o único Deus.
Sabe-se que a construção do que viria a ser considerada a literatura bíblica contou com uma série de acréscimos e adaptações. Uma dessas adaptações é ilustrada no mito do Êxodo na seguinte passagem, cuja confecção se deu pela articulação de metáforas que evocam a vitória de Marduque sobre Tiamat, o mar primordial.


E Javé secará o braço de mar do Egito
Com o calor de seu sopro
E estenderá a mão sobre o rio [Eufrates]
E o dividirá em sete canais, para que
Se passe por ele a pé enxuto
E haverá caminho para o resto do seu povo [,,,]
Como houve para Israel quando saiu da terra do Egito
(Isaías, 11, 15, 16)


No Primeiro Isaías, a história assume a forma de um aviso divino. No Segundo Isaías, em seu livro Consolação, a história engendra nova esperança para o futuro. Os dois livros codificam interpretações da história, com base em pressupostos de fé. No Segundo Isaías, alimentava-se a crença de que Javé resgataria Israel novamente. Deus era o Senhor da história: Ele a projetava e a conduzia segundo seu poder e vontade. Ele era o único Deus que realmente importava. E o Segundo Isaías o faz declarar categoricamente: “Não há outro Deus além de mim” (Isaías, 46, 1). Escusa dizer que essas interpretações são também produzidas ideologicamente e devem ser compreendidas como partes integrantes da materialidade histórica da ideia de Deus. O Deus hebreu é um Deus que intervém na história.
O Segundo Isaías não tardou em desqualificar os deuses dos gentios, proclamando a soberania de Javé. Para o autor do Segundo Isaías, nem Marduque nem Baal (deus cananeu) eram os autores da Criação, mas apenas Javé. Consequentemente, pela primeira vez, os israelitas se interessaram, de fato, pelo papel de Javé na criação, provavelmente pela influência dos mitos cosmológicos da Babilônia (p. 83).
Conforme vimos, ao apresentar o papel que desempenhou o surgimento da escrita no estabelecimento do monoteísmo judaico, a história escrita de Javé foi-se constituindo por adaptações de fontes literárias estrangeiras. Essas adaptações literárias, essas reescrituras baseadas em fontes externas também são aspectos da materialidade histórica da ideia de Deus. Deus é também produto discursivo. Mas não devemos tomar discurso como sinônimo de texto. O discurso é prática social historicamente situada, conectada dialeticamente com outros elementos da vida social. O discurso é moldado pela estrutura social e, ao mesmo tempo, constitutivo dessa estrutura. Entendido como modo de ação social e forma de representação, o discurso tem uma materialidade histórica. Os profetas, como temos visto, agiam por meio do seu discurso; procuravam atuar socialmente por meio de seu discurso; alguns procuravam mudar a ordem social de seu tempo por meio de suas práticas discursivas; no entanto, essas práticas eram também moldadas pela forma como se organizava a sociedade em que eles viviam.
Leia-se o trecho abaixo, tomado a Armstrong:

“Se Javé derrotara os monstros do caos nos tempos primordiais, seria muito simples para ele redimir os israelitas exilados. Percebendo a semelhança entre o mito do Êxodo e as narrativas pagãs da vitória sobre o caos aquático no começo dos tempos, o Segundo Isaías exortou seu povo a esperar com confiança uma nova demonstração divina”.
(p. 83)


Acima, é especialmente notável o sentimento de esperança por uma intervenção divina benéfica. O autor bíblico escreve para estimular o povo a perseverar na confiança na intervenção benéfica de Javé.
No trecho seguinte, o autor do Segundo Isaías remonta à vitória de Baal sobre Lotan, “o monstro marinho da criação Cananéia”, chamado também de Raab, o Crocodilo e o Abismo.


Desperta, desperta!
Veste-te de força,
Braço de Javé
Desperta, como antes,
Em tempos de gerações há muito passadas.
Não cortaste Raab ao meio,
E transpassaste o Dragão
Não secaste o mar;
As águas do grande Abismo
Para fazer do leito do mar
Uma estrada
Por onde passaram os remidos?
(Isaías 51, 9, 10)


No exílio babilônico, Javé sobrepujou seus rivais na imaginação religiosa dos israelitas (Armstrong, p. 184), e o paganismo deixou de ser atraente. Nascia, pois, o judaísmo. Deve-se frisar o papel desempenhado por Javé num período histórico repleto de adversidades: Javé incutia esperança nos que nele criam. Ele era o signo da Salvação em tempos em que a opressão andava em par com a injustiça, e a escravidão e o exílio destruíam a dignidade e a identidade de um povo, que se acreditava eleito por Ele.
Javé tornara-se, portanto, o único Deus, sem que, para tanto, fosse necessário mobilizar uma retórica filosófica. Nas palavras de Armstrong,

“Como sempre, a nova teologia venceu não por ser racionalmente demonstrável, mas por conseguir evitar o desespero e incutir a esperança”.
(p. 84)


Evitar o desespero é, para a consciência religiosa, ainda hoje, o verdadeiro sentido da fé. Esse sentido não se presta, sem alguma forma de aborrecimento, ao exame racional. Por isso, para a maioria dos fiéis dos três grandes monoteísmos, a fé dispensa justificação racional. Não é certo, contudo, concluir daí que a fé cristã jamais se socorreu de uma justificação racional. A história da teologia cristã atesta os esforços por conciliar fé e razão. Eles se encontram na pena de Santo Agostinho (354-430 d.C), de Santo Anselmo (1033-1109), de São Tomás (1221-1274), por exemplo. Não é exagero dizer que a teologia cristã é uma teologia de base racional.
Convém lembrar que o Deus do Segundo Isaías não era acolhedor. Abaixo, ilustra-se a transcendência de Deus ao mundo e ao conhecimento humano: Deus é incognoscível e inefável.

Porque meus pensamentos não são vossos pensamentos
Nem vossos caminhos meus caminhos, diz Javé.
Porque assim como os céus são mais altos que a terra,
Assim são meus caminhos mais altos que vossos caminhos,
E meus pensamentos mais altos que vossos pensamentos.
(Isaías, 55, 8,9)

O que a fé, nutrida na imaginação, separa o exame racional torna transparentemente relacionado. O autor de Isaías afirma serem de naturezas distintas os pensamentos de Javé e dos homens, da mesma forma o são os propósitos, as intenções. Essa distinção essencial entre pensamentos, intenções divinas e pensamentos, intenções humanas marca a superioridade da natureza divina à natureza humana. A razão de Deus é superior à razão humana; os propósitos de Deus mais elevados do que os propósitos humanos. Por isso, o homem jamais poderá conhecer a mente, a natureza e os propósitos de Deus. Essa interpretação se consagrou no imaginário social ocidental tecido pelas malhas da cultura judaico-cristã. Ela reaparece, ainda que sob formas sutilmente diferentes, mas conservando o mesmo conteúdo, nas consciências religiosas da modernidade.
No trecho de Isaías, Deus é representado como um ser que não se deixa cercear nos conceitos e palavras humanos. Todavia, Javé nem sempre estava disposto a atender os apelos de seu povo. O caráter universalista de que está impregnada a ideia de Deus é patente neste trecho de Isaías, no qual o autor dá testemunho de seu anelo por um tempo em que o Egito e a Assíria também se renderiam a Javé.

“Bendito seja meu povo do Egito, e da Assíria, obra de minhas mãos, e de Israel, minha herança”.
(Isaías, 19: 24, 25)


Desnecessário dizer que o autor de Isaías faz Javé falar; mas uma interpretação que vê Javé como mero personagem de um literatura construída com uma grande coleção de escritos históricos, memórias, lendas, contos folclóricos, propaganda real, historietas, profecia e poesia antiga não chega a reconstruir o sentido profundo que reúne a fé de um povo que lutou por sua independência aos esforços por restituir incessantemente sua identidade nacional. Mais do que uma personagem literária, Javé parece ter sido a ideia mais cara com que a tinta e o sangue de homens foram derramados para registrar uma história que atravessou gerações para dar forma a sensibilidades de muitas épocas até os nossos dias. Nos tempos pré-estatais, o culto de Javé dava solidez a aliança entre as tribos. A liga era de caráter sagrado e Javé seu fundamento.

À guisa de conclusão, para os que, como eu, não creem na existência de qualquer forma de divindade, não creem em qualquer domínio sobrenatural, estudar as circunstâncias históricas em que se desenvolveu a ideia de Deus é corroborar a convicção de que, mesmo esse Deus que, desde as origens, se apresentou com clara vocação universalista, é produto da história humana. Por conseguinte, não há razões para elegê-lo, não mais que a qualquer outra forma de deus, para o posto de deus verdadeiro ou real. Também as razões dessa eleição devem ser buscadas nas malhas da História.