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sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

"Todos nós desejamos amar, mas nem todos dispomos de suficiente vontade e talento para tanto" (BAR)

            


                Sobre a nossa incapacidade de amar

Quando o assunto é amor, dois coros de vozes se dispõem antagonicamente. De um lado, ouvem-se os otimistas que não cessam de acreditar que o amor é capaz de tudo: ele é constante, eterno e criativo. Estes se acostumaram à crença num caráter salvífico do amor. De outro lado, protestam os pessimistas, que denunciam o óbvio: as expectativas geradas pelo amor são repetidamente frustradas. Estes chegam, pois, a uma conclusão que conta com o testemunho da realidade: a natureza humana não permite que as esperanças do amor se realizem. O amor humano, à luz dessa visão, está atolado em ilusão, encarcerado no narcisismo, na incompreensão, na possessividade e na manipulação egoísta. Freud e Proust (entre outros) são, reconhecidamente, partidários dessa visão.
É notável, contudo, que tanto Freud quanto Proust estejam ainda vinculados a uma concepção cristã do homem, que eles tentaram rejeitar. No seu esforço por substituir as velhas categorias com base nas quais se explica a depravação humana, tais como ORGULHO, LUXÚRIA e IRA, esses autores não fizeram senão dar a elas um tratamento linguístico secularizado, donde a ocorrência de termos como NARCISISMO, PROJEÇÃO e INSTRUMENTALIZAÇÃO DO OUTRO para descrever o que aquelas categorias descreviam.
As dúvidas que eles acalentavam sobre a possibilidade de o homem ser capaz de um amor calcado sobre o despojamento do ego, de um amor altruísta, que seja a expressão de alegria sem a posse do outro, são muito semelhantes às que nutria, por exemplo, Santo Agostinho.
Lembremos o que a tradição cristã nos ensinou sobre o amor. No cristianismo, o amor é a fonte e a medida de todas as virtudes. O amor, como Deus, é eterno. No entanto, quando os pensadores cristãos teorizaram sobre a capacidade humana de amor (vejam-se, por exemplo, Santo Agostinho e Lutero), eles concordaram, em sua maioria, que o amor é uma graça de Deus, de modo que só podemos amar por intermédio de Deus. Agostinho e Lutero ainda estariam de acordo quanto a outro ponto: somos incapazes de amor genuíno. São Tomás, ao contrário, embora aquiescesse à ideia de que o amor genuíno fundamentalmente provém de Deus, acreditava que não somos meros recipientes para a ação de Deus. São Tomás argumentava que temos vontade animada, a qual, com o concurso da graça, poderia se desenvolver até o estágio em que atingiríamos a perfeição espiritual. Ele não negava que o amor – a suprema das três virtudes teologais, às quais se reúnem a fé e a esperança – fosse infundido em nós por Deus; mas não concordava com Agostinho no tocante à crença de que não sejamos naturalmente capazes de amar (tendo sempre em conta a concepção de amor cristão).
Se articularmos a visão cristã sobre a incapacidade humana de amor genuíno, tal como sustentada por Santo Agostinho – visão também ela pessimista – à visão secularizada do pessimismo de um Freud ou de um Proust, não será difícil concluir que a capacidade de amor não é possuída por todos; o amor está entre os mais raros de todos os talentos. Ele é tão excepcional quanto a capacidade que tem um grande artista de deixar-se penetrar pelo mundo para recriá-lo através de sua arte.
O que a experiência cristã e os teóricos da visão de mundo secularizada nos ensinam a respeito do amor é que ele exige um longo e meticuloso trabalho e aprendizado. Todos nós desejamos amar, mas nem todos dispomos de suficiente vontade e talento para tanto.




(BAR)

sábado, 20 de setembro de 2014

Bem-aventurados os que amam sem medo

                                     
                                       

                                                   Da experiência de sofrer

Há algo no Cristianismo e em alguns cristãos que eu admiro: o reconhecimento de que a experiência do sofrimento e da dor é intrínseca à existência. E meu respeito e admiração são ainda maiores aos que vivem em consonância com esse reconhecimento, sem fugas e com uma força afirmativa da vida, que, com muita frequência, nos expõe à sua fragilidade inerente. Apenas me incomodo quando eles se valem de suas teodiceias para justificar a imensa quantidade de sofrimento gratuito que há no mundo. Mas isso é outra história e ela não vem a propósito neste comentário.
O que me motivou a escrever este pequeno texto foi uma experiência familiar. Há pouco, em vista de uma moléstia – felizmente tratável e sem gravidade – que acomete meu cachorrinho, meu pai disse não querer mais ter cachorro por receio de sofrer. Pode parecer estranho – ou mesmo contraproducente – vindo de uma pessoa que acredita na existência do Deus cristão, que crê na divindade de Jesus Cristo – ainda que isso dispense interesse por elucubrações teológicas -, e de quem se espera  saiba algo sobre a história que nos contam os evangelhos. Mas casos como esse são, não obstante, comuns. Preferir privar-se da experiência do amor por receio do sofrimento é a própria antípoda da experiência cristã. Os cristãos habituados a frequentar as letras da doutrina não me deixam mentir e, provavelmente, me darão razão.
Disse a meu pai que já ouvi dele, outras tantas vezes, a mesma coisa e acrescentei que viver é sofrer (Schopenhauer já o reconhecia, e Buda, que grande influência exerceu sobre seu pensamento, o ensinara), que o sofrimento é uma experiência intrínseca à vida, e que não escapamos a ela, quer nas ocasiões em que adoecem nossos animais de estimação, quer nas circunstâncias em que adoecem nossos entes queridos. Mas ele, relutante, insistiu que o peso do sofrimento é maior do que a recompensa da alegria do amor, da companhia dessas criaturas por cuja vida e bem-estar assumimos responsabilidade. Não quis estender-me numa discussão filosófica (embora ache que a filosofia faz muita falta, em casos como este). Então, preferi me calar.
Meu cachorrinho acaba de ganhar um osso e está feliz... Estou a pensar agora que, se acolhêssemos essa postura covarde em face da vida, então deveríamos não mais ter nossos filhos, pois que dar à luz uma criança é lançá-la às vicissitudes da sorte, é lançá-la num mundo onde ela conhecerá, cedo ou tarde, sofrimento, dor e, necessariamente, a morte. É preciso que se reconheça que fazer nascer  uma criança é condená-la à morte. Os pais, que se alegram com seus filhos, que tanto se orgulham deles, devem estar cientes disso. No momento do nascimento, eles, pais, os condenaram à morte, não sem a possibilidade da experiência de sofrimentos, cuja medida de gravidade está distribuída indiscriminadamente entre os seres humanos (e outras espécies de animais de consciência superior). Mas é preciso ver também o sofrimento como uma dimensão inerente à sua condição de seres biológicos, o que o torna, muitas vezes, inevitável, embora jamais negligenciável.
Respeito nos cristãos a compreensão de que as experiências do amor e do sofrimento são indissociáveis, andam juntas. Vivendo no século I d.C., o filósofo estoico Sêneca, em várias de suas cartas, escritas entre 63 e 65 d.C., se ocupou, com notável e sumária sabedoria, de temas como o da brevidade da vida, o da morte e o da experiência do amor. Em uma de suas cartas, que trata do pesar pelos amigos falecidos, ele nos aconselha, dirigindo-se ao amigo Lucílio, o seguinte:

“Quem amavas morreu, procura outro para amar. É melhor recuperar um amigo do que chorar. Sei que isso que vou acrescentar é dito e repetido, mas não vou omitir porque já foi comentado por todos: o fim à dor – se a vontade não o por -, o tempo porá. Mas é muito torpe para um homem prudente que o remédio da dor seja o cansaço da dor. É melhor que tu abandones a dor do que ela te abandone; desiste disso, porque mesmo que queiras, não poderás fazê-lo por muito tempo”.


É de Sêneca também (se não me engano) outra passagem em que – malgrado meu esforço por encontrá-la, não a encontrei – nos lembra que a mãe que abraça a seu filho com o apego próprio de quem ama profundamente deve saber e aceitar que a quem está abraçando deve, necessariamente, morrer. O que Sêneca nos ensina, a par da necessidade de moderação do amor (o que, para nós que somos tão profundamente marcados pela tradição cristã e romântica, é uma lição difícil de acolher), é que amamos entes perecíveis, amamos entes que devem morrer e nada há que possamos fazer para evitá-lo. O amor não nos salva da morte e nem salva a quem amamos.
É claro que o cristão instruído poderá objetar-me. Se a experiência do amor é indissociável da experiência do sofrimento (quem ama está vulnerável a sofrer, ou melhor, prefere a vulnerabilidade ao sofrimento à privação de amar) e da morte (amamos apesar de saber que a quem amamos deverá morrer), para o cristão sinceramente devoto, aqueles a quem amamos nunca morrerão verdadeiramente. A perda dos entes queridos é temporária. A mensagem dos evangelhos, atribuída a Jesus, pode ser resumida no enunciado: o amor vence a morte. Ao contrário do que ensinava Sêneca (e toda uma tradição com ele), o cristianismo ensinará que podemos nos apegar e amar demasiadamente aos que sabemos que morrerão, na confiança em que os reencontraremos em outro mundo. Cabe, nesse caso, a cada um escolher e adotar uma ou outra visão de mundo. Mas é necessário assumi-la nas vivências ordinárias com fidelidade, o que significa não iludir-se quanto à possibilidade de esquivar-se de sofrer. Não estou a sugerir, portanto, que cristãos não deveriam chorar a morte dos seus (ao contrário, devem chorar porque amam com paixão (digo com sofrimento que há em toda experiência de amor verdadeiro – é isto o que significa a Paixão de Cristo).
Creio em que não alcançou a maturidade do amor quem ainda não compreendeu que temer o sofrimento é privar-se da fruição do amor. O amor é gratuidade; o sofrimento, um custo necessariamente implicado na experiência de existir.


Bem-aventurados os que amam sem medo e se permitem ser amados, alegremente conciliados com a fragilidade e transitoriedade do viver.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

"O homem afirma em Deus o que nega em si mesmo" (Feuerbach)

                                        

        
                                Enquanto bilhões dizem Amém...


                                                     I

No ocidente, o cristianismo se desenvolveu com base na crença na exterioridade de Deus em relação ao homem e ao mundo. Daí para a ideia de Deus como uma projeção, atualmente desacreditada, bastou um passo curto.
Na medida em que fizeram de Jesus o único avatar, os cristãos desenvolveram uma concepção exclusivista da verdade religiosa. Jesus foi considerado a encarnação primeira e definitiva da Palavra de Deus, de tal sorte que outra Revelação futura se tornava desnecessária.
Não foi sem escândalo que os cristãos viram surgir na Arábia do século VII um profeta que preconizava ser portador de uma revelação direta do Deus que os próprios cristãos adoravam. Esse profeta trouxe consigo uma nova Escritura. Essa versão do monoteísmo, que se tornaria conhecida como islamismo, angariou, de modo muito rápido, milhares de adeptos no Oriente Próximo e no Norte da África.
Como, nessas regiões, não se verificava a influência do helenismo, não custou aos adeptos da nova fé abandonar a doutrina grega da Trindade, com a qual o cristianismo ortodoxo expressava o mistério de Deus. O idioma árabe não se prestava à formalização de uma tal concepção trina de Deus, e os adeptos islâmicos puderam adotar uma noção mais semita da divindade.
Se você é cristão, não pode aceitar outra revelação de Deus senão a que se deu por intermédio de Cristo; se é judeu, não poderá aceitar Cristo como o Messias; se é islâmico, deverá assumir que a Revelação definitiva de Deus se deu através da figura do profeta Maomé.
Enquanto nenhuma das partes que julga dispor do privilégio da Revelação de Deus não consegue determinar quem tem razão, Deus permanece sendo um mistério transparente e uma evidência oculta para os que se habituaram a dizer simplesmente Amém.

                                                 
                                                    II

Se você não está disposto a desacostumar-se, muito provavelmente não se entregará à filosofia. Se você vive confortavelmente amparado no sistema de crenças com o qual se habitou, desde tenra idade, a ver o mundo, provavelmente se contentará em dizer aquilo que a maioria gosta de ouvir. Se, além disso, nutre fortes convicções religiosas, muito provavelmente se agradará de dar a conhecer aos que concordam com você em sua cosmovisão o que acredita ser a verdade sobre a identidade de Jesus. Julgará, por força do hábito, que é relativamente simples determinar e revelar o Jesus histórico – afinal, a Bíblia encerra os quatro Evangelhos que nos dão testemunho de quem foi Jesus.
Por estar tão acostumado (ou acostumada) a reproduzir a herança de sua tradição religiosa – e crendo que, ao fazê-lo, satisfaz suas necessidades espirituais, - sequer desconfiará de que é extremamente difícil saber, com segurança, quem realmente foi Jesus e o que ele fez. Uma das razões para essa dificuldade repousa no fato de que os quatro Evangelhos canônicos estão repletos de contradições. Outra razão diz respeito ao fato de eles terem sido escritos décadas após o ministério e a morte de Jesus – e pasme-se! -, sem que seus autores tenham testemunhado os acontecimentos relatados. É isso mesmo: os autores dos quatro Evangelhos não foram testemunhas oculares; as pessoas às quais se atribuiu a autoria não foram seus verdadeiros autores. Os textos foram escritos entre 35 e 65 anos depois da morte de Jesus por pessoas que não o conheceram; pessoas que sequer falavam o idioma que ele falava, e que viveram em outro país.

A despeito disso, a verdade de Jesus fez carreira, pondo em movimento legiões de mentirosos.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

O Eclesiastes - o problema da autoria bíblica

                              Resultado de imagem para eclesiastes tudo é vaidade


                                                  O Eclesiastes
                                Um olhar histórico-crítico

Este edifício textual se assenta sobre o pressuposto segundo o qual a Bíblia é uma obra humana e a produção de seus textos dependeu apenas do trabalho humano sem qualquer alegada inspiração de Deus. Ademais, a leitura deste texto também supõe a admissão do pressuposto segundo o qual uma visão de mundo ateísta não é incompatível com um interesse pelo estudo crítico-histórico da Bíblia.
Dois são os objetivos principais a que viso, na produção deste texto, a saber, dar a conhecer as inconsistências ideológicas e teológicas que permeiam o Livro do Eclesiastes e mostrar por que esse texto não pode ser atribuído a um único autor. Antes de atacar essas duas questões basilares, urdirei algumas considerações sobre o que é a Bíblia e sua utilidade ou não para o desenvolvimento da pesquisa histórica sobre Israel. Outro objetivo a que se destina a produção deste texto é patentear de que modo o Eclesiastes deixa entrever a coexistência de uma visão claramente pessimista sobre a existência, podendo afinar-se, assim, com o espírito de ateus e agnósticos, e de uma visão devocional, que satisfaz o otimismo dos crentes. Não há dúvida, conforme se verá, de que o Eclesiastes sustenta uma visão cética segundo a qual a vida não tem sentido. Como seja um dos livros componentes da literatura sapiencial da Bíblia, o Eclesiastes lega-nos um ensinamento intemporal sobre a condição humana, sobre a vida e a morte – um ensinamento que não pode escapar à consciência quer de leitores devotos, quer de leitores céticos.


1. O que é a Bíblia?

Comecemos por considerar esta passagem de Swenson, em seu Desvendando a Bíblia (2010), na qual a autora nota como, em geral, as pessoas leem a Bíblia com base em um pressuposto equivocado. Elas leem a Bíblia

“Supondo uma origem única (pelo menos para cada livro bíblico), por exemplo, ou que a Bíblia conta coisas do começo ao fim em ordem direta e cronológica”
(p. 21)


Em primeiro lugar, o que chamamos de Bíblia não foi produto de um único autor. Em segundo lugar, seus múltiplos autores não estavam conscientes de que escreviam a Bíblia. A constituição de um cânone foi um longo e complicado processo, durante o qual discussões acirradas opunham entre si os primeiros padres da Igreja cristã. Por exemplo, os manuscritos do Novo Testamento estavam sendo produzidos no século I d.C. Àquela altura, eram milhares os textos que circulavam e eles sofreram muitas alterações, falsificações antes de integrarem um cânone bíblico. Não me estenderei, contudo, sobre esse tema, cuja extensão é suficiente para a produção de um texto outro.
É preciso entender que a Bíblia não se presta a uma leitura “literal”. A própria biografia da Bíblia – ela se desenvolveu durante um longo período de tempo e reflete acréscimos de várias épocas e lugares, abrigando diversas perspectivas – praticamente garante que ela diz muitas coisas (por vezes, contraditórias). As pessoas leem a Bíblia acreditando que seu significado possa ser tomado para compreender a nossa época; mas a distância cultural que nos separa do mundo bíblico é imensa. Esse reconhecimento deveria servir para acautelar os mais apressados que supõem ser a Bíblia um parâmetro para o comportamento moral hoje. Não é difícil mostrar que nós, em matéria de orientação moral, não seguimos tudo que está prescrito na Bíblia. Tome-se este outro passo de Swenson:

“Entendendo que a Bíblia foi composta durante um longo período por muitas pessoas diferentes, e tudo isso há muito tempo, podemos avaliar mais facilmente como, hoje em dia, pessoas diferentes extraem diferentes significados dela. Muito do que está na Bíblia não foi escrito com o objetivo de se tornar bíblico. A maior parte de seu conteúdo foi considerada como autorizada e como escritura sagrada apenas muito tempo depois que os textos foram primeiramente desenvolvidos e usados. Esses fatos tornam a interpretação hoje, tanto a secular quanto a religiosa, uma atividade rica em camadas”.
(pp. 23-24, grifo meu)


A Bíblia mais antiga é a Bíblia hebraica, a que corresponde ao Antigo Testamento da Bíblia cristã. No entanto, a Bíblia hebraica só foi finalizada quando do aparecimento dos primeiros cristãos. Assim, a grande maioria dos textos que viriam a constituir a Bíblia já eram usados e considerados escrituras autorizadas pelas comunidades de judeus havia muito tempo. Judeus e cristãos adotavam certo número de manuscritos pré-bíblicos que eram traduções gregas de antigos manuscritos em hebraico. Essa versão grega é uma espécie de Bíblia cuja estrutura, linguagem e pressupostos explicam as diferenças existentes nas Bíblias de hoje.
A Septuaginta é o nome atribuído à tradução para o grego da Bíblia hebraica. Conta uma lenda que Ptolomeu II, conhecido como Filadelfo, que governou o Egito entre 285-246 a.C., desejou ter em sua biblioteca uma cópia dos cinco primeiros livros da Bíblia. Ele, então, chamou setenta e dois tradutores judeus provenientes da Alexandria para a realização do trabalho, que durou setenta e dois dias. É claro que a tradução, na verdade, durou séculos, mas o termo Septuaginta fez parte da história para fazer referência aos setenta e dois tradutores e aos setenta e dois dias necessários ao empreendimento da tradução.
Jerônimo, que foi responsável por traduzir a Bíblia para o latim (entre 385 – 405), chamou os livros extras da Septuaginta, ou seja, os que não entraram a fazer parte do cânone das Escrituras hebraicas, de apócrifos. Apócrifos  significa “ocultos”. A intenção de Jerônimo era distingui-los dos livros originais em hebraico no final do Antigo Testamento. Mas eles foram incorporados e reconhecidos oficialmente pela Igreja Católica como parte da Bíblia, ainda que lhes tenha sido atribuído o estatuto de “secundários”.
A Bíblia hebraica é produto de acontecimentos sócio-históricos que se desenvolveram ao longo de muito tempo e representa as ideias, crenças e valores do povo protojudaico que falava a língua hebraica e que vivera no Antigo Oriente Próximo nos primeiros séculos antes da nossa era. A Bíblia é produto de um esforço por construir uma identidade pela interpretação de acontecimentos históricos à luz de representações de Deus. A fidelidade do povo a Deus fez com que esse povo responsabilizasse única e exclusivamente a si mesmo pelas adversidades que teve de enfrentar.
A Bíblia hebraica é uma coletânea de livros que expressam muitas histórias sobre o povo escolhido de Deus. Tais histórias dizem respeito às formas como esse povo descumpriu a aliança com o seu deus e como ele foi punido por isso. No tangente ao Novo Testamento, cumpre notar que ele abriga um conjunto de livros reunidos por pessoas de fé, e não por historiadores preocupados em determinar fatos a respeito da vida de Jesus. Jesus, a personagem principal desses escritos, era um profeta apocalíptico judeu. Na época em que Jesus vivera, os judeus não estavam sempre de acordo quanto às suas crenças e visões teológicas. O cristianismo surge como uma seita judaica que rompe com certos aspectos da tradição e com ideias caras e fundamentais para alguns judeus. Eram poucos os judeus que aceitavam a crença, acalentadas pelos seguidores de Jesus, de que ele era o Messias que cumpriu as profecias judaicas, como a de Isaías (53). Não eram raros os judeus que julgavam heréticas as afirmações sobre a divindade de Jesus. Esses judeus as rejeitavam por acreditarem que Deus não podia assumir a forma de um ser mortal. Em outras palavras, para muitos judeus, era um escândalo acreditar que Deus encarnaria num ser humano cujo destino, terrível, seria a crucificação e a morte. Morte de um deus? Como isso seria possível? Escândalo! – revoltavam-se os judeus.
A autoria, durante o período em que os escritos bíblicos era produzidos, raramente era significava a empreitada de um único indivíduo, cujas palavras, uma vez escritas, permaneciam imutáveis. Quase toda a literatura da Bíblia é atribuída a uma pessoa ou outra que não chegou a escrevê-la. Falsificações eram comuns no mundo antigo. A maioria dos textos bíblicos foram escritos anonimamente (mormente, os da Bíblia hebraica) e seus autores eram pessoas que podiam aprender a ler e a escrever – escribas ensinados no templo.
Os escribas produziram textos com base nas tradições existentes e com base em textos, por exemplo, narrativas orais, poesia, anais, oráculos, que foram preservados e transmitidos por discípulos de um profeta. A eles competia copiar e editar esses textos de acordo com as circunstâncias e a teologia que adotavam.
Se a Bíblia não foi entregue pronta por Deus, tampouco constituía um projeto conscientemente desenvolvido por seus autores. O conjunto de livros ou manuscritos que viriam a ser reunidos para compor a Bíblia circulava como partes independentes, muitas das quais assumiram a forma de rolos de pergaminho, em vez de códices encadernados, à semelhança de nossos livros de hoje. Disso se segue que a sua organização e ordem não eram fixas.
Levando-se em conta essas considerações sobre a história da constituição dos textos bíblicos, vamo-nos debruçar sobre o Eclesiastes, a fim de compreender como duas visões divergentes sinalizam duas fontes autorais que, seguramente, estão na origem da produção deste livro. Há, conforme mostraremos, duas vozes cujas perspectivas são claramente conflitantes. Um das vozes assume uma perspectiva pessimista sobre a vida e a condição humana, enquanto a outra sustenta sua crença na providência divina, que, ao cabo, beneficiará os justos e punirá os injustos. Trata-se de um livro que pode satisfazer tanto a céticos (mesmo agnósticos e ateus) quanto a crentes devotos.


2. O Eclesiastes: tema e problema da autoria

Em seu Como ler a Bíblia – História, profecia ou literatura (2010), Mckenzie observa que o Eclesiastes é um exemplo da literatura sapiencial bíblica, conhecido pelo nome hebraico coélet. Essa palavra é um título usado pelo autor do livro e se traduz geralmente como professor ou pregador.
A questão principal de que trata o livro do Eclesiastes é a do sentido da vida. O Eclesiastes é um subgênero do gênero sabedoria; é uma autobiografia ficcional. Segundo Mckenzie,

“A compreensão do Eclesiastes como autobiografia ficcional confere a ele autoria desconhecida. O Eclesiastes, como o Livro dos Provérbios, é atribuído ao rei Salomão, embora ele não seja o autor verdadeiro”.
(p. 115, grifo meu)


A perspectiva predominante no Eclesiastes, deveras pessimista, é a de que a vida não tem sentido. Uma leitura acurada revela inconsistências, já teológicas, já ideológicas (em sentido lato), significativas, que dizem respeito a alguns tópicos principais de trata o livro. Note-se, de passagem, que a palavra vaidade, que ocorre no texto, significa “vazio” ou “sem sentido”. Há uma visão cética no Eclesiastes segundo a qual a vida não tem sentido.
Convém esclarecer que as biografias ficcionais se dividem em três partes. Todas se iniciam com uma breve introdução, em que se informa quem é a pessoa retratada; posteriormente, estende-se uma longa narrativa durante a qual os prodígios da pessoa retratada são pormenorizados. Na terceira parte, que difere de um trabalho para outro, se topa um conjunto de bênçãos e maldições, uma lista de donativos para culto a um deus, uma profecia ou um conselho sapiencial. O Eclesiastes se assemelha ao tipo de narrativas que se estruturam na forma de um conselho sapiencial.
O Eclesiastes, conforme veremos, encerra duas vozes, imediatamente apreensíveis, cujos pontos de vista são conflitantes. Há certo consenso entre os estudiosos da Bíblia em considerar o Livro como resultado de acréscimos realizados por editores posteriores. Destarte, por exemplo, as passagens em que se recomenda o temor a Deus na esperança de que ele recompensará os justos e punirá os ímpios são exemplos de trechos acrescidos, vez que suas ideias estão limitadas aos dois últimos versos do livro.
Há uma voz que sustenta não ter a vida sentido algum e que, por isso, devemos “comer, beber e se divertir”. Consoante essa visão, a morte é o fim de cada um de nós e ninguém sabe o que há além do túmulo. A outra voz, por outro lado, advoga que existirá um julgamento final e que o significado da vida repousa na obediência a Deus. Essas vozes correspondem a dois locutores distintos, os quais representam diferentes tradições. Na subseção a seguir, nos deteremos a discorrer sobre os elementos temáticos da narrativa, com vistas a fazer aparecer as duas perspectivas conflitantes.

2.1. Elementos temáticos e perspectivas conflitantes

1) Carpe diem (aproveite o dia)

O Eclesiastes afirma que todos nós devemos aproveitar a vida enquanto ela dura. Vejam-se os excertos que dão testemunho dessa visão:

12. Já tenho entendido que não há coisa melhor para eles do que alegrar-se e fazer bem na vida.
13. E também que todo homem coma e beba, e goze do bem de todo o seu trabalho, isto é um dom de Deus.
(3: 12-13)


Não há contradição necessária entre as ideias de gozar a vida e a vida não ter sentido. As duas perspectivas podem ser compatíveis entre si.  Nos excertos a seguir, a despeito da visão segundo a qual a vida é vã, gozá-la é conveniente e desejável:

7. Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe com coração contente o teu vinho, pois já Deus te agrada das duas obras.
8. Em todo tempo sejam alvas as tuas roupas, e nunca falte o óleo sobre a tua cabeça.
9. Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida vã, os quais Deus te deu debaixo do sol, todos os dias da tua vaidade; porque esta é a tua porção nesta vida, e no teu trabalho, que tu fizeste debaixo do sol.
10. Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma.


O locutor sustenta a tese de que devemos gozar a vida antes que morramos. Retomando-se a tensão entre as ideias de “gozar a vida” e “a vida não tem sentido”, faz-se mister notar que ela é muito forte em todo o livro. Em 2: 1-11, observa-se que o prazer é uma das possíveis razões para viver. Entre os prazeres mencionados pelo texto, está o prazer de trabalhar.

1. Disse eu no coração: Ora, vem, eu te provarei com alegria; portanto goza o prazer; mas eis que também isso era vaidade.
2. Ao riso disse: Está doido; e da alegria: De que serve esta?
3. Busquei no meu coração como estimular com vinho a minha carne (regendo porém o meu coração com sabedoria), e entregar-me à loucura, até ver o que seria melhor que os filhos dos homens fizessem debaixo do céu durante o número de dias de sua vida.
4. Fiz para mim obras magníficas; edifiquei para mim casas; plantei para mim vinhas.
5. Fiz para mim hortas e jardins, e plantei neles árvores de toda a espécie de fruto.
6. Fiz para mim tanques de águas, para regar com eles o bosque em que reverdeciam as árvores.
7. Adquiri servos e servas, e tive servos nascidos em casa; também tive grandes possessões de gados e ovelhas, mais do que todos os que houve antes de mim em Jerusalém.

Note-se que o locutor era um homem de muitas posses. Em 7, afirma que tinha muitas propriedades, como servos e servas que lhe permitiam dispor do tempo necessário para fruir a vida.

8. Amontoei para mim prata e ouro, e tesouros dos reis e das províncias, provi-me de cantores e cantoras, e das delícias dos filhos dos homens; e de instrumentos de música de toda a espécie.
9. E fui engrandecido, e aumentei mais do que todos os que houve antes de mim em Jerusalém, preservou também comigo a minha sabedoria.
10. E tudo quanto desejaram os meus olhos não lhes neguei, nem privei o meu coração de alegria alguma; mas o meu coração se alegrou por todo o meu trabalho, e esta foi a minha porção de todo o meu trabalho.

Finalmente, o locutor reconhece que, após gozar do prazer proporcionado pelo luxo e riqueza, após deleitar-se com a obra de seu trabalho, tudo é vaidade, isto é, tudo é sem sentido. Trata-se da percepção de quem se cansa da vida e não encontra nela qualquer fonte de significado.

11. E olhei eu para todas as obras que fizeram as minhas mãos, como também para o trabalho que eu, trabalhando, tinha feito, e eis que tudo era vaidade e aflição de espírito, e que proveito nenhum havia debaixo do sol.


Em 11, clara está a visão pessimista do locutor que reconhece a insignificância de suas realizações, dos próprios esforços empregados na construção de suas obras. O trecho dá testemunho de um locutor que padece pelo reconhecimento de que não há proveito nenhum em viver.
Há também um conflito entre a ideia básica de que a vida não tem sentido e a ideia de que devemos temer a Deus: “essa também é uma ideia que se repete ao longo do livro” (p. 117). Em 3:14, se acha a ideia de que devemos temer a Deus. Gozar a vida e temer a Deus também se acham em conflito em outras passagens. É necessário lembrar-se do criador. O jovem deve gozar a vida, mas é prevenido de que Deus o julgará pelos seus atos. Ora, os dois conselhos são incongruentes (p. 117).

9. Alegra-te, jovem, na tua mocidade, e recreie-se o teu coração nos dias da tua mocidade, e anda pelos caminhos do teu coração, e pela vista dos teus olhos; sabe, porém, que por todas estas coisas te trará Deus a juízo.
10. Afasta, pois, a ira do teu coração, e remove da tua carne o mal, porque a adolescência e a juventude são vaidade.
(11: 9-10)
2) Prazer

Embora prazer e diversão sejam apreciados e recomendados como modos de viver, sendo mesmo considerados dádivas divinas, o Eclesiastes diz ser o prazer sem sentido (ver 2:1-11).


3) Trabalho

O trabalho, tal como o prazer e a riqueza, é considerado, em alguns textos, como um presente de Deus. No entanto, em outra parte, o Eclesiastes descreve o trabalho como enfadonho e sem sentido. O trabalho a que se devota o locutor (2: 4-6) é vazio e odiado pelo locutor (2: 18-23). Não há benefício no trabalho. O trabalho é motivado pela inveja interminável (4:4) e não produtiva (4:8).

4) Riqueza

Também a aquisição de bens materiais, busca a que o Eclesiastes leva a cabo, é, eventualmente, considerada sem sentido (2: 1-11).

5) Sabedoria

A sabedoria também é considerada uma dádiva de Deus e uma recompensa para aquele que dela se beneficia (2: 26). A sabedoria é vantajosa para aqueles que a possuem (7: 11). Não obstante, o locutor, que se beneficiou de uma vasta sabedoria, cuida que ela é sem sentido também e uma fonte de frustração (1: 17-18). Mesmo que, comparada à tolice, a sabedoria seja melhor, no final das contas, ambas não livram tanto o homem da morte, que é inevitável, para o sábio ou para o tolo. Portanto, ser sábio ou tolo não faz diferença nenhuma em face da consciência do destino seu comum (2: 13-16).

16. Porque nunca haverá mais lembrança do sábio do que do tolo; porquanto tudo, nos dias futuros, total esquecimento haverá. E como morre o sábio, assim morre o tolo.

6) Significado da vida/ retribuição

Há inconsistências também quando se considera a questão de se a vida tem significado e a questão de se haverá alguma recompensa aos justos. Por um lado, a vida parece evidentemente injusta: há maldade em vez de retidão e justiça (3: 16). Os oprimidos não têm conforto ou crença (4: 11). Os justos morrem jovens, enquanto os ímpios têm vida longa (7: 15). Não parece haver um sistema de punição imediata para os ímpios.Todos são iguais no túmulo (9: 2).

2. Tudo sucede igualmente a todos; o mesmo sucede ao justo e ao ímpio, ao bom e ao puro, como ao impuro; assim ao que sacrifica como ao que não sacrifica; assim ao bom como ao pecador; ao que jura como ao que teme o juramento.

Eclesiastes 9:2

No entanto, o Eclesiastes encerra uma série de textos que sustentam a visão segundo a qual haverá uma retribuição divina. Alguns desses textos se assentam na crença de que Deus recompensará os fiéis e punirá os ímpios. Há textos em que se percebe a crença num julgamento final.

13. De tudo o que se tem ouvido, o fim é: Teme a Deus, e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo o homem.
14. Porque Deus há de trazer a juízo toda a obra, e até tudo o que está encoberto, quer seja bom, quer seja mau.

Eclesiastes 12:13-14


7) Morte

A vida merece ser vivida ou morrer é preferível a viver? Esta é também uma questão de que se ocupa o Eclesiastes.
Os mortos irão para o Sheol, que é a morada dos mortos, onde não há “nem trabalho, nem pensamento, nem sabedoria” (9:10).

10. Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma.


O Eclesiastes odeia sua vida, porque ela é destituída de significado (2: 17).

17. Por isso odiei esta vida, porque a obra que se faz debaixo do sol me era penosa; sim, tudo é vaidade e aflição de espírito.


A morte é considerada melhor que a vida, e o melhor mesmo é nunca ter vivido.

Eclesiastes 4: 1-3

1.       Depois voltei-me, e atentei para todas as opressões que se fazem debaixo do sol; e eis que vi as lágrimas dos que foram oprimidos e dos que não têm consolador, e a força estava do lado dos seus opressores; mas eles não tinham consolador.

2. Por isso eu louvei os que já morreram, mais do que os que vivem ainda.

3. E melhor que uns e outros é aquele que ainda não é; que não viu as más obras que se fazem debaixo do sol.


No entanto, no versículo 9: 4-6, sustenta-se que a vida é melhor que a morte.


4. Ora, para aquele que está entre os vivos há esperança (porque melhor é o cão vivo do que o leão morto).

5. Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, mas a sua memória fica entregue ao esquecimento.

6. Também o seu amor, o seu ódio, e a sua inveja já pereceram, e já não têm parte alguma para sempre, em coisa alguma do que se faz debaixo do sol.


Ademais, em 11: 8, observa-se que uma pessoa que vive muitos anos deve alegrar-se em todos eles. O Eclesiastes afirma a vida e considera válido seu usufruto. Esse tema se desenvolve a par do pessimismo profundo à luz do qual a morte é valorizada quando cotejada com a vida (p. 120).



Adendo

3.      Reconstruindo a história de Israel

Uma das dificuldades para a reconstrução da história de Israel repousa na escassez de fontes não literárias e literárias com base nas quais esse processo possa lograr o sucesso pretendido. O leitor poderia perguntar por que não se servir da Bíblia para estudar a história de Israel. A razão é simples: a Bíblia não pode servir de fonte para estudar e reconstruir a história de Israel, uma vez que a Bíblia não tem como preocupação principal apresentar uma perspectiva histórica dos fatos e das personagens. Sua preocupação central é patentear a ação de Deus na história da comunidade de seu povo; ademais, a Bíblia se preocupa em mostrar como esse povo respondeu aos apelos de Deus, num contexto sócio-histórico marcado por sucessos e insucessos, prosperidade e opressão, liberdade e escravidão, na busca por conquistar e reconquistar a terra prometida por Deus. A Bíblia não tem um compromisso em fornecer informações históricas tais como nós a entendemos hoje, à luz de nossa mentalidade racional e científica.
Os estudiosos se dividem em duas tendências básicas, no tocante à questão da utilidade da Bíblia como fonte para a pesquisa histórica. Há os que afirmam a impossibilidade de se servir da Bíblia para reconstruir a história de Israel; e há outros que aceitam a Bíblia como fonte primeira, salvo em casos em que ela, a Bíblia, se mostra absolutamente falseada, tendo em vista o cotejo das informações que abriga com os dados das ciências auxiliares, entre as quais se acha a arqueologia.
É claro que a Bíblia codifica a visão particular do povo, escolhido por Deus, sobre a sua própria história. Esse povo compreendeu e releu a sua história e a registrou, sem, contudo, preocupar-se com relatos fidedignos dos acontecimentos que viveu. Ademais, os escritos bíblicos expressam não a visão de todo o povo de Israel, mas de uma parcela significativa cujo olhar sobre a história, então registrado, se impôs ou foi preservado e se tornou acessível a nós. Destarte, não há apenas uma história de Israel, mas histórias de Israel.


3.1.  A edificação de um conhecimento e a ruína da fé

Costumeiramente, eu sou importunado por um sentimento que me aviva na consciência a importância de reanimar na consciência de outrem o que eu entendo por Deus, sendo eu ateu declarado. Em primeiro lugar, enfatizo que não há vantagem nenhuma em ser ateu. Já faz algum tempo em que a assunção do meu ateísmo deixou de significar libertação de grilhões emocionais que me conservavam na dependência de uma visão de mundo que descobri ser seriamente danosa. O amadurecimento de meu ateísmo, muito graças aos estudos que empreendi em filosofia, levou-me a perceber que o abandono da fé impulsionou meu interesse por compreender os alicerces sócio-históricos dessa fé. Em outras palavras, tendo superado a fase de libertação emocional, compreendi haver uma conexão entre minhas convicções ateístas e meu amadurecimento enquanto estudioso de filosofia. Percebi que o abandono da fé impulsionou um avivado interesse por estudar teologia e história das religiões, sem perder de vista o legado da filosofia, com base no qual meus caminhos intelectuais eram iluminados.
À proporção que ia se construindo em mim uma consciência histórica e crítica da Bíblia e quanto mais apurado se tornava meu conhecimento – sempre em desenvolvimento – da história do povo hebreu, mais frágil e desnecessária se tornava para mim a fé num Deus que, não contando com o apoio de evidências para sustentar sua existência, se reduziu a um signo dotado, contudo, de uma materialidade histórica (sobre a qual já derramei algumas tintas neste blog).
Tendo a consciência aliviada dos hábitos de uma fé, historicamente pouco suscetível a dobrar-se ao debate crítico, passei a compreender Deus como signo linguístico entretecido de uma materialidade histórica e ideológica, o qual reflete os avanços e retrocessos de um povo que lutava pela conquista da Terra Prometida.
Aprendi que contar a história desse Deus, uma palavra tão pronunciada por milhões de pessoas ao redor do mundo, é contar a história do povo de Deus, os hebreus, a quem Deus havia prometido uma terra.  Aprendi que contar a história do povo de Deus é o mesmo que contar a história da terra de Deus.
Para mim, não resta, hoje, dúvida de que é por força de contingências históricas que a sociedade ocidental, da qual a sociedade brasileira é, evidentemente, um exemplo, professa a fé num único Deus, dotado de uma historicidade cujas tramas são, em geral, desconhecidas da maioria dos homens e mulheres do mundo da rua e do trabalho.
Não se deve chegar à conclusão apressada de que meu declarado ateísmo significa um desinteresse por Deus; de resto, o número de textos que dedico ao tratamento do tema é suficiente para provar ser justamente o contrário disso. A forma por que eu entendo Deus é que sofreu uma mudança radical. Deus não é senão, para mim, um signo ideológico (na acepção de Bakhtin), cujo uso pode servir - e serve, com frequência, - às classes dominantes, com o concurso da Igreja, ela mesma uma instituição representante das forças de dominação, à conservação do status quo. Também como signo, que não designa senão uma ideia na mente, sem que lhe corresponda um referente exterior identificável com um objeto material no mundo conhecido, Deus enfeixa uma série de acontecimentos sócio-históricos que está na raiz do seu desenvolvimento, enquanto signo, e que remontam a mais de 3.000 anos.
Conhecer esses acontecimentos é devolver a Deus sua face humana. O homem retirou de Deus aquilo que o identifica como obra da atividade histórica humana. Conhecer tais acontecimentos é por de pé o que o próprio homem, no devir histórico, pelo próprio trabalho da história, pôs de ponta-cabeça: no princípio, está o homem; depois ocorreu ao homem que Deus estava em sua origem; e Deus se fez criador do homem, e o criador-homem se fez criatura de Deus. O verdadeiro criador se submeteu à verdadeira criatura. Os polos se inverteram: Deus - criador, causa, origem explica o homem - criatura, consequência, procedência. Deus se apresentou à consciência do homem como a origem do homem e passou a dominar a consciência do homem, que já não mais se reconhece como o verdadeiro inventor de Deus.















quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

"O que a história pode nos ensinar de mais seguro é que nos enganávamos sobre um ponto de história" (Valéry)

                               
                                    


                                 O antijudaísmo cristão
                                  Discurso, verdade e poder


Do latim historia, que, remontando ao grego, significava “pesquisa”, “informação”, História será tomado, neste texto, na acepção de sucessão de acontecimentos. Trata-se da história-acontecimentos, os quais são produzidos por forças humanas encarnadas em disputas e em contradições. Essas disputas e contradições, que constituem elas mesmas os acontecimentos históricos, devem ser contempladas em sua relação necessária com o poder.
O termo poder é extremamente importante na discussão que empreenderei neste texto. Por isso, urge defini-lo.

1. Poder

Para Max Weber, poder é a capacidade de exercer controle sobre indivíduos, eventos ou recursos, isto é, é agir de modo tal a produzir aquilo que se quer que aconteça, não obstante obstáculos, resistência e oposição.
Há muitas divergências sobre como se deve conceituar o poder. As dificuldades de conceituação se devem, em parte, às formas diferentes que ele assume. Acrescente-se que a maneira como é definido tem efeito significativo no modo como se pensa em sistemas sociais e no seu funcionamento.
A forma de poder que me interessa, para a elaboração deste texto, é a denominada power-over (poder-sobre). O poder chamado de poder-sobre deve ser entendido como um recurso que os indivíduos possuem, tendo em vista um sistema social organizado hierarquicamente. Assim, o poder é algo que pode ser retido, retirado, capturado, perdido, cobiçado ou roubado e que é usado em relações basicamente marcadas por antagonismo. O poder-sobre assenta num conflito entre os que o têm e os que não o têm.
Destarte, as disputas históricas assumem a forma de lutas em torno do poder-sobre em sistemas sociais, compreendidos como totalidades cujos subsistemas são interdependentes e permeados de interesses que podem corresponder aos interesses do todo social ou colidir com eles. É verdadeiro para a modernidade, ao menos, que o poder produz o real, produz os domínios de objetos do saber e os rituais de verdade.
A noção de sistema social também precisa ser elucidada, a fim de que se perceba sua utilidade para a compreensão do fenômeno histórico de que este texto se ocupa.





2. Sistema social

O conceito de sistema social tem analogia com a noção de sistema nas ciências naturais, notadamente na física (sistemas mecânicos) e na biologia (sistemas orgânicos). As analogias com esses dois tipos de sistemas permitiram a construção de dois principais modelos sociológicos de sistemas sociais, embora sempre houvesse a preocupação de salientar os traços que os tornam distintos dos sistemas das ciências naturais.
Um sistema social é, portanto, a totalidade social no interior da qual coexistem inúmeros campos de ação superpostos, cada qual com sua própria dinâmica de desenvolvimento. As instituições sociais são constituídas de subsistemas do sistema social geral. Assim, devem-se distinguir os subsistemas econômico, político ou religioso, cada qual comportando uma função específica, contribuindo, desse modo, para assegurar a coesão geral do sistema social mediante o intercâmbio de energia e informação.
Todo sistema social depende do equilíbrio para manter um bom funcionamento, e o equilíbrio só se obtém quando há reciprocidade nas relações entre os diversos subsistemas. Uma dimensão importante que assegura o equilíbrio da totalidade do sistema são as interações linguísticas mediadas pelos indivíduos.
Os sistemas sociais são moldados por processos de integração e adaptação (Parsons). Assim, eles são suscetíveis de influências ambientais, as quais se expressam na forma de um fluxo constante de energia e informação (visão biológica), o que não impede que, em certas condições ambientais, um sistema possa ser estudado em estado de equilíbrio, isolado do ambiente, como se fosse um sistema estanque.

Outro conceito que ocupa um lugar importante nas reflexões que se seguirão é o de verdade. A verdade é uma moeda cara; todos nós queremos possuí-la. Seu valor é inegável tanto aos homens da ciência quanto ao homem comum. Foucault nos chamou a atenção para o fato de que a busca da verdade e o discurso da verdade se realizam através de um exercício de poder. A busca pela verdade é sempre interessada. Na modernidade, verdade, conhecimento e ciência estão, portanto, intimamente articulados ao poder.
As religiões organizadas também namoram a verdade (quando não a depravam) . Desde as origens, a fé cristã se impôs como a única fé verdadeira. Os cristãos alegavam que o seu Deus era o único deus verdadeiro. Mesmo a fé cristã que, de tempo em tempo, precisou ora articular-se à razão, ora reivindicar, em face dela, a sua superioridade, não desistiu de cobiçar a verdade. A teologia cristã se apoia em verdades reveladas. Os cristãos creem que sua Bíblia é o próprio registro dessas verdades. Decerto, desconfio demais dessas verdades, o que me impede de atribuir-lhes qualquer sentido de utilidade que não seja abusivamente ideológico. A teologia está repleta de abusos semânticos desse tipo. O uso que a doutrina cristã faz da palavra Revelação, por exemplo, para se referir a um projeto do Deus “vivo” que se fez conhecido do homem, está entre os abusos semânticos a que me refiro.
Veremos que nossa concepção de verdade provém de três ramos linguísticos: o grego, o latim e o hebreu. Isso equivale a dizer que o conceito de verdade, no pensamento ocidental ,foi legado pelas culturas matrizes da cultura ocidental: a greco-romana e a judaico-cristã.
Começarei apresentando e definindo as três concepções de verdade de que somos herdeiros; posteriormente, vou-me debruçar sobre a exposição que Adam Schaff faz do tema em seu livro História e Verdade (1983), com o objetivo de sublinhar a relação entre verdade, conhecimento e história.

3. As três concepções de Verdade

3.1. A verdade como alétheia

Em grego, verdade se diz alétheia, palavra que se constitui da combinação do prefixo “-a”, que expressa negação (cf. amoral), com a forma léthe, que significa ‘esquecimento’. Alétheia significa, portanto, o ‘não-esquecido’. Platão falava da verdade como o que é lembrado ou o que não é esquecido. Por extensão semântica, alétheia passou a significar também o ‘não-escondido’, ‘não-dissimulado’.
A verdade é, assim, o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito. Os antigos gregos concebem-na como a manifestação do que é realmente. Portanto, a verdade se opõe à falsidade, a qual é o encoberto, o ocultado, o escondido. A verdade é aquilo que se mostra plenamente para a razão. A verdade é o que é evidente. A palavra evidência quer dizer justamente o desocultamento total de algo para a visão que, portanto, o apreende completamente.
A concepção grega de verdade supõe que a realidade se manifeste, se desvele (‘remova o véu que a encobria’) à visão intelectual dos seres humanos. A verdade, assim, é uma propriedade das próprias coisas, na medida em que elas manifestam o seu próprio ser. Para os antigos gregos, conhecer é ver e dizer a verdade que se acha na realidade e que, por isso, depende de que a realidade se manifeste. Por isso, entre os gregos, o ser é o verdadeiro (estar de posse da verdade é contemplar a manifestação do ser (o que é realmente)). O falso é o parecer, ou seja, algo que apresenta ser mas que não é.


3.2. A verdade como veritas

Em latim, verdade se diz veritas e diz respeito à precisão, à exatidão de um relato. Nesse caso, diz-se que se atingiu a verdade, se o relato é fiel ao que realmente aconteceu. A verdade se acha, agora, na linguagem, compreendida como narrativa adequada aos fatos. Logo se vê que a verdade é dependente da acuidade com que os fatos são relatados. Prende-se à memória, já que resulta da fidelidade dos fatos rememorados na forma de relato ao que de fato aconteceu.
Não há mais aparência (como na acepção grega), mas mentira e falsificação. Os fatos são reais ou imaginários; e os relatos sobre eles é que são verdadeiros ou falsos.


3.3. A verdade como emunah

Em hebraico, a verdade se diz emunah, que quer dizer ‘confiança’. Um Deus verdadeiro ou um amigo verdadeiro são aqueles que cumprem o que prometem; são fiéis à palavra dada e, por isso, dignos de nossa confiança. A concepção de verdade hebraica está na origem de enunciados como “Um amigo verdadeiro não trai”, “Um verdadeiro pai cuida de sua família”, etc. Emunah é uma verdade fundada na esperança e na confiança na promessa feita; portanto, ela se reporta ao futuro. Sua forma mais elevada é a Revelação divina e a perfeição de sua expressão está na profecia.

Passando em revista as três concepções de verdade em que se baseia a compreensão ocidental de verdade, vale notar o que se segue:

Alétheia é a verdade que se encontra na realidade; é a verdade cujo acesso depende de uma automanifestação da realidade à visão racional e intelectual (evidência). O conhecimento verdadeiro é a apreensão racional dessa verdade. Dessa concepção de verdade, deriva uma teoria da verdade como evidência e correspondência, segundo a qual o critério da verdade é a adequação de nosso intelecto à realidade. Nesse caso, nossas ideias correspondem efetivamente à realidade por elas representadas. Inversamente, a verdade pode resultar da adequação da realidade ao nosso intelecto, caso em que as coisas correspondem, de fato, às ideias que a representam.
Veritas é a verdade cujo critério é o rigor e a precisão no uso da linguagem, na forma como se elabora o raciocínio, como encadeamos as ideias. Nossas ideias, nesse caso, relatam em nossa mente os acontecimentos exteriores a nós e são verdadeiras quando organizadas segundo regras e princípios lógico-semânticos e gramaticais previstos pela linguagem. Os relatos são verdadeiros quando correspondem a uma realidade externa. O critério da verdade é a coerência interna entre as ideias e as cadeias de ideias de que se compõem o raciocínio. O que marca o verdadeiro é a validade lógica dos argumentos.
Emunah é, em sua forma secular, a verdade que depende de um acordo, um pacto de confiança entre pesquisadores, que definem um conjunto de convenções universais sobre o conhecimento verdadeiro. Todos devem respeitar essas convenções. A marca da verdade é o consenso e a confiança recíproca entre os membros de uma comunidade de pensadores e cientistas.
O consenso é estabelecido com base em três princípios:

1) somos seres racionais e nosso pensamento é governado por princípios da razão;
2) somos seres dotados da faculdade da linguagem, e a linguagem funciona segundo regras lógicas e gramaticais convencionais;

3) os resultados auferidos numa investigação devem ser submetidos à discussão e ao exame pelos membros de comunidade de estudiosos, os quais lhes atribuirão ou não valor de verdade.


3.4. Verdade, conhecimento e história

Em seu História e Verdade (1983), Adam Schaff considera a verdade como juízo verdadeiro, cuja definição supõe a noção de reflexo. Assim, escreve Schaff “é verdadeiro um juízo do qual se pode dizer que o que ele enuncia é na realidade tal como o enuncia” (p. 92).
Schaff reconhece que a definição clássica de verdade está entre as inúmeras definições já formuladas. Além da dificuldade de conceituar a realidade, não menos embaraçoso é elucidar a relação entre o conteúdo do juízo e a realidade. Nesse tocante, propõem-se termos como adequação, correspondência, reflexo, conformidade, analogia, cópia, etc. Com vistas a descrever as condições de verdade, vários foram os esforços mobilizados para definir a verdade: alguns a viram como consentimento universal, economia de pensamento; outros a consideraram como coerência entre proposições, crenças no interior de um sistema de crenças, utilidade prática. Observa Schaff que “nenhum dos critérios mencionados (consentimento universal, coerência, etc.) garante a verdade do conhecimento (p. 93)”, o que significa dizer que não nos assegura a certeza de que o que nós enunciamos se conforme com o que é de fato.
Do ponto de vista científico, observa Schaff, um juízo é verdadeiro sempre que os pesquisadores estão convencidos (porque dispõem de provas científicas que dão sustentabilidade à sua convicção) de que o juízo está em conformidade com o objeto real. É preciso considerar uma questão que facilmente nos induz a equivocar-nos: a relação entre verdade e objetividade.
As concepções grega e romana de verdade se esteiam sobre o pressuposto da existência da realidade objetiva, de modo que toda verdade é objetiva. A objetividade do conhecimento – deve-se frisar – é seu valor universal, o qual não é afetado por alguma coloração emotiva. Trata-se, certamente, de um ideal de objetividade, já que o componente subjetivo (quem conhece é um sujeito social) não pode ser separado do componente objetivo. O oposto de uma verdade objetiva não é, portanto, uma “verdade subjetiva”, porque a verdade subjetiva não seria outra coisa senão uma falsidade (Schaff, p. 93). Em todo caso, a oposição comum entre verdade objetiva e verdade subjetiva conduz-nos a encarar outro problema relevante a toda discussão desenvolvida sobre o conceito de verdade. Trata-se do litígio entre relativistas e absolutistas. Afinal, a verdade é absoluta ou relativa? Longe de resolver a questão, procurarei aqui posicionar-me como um partidário da verdade absoluta. Dois são os problemas que se devem distinguir na questão que consiste em determinar se a verdade é absoluta ou relativa.

1º) Saber se um juízo dado é verdadeiro ou falso independentemente (visão absolutista) ou dependentemente (visão relativista) das circunstâncias, as quais recobrem os sujeitos sociais e o contexto sócio-histórico a partir do qual eles enunciam;

2º) As verdades são totais (visão absolutista) ou parciais (visão relativista).

Tendo em conta o primeiro problema, contra a posição relativista da verdade, a qual se afina com a concepção de verdade subjetiva, argumentam os partidários da visão absolutista que o problema se encontra na forma dos enunciados. Atos de fala constatativos, ou seja, que exprimem constatação pelo enunciador de um estado-de-coisas do mundo podem dispensar regularmente as marcas dêiticas de pessoa, tempo e lugar. Dizemos, por exemplo, “Está chovendo”, numa situação em que constatamos o fenômeno da chuva. Desprovido das marcas de enunciação, esse enunciado pareceria aos relativistas descrever uma verdade (consideradas as condições do mundo) relativa a quem o enuncia, ao lugar e ao tempo em que se enuncia. Na verdade, argumentam os absolutistas, especificadas as marcas dêiticas, o enunciado passa a ser verdadeiro (ou falso, consideradas as condições do mundo) independentemente da pessoa que o enuncia. Por exemplo, se o enunciado assumisse a forma “Eu percebo que está chovendo na cidade em que estou hoje”, a proposição “está chovendo na cidade em que estou hoje” é verdadeira tanto para mim quanto para o resto do mundo.
Evidentemente, a relação mundo-verdade-linguagem não é, de forma alguma, simples. Em primeiro lugar, a linguagem (o discurso) não é transparente. A linguagem não espelha o mundo. Nossos enunciados não são fotografias do mundo. Em segundo lugar, o acesso ao mundo não é direto, já que é permeado por uma complexa relação entre linguagem, cognição-percepção e cultura. Considerados a não-transparência da linguagem e o acesso mediato do mundo, a verdade parece ser efeito daquela relação e dependente de certa negociação entre os sujeitos do discurso. Ora, se nos parece simples determinar a verdade numa situação em que vejo meu cachorro correr atrás do gato e digo “o meu cachorro está correndo atrás do gato”, menos simples nos parece determinar a verdade numa situação em que alguém diz “Esse tênis é caro”. Esses dois exemplos mostram que nem todos os enunciados são passíveis de medição em termos de valor de verdade. A verdade, muito frequentemente, quando consideramos nossos discursos, está ligada ao poder de convencimento de nossos argumentos. Dizemos “é verdade”, com frequência, para enunciar nosso assentimento à crença de um enunciador, numa situação em que ouvíssemos algo como “A vida é difícil”. Essa proposição não descreve um fato do mundo; trata-se de um juízo de valor sobre a vida. Na opinião do enunciador, há muitas dificuldades na vida. E, se eu enuncio “é verdade”, estou tão somente concordando com ele.
A verdade é absoluta, na medida em que ela é o próprio desvelar do real aos olhos do espírito e do corpo; ela é absoluta e eterna, porque evidente para todos e em todas as épocas.
Consideremos o segundo problema. No que toca à divergência entre os que pensam que só há verdade total e os que admitem verdades parciais, a questão consiste em saber se é verdadeiro apenas o conhecimento total, completo, eterno e imutável, ou se a parcialidade da verdade pode ser obtida a cada etapa do conhecimento concebido como processo em desenvolvimento.
A visão relativista, nessa controvérsia, pensa que o conhecimento humano é cumulativo, que se desenvolve no tempo e que esse desenvolvimento revela, em seu curso histórico, mudança das verdades obtidas como resultado desse conhecimento. Pensemos no que se sabia, no tempo de Ptolomeu, sobre o universo e o que se sabe hoje, desde Copérnico. No tempo de Ptolomeu, acreditava-se que a Terra estava no centro do universo (crença tida como conhecimento à época). O conhecimento cosmológico, em seu desenvolvimento, atingiu o estágio em que um Copérnico trouxe à luz a verdade: “O sol está no centro do universo”.
O conhecimento de um objeto não se reduz a um único juízo verdadeiro, é claro; mas é reflexo da complexidade, das fases de desenvolvimento do próprio objeto do conhecimento. Esse conhecimento se estrutura com uma sequência de juízos. O conhecimento é um processo. Destarte, o juízo também pode sofrer mudanças, tornando-se mais completo, mais complexo, em função do desenvolvimento do conhecimento. Evidentemente, as mudanças que incidem sobre o juízo influenciam na forma do conhecimento.
No entanto, se um juízo nem sempre é visto como um processo (ele pode não sê-lo), o conhecimento é sempre um processo, em virtude da inesgotabilidade da realidade estudada. Em outras palavras, a realidade é sempre mais complexa, mais extensa e inesgotável do que o conhecimento que podemos ter dela. Por outro lado, é um processo também porque a realidade se apresenta em desenvolvimento, em fluxo sem fim.
Se não é possível um conhecimento totalizante da complexidade do real, sempre em desenvolvimento, em curso contínuo, é possível um conhecimento exaustivo de uma região delimitada do real. Sabe-se que as teorias científicas operam com base em “recortes” da complexidade do real; elas setorizam a realidade. Cada recorte teórico do real estabelece um objeto a ser estudado, descrito, explicado pela teoria. Toda teoria delimita uma “região” da realidade e a toma como objeto de estudo. As entidades de que se ocupam uma teoria são entidades teóricas, e não entidades do mundo.
Convém lembrar que a exaustividade do conhecimento não é a totalização da realidade, visto que

“(...) o objeto do conhecimento é infinito, quer se trate do objeto considerado como totalidade do real ou do objeto percebido como qualquer um dos seus aspectos e fragmentos. Com efeito, tanto o real na sua totalidade como cada um dos seus fragmentos são infinitos na medida em que é infinita a quantidade de suas correlações e das suas mutações no tempo”.
(p. 97)

É forçoso concluir do exposto que o conhecimento de um objeto cuja complexidade é infinita deve ser também infinito. Constitui ele um processo infinito: “o processo de acumulação de verdades parciais” (p. 97). Como processo infinito, o conhecimento cumula as verdades parciais que a humanidade estabelece nas diversas fases do seu desenvolvimento histórico. À medida que se vão alargando, limitando, superando essas verdades parciais, o conhecimento vai-se expandindo.


4. O lugar do discurso no social

Começo anunciando uma tese com base na qual edificarei as cadeias de pensamentos seguintes.

 O discurso existe na exterioridade do linguístico; existe no social e é marcado sócio-histórica e ideologicamente.

Situado no social, o discurso deixa ver posições divergentes porque, nesse domínio, coexistem muitos discursos. A interdiscursividade implica diferenças no que toca à inscrição ideológica dos sujeitos e grupos sociais em uma dada sociedade; por conseguinte, são inevitáveis os conflitos, as contradições, porquanto o sujeito, ao revelar-se, inscreve-se num espaço socioideológico e não em outros. O sujeito enuncia a partir do lugar dessa inscrição. De sua voz originam-se outros discursos, cuja existência situa-se na exterioridade da materialidade linguística dos enunciados produzidos.
Em Discurso e mudança social (2001), Norman Fairclough propõe que se considere o discurso, ao mesmo tempo, como um texto, um exemplo de prática social e um exemplo de prática discursiva. Vou definir essas três dimensões do discurso.
Como texto, o discurso é concebido como um fragmento de linguagem de extensão variável dotado de estrutura e significado, que cumpre uma função relevante num dado contexto sociocomunicativo.
Como prática discursiva, o discurso é uma atividade interacional entre, pelo menos, dois enunciadores e especifica processos de produção e interpretação textual.
Como prática social, o discurso é indissociável das circunstâncias institucionais e organizacionais do evento discurso. Essas circunstâncias moldam a natureza da prática discursiva, os modos como se dão as relações sociais e posicionam os diferentes sujeitos sociais.
Os discursos não apenas refletem as entidades e as relações sociais, mas, principalmente, as constroem. Essa ideia de construção das relações sociais pelo discurso é de suma importância para a compreensão do modo como o discurso se conecta com o social. Vou-me deter na noção de discurso como prática social, já que é como prática social que o discurso se caracteriza como o modo de ação, uma forma pela qual e na qual os indivíduos agem sobre o mundo e sobre os outros.
O discurso como prática social é, portanto, uma atividade interacional de produção de significados. É também um modo de representação da realidade. Como prática social, o discurso precisa ser visto em sua relação dialética com a estrutura social. A estrutura social é condição e efeito da prática social (Fairclough, p. 91).
O discurso é moldado e limitado pela estrutura social, ou seja, pelas classes sociais, pelas relações sociais diversas, gerais ou específicas em instituições particulares, como no direito, na educação, na religião; mas também por normas e convenções, quer de natureza discursiva, quer de natureza não-discursiva.
Se, do exposto, se depreende que as práticas discursivas variam estruturalmente segundo as condições sociais ou o quadro institucional em que são produzidos, é preciso reter a ideia de que o discurso é socialmente constitutivo. Ele contribui, portanto, para a constituição de todas as dimensões da estrutura social, a qual o molda direta ou indiretamente e o restringe. O discurso é uma prática; como tal, não se limita a representar o mundo. O discurso constrói a significação do mundo, ou melhor, constitui o mundo como significado. O mundo discursivizado é mundo significado.
Convém assinalar três aspectos básicos na compreensão de discurso como prática social:

1) o discurso contribui para a construção de identidades sociais e posições de sujeito para sujeitos sociais e tipos de “eu”;

2) O discurso constrói as relações sociais;

3) O discurso contribui para a construção de sistemas de conhecimento e de crenças.

Consoante Fairclough (p. 92), é indispensável que a relação entre discurso e estrutura social seja considerada dialeticamente, a fim de evitar que se faça recair indevidamente a ênfase em um dos domínios apenas. Se a ênfase recai sobre o discurso, tender-se-á a vê-lo apenas como reflexo de uma realidade social mais profunda; se, por outro lado, ela incide sobre a estrutura social, ver-se-á o discurso, de modo idealizado, como fonte do social.
O cerne da visão dialética sobre a relação entre discurso e estrutura social consiste em ver que a constituição discursiva da sociedade não resulta de um jogo livre de ideias que habitam a cabeça das pessoas, mas de uma prática social que se enraíza profundamente em estruturas sociais materiais concretas.
Fairclough ilustra essa compreensão com a relação entre pais e filhos. Essa relação se dá na família e a determinação das posições de “mãe”, “pai” e “filho”, que são socialmente disponíveis, a inserção dos indivíduos reais nessas posições, a constituição da família e do lar são construídos parcialmente no discurso. Essa construção é o resultado de processos complexos cumulativos de conversa e escrita.
Não se trata de pensar que a família seja uma entidade ideal, que brota da cabeça das pessoas (p. 93); isso porque, em primeiro lugar, as pessoas se confrontam com a família como instituição real, que se lhes afigura como ‘dada’. Essa instituição se compõe de práticas concretas, relações e identidades preexistentes, as quais foram constituídas no discurso, mas reificadas em instituições e outras práticas. Em segundo lugar, os efeitos constitutivos do discurso se articulam com outras práticas, como a distribuição das tarefas domésticas, o vestuário, os aspectos afetivos do comportamento dos membros da família. Em terceiro lugar, a constituição operada pelo discurso encontra restrições na determinação dialética do discurso realizada pelas estruturas sociais, bem como nas relações de lutas de poder particulares.

4.1. As dimensões da prática social e sua relação com o discurso

A prática social se organiza nas dimensões econômica, política, cultural e ideológica. O discurso, naturalmente, pode estar envolvido em todas elas, sem que se possa reduzi-las a ele.
O discurso como prática política estabelece, conserva e transforma as relações de poder e as comunidades entre as quais se estabelecem relações de poder (p. 94). O discurso como prática ideológica constitui, apaga, mantém e transforma os significados do mundo, apoiando-se em posições diversas nas relações de poder. A prática política e a prática ideológica estão articuladas necessariamente, já que “a ideologia são os significados gerados em relações de poder como dimensão do exercício do poder e da luta pelo poder” (p.94).
É preciso acrescentar primeiramente que a prática política é superior, enquanto dimensão de lutas pelo poder. Em segundo lugar, o discurso não é tão-só o lugar da luta de poder; é também um lugar de delimitação da luta de poder. Assim, a prática discursiva se serve de convenções que mascaram as relações de poder e ideologias particulares e as próprias convenções. As formas como as relações de poder, as ideologias particulares e as convenções se articulam são alvo de luta.
Finalmente, vale dizer que a prática social, política, ideológica, etc. é uma dimensão do evento discursivo, tal como o é o texto.


4.2. Discurso e poder: um ponto de encontro

No seu Discurso e poder, o linguista holandês Teun A. van Dijk define o poder social como “controle de um grupo sobre outros grupos e seus membros” (p. 17). Quando esse controle se exerce sobre as ações comunicativas dos outros (sobre seus discursos, portanto), pode-se falar em controle sobre o discurso dos outros. Esse controle é uma das formas óbvias pelas quais o poder e o discurso se relacionam.

“(...) as pessoas não são livres para falar ou escrever quando, onde, para quem, sobre o que ou como elas querem, mas são parcial ou totalmente controladas pelos outros poderosos, tais como o Estado, a policia, a mídia ou uma empresa interessada na supressão da liberdade de escrita e da fala (tipicamente crítica)”.
(p. 18)


Pode suceder também que as pessoas tenham de falar ou escrever segundo os modos que lhe são prescritos. O controle é extensivo não só ao discurso como prática social, mas também às mentes daqueles que são submetidos ao controle, ou seja, aos seus conhecimentos, opiniões, atitudes, crenças, ideologias, bem como às outras formas de representações pessoais e sociais. Geralmente, esse controle da mente é indireto, embora possa ser intencional, mas apenas provável consequência do discurso.
Na medida em que as ações das pessoas são influenciadas por suas atitudes, conhecimento, ideologias, crenças, valores, normas, segue-se daí que o controle da mente redunda em controle indireto da ação. Quando a ação submetida ao controle é ação discursiva, o discurso poderoso pode, indiretamente, influenciar outros discursos que sejam compatíveis com o interesse daqueles que detêm o poder. Como observa Dijk, muito perspicazmente, “não há necessidade de coerção se se pode persuadir, seduzir, doutrinar ou manipular as pessoas” (p. 23).

5. Uma contextualização da história cristã

O tema deste texto é o antijudaísmo cristão, que teve origem na época de Costantino e que perdurou pelos séculos culminando no terror antissemita dos nazistas no século XX – o que não é o mesmo que assumir haver uma continuidade entre as duas formas de antissemitismo. Meu objetivo é patentear de que modo a prática discursiva cristã, nos quatro primeiros séculos da era cristã, contribuiu significativamente para transformar as relações entre judeus e cristãos e para posicionar os sujeitos sociais envolvidos na peleja. Para a realização desse intento, precisarei passar em revista o desenvolvimento do cristianismo nesses quatro primeiros séculos (I ao IV d.C.).
Desde já, a importância de Costantino deve ser sublinhada. O cristianismo, no seu incessante esforço por consolidar-se como religião hegemônica, deveu muito ao poder político de Constantino, convertido sinceramente ao cristianismo em 312 d.C. Sua pretensão sempre foi, desde sua vitória sobre o perseguidor Licínio, unificar todos os seus povos fazendo-os aderir à mesma concepção de Deus e livrá-los das perseguições. Constantino era declaradamente um “servidor de Deus”. Coube a ele dar forma ao cristianismo do mundo. Seus sucessores reproduziram o tom profético que dava à sua linguagem um poder de fé-verdadeira e sincera. A cristianização do mundo antigo foi uma revolução cujo impulso inicial devemos a um indivíduo, chamado Constantino, cujos objetivos foram exclusivamente religiosos (Veyne, 2011, p. 196). Dois fatores, segundo Veyne, foram fundamentais para que o cristianismo começasse a se impor ao mundo todo: o convertido Constantino, que favoreceu e sustentou o desenvolvimento da religião cristã; e o fato de essa religião estruturar-se numa Igreja forte.
Nos primeiros séculos do cristianismo, as instituições cristãs foram responsáveis por transmitir a tradição cristã estruturada com base em certos arranjos mentais presentes na época. A forma e o controle dessas estruturas mentais provinham não apenas da tradição cristã oral, mas também de filosofias e crenças religiosas de diversos povos, os quais contribuíram para sistematizar e oficializar um corpo de crenças cristãs.
Durante algum tempo, o que se sabia sobre a figura de Jesus de Nazaré e seus seguidores foi transmitido pela tradição oral. Posteriormente, escribas codificaram-na de modo a compor um conjunto de crenças consideradas oficiais por uma elite eclesial de pensadores masculinos que detinha o poder para tanto. Por isso, é impossível dizer, certamente, quem foi Jesus de Nazaré, bem como é difícil determinar a experiência pessoal e coletiva dos que se identificaram como cristãos após sua morte.
Restaram interpretações e interpretações de dados pretensamente históricos que não são senão interpretações. Há, evidentemente, nessas interpretações, algumas informações históricas de monta, como, por exemplo o surgimento de movimentos sociais e religiosos que se rebelaram contra a política e a religião do dominador romano (paganismo), por volta do século I d.C.
No século I d.C., era grande a opressão dos pobres, nas cidades e no campo, o que tornou mais acentuados os conflitos com o poder dominante. Tais condições deram origem a uma grande diversidade de movimentos de reivindicação.
O cristianismo, então chamado Movimento do Caminho e Movimento de Jesus, estava entre os movimentos de origem judaica que buscavam reanimar a esperança do povo. Os cristãos afirmavam que os famintos não tardariam em ser saciados e que os injustiçados encontrariam a justiça no Reino de Deus. Eles insistiam, ademais, na importância dos marginalizados deste mundo e procuravam assisti-los: os cegos e os leprosos eram curados; os famintos, saciados; os estrangeiros, acolhidos.
As críticas cristãs ao judaísmo do Templo e das sinagogas da época provocaram insatisfação e revolta nos romanos e nos judeus ortodoxos. Os cristãos eram considerados hereges, e o cristianismo, uma espécie de heresia no interior do judaísmo. À medida que avançava o tempo, a coexistência entre cristãos e judeus no judaísmo se tornava intolerável.
Jesus foi acusado pelas autoridades judaicas de agir de modo que só Deus poderia agir, como, por exemplo, perdoando os pecados. Jesus teria infringido as leis judaicas do sábado, foi culpado de se reunir aos impuros e de comer com os ladrões. Por isso, foi crucificado e morreu.
Alguns séculos se passaram, e a Igreja cristã, cuja diversidade, então, era enorme, enfatizou menos o nascimento histórico do cristianismo e as assistências dispensadas aos oprimidos e aos injustiçados. Enfatizou menos a crucificação e a morte injusta do líder Jesus de Nazaré por decorrência de uma conspiração político-religiosa e insistiu com vigor na obediência à vontade de Deus ou ao desígnio divino, que é eterno.
Assim, sobre a memória histórica revolucionária do movimento de Jesus foi lançado um véu que permitiu, ao longo dos séculos, o desenvolvimento da crença de que o cristianismo foi de fato, a própria intervenção espiritual de Deus na história humana. Essa intervenção estava ligada à tradição judaica codificada no Antigo Testamento, conforme veremos, segundo a qual Deus enviaria um Messias que salvaria seu povo então disperso e subjugado.
Essa mesma tradição sustentava que o Deus de Israel havia se revelado de muitas maneiras a seu povo através de acontecimentos especiais, pelas figuras de patriarcas, de profetas e profetisas e de reis cuja função era orientar e conduzir o povo ao longo da história. Essa traição afirmava também que a revelação de Deus era a expressão de seu amor pela humanidade, a qual, em virtude do pecado, havia se desviado dos justos caminhos e rompido a Aliança com ele.
Entre os primeiros cristãos, era tenaz a crença na iminência do fim dos tempos. Eles acreditavam que Deus expressou-se por meio de seu Filho, Jesus Cristo, enviando-o ao mundo para redimir o homem de seus pecados e, assim, restaurar a Aliança.
Com a vinda à Terra do Filho Jesus, nascido da Virgem Maria, Deus Pai encerrou o que tinha a dizer à humanidade. Para os cristãos, havia se completado a suprema revelação de Deus para salvar a humanidade de seus crimes e pecados. Por isso, a Igreja dos primeiros séculos estabeleceu como dogma a crença de que Jesus era o único e verdadeiro messias, quem revelou sua íntima relação com Deus Pai, criador de todas as coisas.
O Concílio de Nicéia, em 325 d.C., seguido do de Constantinopla, em 381 d.C., proclamou que o Filho Único de Deus é consubstancial ao Pai, isto é, tem a mesma substância do Pai, retomando a expressão “O Verbo se fez carne”, que figura no Evangelho atribuído a João. A Igreja primitiva denominou “Encarnação” o “fato” de o Filho de Deus ter assumido a natureza humana para habitar entre os homens e os salvar.
Consagrou-se um traço distintivo da fé cristã no momento em que a Igreja afirmou que Jesus era, ao mesmo tempo, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. O cristianismo nasceu, pois, como uma religião, ao mesmo tempo, de base humana e divina. Essa religião era entendida e explicada como a revelação definitiva de Deus ao mundo, cuja finalidade foi a salvação e a integração de todas as criaturas na unidade trina de Deus (um único Deus mas três pessoas). Donde a afirmação segundo a qual tudo provém da Trindade e retorna a ela. Essa elaboração teológica extravagante permitiu que uma teologia racional se desenvolvesse para explicar a figura de Jesus, a missão da Igreja e a finalidade da vida humana e do mundo.
Não custa lembrar que, embora muitas das afirmações feitas, com entonações diversas, tenham sido acolhidas pelo conjunto das igrejas cristãs, não deixaram de ser objeto de incessantes disputas e contestações ao longo dos séculos – contestações oriundas, nos primeiros séculos da Igreja, das próprias comunidades cristãs (arianos, nestorianos, monofisistas). Direi, com brevidade, apenas para destacar um ponto divergente dessas comunidades em relação ao cristianismo proto-ortodoxo, que os arianos negavam que o Filho fosse completamente divino; para eles, havia sido criado por Deus Pai, o que o tornaria inferior a Deus. Os nestorianos, além de afirmarem que Jesus reunia em si duas pessoas – o Verbo e o homem -, de tal modo, no entanto, que elas não se distinguiam, negavam que Maria fosse a mãe de Deus. Finalmente, os monofisistas acreditavam que Jesus encerra apenas uma natureza: a divina. Escusa dizer que essas divergências eram motivos de acirradas contendas e impasses, embora pareçam, de fundo, desgraçadamente ridículas. Essas divergências também tinham outra origem: na relutância daqueles que não aceitavam a superioridade alegada pelo cristianismo, que se apresentava como a palavra mais elevada e derradeira de Deus destinada à humanidade. Essa superioridade levou o cristianismo a ser cúmplice dos poderes imperiais e instrumento para a dominação política e religiosa.

5.1. A historicidade do Cristianismo

O cristianismo nasceu como uma seita herética no seio do judaísmo nos tempos da dominação romana. Tornou-se uma religião autônoma depois de alguns conflitos. Foi perseguido sob as ordens dos imperadores romanos, e seus mártires foram lançados como comida aos leões.
A igreja primitiva não gozava de direitos na cidade do Império, o que levava os cristãos a se reunir à surdina para celebrar a memória de Jesus em cemitérios subterrâneos, chamados de catacumbas.
A população marginalizada, especialmente, sentia-se, cada vez mais, atraída pela memória de Jesus; o número de discípulos não cessava de crescer (entre os discípulos, havia também mulheres). Os adeptos – eis um fato importante – se organizaram em comunidades, para seguir os ensinamentos daquele que era chamado o Filho Único do Deus Único.
A formação das comunidades cristãs deveu-se, em parte, ao descontentamento geral dos pobres que, não bastasse fossem explorados, tinham de prestar culto ao Império Romano. O culto a Jesus, que era um dos seus, chamá-lo Deus significava rejeitar o culto a César. Além disso, a reunião do culto a Jesus Cristo tornava possível fomentar uma esperança diferente para o presente, porquanto se acreditava que Jesus representava uma nova era destinada à satisfação e à assistência aos excluídos e aos famintos.
Foi, no entanto, apenas no século IV, quando reconhecido pelo poder do Império Romano, que o cristianismo pôde manifestar-se publicamente. Essa liberdade, no entanto, tinha um preço: teve de ajustar-se aos códigos jurídicos e precisou assumir uma atitude contrária às aspirações do movimento em sua forma original: passou a pregar a submissão aos poderes oficiais. O cristianismo tornou-se, assim, uma religião comprometida com a ordem institucionalizada e subserviente aos poderes constituídos. Por outro lado, tornara-se também uma religião mais poderosa, constituída de lógica própria, afirmando-se na forma de uma dogmática combatente e perseverante na missão de eliminar as heresias, que se multiplicavam nos primeiros séculos. Lembro que o herege é aquele que diverge da visão dogmática oficial. O termo latino haeresis significa “escolha” ou “opção”. Uma interpretação secular não vê o herege senão como alguém que tem crenças simplesmente diferentes das do sistema doutrinário instituído.
Necessário é assinalar alguns fatos. O primeiro diz respeito à aliança subserviente do cristianismo com o poder de Roma. Deve-se notar que desse acontecimento dependia o próprio estabelecimento do cristianismo como uma religião poderosa. A lógica, aqui, é clara: sirva ao poder instituído e se beneficie das concessões do poder. O segundo toca ao esforço mobilizado pelo cristianismo para se defender contra as heresias. Desse esforço resultou a elaboração dos dogmas cristãos pelas igrejas do Oriente e do Ocidente. Em outras palavras, a dogmática cristã se institui num longo esforço por silenciar outros credos concorrentes. Dogmas são uma explicação elaborada e decretada pela Igreja como verdade que deve ser aceita pelos fiéis.
A função dos dogmas era também construir uma identidade doutrinária de que todos os cristãos partilhassem, ainda que tenha reproduzido um sistema de policiamento que culminaria, mais tarde, na Inquisição. A despeito disso – o que é surpreendentemente paradoxal nessa religião -, o cristianismo se tornou uma religião para o povo.
O povo passara a organizar sua vida social por meio das festividades cristãs e desencadeou revoluções de cunho social inspiradas em ideais de liberdade enraizados na tradição fundadora. Esses movimentos sociais insurgentes ocorreram em diferentes épocas e lugares do mundo.
A esta altura, não se poderia deixar ao abrigo da duvida o fato de que a historicidade do cristianismo só se constrói por uma via única: a das instituições religiosas do poder. Somente a tradição do cristianismo oficial teve condições de ser assimilada, documentada e difundida. Tudo o que o cristianismo foi fora dessa tradição institucional é quase desconhecido, já que os registros históricos são escassos.
O cristianismo – vale dizer – pode ser compreendido como um movimento cujo desenvolvimento resultou de acontecimentos sobre a vida de Jesus de Nazaré, cujo valor de verdade é dependente de interpretações calcadas sobre a fé de seus seguidores. Por isso, é difícil saber, com segurança, o que é verdade a respeito da vida de Jesus. Não há dúvidas, por outro lado, de que a partir do homem Jesus, proclamado divino, muitas mulheres e homens construíram um significado para as suas vidas, conseguiram expressar seus desejos mais profundos e combater a opressão e a injustiça. E, certamente, malgrado as inumeráveis contradições, conseguiram afirmar sua identidade única em face de muitas outras.


5.2. Um poder avesso à diversidade

É certo que Jesus não pretendia fundar uma nova religião. Ele era judeu, vivia como um típico judeu de seu tempo, ainda que discordasse de certos preceitos e práticas de uma elite espiritual no interior do judaísmo. Foram, portanto, os seguidores do Nazareno que criaram o cristianismo. Em virtude disso, a vitalidade do movimento cristão e sua força em muitos grupos culturais levavam à elaboração de muitas reinterpretações da vida de Jesus, todas em consonância com modos de compreender e pensar o mundo moldados em seu próprio contexto. Isso significava uma ameaça à unidade institucional da Igreja.
O discurso, novamente, estava a serviço da construção da hegemonia, cuja instabilidade ou perda jamais deixara de preocupar a Igreja. Esta afirmou que suas elaborações dogmáticas contavam com a assistência do Espírito Santo. Pretendia, assim, preservar a verdade revelada pelas interpretações oficiais.
A presença do Espírito Santo entre nós assegurava, na visão da Igreja, o valor de verdade de seus ensinamentos, que eram eles mesmos portadores da verdade sobre o ser humano e sobre Jesus Cristo. Graças à proclamação dessa verdade, a Igreja podia doutrinar os fiéis e provocar-lhes a adesão incondicional.
Jesus morreu judeu. Fora perseguido pelo judaísmo oficial. Depois de sua morte, seus ensinamentos se disseminaram numa tradição oral até os anos 70 d.C, quando surgiram os primeiros escritos cristãos.
As comunidades cristãs, ao longo do tempo, se multiplicaram em diferentes regiões do Império. Com o avanço do tempo, também diversas interpretações da vida e da morte de Jesus e de sua identidade foram surgindo. Essas interpretações alteraram a imagem de Jesus, que passou de um revoltado e crítico profeta apocalíptico judeu, para o Cristo (o Messias), Filho Único de Deus, a segunda pessoa da Trindade, que nasceu da Virgem Maria, Mãe de Deus.
Sua prática de cura de enfermos, a partilha do pão, seu comportamento crítico da lei, sua amizade com pessoas de má reputação, tudo isso foi sendo relegado a segundo plano. Pouco a pouco, se ia delineando uma personalidade dotada de um poder supranatural, a ela se lhe atribuía uma natureza divina. Jesus era, pois, considerado um ser pré-existente, de consubstancia com Deus, que se assenta no trono celeste para de lá julgar os vivos e os mortos.
A filosofia grega, nesse momento, exerceu uma influência decisiva na formação e consolidação da teologia cristã. Essa filosofia lhe enxertou uma estrutura lógica por meio da qual foi possível situar a realidade de Deus num mundo à parte – o mundo das essências eternas sobre o qual escreveu Platão, mundo que se opunha ao mundo material, precário e efêmero.
Essa versão do cristianismo – a versão do neoplatonismo cristão – tornou-se oficial na Igreja, ainda que, ao longo da história, tenham ocorrido tentativas de voltar à simplicidade dos primeiros tempos da vida de Jesus.
Os dois mil anos de cristianismo conheceram sempre movimentos que tendiam para uma ou outra posição sobre qual deveria ser a versão definitiva do cristianismo. Mas as igrejas cristãs mantiveram a versão platônica como a verdade absoluta revelada por Deus, que deveria ser mantida longe do abrigo de dúvidas.
A versão teológica cristã calcada sobre a filosofia platônica, de que Santo Agostinho foi o eminente sistematizador, permanece ainda hoje como um pilar que dá sustentação ao complexo edifício doutrinário ao abrigo do qual se anima a alma e a paixão dos fiéis defensores. Desse edifício, se serviu o cristianismo para impor suas doutrinas como verdades, seus princípios de controle – pelo discurso – sobre a vida pessoal e social dos fiéis. Pelos discursos gerados nas esferas de poder eclesiástico, esses princípios são representados como diretamente emanados de Deus (embora não sejam mais do que ficções produzidas pelos próprios bispos). O cristianismo crê possuir uma espécie de procuração especial para tudo atinente às relações humanas e à fé cristã.
O rótulo cristianismo recobre a doutrina oficial cuja história foi fartamente documentada e que, por isso, conhecemos bem. Esse modo singular de se referir ao movimento cristão acabou por apagar a grande diversidade de cristianismos primitivos que sabemos terem existido. Ainda hoje, se percebe um pouco dessa diversidade, na qual cada cristianismo acentua um aspecto do que considera mais importante nas fontes bíblicas cristãs. Hoje, como outrora, a história cristã abriga muitos conflitos. Novas interpretações surgem ainda hoje, o que mostra o vigor desse fenômeno religioso, cultural, político e social, misturado às mais diferentes histórias e acontecimentos. Mas é bom ter em conta que essas “novas interpretações” não devem ser pensadas como avanços, já que o conservadorismo, em matéria de fé, é condição de possibilidade de subsistência.

5.3. O poder de um imperador

Com a conversão do então imperador Constantino, em 312 d.C., ao cristianismo, os cristãos, pelo menos até a sua morte, puderam prosperar em condições políticas bastante favoráveis.
O antissemitismo surge no período em que governava Constantino. Os judeus, tanto quanto os pagãos, eram estigmatizados. Um sucessor de Constantino perpetuará o estigma. Mas Constantino não reagiu aos judeus com vigor; manteve a legislação pagã que garantia legitimidade à religião judaica. O castigo, severo, só se aplicava nos casos em que um judeu maltratasse um irmão convertido ao cristianismo. A lei, todavia, não se aplicava aos casos em que um judeu se convertesse a uma terceira religião.
Uma triste, mas não menos surpreendente ironia, se depreende da observação de que, mesmo os judeus crendo no Deus exclusivo que não era senão o Deus dos cristãos, e mesmo sendo o livro judaico santo também para os cristãos, e mesmo o líder dos cristãos ter sido um judeu praticante do judaísmo em sua passagem pela Terra, os judeus eram considerados verdadeiros inimigos, porque não reconheciam Jesus como o Cristo (o Ungido).
Se os discursos cristãos posicionavam os pagãos como os “outros”, reservavam aos judeus um lugar mais desprezível. Os judeus eram considerados falsos irmãos.
A cristianização que se estendia por todo o Império Romano levou os judeus a se isolarem. Sua religião ia se tornando cada vez mais solipista (reclusa, solitária). À medida que o cristianismo tornava-se religião do Estado, o judaísmo ia voltando a ser uma religião nacional do povo judeu, permanecendo assim até os nossos dias. Prova a dificuldade de um não-judeu converter-se ao judaísmo.

5.6. O antijudaísmo cristão

Ainda hoje, persiste entre os cristãos conservadores um estorvado entendimento sobre o porquê de os judeus não aceitarem a alegação de que Jesus é o Messias (Ehrman, 2013, p. 147). Esses cristãos se apoiam em passagens do Antigo Testamento que, segundo creem,  dão testemunho profético da vinda de um messias. Para os cristãos, Jesus fez e experienciou tudo que fora registrado. Por exemplo, em Isaías 7, 14, se diz que o messias nasceria de uma virgem:

14. Portanto, o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamará o seu nome Emanuel.

Em Miquéias 5, 2, diz-se que ele nasceria em Belém:

2. E tu, Belém Efrata, posto que pequena entre os milhares de Judá, de ti me sairá o que governará em Israel, e cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade.

Os registros poderiam ser multiplicados. Basta-me, no entanto, fazer ver que os cristãos pensavam que as passagens bíblicas referiam-se ao messias que eles chamaram Jesus. Contra os cristãos, os judeus alegavam que as passagens das Escrituras hebraicas não se referiam a um futuro messias e nem expressavam qualquer previsão. Nas passagens em que, supostamente, haveria uma previsão sobre a morte e a ressurreição de Jesus, a palavra “messias”, por exemplo, nunca aparece, o que não deixa de causar perplexidade nos cristãos. Basta, contudo, consultar Isaías 53 para atestar-lhe a ausência
Por que razão, então, a maioria dos judeus rejeitava o messianismo de Jesus? A razão era que Jesus não representava, de forma alguma, as expectativas acalentadas pelos judeus acerca da identidade de um messias. Muitos judeus do mundo antigo não aguardavam ansiosamente a chegada de um salvador, embora houvesse judeus extremamente religiosos, na época de Jesus, que nutriam a crença de que Deus enviaria um messias para livrá-los de graves problemas. Todos esses grupos assentaram suas expectativas na Bíblia hebraica, o que não impedia que eles construíssem uma imagem do salvador.
Em hebraico, “messias” se diz “o Ungido”. Em suas origens, a Bíblia hebraica abrigava essa palavra para referir-se ao rei de Israel, tal como o rei Saulo, Davi ou Salomão. O rei era, de fato, ungido com óleo em sua cabeça durante a cerimônia de posse. Esse ato sinalizava que o benefício especial de Deus recaía sobre ele (Salomão 2).
Algum tempo depois, não havia mais rei em Israel, de modo que alguns judeus acreditavam que Deus enviaria um futuro rei, que seria um ungido como o grande rei Davi, que liderou os Exércitos de Israel contra os seus inimigos e erigiu Israel novamente em um Estado soberano. Esse futuro rei, por conseguinte, foi o messias, ou seja, um ser humano dotado de grande poder, um guerreiro e governante grandioso do povo de Deus.
Por outro lado, havia judeus que acreditavam que essa figura messiânica seria dotada de grande poder sobrenatural. Eles a criam um ser celestial, enviado à Terra para julgar a humanidade e enfrentar o inimigo com uma força descomunal, antes de estabelecer um reino de Deus, cujo governante seria eleito pelo próprio Deus.
Sem perder de vista a diversidade de opiniões, cabe lembrar que havia também judeus que estavam especialmente preocupados com a “religião” de Israel. Nesse caso, o domínio de suas aspirações políticas ficava embaçado pela crença em que o futuro governante do povo seria um sacerdote poderoso, que teria em mira fortalecer o povo de Israel, ensinado a ele a correta interpretação da lei judaica. O seu governo exigiria do povo de Deus a observância da lei de Deus codificado nas Escrituras.
Tendo em vista os objetivos perseguidos por esta exposição, chamo a atenção para o seguinte fato. Essas diferentes visões judaicas sobre como seria esse messias e sobre quais seriam as suas atribuições devem ser pensadas como vozes ou posições inscritas no discurso que acenam para diferentes posições ideológicas. Essa diversidade de vozes é apagada por uma visão hegemônica – a do cristianismo oficial – discursivamente estruturada. Vê-se claramente a dimensão ideológica do discurso: o discurso cristão ortodoxo, apagando as vozes judaicas, cujas interpretações eram divergentes, estabelece uma “verdade”, a qual tem efeito sobre as práticas sociais entre os cristãos uns com os outros e entre estes com os judeus.
Tratemos de elucidar de que modo o discurso religioso, como prática social, contribui para constituir relações conflituosas, posicionando os sujeitos sociais em lugares socioideológicos antagônicos. O que fizeram os seguidores de Jesus? Eles alegaram – pela produção, naturalmente, de discursos – que Jesus era o messias. E o fizeram com base em pressupostos afinados com o interesse, em última instância, de tornar o cristianismo a única religião que expressa a revelação definitiva de Deus. Suas interpretações colidiam com as interpretações feitas pelos Judeus, isto é, os sentidos cristãos não eram os sentidos produzidos pelos Judeus para suas próprias Escrituras. De imediato, trata-se de uma luta pelo controle do sentido “verdadeiro”, “correto”. Vimos que a forma mais evidente pela qual o discurso e o poder se relaciona é pelo controle sobre o discurso dos outros (nesse caso, pelo sentido passível de ser produzido). Ora, a Palavra de Deus é unívoca e inequívoca, de modo que somente um sentido é possível descobrir.
Mas pensemos em quem era Jesus. Tratava-se de um pregador pouco conhecido na atrasada Galileia, que insurgiu-se contra as autoridades judaicas, o que atraiu sobre si humilhação pública e tortura. Seu fim é bem conhecido: foi preso à cruz como criminoso onde morreu. Esse retrato breve de Jesus explica por que a maioria dos judeus não poderia admitir que tal homem fosse o messias aguardado. Ao contrário dos cristãos, os judeus alegaram que sua Bíblia nunca afirmou que o messias viria duas vezes. Eles estavam certos de que Jesus não era o glorioso ungido por Deus.

5.6.1. Intermináveis conflitos

Nos primeiros quatro séculos da era cristã, os conflitos entre cristãos e judeus se tornaram mais intensos e árduos. Inicialmente, os judeus eram muito mais numerosos e podiam, sem esforço, superar os cristãos. Todavia, estes primavam pela perserverança com que discutiam e combatiam.
Eis o rosto da contenda: muitos judeus cristãos não entendiam como judeus não-cristãos não compreendiam o “fato” de que Jesus era o messias. As provas saltavam aos olhos!
A oposição foi-se acirrando, e os cristãos começaram a dizer que os judeus que rejeitavam Jesus como o messias eram tão responsáveis pela sua morte quanto as autoridades judaicas que delataram Jesus e pediram sua morte. Para os cristãos, rejeitar Jesus equivalia a matá-lo.
Ponderemos sobre o seguinte, a fim de que compreendamos o modo como o discurso se liga às relações sociais conflituosas.
O discurso cristão posicionava os judeus não-cristãos como inimigos de Jesus, ou mais assombrosamente, como assassinos de Jesus. Os judeus eram, para os primeiros cristãos, verdadeiros cristicidas.
As relações entre cristãos e judeus se modificaram sensivelmente, muito graças, embora não só, aos modos como elas se constituíam, ao longo do tempo, pelos inumeráveis discursos produzidos com o objetivo de estabelecer e garantir a hegemonia da nova fé.
No século II, Justiniano produziu um escrito para debater com um rabino judeu, apontando-lhe os erros que a interpretação dele das próprias Escrituras revelava. No afã de estabelecer a verdade, nessa interminável polêmica teológico-política com os judeus, os cristãos não hesitavam em falsificar os próprios escritos produzidos. Neles, insistiam em que Jesus era um ser divino, e não um mero mortal, como pensavam as autoridades romanas.
Nesses escritos, tanto os romanos quanto o povo judeu, com seus líderes mais resistentes, eram posicionados como responsáveis pela morte de Jesus. Lembro que os cristãos não só insistiam em que os judeus tinham rejeitado o próprio messias Jesus e, consequentemente, repudiado o próprio Deus, mas também eram tenazes em observar que os judeus também interpretavam mal suas próprias escrituras.
Uma carta supostamente escrita por Barnabé, companheiro do apóstolo Paulo, afirma que os judeus sempre se equivocaram na interpretação da lei de Moisés. Eles eram acusados de interpretá-la literalmente, quando, na verdade, tinham de interpretá-la alegoricamente, o que permitiu aos cristãos reivindicar a autoridade sobre o Antigo Testamento.

5.6.2 O Evangelho de Nicodemos

Para encerrar, considero um exemplo de escrito cristão manifestamente antijudaico, que cristãos antigos incluíram no cânone do Novo Testamento.
Surgido nos fins do século IV d.C., o evangelho supostamente escrito por Nicodemos (sobre sua verdadeira autoria direi algumas palavras adiante) é um longo relato do julgamento, morte e ressurreição de Jesus.
Nicodemos fora um seguidor “secreto” de Jesus (João 3, 1-15). Seu livro se tornou bastante popular e exerceu grande influência por toda a Idade Média, sendo conhecido do Ocidente latino e, enfim, traduzido para quase todas as línguas da Europa Ocidental, por onde se disseminou.
Entanto, é provável que o relato tenha sido redigido em algum momento do século IV – portanto trezentos anos depois da morte de Nicodemos (considerando-se a hipótese de se tratar de um indivíduo real). Estudiosos há que creem ter sido esse livro calcado sobre histórias reunidas numa tradição oral transmitida dois séculos antes de assumir a forma escrita.
O evangelho inicia com a indicação de que Nicodemos era o verdadeiro autor da narrativa em hebraico, muito embora a narrativa pareça ter sido escrita em grego originalmente (Ehrman, 2013, p. 152). A alusão à forma original hebraica do manuscrito dava autenticidade ao documento. Isso significa que se tratava, segundo quem quer que tenha sido o autor, de um escrito muito antigo e, portanto, pretensamente baseado em um testemunho ocular.
Ehrman nota que “não há dúvida de que o relato não tem nada de histórico, já que se baseia em lendas posteriores sobre as últimas horas de Jesus, sua ressurreição e morte” (p. 152). A narrativa foi produzida com um objetivo básico: inocentar Pilatos da execução de Jesus; certamente também com o objetivo determinar os culpados: os líderes judeus e o povo judeu, os quais, porque rejeitaram Jesus, acabariam por rejeitar o próprio Deus.
Já no início da narrativa, a dimensão divina de Jesus é apresentada “em uma de suas cenas mais interessantes e divertidas” (ib.id.). Na cena do julgamento, antes, porém, de ele ser realizado, as autoridades judaicas conversam com Pilatos, tentando convencê-lo da culpa de Jesus por seus crimes. Eles queriam sua condenação.
Pilatos ordenou que seu mensageiro conduzisse Jesus até o tribunal. Dentro da sala, estavam dois escravos portando “estandartes” com a imagem de César “divino”. Assim que Jesus entrou no salão, os porta-estandartes se curvaram diante dele, de sorte que era a imagem de César que parecia lhe prestar deferência.
Qual não foi a fúria das autoridades judaicas, que trataram de lançar injúrias contra os porta-estandartes. Estes se defendiam dizendo que não fizeram aquilo: foram as imagens de César que se curvaram por livre vontade para reverenciar Jesus.
Pilatos, então, tomou uma resolução. Solicitou aos líderes judeus que escolhessem alguns dos seus, que ostentassem grande força física para segurar os estandartes. Ordenou Pilatos que retirassem Jesus da sala e que entrassem com ele outra vez. Assim fizeram os líderes judeus, escolhendo doze judeus com notável protuberância muscular, que se dividiram na execução da tarefa. Jesus retorna ao salão e, novamente, os estandartes se curvaram perante ele.
A moral da história é clara. Pilatos tentou, inutilmente, salvar Jesus, mas as autoridades judaicas, irredutíveis, declaram-no um malfeitor que merecia a morte.
Muitas foram as vezes em que as autoridades judaicas pleiteavam com Pilatos a condenação de Jesus; e outras tantas foram as vezes em que Pilatos buscava inocentá-lo.
Está claro que o discurso do evangelho atribuído a Nicodemos posiciona os judeus como responsáveis pela condenação e morte de Jesus, ao mesmo tempo em que confere a Pilatos o lugar de inocente. Nesse jogo discursivo, em que os sujeitos sociais assumem lugares diferentes, opostos, em que se estabelece um antagonismo entre culpados e inocentes, em que as responsabilidades pelos acontecimentos trocam de agentes, em que os agentes sociais passam a ter outra participação no curso da história, pelo menos à luz de uma interpretação interessada, vai-se construindo o mosaico da história, repleto de contradições ou, - para usar uma metáfora mais condizente com o devir histórico-, vai-se construindo o movimento histórico, que torna a busca por determinar a verdade uma pesquisa acurada de decifração, de identificação das estratégias com que ela foi mascarada, encoberta, transformada, negociada.
O antijudaísmo já estava presente, alguns séculos anteriores, no evangelho atribuído a Mateus.
A narrativa termina mostrando ser Jesus divino. Ele ressurge dentre os mortos e os próprios líderes judeus se veem em face de uma prova inconteste da ressurreição pelo testemunho de pessoas confiáveis.
Uma vez considerado o discurso como prática discursiva, entre outras e, como tal, responsável também pela constituição da história, é forçoso concluir que, estando claro que a literatura cristã se produziu com inúmeros escritos falsificados, vários dos quais entraram a fazer parte do cânone do Novo Testamento, segue-se que a própria história cristã é uma arena onde as lutas pelo poder, condição de apropriação da verdade, encobrem ou dificultam a contemplação da verdade por cujo valor seus protagonistas permaneceram lutando.
O evangelho atribuído a Nicodemos é um relato falsificado, escrito há cerca de trezentos anos depois dos acontecimentos que narra. Em meados do século IV, os cristãos aliaram-se aos romanos. É de esperar que os romanos fossem inocentados: o benefício do poder produz sua própria verdade.
Na Europa Ocidental da Idade Média, esse evangelho gozava de grande prestigio – nessa época, o ódio aos judeus era permanente, tornando paradoxal e perturbador o significado de ser cristão.