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terça-feira, 11 de junho de 2013

"O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há.Mas o demônio não precisa de existir para haver." (Guimarães Rosa)



Satã: o renegado da História
Breves considerações sobre esta personagem bíblica


 

Em Ímpio – o evangelho de um ateu (2011), de Fábio Marton, o narrador nos conta sobre o que costuma acontecer ao final de um culto evangélico. Após o pastor anunciar “aceitem Jesus em seu coração”,

“Era nessa hora que podia acontecer o exorcismo de um dos crentes com problemas ou caso algum dos recém-convertidos trouxesse da rua um demônio avulso que precisasse ser removido antes de começar sua nova vida. Neste dia, e em todos, meu pai e minha mãe não foram à frente. Quanto aos demônios, como falei, meu avô não era muito dado a exorcismos, e parece que os demônios respeitavam sua inclinação”.
(p. 24)


Mais adiante, o narrador nos relata que o mundo dos crentes é repleto de emoções. Eles vivem num mundo em que Deus atua constantemente, mas ele não está sozinho; também o Diabo, seu adversário, costuma dar o ar de sua graça. Segundo o narrador, os crentes vivem num mundo “em que Deus e o Diabo nos falam por nossos próprios pensamentos, que, assim, nunca são nossos” (p. 26). Não é novidade que, no mundo dos neopentecostais, Deus e o Diabo estão numa batalha cósmica eterna. Nesse universo, as forças do mal exercem influência direta na vida dos crentes e as sessões de exorcismos, bastante teatralizadas, são frequentes.
Neste texto, eu me ocuparei com as formas como a personagem satã foi representada no Antigo e no Novo Testamento. A questão básica sobre a qual assentam minhas reflexões é: O que a Bíblia tem a nos dizer sobre anjos, demônios e satã? No imaginário popular, ainda hoje, demônios e satã (ou Satanás) são seres malignos capazes de possuir pessoas e prejudicá-las. Muitos, ainda hoje, evitam pronunciar essas palavras. Essa crença encontra abrigo na Bíblia ou foi construída pelo pensamento cristão no período pós-Bíblico? Este texto é destinado a contar um pouco sobre a história que está na origem da crença em satã como um opositor de Deus.
A crença na existência de forças ou espíritos malignos é comum a muitas tradições religiosas. Embora este texto não seja destinado ao tratamento das representações de forças malignas nas mais diversas tradições religiosas, vale referir aqui alguns exemplos dessas representações em algumas tradições religiosas.
Comecemos pelo Zoroatrismo, uma religião monoteísta muito antiga da Pérsia (atual Irã). Em meados do século VII d.C., ela deixou de ser predominante nesse território, devido à chegada do Islã. Atualmente, é praticada por uma pequena parcela da população iraniana e por minorias na Índia e em outros países.
Seu profeta chamava-se Zoroastro, conquanto seus seguidores costumassem se referir a ele como Zaratustra. Ele pregou uma religião em que o deus criador, chamado Aúra-Masda, estava envolvido numa luta eterna com o espírito maligno Angra Mainyu. Estudiosos do passado acreditaram que o Zoroatrismo exercera influência na representação da personagem Satã no Antigo (por ocasião do Exílio babilônico) e no Novo Testamentos. Atualmente, parece haver consenso em que este não era o caso, visto que a personagem Satã estava sempre subordinada a Deus nas representações judaicas e cristãs, ao passo que Angra Mainyu nunca assume o papel de acusador. Consoante veremos, na Bíblia Hebraica, um dos papeis assumidos por satã é o de acusador ou querelante.
Os adeptos do zoroatrismo ajudam o deus Aúra-Masda na luta contra Angra Mainyu, por meio da prática do bem e do culto. Há uma forte ênfase à liberdade de escolha moral e os crentes são estimulados a agir de modo moralmente bom.
As religiões primais também constituem exemplos de religiões em que forças do bem concorrem com forças do mal. Consistem elas em sistemas de crenças e rituais típicos de povos com um modo tradicional de vida tribal. Esses sistemas precederam às grandes religiões organizadas. Como não havia escrita, quando do desenvolvimento dessas religiões, suas crenças e tradições eram transmitidas oralmente.
Nelas, há milhares de espíritos ou divindades pelas quais os adeptos explicam as poderosas forças naturais do cosmo. Suas práticas religiosas se destinam, sobretudo, a cultuar ou a agradar esses espíritos, para prevenir desastres ou para obter ajuda ou misericórdia quando sucedem problemas. Os espíritos influenciam diretamente a vida e o destino dos indivíduos.
O panteão dessas religiões é repleto de espíritos ou divindades que cumprem muitas funções e se relacionam com os homens de modo bastante variado. Algumas divindades se parecem com os deuses de outras religiões, controlando um ou mais aspectos do cosmo. Por exemplo, Ogum, entre os iorubas na Nigéria, é a divindade do trabalho em metal; Kukailimoku é o deus havaiano da guerra. Existem espíritos benévolos e maus ou travessos; estes últimos devem ser aplacados pelos devotos com preces e oferendas. Em algumas culturas, há um deus superior ou espírito criador. No universo dessas religiões, os espíritos estão em toda parte. Eles estão ligados à natureza, e essa ligação assinala o estreito vínculo entre os povos tribais e a terra que habitam.
Há praticantes dessas religiões, ainda hoje, entre os povos indígenas de partes das Américas do Norte e do Sul (norte do Canadá e a baía amazônica), na África subsaariana, na Austrália e em partes do norte e do leste da Ásia.
Não poderia deixar de notar a importância do maniqueísmo como um exemplo representativo de doutrina em que o mal está em conflito com o bem. O maniqueísmo foi uma doutrina fundada por certo Corbicius (séc. III d.C), chamado Mani. Na língua arameu-babilônica, Mani significa “Espírito do Mundo Luminoso”. O pensamento maniqueísta assemelha-se muito ao cristianismo, e a semelhança é tal, que seu fundador teria recebido um chamado do próprio Jesus, para que se tornasse seu apóstolo e anunciasse a verdade. Conta-se que Mani também fora crucificado. O maniqueísmo era uma religião do mistério ou uma espécie de religião-ciência. Ela se difundiu pelo Império Romano e o Ocidente cristão, combinando elementos do zoroatrismo, de outras religiões orientais e do próprio cristianismo. Basicamente, a doutrina maniqueísta assenta numa visão dualista radical, segundo a qual o mundo é habitado por forças do bem e do mal, que são princípios absolutos em luta eterna. O maniqueísmo influenciou o desenvolvimento do cristianismo em seus primórdios, atraindo inclusive o interesse de Santo Agostinho; mas este, posteriormente, daquele se afastaria, tornando-se um tenaz opositor.

 Anjos e demônios na Bíblia

As representações de anjos e demônios figuram em várias partes da Bíblia e estão ligadas a ideias que se desenvolveram ao longo do tempo. Em primeiro lugar, é preciso fazer ver que a palavra “anjo” tem origem no grego angelos, que significa ‘mensageiro’. É a forma que figura na tradução da Septuaginta da Bíblia hebraica para o grego e corresponde ao hebraico malak. O nome do profeta Malaquias significa “meu mensageiro” (Swenson, 2010). Em segundo lugar, também importa saber que angelos e malak são usados para se referir a mensageiros humanos ou a mensageiros sobrenaturais de Deus. Por vezes, esses mensageiros são maus.
No Antigo Testamento, é a forma malak que é usada, mais comumente, para se referir aos mensageiros sobrenaturais de Deus. Os malaks, quer sejam divinos, quer sejam quase divinos, não só entregam mensagens, mas também comandam as ações humanas, protegem ou impingem castigos. Ainda no Antigo Testamento, é possível se topar com a forma bene elohim que significa, numa tradução livre, “filhos de Deus”. Trata-se de seres divinos, também entendidos como “seres celestiais”. Eles integram a assembleia de Deus, e uma representação desta assembleia se pode ver em 1 Reis 22:19-22.
A palavra “anjo” também pode designar, no Antigo Testamento, seres humanos dotados de características e habilidades não-humanas. Em Zacarias 1:7-17, se encontra uma alusão tanto a um homem quanto a um malak que instrui o profeta a realizar sua profecia. Em meados do século II a.C, época em que o livro de Daniel já estava concluído, as representações de anjos estavam bem assentadas e detalhadas. Anjos como Gabriel, que ajudou Daniel a interpretar os sinais, e Miguel, que, em hebraico, era designado como “príncipe” ou “funcionário” são exemplos de anjos com nomes de pessoa.
No tangente aos seres sobrenaturais chamados serafins e querubins, Swenson (2010) nota que, na Bíblia hebraica, “não são tanto “anjos” na forma como os concebemos, mas, digamos, a fauna da esfera sobrenatural” (p. 230). A autora acrescenta:

“Eles não são intermediários entre o céu e a terra; tampouco lidam com os seres humanos de muitas outras maneiras. Pelo contrário, eles agem como guardiões protetores do divino (...) e podem servir para proclamar a santidade de Deus (...); os serafins aparecem também como agentes da ira de Deus contra os israelitas e como cobras ferozes cuja picada pode ser letal (...)”.

(pp. 230-31)


No Novo Testamento, os angelos não só continuam a cumprir as funções dos malaks da Bíblia hebraica, como também assumem outros papeis. Eles continuam sendo mensageiros ou guias (como no Antigo Testamento), mas passam a ser guardiões de seres humanos ou de toda uma comunidade. Particularmente importante é notar que os anjos participam da vida de Jesus, ajudando-o do início ao fim de sua vida. Os anjos ainda auxiliam nos julgamentos (ver Atos).
Tendo em conta, agora, os demônios, interessa saber que, na Bíblia hebraica (o Antigo Testamento cristão), Deus não só podia enviar mensageiros para realizar boas obras na Terra; ele também era responsável por enviar ruach há’a, que se pode traduzir como ‘espírito malévolo’ (Swenson, p. 231). Foi um desses espíritos que atormentou o rei Saul. Esses espíritos, embora não fossem demônios, tais como os entendemos hoje, provinham de Deus.
O Antigo Testamento não dispõe de apenas um termo específico que equivalha à palavra “demônio”. Na Septuaginta, ocorre o termo shedim, traduzido como daimonion (que, em grego, era espírito ou alma), que se refere a deuses que não eram como Deus e que os israelitas cultuavam.
Em suma, segundo Swenson, “há simplesmente muito pouco na Bíblia hebraica sobre demônios, como nós os imaginamos” (p. 232). Na verdade, o que figura no imaginário popular hoje a respeito do que sejam demônios tem sua origem nos textos intertestamentais e no Novo Testamento. A palavra daimon, ou sua forma diminutiva daimonion, que, em grego, não significa necessariamente um ser sobrenatural e malévolo, é empregada aí para se referir ao que entendemos hoje como “demônio”. Os judeus-cristãos daquele tempo acreditavam que doenças e deficiências físicas ou mentais eram obra de demônios que podiam possuir pessoas.


Com a palavra, Satã ou Satanás

Desde já, é importante frisar que a Bíblia não endossa a interpretação segundo a qual a serpente do Éden era Satanás. Na verdade, coube a Orígenes, teólogo cristão do século III d.C, identificar a serpente com Satanás. De acordo com Swenson, na maioria das vezes, na Bíblia, as serpentes são representadas como ameaças naturais às pessoas, “mas elas não são retratadas como más em si mesmas” (p. 215).
Em seu livro Satã – uma biografia (2008), Henry Ansgar Kelly, ao se dedicar a analisar a história biográfica da personagem Satã na Bíblia, declara, na forma de tese, estar na mídia a origem da deturpação, através dos tempos, da imagem desse ser mitológico:

“Minha tese é que a deterioração do personagem Satã apresentado na Bíblia é simplesmente o resultado natural da “atenção desfavorável da mídia”, o tipo de situação que acontece com qualquer personagem impopular. A deterioração que acontece na época pós-bíblica, quando Satã foi finalmente interpretado desde o início como um rebelde e um desterrado e no final como praticamente um anti-Deus, nada mais do que uma extensão desse desenvolvimento interno”.
(p. 13)


Antes de prosseguir, preciso fazer algumas observações de ordem linguística, no que diz respeito ao emprego das palavras satã e diabo na Bíblia hebraica. No Antigo Testamento, a palavra hebraica para “satã” é um substantivo comum, cujo significado é “adversário” (Kelly, p. 11). Quando traduzida para o grego, assumiu a forma diabolos (diabo). Ocorre, contudo, que, em hebraico, quando usado com artigo definido, “satã” designa o substantivo comum “o adversário”. Quando usado sem acompanhar-se do artigo, pode significar “um adversário” ou o nome próprio Satã. Em grego, todo nome próprio se acompanha de artigo definido. Portanto, “o diabolos” significa “o diabo” ou “Diabo”. Diz-se o mesmo da palavra Deus, que, em grego, se escreve ho theos, significando “o deus” ou “Deus”.
Compreendamos, pois, como esse personagem impopular e execrável fora representado na Bíblia. Em hebraico, satan não se referia originalmente a um indivíduo. Na Bíblia hebraica, satan é um nome ou um verbo que significa “acusação”, “traição” ou “adversidade”. Segundo Swenson, apenas em 1 Coríntios 21:1, a palavra satã designa um adversário de Deus. Nesse caso, a palavra se acompanha de artigo definido, sugerindo que se trata de um nome próprio, qual seja, Satanás. Deve-se notar, no entanto, que, nesse caso, estamos falando do Novo Testamento. Foi no Novo Testamento que Satã, então entendido como Satanás, acaba por personificar o mal.
No Antigo Testamento, de modo geral, satã não é representado como um antagonista de Deus. Em Jó, por exemplo, ele é uma espécie de acusador. Na Bíblia hebraica, satanás é empregado para designar seres humanos ou adversários sobrenaturais. Satanás, por exemplo, foi associado ao papel desempenhado por Davi no exército filisteu; os filisteus estavam preocupados com que Davi pudesse se tornar um satanás para eles. Em Números, Zacarias, 1 Crônicas e Jô, satanás designa seres sobrenaturais; mas ele não era uma adversário de Deus. Na verdade, assumia o papel de acusador ou promotor. Segundo Swenson, apenas em 1 Crônicas, Satanás fora representado como um adversário personificado de Deus. Aprendemos bastante sobre como a imagem de Satã se foi modificando neste trecho de Swenson:

“Dado o aumento na variedade de nomes pessoais aplicados depois aos demônios na literatura intertestamental, parece que mudanças nas visões de mundo (provavelmente influenciadas, em primeiro lugar, pelo dualismo do zoroatrismo da Pérsia) permitiram o desenvolvimento de um demônio tal como o reconhecemos. Comentários judaicos posteriores sobre as escrituras hebraicas durante o período rabínico intertestamental atribuem muito mais maldade a Satanás (...)”.

(p. 235)


Com a conclusão do Novo Testamento, Satanás já se achava plenamente identificado com a figura do mal e, portanto, com um adversário de Deus. Se, no Antigo Testamento, Satanás operava sob a orientação de Deus, em geral, apenas contra seres humanos, no Novo Testamento, Satanás passa a gozar de maior autonomia de ação e a assumir uma forma totalmente diversa. Por volta do século I d.C, satanás passou a ser um adversário de Deus. No Novo Testamento, satanás tem vários nomes, um dos quais é “diabo”.
Interessante é que a ideia de Satanás como um anjo decaído, chamado Lúcifer, não se encontra na Bíblia. Essa ideia chegou até nós muito devido a contribuição dos teólogos cristãos Orígenes e Tertuliano, no início do século II d.C. Com base na passagem de Isaías 14:12 – “Como caíste, estrela da manhã! Tu, que uma vez derrubaste nações, estás caída à terra” -, eles associaram a profecia de Isaías a Satanás. Com vistas a esclarecer este ponto, convém notar que a profecia de Isaías trata de uma estrela específica que aspirou a subir tão alto, que excedesse em altura as estrelas de Deus. Ela, assim, se tornaria o Deus supremo; no entanto, segundo Isaías, ela seria relegada a uma posição mais baixa que a terra. O nome Lúcifer com que se designa Satanás é uma versão latina do hebraico helel, que, originalmente, significava “estrela da manhã”, mas que assumiu o significado “portador de luz”, quando traduzido para o latim.
Belzebu, do hebraico Baal zebub, também é outro nome para Satanás. Essa forma se acha no livro dos Reis do Antigo Testamento. Baal zebu era um deus filisteu a quem o rei israelita recorreu, após sofrer uma queda que lhe causou danos. No período do Novo Testamento, Belzebu já tinha se tornado uma outra forma para se referir a Satanás.


Conclusão

Não tive a intenção de me alongar sobre o tema, de modo que muito ainda haveria de ser dito. Não obstante a concisão com que o tema foi abordado, se levamos em conta as formas como Satã é representado na vasta e diversa literatura bíblica, devemos reconhecer o seguinte: para os antigos judeus, a incompatibilidade entre a existência de um Deus bom e de um Satã não constituía um problema que se deveria enfrentar. Na verdade, Satã, a considerar uma grande parte dos registros do Antigo Testamento, estava subordinado a Deus e agia sob a tutela deste. Satã não era, pelo menos na grande maioria dos escritos da Bíblia hebraica, um adversário de Deus. A situação é diversa no Novo Testamento, e o problema que surge quando se admite a existência de um ser maligno, em que pese a existência de um ser bom, Criador e Todo-poderoso, se impõe. No Antigo Testamento, Deus podia enviar seres malévolos para cumprir algum propósito; no Novo Testamento, Satã passa a ter autonomia em relação a Deus e torna-se seu opositor. Até onde eu sei, o cristianismo não oferece uma resposta, ao menos satisfatória, para a questão: como conciliar a existência de Deus com a existência do Diabo? Tampouco, parece ser uma preocupação da teologia cristã a questão que se impõe quando se afirma que Deus criou tudo que há: Donde então provém Satanás? Se de Deus, como, então, sustentar a benevolência de Deus?

Este texto ilustra o que chamo de ateísmo esclarecido. Um ateísmo esclarecido deve consistir numa reflexão séria sobre a História cristã e deve se respaldar nas contribuições de estudos crítico-históricos da Bíblia. Um ateísmo esclarecido é um ateísmo que não se limita a declarar simplesmente absurdas as crenças religiosas, mas que busca compreender a origem dessas crenças, a história que as tornou possíveis. Este texto procurou mostrar que a personagem Satã fora construída em parte pela literatura bíblica e em parte por interpretações posteriores. Subjacente ao desenvolvimento deste texto está o pressuposto de que Satã não é um ser real, mas um personagem da diversificada e vasta literatura bíblica. Ele tem uma biografia, como salienta Kelly. Um ateu esclarecido, não se limitando a vociferar que Satã é um mero ser imaginário, deve se esforçar por compreender as suas raízes históricas. De fato, Satã não existe, se existisse, sua própria existência deveria lançar sérias dúvidas sobre a existência de Deus, embora isso não constitua um problema reconhecido pela maioria dos cristãos. No entanto, para um ateu esclarecido, tanto Deus como Satã são personagens criados por homens que viveram no Antigo Oriente Médio, a fim de lidar com as dificuldades de seu tempo. Se o culto ao Diabo atormenta ou escandaliza os cristãos, ao ateu esclarecido esse culto não deve ser encarado senão como uma realidade favorecida numa cultura cujas raízes foram construídas por uma teologia e História que o preveem e o explicam. 

segunda-feira, 3 de junho de 2013

"A fé torna-se ainda mais frágil quando conhecemos sua História" (BAR)



Como tudo começou
A História dos antigos hebreus


Atualmente, a palavra História apresenta duas acepções, com que a maioria de nós está suficientemente familiarizada: a) disciplina que se constitui de relatos, análises, pesquisas sobre documentos, desenvolvidas pelos historiadores; b) a matéria dessa disciplina, ou seja, os acontecimentos, as relações, as práticas em que os seres humanos estão envolvidos como agentes e pacientes (guerras, sucessão de reis, alianças, assassinatos, miséria, escravidão, etc.). É preciso dizer, no entanto, que os historiadores não lidam diretamente com “fatos históricos”; na verdade, os fatos históricos são produtos de seu trabalho de pesquisa, seleção e interpretação. A história não nos dá o passado; mas o passado é que é reconstruído pelo trabalho investigativo e interpretativo dos historiadores. A reconstrução do passado se dá com base nas evidências disponíveis; no entanto, elas, por si mesmas, não lhes fornecem um “retrato” do que aconteceu. Embora todo fato histórico seja um acontecimento do passado, o inverso não é sempre verdadeiro (Schaff, 1983, p. 209). Para que um acontecimento seja considerado um fato histórico, ou seja, um fato social, necessário se faz que ele produza efeitos em certa conjuntura social e em certo sistema de referência. Todo fato, para ser considerado um “fato histórico”, tem de ser dotado de significado num dado sistema de referência. É no interior desse sistema que o historiador valoriza e seleciona acontecimentos segundo os objetivos de sua pesquisa. Tendo em conta o trabalho do historiador na definição de um fato histórico, observa Schaff,

“O historiador que procura, por exemplo, fontes sobre a história política de um país, ficará indiferente aos testemunhos da cultura e da arte se estes não estiverem diretamente ligados à vida política; estes testemunhos não terão para ele nenhuma significação história, enquanto que se tornarão fatos históricos significantes (podem pelo menos vir a sê-lo em certas condições) para aquele que os situar no contexto da história cultural do país ou de uma determinada época, para aquele que os ligar a um dado sistema de referência.”

(pp. 210-11)


Tendo em vista o exposto, serão dois os objetivos que perseguirei neste texto: o primeiro dos quais será tornar patentes os acontecimentos da saga dos antigos hebreus que influenciaram o aparecimento dos primeiros manuscritos que, após reeditados muitas vezes e muito tempo depois, por escribas, viriam a constituir a Torá (Bíblia hebraica); o segundo será mostrar a importância da fé israelita na Escrita da História da Antiga Israel.


Escrituras Sagradas


De início, a despeito da crença em contrário, os documentos que se iam forjando na época em que viveram os antigos hebreus (aproximadamente 1.200 a.C), no Antigo Oriente Próximo, se tornaram “Escrituras” não porque fossem divinamente inspirados, mas porque as pessoas os tratavam de modo diferente. Sucedeu assim com os textos que viriam a compor o que hoje conhecemos como Bíblia. Os textos só se tornaram sagrados pelo uso especial que deles faziam os homens, ou seja, quando eram lidos em contextos ritualizados e, portanto, quando eram desvinculados da vida comum e dos modos de pensamento secular (Armstrong, 2007, p. 10).
O sagrado, portanto, não está nas coisas em si, mas é um significado que os seres humanos atribuem a certos objetos, lugares ou pessoas, segundo a forma como eles entram em relação com esses objetos, lugares e pessoas. É a linguagem humana que cria o sagrado. Em outras palavras, as coisas se tornam sagradas quando os homens a nomeiam como tais (Alves, 2008). Seres, objetos e coisas se tornam sagradas quando entram a fazer parte de teias invisíveis de significação. O que é o sagrado, senão o imaculável, o não profanável, o inviolável, com que os homens têm de se relacionar com profunda deferência e decoro? O sagrado é o sinal, para os homens, da presença do divino entre eles no mundo. Por isso, o sagrado deve ser adorado, reverenciado e transformado em objeto de culto. Ao atribuir o valor de sagrado a um objeto ou experiência, esse objeto ou experiência é desvinculado do viver cotidiano. O sagrado transcende o significado de que são dotadas as coisas em nossa vida cotidiana. Uma rodela de pão ázimo, entre os católicos, deixa de ser uma rodela de pão para tornar-se o próprio corpo de Cristo. Justamente porque é o corpo daquele de quem os cristãos dizem ter sido o próprio Deus, aquela rodela de pão ázimo torna-se sinal do sagrado.
Na experiência do sagrado, os humanos se submetem aos próprios significados que forjam, à própria linguagem religiosa que produz significados extraordinários, que lhes evocam a presença do divino no mundo.
Em suma, os manuscritos se tornaram sagrados porque passaram a fazer parte de estruturas ritualísticas, o que lhes permitiu separar-se das experiências da vida comum.


A Bíblia Judaica

A Bíblia judaica é mais antiga e serviu de base para o aparecimento da Bíblia cristã. A Bíblia dos cristãos depende da Bíblia judaica. Pode ser surpreendente para muitas pessoas, mas a Bíblia judaica não existia como tal antes do aparecimento dos primeiros cristãos. É verdade, por outro lado, que grande parte dos manuscritos que viriam a constituir essa Bíblia já se prestava a uso, havia muito tempo, como escritura autorizada pelas comunidades judaicas. Em Desvendando a Bíblia (2010), Kristin Swenson, nos ensina o seguinte:

“As Escrituras pré-Bíblia – que tanto os judeus tradicionais quanto os judeus seguidores de Jesus usavam naquela época – eram traduções de antigos manuscritos em hebraico para uma língua comum, o grego. Essa versão grega é uma espécie de Bíblia oculta, pois sua existência, pressupostos, linguagens e estrutura estão por trás de muitas diferenças nas Bíblias de hoje”.
(p. 30)


Essas traduções dos manuscritos em hebraico para o grego ficaram conhecidas pelo nome de Septuaginta, em referência aos setenta estudiosos e aos setenta dias necessários à tradução dos manuscritos para o grego. Não havendo ainda uma Bíblia, a Septuaginta acabou por incorporar mais do que escrituras hebraicas traduzidas; incluiu variantes de livros já existentes e novos livros inteiros. Foi somente no século I d.C que os judeus excluíram os novos livros que, por serem novos, não mereciam credibilidade, e definiram seu cânone, ou seja, a sua Bíblia.
A Bíblia hebraica ou judaica, também, às vezes, chamada de Torá, encerra, além da Torá (Pentateuco), os livros dos Profetas e dos Escritos (Salmos, Provérbios, Jô e Eclesiastes). Por vezes, a Bíblia hebraica é chamada pela sigla Tanakh, em que ‘T’ refere-se a Torá; ‘N’, à palavra hebraica Nevi´im, que significa Profetas; e ‘Kh’, à palavra hebraica Kethuvim, que significa “Escritos”. O Pentateuco, que se identifica com a Torá, encerra os livros do Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
Bíblia judaica, Tanakh e Bíblia hebraica são designações para a mesma Bíblia dos judeus. Muita vez, o Antigo Testamento cristão corresponde a todo o conteúdo da Bíblia hebraica, muito embora seja organizado de modo diferente. Como os cristãos acreditavam que a vinda do Messias, que foi identificado com Jesus, havia sido profetizada nos manuscritos judaicos, o Antigo Testamento foi organizado de tal modo que o último texto anunciasse  a chegada do Salvador. A identificação do Messias aguardado pelos antigos hebreus com Jesus de Nazaré, por isso chamado o Cristo, se deveu à interpretação dos primeiros cristãos, já que os antigos judeus não acreditavam que esse Messias apareceria na forma humana. O Messias dos antigos judeus deveria ser muito mais grandioso do que sugeria ser um simples carpinteiro de Nazaré.
Embora se costume chamar de Antigo Testamento a toda a Bíblia hebraica, esta não se reduz àquele. Os Antigos Testamentos da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa encerram livros e seções da Septuaginta que não figuram na Bíblia judaica.
A Bíblia compreende textos provenientes de várias épocas e lugares. Estimava-se que a Bíblia hebraica inclua textos que remontam a um período que se estende por mais de mil anos (o mais antigo data de 1.200 a.C; o mais recente, de aproximadamente 165 a. C). Os textos são provenientes da Mesopotâmia, de Canaã, do Egito e de todo Crescente Fértil (um extenso território que inclui os atuais Israel, Jordânia, Líbano, partes da Síria, Iraque, o sudoeste da Turquia e do Irã). A região tem esse nome em virtude de ser banhada pelos rios Jordão, Eufrates, Tigre e Nilo. Não só a origem dos textos é bastante variada, mas a literatura bíblica também o é. A Bíblia inclui poesia devocional, textos jurídicos, biografias, aforismos, tratados filosóficos, cartas a indivíduos e grupos, cânticos e narrativas de instrução, anedotas e sermões (Swenson, p. 64).
Como, no período em que a Bíblia ia tomando forma, a grande maioria das pessoas era analfabeta, a produção e uso dos manuscritos eram circunscritos a uma pequena elite letrada. No tangente à autoria da Bíblia, Swenson dá-nos a saber o seguinte passo:

“Autoria, durante o período do desenvolvimento bíblico, raramente significava a empreitada criativa de um indivíduo, cujas palavras, uma vez escritas, permaneciam imutáveis. Quase toda a literatura da Bíblia é atribuída a uma pessoa ou outra que não chegou a escrevê-la. A maior parte da Bíblia (especialmente da Bíblia hebraica) é produto das poucas pessoas, geralmente anônimas, que podiam aprender a ler e escrever – escribas, ensinados no templo (...)”

(pp. 64-5)


Importante notar que os escribas lançavam mão, ainda que parcialmente, de tradições preexistentes e de textos na modalidade oral (narrativas, poesias, anais, oráculos preservados e veiculados por discípulos de um profeta) (Swenson, p. 65). Eles copiavam e editavam tais textos de acordo com seus interesses e teologia. A literatura que hoje chamamos de Bíblia não circulava em códices encadernados, mas na forma de rolos de pergaminho. Os textos circulavam de modo independente, do que resultou uma organização não muito fixa.
Desde já, convém ter em conta a influência decisiva do exílio dos antigos hebreus na Babilônia, por ocasião da invasão a Jerusalém por Nabucodonosor, então rei da Babilônia, na fabricação da Bíblia. Não menos importante foi o papel desempenhado pelo imperador persa que, após libertar os exilados, recomendou que eles codificassem em forma escrita suas leis e tradições. Há um consenso forte entre os especialistas de que os cinco primeiros livros da Bíblia judaica se constituíram durante o exílio, se tornando oficiais na comunidade judaica durante a ocupação dos persas.


Os primeiros hebreus: a saga da antiga Israel

A palavra “hebreu” significa “viajante” ou “aquele que atravessa para o outro lado” (Blainey, 2010, p. 94). De fato, os hebreus eram povos nômades. Embora tenham vivido períodos de prosperidade, conheceram a miséria, a humilhação, o cativeiro e o exílio. Foram escravizados no Egito, mas alcançaram sua liberdade por meio dos esforços de seu líder Moisés. Entretanto, o que ficou conhecido como Êxodo não constitui um fato histórico.
O aparecimento dos antigos hebreus remonta a, aproximadamente, 1.200 a.C. Os israelitas eram, segundo pensam alguns estudiosos, refugiados provenientes das cidades-estado em crise situadas nas planícies costeiras. Eles, provavelmente, surgiram nas cabeceiras dos rios do Golfo Pérsico ou nos desertos próximos. Os países banhados pelo Golfo Pérsico são Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Quatar, Bahrein, Kuwait, Iraque e Irã.
É possível que aos refugiados tenham-se unidos outras tribos provenientes do sul, que professavam fé em Jeová, deus que se originou das regiões próximas ao Sinai, ao sul. Os israelitas transmitiam suas tradições oralmente. Em 1.200 a.C, eles se organizavam em doze tribos situadas na região montanhosa cananeia, ainda que acreditassem possuir uma origem e história em comum. Ao contrário dos demais povos, que desenvolveram uma mitologia e liturgia baseadas no mundo dos deuses no tempo primordial, os israelitas professam sua fé em Jeová, que acreditam intervir na história de seu povo. Jeová os conduziu à Terra Prometida, por intermédio de Moisés. Eles viveram, durante muito tempo, sob o domínio egípcio e ansiavam retornar à terra natal.
Em aproximadamente 1000 a.C, o sistema de tribos entrou em declínio, e os israelitas fundaram duas monarquias em Canaã: o reino de Judá, no sul; e o reino de Israel, no norte. Eles já não mais celebravam, em festas, a aliança que, outrora, lembrava-lhes a linhagem comum. Ainda que não haja, atualmente, muitas informações sobre o reino de Israel, sabe-se que muitos salmos, que posteriormente viriam a ser incluídos na Bíblia, eram usados na liturgia em Jerusalém e revelam que os judeus foram influenciados pelo culto de Baal, deus da vizinha Síria. Também, àquela época, o povo do norte acalentava a crença de que Jeová havia feito uma aliança com o rei Davi, fundador da dinastia judaica, e prometido que seus descendentes reinariam para sempre em Jerusalém.
Um importante acontecimento na longa história da produção dos manuscritos que viriam a compor o que hoje chamamos de Bíblia foi interpretado como uma revolução literária. Sucedeu, no século VIII a.C, em todo o Oriente Médio e no Mediterrâneo Oriental, que os reis recomendassem documentos que conferissem glória ao seu regime. Os textos foram guardados em bibliotecas. Em Israel e em Judá, historiadores trabalharam para articular as primeiras narrativas, de modo a criar sagas nacionais. Elas foram preservadas nas versões mais antigas do Pentateuco. Com base em variadas tradições de Israel e de Judá, os historiadores do século VIII a.C puderam construir uma narrativa coerente. Chamaram de “J” ao épico sulista de Judá; e de “E” à saga do norte (Israel). O “J” faz referência a Jeová, nome com que os habitantes de Judá chamavam Deus; e “E” faz referência a Eloim, forma com que Deus era designado pelos habitantes do reino do norte. Tempos depois, essas duas narrativas foram combinadas por um editor para constituir a história única que é, hoje, o cerne da Bíblia hebraica.
É importante frisar que “J” e “E” não escreveram relatos históricos. Nesse tocante, devemos lembrar, com Mckenzein (2005), que, na Escrita da História na Antiga Israel, não havia uma preocupação em relatar o que realmente aconteceu. O objetivo básico era “prestar contas com o passado” (Mckenzein, 2005, p. 36). Isso significa que os autores bíblicos buscavam imputar responsabilidades pelas ações e julgá-las, de tal sorte que pudessem explicar seus efeitos no tempo presente. A Escrita da História na Israel Antiga era, portanto: a) uma forma de tradição específica; b) um meio de rememorar o passado e determinar seu significado; c) um meio de determinar as causas, basicamente morais, das condições do presente; d) nacional e coletiva; e) de natureza literária e um importante componente da identidade de grupo. Portanto, ela não consistia num relato histórico, no sentido em que, modernamente, entendemos a palavra História.
Desde as origens, não houve uma mensagem única para o que se tornaria a Bíblia. Os autores J e E desenvolviam diferentes interpretações sobre a saga de Israel, e os editores futuros não se esforçaram por suprimir as incoerências e as contradições.  Historiadores subsequentes fizeram acréscimos aos textos de J e E e os alteraram radicalmente.
Particularmente interessante é ver que J e E tinham concepções diferentes sobre Deus. O Deus de J era antropomórfico, imagem que desagradaria exegetas posteriores. O Deus de E (Eloim), no entanto, possuía uma natureza transcendente: se Jeová falava e caminhava no Jardim do Éden; Eloim raramente falava e preferia enviar um anjo como mensageiro. Embora a religião de Israel fosse se tornar, posteriormente, uma religião monoteísta, centrada, portanto, na fé na existência de um único Deus verdadeiro, nem J nem E eram monoteístas. A Jeová faziam companhia outros santos. Jeová pertencia a uma Assembleia Divina de “santos”. Até a destruição do Templo por Nabucodonosor, em 586 a.C, a Bíblia nos dá testemunho de que os israelitas adoravam muitas outras divindades.
Em 597 a.C., sucedeu que o Estado de Judá, situado na região montanhosa de Canaã, não mais aceitou o acordo que o mantinha sob o domínio do soberano Nabucodonosor, então imperador da Babilônia. A ruptura do acordo foi catastrófica para o povo judaico. Nabucodonosor invadiu a região de Jerusalém, então capital de Judá, com seu exército, forçando o rei a se render. Ele foi deportado para a Babilônio com cerca de dez mil cidadãos que constituíam o Estado (sacerdotes, militares, líderes, artífices e trabalhadores em metal).  Em 586 a.C., uma rebelião em Judá provocou a destruição do Templo por Nabucodonosor. O Templo ficava no monte Sião e fora construído pelo rei Salomão (970-930 a.C.) e era o centro da vida nacional e espiritual do povo israelense. Acreditava-se que Deus residia lá.
No século VIII a.C., surgiram alguns profetas dispostos a fazer com que o povo de Israel adorasse apenas Jeová. Jeová era um guerreiro invencível, mas não era dotado de conhecimento sobre agricultura. Quando as pessoas desejavam uma boa colheita, não hesitavam em recorrer ao deus da fertilidade Baal. O profeta Oséias injuriou-se com seus conterrâneos.  Para Oséias, o povo de Israel deveria retornar à adoração a Jeová, suficientemente capaz de prover as necessidades dos fiéis. Ele também cuidava inapropriado sacrificar um animal a Jeová. O que este queria era lealdade de culto. Segundo Oseias, se as pessoas não se voltassem exclusivamente para Jeová, Israel seria destruída pelo Império da Assíria. Àquela altura, a Assíria dominava a região do Oriente Médio. Outro profeta, chamado Amós, que pregava em Israel naquele tempo, viria a transformar definitivamente o culto a Jeová. Para esse profeta, Jeová não mais se agradava das cantorias e rituais do Templo.
Outro profeta, chamado Isaías, também desempenhou um papel importante na interpretação da história de Israel. Por volta de 740 a.C, Isaías recebeu uma mensagem terrível de Jeová: o império assírio devastaria a zona rural de Judá.  No entanto, Isaías não temeu a Assíria, porque “vira que a glória de Jeová enchia a terra” (Armstrong, 2008, p. 24). Mas o reino do norte não gozava de tal proteção. Em 722, os exércitos assírios destruíram Samaria, então capital de Israel.
Decerto, a saga dos israelitas não termina por aqui. Outros profetas e um grupo de reformadores, os deuteronomistas desempenhariam um papel extremamente importante nessa longa história de construção, reconstrução e preservação de uma identidade nacional, tão profundamente marcada por guerras, lutas, exílio e sofrimento, que culminaria com a produção das Escrituras hebraicas. Em seu muito instrutivo livro A Bíblia (2007), Karen Armstrong nota acerca dos deuteronomistas:

“É instrutivo que os deuteronomistas, os precursores da ideia de ortodoxia escriturística, tenham introduzido uma legislação surpreendentemente nova que – caso implementada – teria transformado a antiga fé de Israel. Para assegurar a pureza do culto, eles tentaram centralizá-lo, criar um judiciário secular independente do templo e despojar o rei de seus poderes sacros, tornando-o submetido à Torá como qualquer pessoa. Os deuteronomistas na verdade mudaram a redação dos códigos legais, das sagas e dos textos litúrgicos mais antigos, de modo que passassem a endossar sua proposta”.

(pp. 27-28)


Com o Deuteronômio, passou-se a exigir uma mudança radical na ordem social. O Deuteronômio tinha outra explicação para o fato de os israelitas serem privados da posse de sua terra: isso não se devia à suposição de que Jeová residisse em Sião, mas ao fato de os israelitas não observarem seus mandamentos.




sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

impressões de leituras


                                                                            

                                            Dispersos




Sempre que leio um livro, tenho o hábito de grifar trechos de parágrafos ou mesmo parágrafos inteiros que me despertam atenção. Muitas vezes, além de sublinhá-los, deixo junto a eles algum comentário ou questionamento. Tal hábito me ajuda a localizar o que li, caso eu pretenda escrever sobre algum tema que já tenha visitado em minhas leituras, ou mesmo me ajuda a reter o que li, quando releio o mesmo livro ou capítulo.
Neste texto, cujos limites já estão pré-fixados em meu espírito, pretendo trazer à cena alguns trechos curiosos ou interessantes de uns poucos livros que já li ou que ainda estou lendo. O primeiro trecho que compartilho com o leitor vem de Bart D. Ehrman, em seu Quem Jesus foi, Quem Jesus não foi? (2010). Escusa dizer que os cristãos menos suscetíveis ao adestramento intelectual deveriam dar-se o trabalho de lê-lo. Leiamos com atenção o trecho abaixo:

A verdade é que todos os Evangelhos foram escritos anonimamente, e nenhum dos autores alega ser uma testemunha. Há nomes ligados aos títulos dos Evangelhos (“o Evangelho segundo Mateus”), mas esses títulos são acréscimos posteriores aos próprios livros, conferidos por editores e escribas para informar aos leitores que os editores achavam que eram as autoridades por trás das diferentes versões. Que os títulos não são originalmente dos Evangelhos é algo que fica claro com uma simples reflexão. Quem escreveu Mateus não o chamou de “Evangelho segundo Mateus”. As pessoas que deram esse título a ele estão dizendo a você quem, na opinião delas, o escreveu. Autores nunca dão a seus livros o título de “segundo fulano”.

(pp. 119-120)
(grifo meu)


Este trecho permite-nos inferir que nenhum dos evangelistas conheceu Jesus. Nenhum deles conviveu com Jesus. Em outro trecho, que não refiro por me faltar disposição de ânimo para procurá-lo, Ehrman é mais explícito, ao nos ensinar que os nomes Marcos, Mateus, João e Lucas não correspondem aos nomes dos verdadeiros autores dos evangelhos. Apesar de a maioria esmagadora dos cristãos acreditar que Mateus foi realmente o autor do “Evangelho segundo Mateus” e que esse Mateus foi um dos doze apóstolos de Jesus, há um consenso entre os estudiosos bíblicos, cujo trabalho de interpretação se assenta no método crítico-histórico, de que os Evangelhos são produto de falsificações, resultado de cópias sucessivas, feitas por copistas, não necessariamente aptos para tanto. O trecho a seguir nos ensina a respeito disso. O trecho consta do livro, também de Bart D. Ehrman, intitulado de O que Jesus disse? O que Jesus não disse?Quem mudou a Bíblia e por quê (2006):

“(...) De fato, muitas mudanças encontradas nos primeiros manuscritos cristãos nada tinham a ver com teologia ou ideologia. A maioria das mudanças é, de longe, resultado puro e simples de erros – escorregões de pena, omissões acidentais, acréscimos despercebidos, palavras mal grafadas, bobagens desse tipo. Os copistas podiam ser incompetentes: é importante lembrar que a maioria dos copistas nos primeiros séculos não eram treinados para esse tipo de trabalho, porque eram simplesmente os membros letrados das assembleias que eram (mais ou menos) capazes e se dispunham a fazê-lo. Mesmo mais tarde, a começar dos séculos IV e V, quando os copistas cristãos emergiram como classe profissional dentro da Igreja, e mais propriamente ainda, quando a maioria dos manuscritos era copiada por monges dedicados a esse tipo de trabalho em mosteiros – mesmo nessa época, havia copistas menos experimentados que outros. (...) Por vezes, os copistas simplesmente se distraíam; outras vezes, tinham sono e fome;outras ainda, compreensivelmente, não podiam dar o melhor de si. (...) Até mesmo copistas competentes, treinados e alertas,  de vez em quando podiam cometer erros. Não obstante, em certas ocasiões, como vimos, eles mudavam o texto porque achavam que ele tinha de ser mudado. E isso, note-se, não apenas por razões teológicas. Havia outras razões pelas quais os copistas introduziam uma mudança proposital – por exemplo, quando chegavam a uma passagem que parecia incorporar um erro que precisava ser corrigido, provavelmente uma contradição encontrada no texto, ou uma referência geográfica errada, ou uma menção escriturística deslocada. Desse modo, quando os copistas faziam mudanças intencionais, por vezes, os seus motivos eram tão cristalinos quanto a água de fonte pura. Mas, seja como for, tratava-se de mudanças que faziam com que as palavras originais do autor fossem alteradas e, em última instância, perdidas”.

(p.65-66)
(ênfase no original)

Os dois trechos, quando reunidos a outro que ainda citarei, servem para refutar a crença, bastante generalizada e empedernida no mundo judaico-cristão, segundo a qual a Bíblia foi inspirada por Deus. Grosso modo, isso significa dizer que os escritores bíblicos foram influenciados pelo “sopro do Espírito Santo de Deus” a compor seus escritos. Estava eu, há pouco, ocupado na leitura do Tratado de Teologia – Adventista do Sétimo Dia (2011), particularmente, concentrado na seção destinada ao estudo da crença na Bíblia como uma obra de Deus. O autor, que é teólogo, irá se esforçar por justificar por que podemos, com certeza, afirmar que a Bíblia tem origem em Deus. Na verdade, inicialmente, a minha intenção era compor um texto por meio do qual eu avaliaria criticamente os argumentos do autor, para defender justamente a posição contrária, qual seja, a de que a Bíblia é uma obra humana e somente humana. Curiosamente, as “evidências” apresentadas pelo autor em favor da crença de que a Bíblia resultou de um trabalho também divino (ele não nega que tenha sido produto do trabalho humano, evidentemente) são todas colhidas da própria Bíblia (e não de fontes externas a ela). Ademais, as “evidências” são, sem exceção, os registros dos autores bíblicos, que simplesmente alegavam que as Escrituras foram inspiradas por Deus. Pergunto-me que valor têm essas alegações como provas?
Ao tratar do “locus” da Inspiração, ou seja, quem ou o que foi alvo de inspiração, o teólogo observa o seguinte:

“A terceira opção para locus da inspiração – a comunidade da fé na qual a Escritura teve sua origem – dificilmente merece ser mencionada como alternativa viável. O conceito se baseia, em grande medida, em um método específico de estudo da Bíblia. Por meio de um estudo crítico-histórico-literário da Bíblia, os eruditos  chegaram à conclusão de que muitos livros bíblicos são produto final de um longo processo, no qual estiveram envolvidos escritores, editores e redatores desconhecidos. Com base nesse fenômeno, nega-se a concepção de que os livros da Bíblia tiveram autores terem sido inspirados, a comunidade na qual os escritores atingiram sua forma final é que foi inspirada a reconhecer a validade e autoridade da mensagem bíblica”.

(p. 45)
(grifo meu)

Nesse excerto, o autor reconhece as contribuições de estudiosos como Ehrman, que desenvolvem sérios estudos sobre a Bíblia, a fim de buscar uma compreensão histórica sobre esta que é a obra mais vendida e lida do mundo. No entanto, ele tão-só as rejeita como verdadeiras explicações sobre a autoria da Bíblia. Veja-se o trecho em negrito. Saliente-se que ele as rejeita sem desenvolver qualquer argumentação. Ele simplesmente quer manter a crença de que os escritores bíblicos foram inspirados e que as alterações e cópias das quais nos falam os historiadores bíblicos podem ter sido elas mesmas também inspiradas. Não lhe ocorre que um trabalho que fosse inspirado por Deus não poderia carecer de correção; é razoável supor que, se é Deus quem inspira as palavras do livro, esse livro deveria primar pela exatidão e pela correção; ademais, deveria incluir somente ensinamentos e palavras que dariam testemunho de uma inteligência infinitamente superior à humana (o advérbio “infinitamente” aí tem sentido obscuro, mas serve para assinalar como Deus é pensado pelos cristãos); mas a Bíblia está longe de ser um livro repleto de ensinamentos e palavras capazes de nos maravilhar.
Em outro livro, intitulado Desvendando a Bíblia (2010), Kristin Swenson, nos ensina o seguinte (também esse trecho serve para negar a validade da crença na Bíblia como obra inspirada):

“Olhe de perto a história do Dilúvio, em Gênesis 6:5 – 8:19. Quantos animais entraram na Arca de Noé – dois de cada espécie (6:19, 7:15), ou sete pares de cada animal puro e um par de cada animal impuro (7:2-3)? Como veio o Dilúvio – de cima, pela chuva (7:4)?, ou por um aumento das águas das profundezas, ou ambos (7:11)? E quanto tempo ele durou – quarenta dias (7:17, 8:6), ou 150 dias (7:24)? (...) considerando-se as histórias em sua forma final, tal como aparecem hoje na Bíblia, os leitores podem concluir que uma fonte acrescenta algo a outra, ou elabora sobre detalhes de outra, produzindo uma história ainda mais rica. Os textos convidam a uma leitura assim, em camadas.
Provavelmente nenhuma das quatro fontes literárias hipotéticas foi composta por uma só pessoa; antes, as quatro representam as tradições orais e escritas de várias partes, provavelmente não juntas em uma sessão, mas ao longo do tempo. Ou seja, cada uma das fontes foi construída sobre outras fontes, e reflete um processo de transmissão que permite edição e alteração o tempo todo. E a forma final reflete uma combinação intencional de textos recebidos”.

(p. 67)

O fato de lermos, por exemplo, em Timóteo 2 (3:16) “Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça” não constitui prova suficiente para validar a crença de que Deus é o verdadeiro autor da Bíblia. De passagem, cumpre notar que, ao contrário do que sugere o teólogo, em Tratado de Teologia, não foi Paulo autor de Timóteo 1 e 2 (Ehrman, 2010, 147). O que nos impede de desconfiar do autor de Timóteo? Por que não deveríamos supor que o autor, ao escrever o que escreveu, tinha intenção de que seu escrito alcançasse prestígio na comunidade à qual ele se destinava? Supõe-se que Timóteo era um pastor de Éfeso. Ora, se a intenção do autor de Timóteo era fazer recomendações sobre como se deveria desenvolver o trabalho pastoral nas igrejas, nada mais justo que reafirmasse a crença de que as Escrituras foram divinamente inspiradas; afinal, se o texto fora atribuído a uma autoridade como Paulo de Tarso, àquela altura convertido para o cristianismo, e se nesse texto evoca-se a autoridade de Deus na confecção das Escrituras, que pastor ousaria ignorar as recomendações que nele havia? Entenda-se: o apelo à autoridade de Deus, da qual Paulo era um porta-voz, garantia a credibilidade das recomendações que constam do texto Timóteo.
Por fim, um outro trecho, agora colhido do livro Lunáticos por Deus – lendas, mitos e fatos (2011), de Michael Largo. A história é dramaticamente bizarra, sem deixar de revelar quanto a fé pode ser perniciosa:

“No Concílio de Nicéia, em 325 d.C., instituiu-se o dogma da Santíssima Trindade: só existe um Deus, mas n’Ele há três pessoas divinas: Pai, Filho e Espírito Santo. Ário, bispo de Alexandria, Egito, causou grande comoção ao afirmar que essa ideia estava errada. Argumentou que Deus existia antes de Jesus e, portanto, Jesus, o Filho, não era igual ao Pai. Numa determinada época, Ário tinha um número considerável de seguidores e os conservou mesmo depois de ser condenado devido à sua recusa em retratar-se, convertendo-se assim no primeiro herege da Igreja Católica e sentenciado à excomunhão. Além disso, a extensa coletânea de seus textos filosóficos e teológicos foi queimada e ele assistiu às chamas transformarem o trabalho de sua vida em cinzas. Cópias de seus escritos descobertas posteriormente, depois de aspergidas com água benta, também acabaram devoradas pelo fogo. Para assegurar que sua mão não mais produziria blasfêmias, induziram Ário a voltar do exílio para Constantinopla em 336, sob a alegação de que seria reintegrado à Igreja. Ele tomou poucas precauções contra assassinos e, chegando ao seu destino, desfilou abertamente pela cidade inteira, acenando para as multidões com a sensação de desagravo, convicto de que suas postulações seriam reconsideradas. Entretanto, antes de chegar à igreja, onde imaginava que o papa o abençoaria agarrou a boca e as nádegas com as mãos. Enquanto tentava correr para um banheiro, seu corpo repentinamente se enrijeceu. O sangue começou a jorrar de cada orifício e testemunhas asseveraram haver visto o baço e o fígado escorrerem juntos com os intestinos. Interpretou-se o acontecido como um sinal de que Deus estava descontente com suas ideias heréticas, embora pareça que Ário tenha sido envenenado por habilidosos alquimistas decididos a matá-lo de um modo espetacular, diante das multidões. A parede onde ele se encostou foi marcada e transformou-se em ponto turístico por séculos como um lembrete do destino reservado àqueles que desafiam a crença na Trindade”.

(p. 47)


Deixo aqui uma sugestão aos não-crentes ou declaradamente ateus, como eu, que se interessem por compreender por que é tão custoso às pessoas de fé romper definitivamente com o sistema de crenças e ideias irracionais de que foram herdeiras. Talvez, a razão pela qual essas pessoas não consigam se emancipar da ideologia religiosa seja o fato de os discursos religiosos se construírem com a retórica da dependência emocional a um Outro supremo. Não é nenhuma novidade o fato de os discursos religiosos serem discursos autoritários. Mas, talvez, não seja claro a muitos o modo como esses discursos constroem a relação de dependência dos fiéis para com esse Outro cuja autoridade é forjada para não ser questionada. E é bom ter em conta que esse Outro, ou melhor, a autoridade desse Outro (Deus) não é senão uma forma de representação da autoridade da própria instituição Igreja.

domingo, 22 de abril de 2012

"A minha vida é um suspiro de palavras" (BAR)


                 

             
                                    A construção do Cânone
                     
                                Como a Bíblia foi fabricada?

Estima-se que o número de cristãos no mundo chegue a 2, 180 bilhões, dos quais 50,1% são católicos. O Brasil ocuparia hoje o segundo lugar entre os países que abriga a maior quantidade de cristãos, a maioria dos quais católicos (http://noticias.gospelmais.com.br/pesquisa-brasil-segundo-pais-cristao-mundo-28475.html). A despeito do sincretismo que caracteriza fundamentalmente a nossa cultura, o Brasil é hoje considerado o maior país católico do mundo. Cerca de 70 % dos brasileiros são católicos e 89% da população do país é cristã.
Fico imaginando quantos dentre esses 151 milhões e 200 mil brasileiros (incluindo-se nessa totalidade católicos e evangélicos (tradicionais, pentecostais e neopentencostais)) sabem sobre os fatos de cuja exposição me ocuparei aqui. É certo que a maioria esmagadora os ignore. Convém lembrar, no entanto, que não escrevo sobre religião e sobre Deus com vistas a dissuadir quem quer que seja de suas convicções de fé.  À medida que me aprofundo em meus estudos sobre essa temática instigante e relevante (se realmente nos preocupamos com as direções que tomará o curso da História, sempre que a fé imiscuir-se em assuntos de interesse científico, político e social), reconheço que não será com discursos produzidos com rigor racional e ácido espírito crítico que se levará as pessoas que, desde crianças, têm suas percepções da realidade moldadas na visão de mundo (ideológica) da religião, a abandonarem sua fé.  Tal reconhecimento não faz calar a pergunta sobre o porquê de os religiosos serem tão resistentes a pôr sob o escrutínio da razão suas crenças religiosas, ou mesmo sobre o porquê de serem infensos a qualquer iniciativa de debate sobre questões suscitadas pela fé.
Eu escrevo, portanto, para os não religiosos (agnósticos e ateus). E, principalmente, escrevo para elucidar a compreensão que me foi possível durante minhas leituras. Escrevendo, sistematizo o conteúdo interpretado e compreendido. Escrevendo, esmiúço-o, dando-lhe mais nitidez em meu espírito. Escrever é também uma forma de compreender, tendo já terminada a primeira etapa de compreensão pelo exercício da leitura. Escrevo pelo prazer de concatenar ideias que afiguram bem o conhecimento adquirido. Escrevo para dar-lhe uma ordem, uma  solidez.
Vou encetar, pois, minhas reflexões com um longo excerto de Bart, em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010), que servirá para cativar o espírito do leitor, de modo que se sinta disposto a prosseguir na leitura. Cuido ser uma estratégia de instigação intelectual ou, se preferir, de sedução intelectiva, que me aproveitará. Senão, vejamos:

“Quando comecei a estudar a Bíblia na adolescência, com mais paixão que conhecimento (muita paixão, nenhum conhecimento), eu naturalmente imaginei que o livro tinha sido dado por Deus. Meus primeiros professores da Bíblia estimularam essa crença e a tornaram natural para mim, com visões cada vez mais sofisticadas sobre como Deus inspirara as Escrituras, fazendo delas uma espécie de roteiro para minha vida, me dizendo no que acreditar, como me comportar e o que esperar que acontecesse quando este mundo parasse de repente, em breve, com o advento de Jesus nas nuvens do céu.
Eu obviamente já não enxergo a vida assim. Em vez disso, vejo a Bíblia como um livro muito humano, não como um inspirado por Deus. Na verdade, muitas partes dela são inspiradoras, mas já não vejo a mão de Deus por trás de tudo. Não temos os originais que nenhum desses autores escreveu, apenas cópias que foram alteradas por mãos humanas em todos os pontos. E os livros que consideramos Escrituras passaram a formar um cânone séculos após terem sido escritos. Em minha opinião, isso não foi resultado de intervenção divina; foi resultado de líderes muito humanos da Igreja (todos eles homens), fazendo de tudo para decidir o que era certo.”
                                                            (p. 241)
                                                           (grifos meus)

Na primeira parte dessa passagem, o autor nos conta sobre como pensava quando sua mente era guiada pela paixão e pelo discurso de seus professores de teologia. Na adolescência, seu espírito era facilmente fisgado por concepções para as quais faltavam provas. Tal estado de credulidade perdurou ao longo dos anos em que se dedicou, no Seminário Teológico de Princenton, aos estudos bíblicos. Entretanto, à medida que se aprofundava nos estudos da Bíblia, após sua graduação, Bart descobriu a verdade por trás das escrituras. Esse desvelar da verdade lançou por terra sua credulidade; não mais podia sustentar a crença em que a Bíblia fora escrita sob inspiração de Deus. Ela é uma obra humana, e muito humana.
Bart desenvolve seus estudos sobre as origens do Cristianismo e sobre a Bíblia numa perspectiva crítico-histórica, a qual reúne o espírito de quem busca reconstruir os fatos (o historiador) ao espírito de quem os examina à luz de um método hermenêutico que traga  à tona as verdades ocultadas por discursos que se foram construindo na base de falsificações ao longo de séculos.
Dentre aqueles milhões de religiosos referidos, suponho que a grande maioria ignore o fato de que há outros tantos evangelhos que não foram incluídos no cânone (no conjunto de livros considerados pela corrente proto-ortodoxa como legítimos para o estabelecimento da Igreja e das raízes da fé). Neste texto, também vou me ocupar com a apresentação de fatos que giram em torno da fabricação deste cânone. Afinal, como os 27 livros da Bíblia chegaram até nós? Milhões de pessoas no mundo leem-na sem saber nada a respeito disso. Penso que é urgente elucidá-las sobre a forma como esses livros se tornaram objeto de adoração e signos inquestionáveis da verdade. O percurso é longo, mas tenho certeza de que será gratificante ao leitor arguto.



1.       As diversas formas de cristianismo primitivo


Bart D. Ehrman, em Evangelhos Perdidos (2008: 19), ensina-nos que, nos séculos II e III, eram muitas as visões cristãs. Havia cristãos que acreditavam em um único Deus, que julgavam verdadeiro. Outros tantos havia que acreditavam que existiam dois deuses. Outros ainda acreditavam que existiam 365. Alguns acreditavam na existência de trinta.
Também nesses séculos, havia cristãos que acreditavam que Deus é o criador do mundo. Outros, no entanto, pensavam que este mundo fora criado por uma divindade ignorante (isso explicaria a quantidade de dificuldades e sofrimento que recaem sobre a vida dos que nele vivem). Havia aqueles ainda que acreditavam que o mundo fora criado por uma divindade maligna, e o fez para aprisionar os homens e submetê-los à dor e ao sofrimento.
Naquele tempo, existiram cristãos que pensavam ser a Escritura Judaica (o “Velho Testamento da Bíblia cristã) um livro que fora inspirado por Deus, o único e verdadeiro. Outros havia, porém, que quem a inspirou foi o Deus dos judeus, que não era o Deus verdadeiro. Havia ainda cristãos que acreditavam a inspiração provinha de uma divindade maligna. Finalmente, outros tantos acreditavam que não houve inspiração alguma a guiar sua confecção.
As opiniões sobre a identidade de Jesus Cristo também divergiam bastante. Havia, nos século II e III, quem acreditasse que Jesus reunia em si duas naturezas: a humana e a divina. Cristãos havia que acreditasse que ele era completamente divino e, o sendo, não poderia ser também humano, já que uma natureza, necessariamente, contradiz a outra. Alguns acreditavam que Jesus não era divino, mas que fora adotado por Deus para filho.Outros ainda acreditavam que Jesus Cristo era homem e Deus; mas Jesus era o homem; e Cristo, o espírito divino que habitou seu corpo durante o seu ministério. Acreditavam que Cristo inspirou seus ensinamentos, mas abandonou seu corpo antes da morte.
Claro é que havia aqueles que não acreditavam que a morte de Jesus acarretou a salvação do mundo. Outros acreditavam que a sua morte não estava relacionada à salvação. Para outros tantos cristãos, Jesus nunca morrera.
O leitor pode, agora, estar-se perguntando como poderia haver tanta diversidade de crenças e opiniões, àquela época? Decerto, os textos que compõem o Novo Testamento começaram a ser escritos anonimamente por volta do século II. No entanto, os cristãos daquele tempo não podiam ainda ir à fonte para se certificar de qual dentre as muitas crenças que circulavam era a correta, simplesmente porque não havia Novo Testamento. Os textos ainda não haviam sido reunidos para compor um cânone de Escritura. Em outras palavras, a Bíblia cristã, tal como a conhecemos hoje, ainda não existia.
Também, à época, circulavam outros escritos (Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipses) produzidos por pessoas que se declaravam os apóstolos de Jesus. Cabe observar, a essa altura, que os quatro evangelhos que viriam a compor o Novo Testamento foram todos escritos anonimamente. Tempos depois é que lhes foram atribuído autoria. Sabemos, com Bart, que os nomes que constam no cabeçalho dos quatro evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas, João) não correspondem aos verdadeiros apóstolos de Cristo. Tais nomes foram dados por seus autores com vistas a angariar prestígio e reconhecimento. Os quatro evangelhos são, portanto, produto de falsificação, prática muito comum naqueles tempos.
Outros evangelhos também estavam disponíveis, como um texto cuja autoria fora atribuída a Simão Pedro, outro cuja autoria fora atribuída a Maria Madalena; outro ainda que teria sido escrito pelo apóstolo Filipe; e outro atribuído ao irmão gêmeo de Jesus, Dídimo Judas Tomé.
É claro que alguém, que gozava de poder social e político, decidiu quais seriam os evangelhos, dentre os muitos disponíveis, que viriam a compor o cânone. É desse tema que trataremos neste texto.
Quando, finalmente, o Novo Testamento estava acabado, a coletânea reunia Atos, que são relatos sobre o que fizeram os discípulos após Jesus ter morrido. No entanto, havia outros Atos disponíveis nos primeiros anos da igreja. Entre eles, havia os Atos de Pedro e de João, os Atos de Paulo, e os Atos da companheira de Paulo, Tecla. Eles não entraram a fazer parte da coleção de livros da Bíblia, porque quem atuou na produção do cânone julgou que tais textos não correspondiam à visão proto-ortodoxa de uma elite.
Sabemos que Paulo, que de perseguidor dos cristãos, passou a ser seu principal defensor e propagador de suas crenças, supostamente escrevera treze epístolas. Os estudiosos concordam que Colossenses e Efésios não são de autoria de Paulo. Embora ele tenha escrito 1 Tessalonicenses, não escreveu 2 Tessalonicenses, cujo autor pseudônimo tomara a primeira como fonte. O conteúdo de 2 Tessalonicenses é bastante diferente do conteúdo de 1 Tessalonicenses. Elas se assemelham quanto ao estilo da escrita, mas veiculam conteúdos ideológicos diferentes.
Há outras cartas atribuídas a Paulo, como uma que ele enviara ao filósofo Sêneca, que não constam do cânone. Também não figuram na Bíblia cristã uma carta considerada de autoria de Paulo escrita à Igreja de Laodicéia, bem como 3 Coríntios (lembre-se de que na Bíblia só se encontram 1 e 2 Coríntios).
Ehrman dá-nos a saber o desfecho do longo processo de fabricação da Bíblia:

“Hoje, sabemos que em alguma época, em algum lugar, todos esses livros não-canônicos, assim como muitos outros, foram reverenciados como sagrados, inspirados e escriturais. Alguns deles nós temos hoje; outros, conhecemos apenas pelo nome. Somente 27 dos livros cristãos primitivos foram enfim incluídos no cânone, copiados por escribas através dos tempos, finalmente traduzidos [para o português], e agora estão nas estantes de praticamente todos os lares [do Brasil].”
(p. 21)


                2. O estabelecimento do cânone


Houve várias tentativas de estabelecimento de um cânone de Escrituras. Não me será possível discorrer sobre elas aqui. Nesse tocante, destacarei tão-só o papel decisivo que exerceram dois líderes da Igreja, no fim do século II e início do século III, chamados Irineu e Tertuliano. Irineu fora o fundador da teologia cristã e combatente contumaz das heresias cristãs. Vale lembrar que hereges eram aqueles cujas visões teológicas divergiam da visão proto-ortodoxa de uma pequena elite, mas originalmente, do grego haeresis, heresia significava “escolha”, “opção”. Tertuliano fora um apologista cristão que travou contendas com cristãos displicentes. Também ele estava interessado em fazer predominar a visão proto-ortodoxa sobre as demais.
Coube a essas duas personagens da História defender a ideia de que uma “regra de fé” já havia sido estabelecida pelos apóstolos de Jesus e que essa regra deveria ser acolhida por todos os cristãos. Essa regra, ao mesmo tempo em que passou a constituir a base da ortodoxia, rejeitava os outros pontos de vista comuns à época. Vale dizer que a autoridade dos apóstolos é que deveria ser o critério para estabelecer as crenças verdadeiras. Basicamente, a regra tornou predominante as crenças segundo a quais só há um Deus, ele é o criador do mundo, e é humano e divino. A crença ortodoxa faz ver, hoje, para nós, como a imagem de Deus não é senão a imagem que o homem faz de si como ser divino. Sabe-se que o Deus judaico-cristão é um Deus antropomórfico, ou seja, definido com propriedades ou predicativos humanos (bom, amoroso, justo, fiel, etc.). A observação desse fato talvez tenha levado Feuerbach, em seu principal trabalho a Essência do Cristianismo, a escrever que ”Deus é o espelho do homem” (p. 89), ou ainda que “Deus é a essência do homem mais subjetiva, mais própria, separada e abstraída (...) quanto mais humano for o Deus, tanto mais despoja-se o homem da sua subjetividade, da sua humanidade, porque Deus é em e por si o seu ser exteriorizado” (p. 59). Assim, com Feuerbach, podemos desfazer a inversão ideológica operada na forma “O homem foi criado a imagem e semelhança de Deus”, dando a expressão um sentido que exprime a verdade, ou seja, o modo como se dá a relação entre o homem e Deus: “Deus foi criado a imagem e semelhança do homem”.
Os Credos Apostólico e Niceno, escritos no século IV foram determinantes para oficializar aquelas crenças. A essa altura, os líderes proto-ortodoxos detinham um conjunto de crenças, outorgadas pela autoridade do bispo, e se puseram a fazer desaparecer aquelas que julgavam estar erradas.
O estabelecimento do cânone não se deu por critérios explícitos e bem definidos, embora haja relatos que permitem entrever alguns critérios que eram importantes, a saber: a antiguidade dos textos, a catolicidade, a apostolicidade e a ortodoxia.
Segundo o critério da antiguidade, os textos, para serem aceitos num cânone, deveriam ter sido escritos nas primeiras décadas da Igreja cristã; portanto, quanto mais antigos fossem maiores seriam as chances de eles entrarem para o conjunto de textos reconhecidos como expressão da fé verdadeira. Pelo critério da catolicidade, rezava-se que apenas os textos utilizados pela igreja poderiam vir a compor o cânone; os que não fossem, embora pudessem ser admirados, não poderiam integrar a classe dos textos seletos. A apostolicidade determinava que somente os textos escritos pelos apóstolos ou por amigos destes é que podiam compor o cânone. Era o critério mais importante e explicava por que os Evangelhos passaram a ser chamados por nomes específicos. Não se aceitava que os textos fossem escritos por pessoas anônimas. Sucedia, contudo, que as autoridades da época não eram instrumentalizadas para estabelecer quem eram os verdadeiros autores das obras. Serapião, bispo proto-ortodoxo da cidade de Antioquia, na Síria, por exemplo, decretou que o Evangelho de Pedro não tinha sido escrito por ele mesmo Pedro, muito embora o texto alegasse ter sido Pedro seu autor. Serapião não dispunha dos critérios de que, hoje, estudiosos eminentes da Bíblia se valem para estudar e certificar-se da originalidade dos textos. Ele apenas o fizeram baseando-se na ideia de que os textos rejeitados não expressavam a visão ortodoxa aceita.
Finalmente, pelo critério da ortodoxia, Serapião rejeitou textos que não se afinavam com o ponto de vista considerado ortodoxo. Concluiu que, se não são ortodoxos, tais textos não haviam sido escritos pelos apóstolos. Somente textos considerados apostólicos podiam ser aceitos.
Passaram-se pelo menos trezentos anos de debate até que o cânone começasse a ser definido. Evidentemente, muitos livros considerados quase ortodoxos e que alegavam ter sido escritos por um apóstolo de Jesus, não obstante, não se tornaram candidatos à inclusão no cânone, entre os quais estavam o Apocalipse de Pedro, a Epístola de Barnabé e 1 Clemente.
Coube a Atanásio, bispo de Alexandria e inimigo da heresia ariana, cujos textos defendiam a fé proclamada pelo Concílio de Nicéia, em 325 d.C., determinar os 27 livros que conhecemos hoje como representativos do cânone, em 367 d.C. Não obstante, a determinação de Atanásio, ela não pôs fim às disputas em torno de quais textos deveriam compor o cânone. Por muitos séculos, várias igrejas adotaram listas um pouco diferentes, algumas das quais incluía 3 Coríntios como canônico. À medida que avançava o século V, o conjunto de textos determinados por Atanásio como canônico obteve unanimidade. Ensinará, pois, Ehrman, em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010):

“(...) Esses livros, e apenas eles, foram copiados por escribas que reproduziram as Escrituras durante toda a Idade Média. E, embora nenhum concílio mundial da Igreja tenha ratificado a lista de Atanásio por mais de um milênio, o uso pelo povo forneceu uma espécie de ratificação de fato, até o momento da invenção da imprensa. Quando passou a ser mais fácil imprimir bíblias, depois da invenção dos tipos móveis, no século XV, o cânone já estava estabelecido. A partir de então não havia dúvidas quanto a quais livros deviam ser incluídos, e em qual ordem. Hoje, onde quer que você compre um Novo Testamento, será sempre o mesmo conjunto de livros, na mesma sequência”.
(p. 239)

O cânone resultou de um processo lento e muitas vezes penoso, já que, em torno dele, houve muitas manifestações de pontos de vista discordantes, que foram debatidos, aceitos e eliminados.

“Seja lá o que os teólogos cristãos e outros crentes sustentem sobre o ímpeto e a orientação divina por trás da canonização das Escrituras, também está claro que foi um processo bastante humano, determinado por um grande número de fatores históricos e culturais”.
(p. 240)


3. Ponderações finais



Por um instante, eu estava disposto a cessar de escrever este texto, depois que fui advertido de que minha insistência em trazer à tona minhas posições ateístas estava tornando-se enfadonha. E, para prová-lo, alegou-se que algumas amigas atéias não mais sinalizam seu interesse por minhas publicações. Todavia, entendi que, se isso for verdade, ainda assim não deve ser razão suficiente para demover-me da empresa que considero válida: trazer à consciência dos não-religiosos fatos importantes sobre um fenômeno contra o qual alguns se opõem; e sobre o qual outros tantos lançam descréditos.
Sinto ser necessário lembrar que não posso ser comparado a certos ateus que se limitam a expor mensagens jocosas para ridicularizar as crenças religiosas. Não só porque discordo de que seja essa uma prática válida para afirmar direitos e atrair reconhecimento pela maioria da sociedade, como também porque tenho insistido em que minhas posições ateístas são fundamentadas em estudos que empreendo habitualmente. Tornei-me ateu porque, através da leitura de textos filosóficos, enrijeci as raízes de meu ceticismo. A filosofia abriu-me as portas para conhecer sobre a literatura ateísta, mas antes de tomar conhecimento dela, já cultivava em meu espírito fortes suspeitas sobre o valor dos textos tidos como sagrados e legitimados como meios para orientação da conduta dos cristãos. Não me importava muito com a crença de que eles teriam sido escritos por meio da inspiração divina. Para mim, isso não fazia muito sentido, porque sabia que cada uma das três grandes religiões monoteístas, a saber, o judaísmo, o islamismo e o cristianismo, tinham seu próprio livro. Teria Deus inspirado todos três? Se sim, porque diferem entre si em ensinamentos fundamentais? Por que, então, as três tradições seguiram caminhos diferentes? Para os muçulmanos, Deus inspirou a Maomé, profeta a quem coube transmitir os ensinamentos divinos. Para os Cristãos, coube a Jesus reeducar aqueles que se desviaram da Lei de Deus, reformando-a em alguns pontos e reinterpretando-a com uma retórica pacifista. Já os judeus acreditam que Deus fizera um pacto eterno com o patriarca Abraão. Os judeus negam ter sido Jesus o Messias. E as várias correntes judaicas divergem quanto a temas como vida além-morte e Ressurreição.
Da mesma forma que os religiosos têm o direito de estampar suas mensagens cristãs, também eu tenho o direito de expor minhas posições ateístas. E da mesma forma que a grande maioria é indiferente a elas, também eu o sou em relação às deles. A indiferença mútua, portanto, serve para evitar o conflito. A mim, pouco importa que as pessoas continuem a falar em Deus, a reproduzir os discursos que aprenderam na igreja e que vieram a moldar sua consciência de mundo, suas formas de perceber e se relacionar com os acontecimentos da vida, desde que esses acontecimentos toquem à esfera subjetiva. No entanto, se me é negado o direito de expor minhas posições, porque supostamente elas incomodam, ou se as posições religiosas venham a imiscuir-se (como o têm feito) na direção do governo deste país, então não me privarei de manifestar minha oposição. E me oponho sempre que não silencio em face da influência que as crenças de líderes religiosos exercem sobre a decisão política sobre os rumos da sociedade.
Eu escrevo não com o objetivo de dissuadir ninguém de suas crenças religiosas. Escrevo porque sinto prazer em fazê-lo e porque cuido ter talento suficiente para tanto. Dedico-me à escrita como quem se dedica a fazer crochê: com vagar e paciência, abstraindo-se de tudo e de todos. Tendo apenas a solidão como berço que anima os pensamentos. Minha escrita é a forma que desenvolvi para resistir ao mundo. Pela escrita, eu intervenho, ainda que anonimamente, nas formas como a sociedade em que vivo e atuo como cidadão e educador me atinge. A vida social nos interpela, mas, infelizmente, só é dado responder aos que tiveram o privilégio de ter alcançado uma escolarização plena e de ter conquistado o direito ao acesso aos livros. Meu compromisso como educador é contribuir para universalizá-lo. A escrita que desenvolvo é minha defesa contra o mundo. Apreciem-na ou não, vale-me mais a aventura do que a recompensa. Que eu permaneça para muitos inaudível e que um dia eu seja assim sepultado. Até lá usufruo o prazer que mo permite o talento que desenvolvi durante anos, ousando escrever, ousando ler mais e escrever mais, listando palavras que consultava no dicionário, empenhando-me na labuta diária que consiste em disciplinar os pensamentos ávidos e indistintos que se vão acumulando na alma, na aridez do terreno da modalidade escrita.

A minha vida é um suspiro de palavras!
(BAR)