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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

"A crença no milagre conduz ao ateísmo e não à fé." (Spinoza)



                           
                              A corrupção intelectual pela fé


Prejuízos acarretados pelo pensamento religioso:

1. Conformação do pensamento ao sistema de crenças;
2. Dificuldade em elaborar ou acompanhar raciocínios que contrariam as crenças estabelecidas no sistema doutrinário;
3. Dependência emocional;
4. Incapacidade de exercer autonomia intelectual.

A experiência que vivi recentemente parece confirmar esses quatro prejuízos. Quando me esforçava para mostrar a incongruência entre a crença de que existe o diabo e a crença de que Deus existe, meu interlocutor foi incapaz de acompanhar-me o raciocínio, muito simples, por sinal. O diálogo sucedeu mais ou menos assim:

Eu – Deus criou tudo que há, digo, o mundo, o universo. Deus é o princípio e o fim de todas as coisas. Antes do universo, havia apenas Deus. Está de acordo?

A – sim.

Eu – Se Deus criou tudo que há (o mundo e o universo), de onde surgiu o diabo?

A – o diabo é um anjo decaído do céu.

(note que não perguntei sobre a identidade do diabo, quem ele é. Perguntei sobre sua origem)

Eu – Não, isso é parte de uma narrativa que nos foi contada nas vivências de nossa fé. Quero dizer como ele passou a existir, se Deus criou tudo que há?

(meu interlocutor foi incapaz de acompanhar meu raciocínio; precisei, então, prosseguir...)

Eu – Bem, se Deus criou tudo que há, é correto concluir que Deus criou o diabo. Você nem nenhum outro cristão aceitariam essa conclusão, é claro.

(prossegui...)

Eu – Mas se o diabo existia junto a Deus e independente de Deus (por alguma razão inexplicável), por que Deus não foi capaz de destruí-lo? Se Deus é todo-poderoso e bom, não deveria ele ter dado cabo do diabo, cuja existência só se destina a fazer o mal?  - e é claro que Deus não é autor do mal e nem pode ser conivente com ele.
Meu interlocutor ficou a me olhar com certo espanto (não sei o que lhe ocorria dentro da cabeça). Não sei se minha tentativa de esclarecê-lo sobre o absurdo da manutenção de duas crenças conflitantes entre si (a de que Deus existe e a de que o diabo também existe) logrou êxito.
Fico pensando que, embora haja certo distanciamento intelectual entre mim e meu interlocutor, tanto eu quanto ele somos seres humanos capazes de usar nossa razão para operar raciocínios dedutivos simples.
Quem acredita num deus todo-poderoso (ainda que essa ideia acarrete outros sérios problemas de lógica) e, ao mesmo tempo, bom não pode, por coerência, acreditar em possessões demoníacas. Afinal, se possessões demoníacas são possíveis, então o demônio existe e Deus é incapaz de extingui-lo. Logo, Deus não é onipotente. Se é possível ao demônio apossar-se de nossos corpos, a fim de nos prejudicar, e Deus o permite, então Deus não é bom. É forçoso concluir que as crenças no diabo e em Deus são inconciliáveis. Se alguém crer que um Deus tal como é representado pela teologia cristã existe, não pode acreditar na existência do diabo.
Eu defendo que o problema maior da fé é que ela sustenta certo número de crenças que se sedimentaram na mente de uma pessoa e que se conservam ao abrigo da reflexão. Ou seja, esse conjunto de crenças se engessa e não é, em momento algum, submetido ao crivo da crítica (entenda-se “ao exame racional”). Por outro lado, também defendo que a fé se sustenta  não só na ignorância do fiel sobre a História de sua própria fé (ele desconhece, em geral, como o seu livro sagrado veio a se tornar um livro; como sua religião se constituiu através dos séculos, etc.), mas também sobre as formas de funcionamento do mundo. Não pretendo aqui demonstrar de que maneira o conhecimento histórico sobre a religião cristã contribui para a formação de uma consciência crítica. Mas eu acredito que saber coisas do tipo “como se deu a constituição do cânone do Novo Testamento”, “que os quatro evangelhos que entraram para o cânone não foram redigidos pelos supostos apóstolos de Jesus”, “que tais escritos que hoje figuram em nossa Bíblia são produtos de um trabalho incansável de copistas (que produziram cópias de cópias) e que os originais se perderam”, etc, levanta, ao menos, uma suspeita quanto à credibilidade dos registros dos atos de Jesus, e  também quanto ao valor de verdade das lições teológicas que encontraram alicerce nesses textos falsificados. Acrescente-se a isso o saber sobre a existência de milhares de cristianismos primitivos, como as seitas gnósticas, que competiam com a forma de cristianismo ortodoxo que ia se desenvolvendo e que acabou sendo a forma vitoriosa.
O religioso acredita, por exemplo, em milagres, mas ignora que, ainda que ore, uma pessoa cujas pernas foram amputadas não terá seus membros originais restituídos (digo, ele poderá orar e não verá com os próprios olhos as pernas dessa pessoa crescendo novamente com perfeição, como acontece com o rabo da lagartixa, que se regenera, depois de ser cortado). Mas ele também precisa ignorar, por exemplo, que a natureza não é perfeita. Na verdade, ele se alimenta da ilusão de que ela seja perfeita em algum sentido. No entanto, os furacões destroem cidades e matam pessoas inocentes. Um meteorologista lhe daria uma explicação adequada sobre o que são os furacões e sobre suas causas. Se ele perguntasse a um padre como explicar que existam furacões num mundo criado por um Deus bom, o máximo que poderá ouvir é “isso é um mistério”. É claro que não há mistério nenhum. Um mundo com fenômenos naturais tão nocivos e desastrosos, repleto de doenças – um mundo em que as bactérias é que predominam, quantitativamente, sobre todas as outras formas de vida mais complexas, causando-lhes sérios danos – não pode ser um mundo criado por uma divindade boa. Isso é uma evidência inconteste de que não existe deus nenhum. Olhe para o mundo! Leibniz estava errado: não se trata do melhor dos mundos possíveis. Qualquer um de nós, sem muito esforço poderia imaginar um mundo melhor. Por exemplo, um mundo onde as pessoas nascessem sem doenças congênitas seria melhor do que este mundo em que crianças (milhares delas) nascem com doenças congênitas. O sofrimento dessas criaturas inocentes é injustificável. A implicação disso é clara (ou deveria ser). Se Deus é o responsável pela encarnação de cada um de nós (penso que não seria errado assumir, em consonância com o pensamento cristão, a crença de que Deus se encarrega de infundir cada alma num corpo, destinando o conjunto à vida, quando da concepção, por um ato sexual entre um homem e uma mulher), por que razão permite que crianças nasçam com doenças congênitas. Se ele criou tudo que há, por que razão encheu este planeta de bactérias e vírus (como o da AIDS), dos quais nem as crianças pequenas estão livres?  Crenças religiosas não descrevem nenhum estado-de-coisas do mundo.
Eu acredito que, se fossem proporcionadas às pessoas que creem em Deus e participam das cerimônias de sua religião, oportunidades de estudar seriamente seus livros sagrados (a Bíblia, em nosso caso) - não com a supervisão de um sacerdote ou líder religioso, cuja intenção, provavelmente, seria moldar o leitor à leitura devocional (e não crítica), mas com o acesso à leitura de outros livros, escritos por especialistas na história do cristianismo e na Bíblia, e que contribuiriam para iluminar esse estudo -, elas poderiam, ao menos, tirar conclusões por si mesmas e decidir se deveriam permanecer fiéis à crença na existência de um Deus, que, não obstante, veriam, sem muitas dificuldades,  tratar-se de uma construção sócio-histórica e ideológica, ou se deveriam rejeitá-la de algum modo.
Por incrível que pareça, há quem acredite que a amputação de pernas possa ser uma bênção. Não há contra isso raciocínios eficazes. O fato de uma pessoa acreditar que alguma forma de sofrimento, de dano à saúde, ao bem-estar, à vida possa significar algum tipo de benefício para o paciente (no caso, um amputado) é um sinal claro do efeito da contaminação do vírus da fé. O sofrimento passa a ser um valor, ou seja, passa a ser útil. Diz-se comumente que o sofrimento acarreta alguma modificação positiva no modo de ser de uma pessoa. Eu diria que isso não é verdade. Há pessoas que, depois de muito sofrer, se tornam amarguradas, se deprimem, se revoltam; outras ainda tentam suicídio. O sofrimento jamais pode ser pensado como valor, como útil ou benéfico, em algum sentido. Todo esforço vital de uma criatura com algum grau de consciência, dotada de um sistema nervoso, será no sentido de evitar o sofrimento. A menos que você seja um masoquista, não encontrará benefício nenhum em sofrer. Mas, é claro, que não escapamos ao sofrimento em alguma medida. O sofrimento tece as malhas da existência. Todas as religiões o reconhecem como um fato incontestável. O problema é que o cristianismo, que se alicerça na crença de que Cristo sofreu e morreu para a salvação de toda a humanidade, ensina que há valor no martírio, no sofrimento. Aos olhos dos cristãos, o sofrimento que se abate sobre um indivíduo deve ser uma razão para que ele não abandone a fé ou a questione. O sofrimento, segundo essa visão indecente, deve justificá-la. A lógica, subjacente a esse ensinamento é: quanto maior seu sofrimento maior deverá ser a sua fé. Se você está sofrendo é sinal de que sua fé está frágil e precisa ser fortalecida. O sofrimento é um sinal para que você se volte para Deus, se resigne ao seu poder; demonstre a ele que você continua confiante na providência dele, apesar de tão pungente sofrimento que sobre si tenha se abatido . Na lógica com que se busca encerrar a consciência humana nos calabouços da fé, o sofrimento é um valor; o sacrifício é honroso. Ou, o que dá no mesmo, o sofrimento é um artifício pedagógico aplicado por Deus para que você "se apresente a ele e se prostre perante sua majestade". Um claro ensinamento formador de consciências submissas, dependentes, aviltadas. 
Ontem mesmo assisti, no programa Esquenta, uma moça cujos membros inferiores foram amputados. Ela é uma atleta paraolímpica, que foi medalhista e conseguiu dar uma casa para a sua mãe. Ela agradecia a Deus a sua condição, porque acreditava que, graças a essa condição, ela pôde realizar o sonho de presentear a mãe com uma casa. Ora, não lhe passou pela cabeça o fato de que era ela mesma a única responsável pelo seu sucesso. Não se deu conta de que seu talento para arremessar discos independe de sua condição como portadora de uma deficiência. Provavelmente, ela conseguiria o mesmo êxito se tivesse as duas pernas. Seu talento  se atualizou não porque ela se tornou uma cadeirante. Seu sucesso aconteceria sendo ela deficiente ou não. Bastaria treinar, se dedicar como todo atleta. Nenhum sucesso compensa as dificuldades que têm de enfrentar pessoas que vivem na condição em que ela vive. Não pode ser ele razão suficiente para preferir a condição de deficiente físico a uma vida sem as dificuldades decorrentes desta condição. Há muitas pessoas que enfrentam tais dificuldades e são desprovidas de seu talento. Possivelmente, possuam outros e o expressarão a fim de superar suas dificuldades.
O valor não está em sofrer, mas na forma como encaramos o sofrimento e nos meios de que nos valemos para suportá-lo ou superá-lo. O valor está no que faremos com os efeitos do sofrimento em nossa vida. Algumas pessoas, como a medalhista a que me referi, não se resignam a chorar o infortúnio de ter suas duas pernas amputadas. O valor está na força com que levamos adiante a vida, apesar dos sofrimentos, às vezes, incontáveis. A psicologia tem um nome para isso: resiliência.
A alienação religiosa se manifesta também nesta outra maneira de interpretar os fatos da vida. A pessoa crê que não é a única responsável pelos seus feitos e passa a atribuir a responsabilidade a um Outro que a transcende (Deus) e se resigna à crença de que esse Deus lançou mão do recurso ao infortúnio, ao sofrimento para beneficiá-la. Novamente, ao sofrimento se agrega valor. O valor humano é mascarado. A verdade é que essa pessoa, como tantos milhares de pessoas, foi capaz de, apesar das dificuldades que teve de enfrentar, superá-las. É isso que devemos valorizar e admirar. Nada disso tem a ver com um propósito divino. Acho extremamente curioso o fato de os religiosos, ao mesmo tempo em que se julgam sabedores da "verdadeira" natureza de Deus, de suas intenções e desejos, quando não encontram, no corpo de crenças em que seu discurso ganha forma e poder, as razões para justificar certas ocorrências do mundo que perturbam o que pensam saber a respeito de Deus, limitam-se a dizer coisas como “Deus age de modo escuso”, ou “não são  claros os seus propósitos”. É nessas ocasiões que a imaginação mostra sua majestade: qualquer um pode especular sobre quais são as intenções de Deus, os modos como ele se relaciona com o mundo, como ele se revela, etc. A história dos cristianismos é uma prova disso. Havia, nos séculos II e III a.C, grupos cristãos que acreditavam que esse mundo fora criado por uma divindade má ou inferior; que o Deus revelado por Cristo nada tinha a ver com a criação do mundo. Dessa forma, eles buscavam explicar por que havia tanto mal e sofrimento num mundo criado por um Deus todo-poderoso e bom (ainda vou escrever um texto tratando deste assunto). O leitor poderá tomar conhecimento dele no livro Evangelhos Perdidos, de Bart. D. Ehrman. 
Creio muito interessante saber como grupos cristãos gnósticos, a fim de sustentar sua fé, lançavam mão de argumentos fantásticos e bem afinados com os seus pressupostos de fé. Assim é que, ao invés de concluir pela inexistência de Deus (coisa inaceitável, evidentemente), recorriam a outras convicções, como a que mencionei. Certos grupos gnósticos assumiram a crença de que este mundo não fora criado pelo Deus revelado por Cristo, mas por uma divindade inferior ou má. Vejamos este trecho em que Ehrman nos ensina sobre o que os gnósticos pensavam sobre nossa natureza e sobre nossa existência neste mundo:

“(...) não pertencemos a este mundo terrível. Viemos de outro lugar, o reino de Deus. Fomos capturados aqui, aprisionados e quando aprendemos quem realmente somos e como escapar, poderemos então retornar para nosso lar celestial”.
(p. 173)



Pelo menos, os gnósticos reconheciam quão trágica é a vida neste mundo, mas não explicavam (até onde eu sei) por que o Deus verdadeiro, que se encarnou num homem a quem tomou para filho, permitiu que uma divindade ignorante e inferior criasse o mundo e aprisionasse nele os seres humanos (e os outros animais também é claro). Penso que não é custoso concluir que, se Deus quisesse realmente fazer-se conhecido da humanidade, se apresentaria de modo inequívoco, pondo a nu suas intenções, esclarecendo a todos a sua magnitude,  impedindo, assim, que muitas visões sobre sua natureza, sobre seus atos e ensinamentos se proliferassem e tomassem formas até conflitantes, ao longo dos séculos.
Se há beleza no trágico, isso se revela na capacidade de os seres humanos trabalharem no sentido de produzir os recursos que os ajudam a superar seus sofrimentos. Evoluímos para sobreviver mais e melhor a uma existência absurda e muitas vezes hostil. Buscamos sentido num Universo sem sentido. Eis a beleza!




sexta-feira, 14 de setembro de 2012

"Apenas o conhecimento salva" (BAR)





O percurso da lucidez
Para a construção de uma consciência
emancipada da religião


 
Este texto é dedicado à exposição do percurso intelectual que todo aquele que esteja interessado no esclarecimento sobre os fatos e as bases ideológicas que tornam a tenacidade de suas crenças religiosas consequência do obscurecimento da consciência e da ignorância alimentada pelos outros significativos que estão na origem e no curso ininterrupto de nossa socialização (pais, avós, tios, professores, sacerdotes, etc) pode trilhar.  Decerto, as expressões “obscurecimento da consciência” e “ignorância” podem soar ofensivas a potenciais leitores cristãos deste blog; no entanto, em tempo, se verá que elas são apropriadas para expressar o efeito de um longo processo de formação de consciências dependentes engendrado pelos mecanismos doutrinários religiosos.
Aproveito o ensejo para apresentar o primeiro livro de nosso percurso, do professor e ex-sacerdote católico, Marcelo Da Luz – Onde a religião termina (2011). Nesta obra, o leitor encontrará uma série de temas implicados no fenômeno religioso, muito embora o autor destine suas críticas majoritariamente à tradição cristã, em especial ao catolicismo.  Entre os temas, se acham as falácias do discurso religioso, o antiuniversalismo das religiões, a delegação à autoridades religiosas da responsabilidade pela interpretação do mundo, o mito de Jesus Cristo, “Deus” encarnado, a santidade como ideal nocivo à vida humana.
Para que tenhamos a noção do quão invasivo é o trabalho de lapidação da consciência pela prática de doutrinação religiosa, vale atentar para o seguinte excerto colhido do capítulo terceiro, no qual Marcelo Da Luz trata do fenômeno a que ele chama “terceirização das escolhas existenciais”:

“Este autor, ex-pregador do evangelho, admite ter trabalhado ao modo de lavador de cérebros. Desde a catequese mais elementar até os enunciados prenhes de conteúdos teológico-espiritual, todo o trabalho do educador religioso consiste na progressiva instalação de sinapses neofóbicas em si e nos ouvintes. Formação religiosa é expressão a ser tomada literalmente: os indivíduos têm suas mentes presas à fôrma dos dogmas repetidos ad nauseam. Tal formação os impede de olharem para o fundo de si mesmos, sem medos, disfarces, escapismos, fantasias ou regressões infantis, e os transforma em robôs existenciais, cumpridores de ritos, repetidores de fórmulas e antagônicos a qualquer outra nova perspectiva.”

(p. 74)


Particularmente interessante é ver que o autor, em vários momentos, reconhece ter exercido o papel que ora trata de criticar – o que prova ser possível aos mais ferrenhos doutrinados a emancipação intelectual da religião, não sem antes superar uma série de fobias.  Ao se ocupar da natureza da consciência religiosa, o autor argumenta que ela é produzida para tornar-se infensa à argumentação (o que não surpreende, já que disso depende a sua conformação e obediência):

“A perspectiva antiuniversalista da consciência religiosa transforma-a num ser defensivo, cuja fortaleza não é o exercício argumentativo, mas a pseudossegurança do dogma. Uma desconcertante inversão ocorre no processamento mental do Homo religiosus: a crença (ideia a priori) e o símbolo substituem a experiência da realidade. Essa inversão é notória, por exemplo, na obsessão dos católicos pelos sacramentos, rituais em que os supostos símbolos da vida substituem o próprio viver. Desse modo, os religiosos passam a evitar uma série de oportunidades e experiências, levados pelo injustificável temor de ver os fatos contradizerem suas crenças sobre a realidade”.

(p. 178)
(grifo meu)

No tocante à natureza simbólica da religião, remeto o leitor ao livro de Rubem Alves O que é religião? (1999). Limito-me a notar que o símbolo pode recobrir outras formas sígnicas (como os signos linguísticos). No entanto, em stricto sensu, o símbolo é um objeto material ao qual se atribui uma ideia abstrata. É nesse sentido que ele foi empregado pelo autor. Assim, por exemplo, a cruz, no catolicismo, simboliza a “salvação” (pelo menos era esse o significado de que falava o padre durante a missa). Uma consulta no Dicionário de Símbolos  mostra-nos que as noções de “sofrimento” e “triunfo” estão entrelaçadas em sua simbologia. De qualquer modo, sempre achei indecoroso associar à cruz a ideia de “salvação” ou “triunfo”, por razões que não carecem ser explicitadas, pois óbvias. Os judeus, até onde eu sei, me parecem mais sensatos, ao associar à cruz a ideia de morte ou maldição. Decerto, a cruz é, na perspectiva dos judeus, um escândalo. Pode-se imaginar quão incompreensível é para um judeu a adoração de um homem pregado numa cruz.
Importa-me, a esta altura, fazer ver ao leitor que, uma vez tomando o símbolo o lugar das vivências da realidade, o crente religioso é envolvido numa atmosfera de fantasia. Assim, a hóstia e o sangue não apenas simbolizam, respectivamente, o corpo e o sangue de Cristo, mas são o próprio corpo e sangue de Cristo. Por fim, a ideia de que os fatos contradizem as crenças não é levada em conta pelos religiosos. E não é porque eles resistem a confrontar suas crenças com as ocorrências do real. No que toca à noção de crenças, particularmente, de crença religiosa, a contribuição de Sam Harris, em A morte da fé (2009), não pode ser ignorada. O autor destina um capítulo para tratar da “natureza da crença”. Nele, Harris definirá crença, à luz de uma abordagem neurocientífica. Leiamos, com atenção, o excerto em que o autor apresenta-nos a definição de crença:

“(...) parece incontestável afirmar que todos os estados de ordem cognitiva mais elevada (dos quais as crenças são um exemplo) são de certa forma derivados da nossa capacidade de ação. Em termos adaptativos, a crença foi extraordinariamente útil. Afinal, é acreditando em várias premissas sobre o mundo que podemos prever eventos e considerar as consequências prováveis de nossas ações. As crenças são princípios de ação: seja lá o que forem em termos cerebrais, elas são os processos pelos quais o nosso entendimento do mundo (seja correto ou equivocado) é representado e disponibilizado para orientar o nosso comportamento”.

(pp. 58-59)
(grifo meu)

Vale acompanhar a argumentação do autor que se orienta pela intenção de nos fazer entender, ao cabo, que as crenças religiosas não representam nenhum estado-de-coisas atestado no mundo. Assim, ao tratar das convicções, o autor nos ensina que “no momento em que admitimos que nossas convicções são tentativas de representar estados do mundo, percebemos que elas devem se relacionar corretamente com o mundo para serem válidas” (p. 71).
Que os seres humanos sejam resistentes a mudar de ideia, a assumir outras perspectivas contrárias às que vêm mantendo durante muito tempo é fato já reconhecido em psicologia e neurociência. Lembra Harris que “somos conservadores nas nossas convicções, no sentido de que não acrescentamos nem subtraímos algo do nosso estoque delas sem que haja razão para isso” (p. 69). Claro é que há pessoas que abandonam suas convicções ou crenças mais arraigadas, mas é preciso que se sintam motivadas a fazê-lo; é preciso que isso lhes represente algum benefício.
Harris prosseguirá nos mostrando que, epistemologicamente falando, toda crença ou convicção precisa representar o nosso saber a respeito do mundo, o que implica crer que uma afirmação seja verdadeira, mas crer na veracidade de uma afirmação não é o mesmo que desejar que ela seja verdadeira. E, como ensina Da Luz, não é porque desejo que seja verdadeira que ela será verdadeira.
Convém, agora, retomar a obra de Marcelo Da Luz.

Na seção intitulada de A indústria da dependência, ainda no capítulo terceiro, o autor refere-se às autoridades religiosas como “funcionários do sagrado” e delas no diz o seguinte:

“O funcionário do sagrado possui, supostamente, o conhecimento para se chegar à salvação, e por suas mãos passam os poderes de perdoar, abençoar, condenar e explicar, em nome de “Deus”, as vicissitudes da vida humana. Sequiosos, devotos acorrem à recepção dos serviços sagrados, garantia de salvação. Os planos estão já revelados, as interpretações oficiais, estabelecidas; os modelos a serem seguidos, disponíveis; os meios necessários, instituídos. Ao fiel basta aquiescer a essa ordem de coisas. Nesse esquema, o poder é exterior ao indivíduo, a salvação vem sempre de fora. O crente não tem outra opção senão terceirizar as escolhas existenciais”.
(ênfase minha)

(p. 79)


O leitor interessado na leitura deste livro tomará conhecimento dos bastidores da fé; das estratégias discursivas empregadas no esforço para manipular os fiéis e promover a “lavagem cerebral” em larga escala. E saliento, de passagem, que essa expressão, tão comumente usada nas conversações cotidianas, entre aqueles que se opõem às práticas adestradoras dos “funcionários do sagrado”, foi empregada pelo próprio autor. O livro constitui um cenário de muitas e diversas questões, uma das quais me parece notável e podemos apreendê-la no seguinte passo, em que Da Luz nos ensina sobre a invenção de Satanás:

“As primeiras gerações cristãs reconstruíram o conceito de Satã à imagem de seus principais inimigos: os judeus resistentes à crença em Jesus. Pouco mais tarde, o processo de demonização atingirá também os pagãos, em função da intolerância cristã em relação aos politeísmo e à liberdade de pensamento. Finalmente, Satã será encontrado entre os hereges – cristãos dissidentes cujas diferentes interpretações das mesmas crenças ameaçaram o poder dos clérigos politicamente mais fortes. Do ponto de vista histórico,  a aterrorizante figura do demônio – habitante permanente do imaginário medieval e ainda hoje base do apelo á força presente em muitos discursos cristãos – foi apenas produto da mente sectária, cujo funcionamento enxerga no outro, no diferente e no desconhecido, a ameaça do inimigo mortal”.

(pp. 183-184)
(ênfase no original)


Destaquei em negrito a expressão “do ponto de vista histórico” com a intenção de sinalizar para o fato de que o autor nos fornece uma explicação histórica para o surgimento da figura de Satã e  sua perpetuação no imaginário popular ainda hoje. Assim, a fantasia encontra arreio no real histórico e se despe da veste de “realidade trans-histórica”. Compreendida no âmbito histórico, a fantasia passa a ser plenamente explicável e compreensível. Ao final de cada capítulo, o autor nos oferece um “megaproblema” – a saber, uma questão inquietante sobre a qual ele nos convida a pensar. Destaco o megaproblema do último capítulo do livro (capítulo 17), por acreditar que ele expressa o essencial a respeito do Deus forjado pela tradição monoteísta ocidental:

“A ideia de “Deus” arquitetada pelas grandes religiões é sempre uma interpretação contaminada de antropomorfismos e anseios humanos a respeito da suposta causa primeira. A verdade quanto à identidade do princípio originário do Universo permanece inacessível à experiência terrestre da consciência. Tal verdade independe tanto dos desejos, sonhos e esperanças, quanto do número de crentes. O fato dos credos religiosos exercerem ostensiva influência sobre a vida das pessoas, infundindo-lhes consolo e alento em muitas situações, não os torna verdadeiros em si mesmos. A consolação traz alívio momentâneo, sob o preço do autoengano”.

(p. 351)

Preciso deter-me um pouco neste trecho. Vale notar, de início, que o autor rebaixa Deus à categoria de ‘ideia’, deixando de encará-lo como um ‘ser transcendente’ que pré-existe ao mundo e aos homens e  que os transcende. Deus é produto da mente humana. E nisso estaria de acordo Feuerbach. Aliás, é conhecida a tese do filósofo alemão, segundo a qual Deus não é senão a essência do homem projetada para fora de si. Deus é forjado na cisão do homem em si mesmo. Mais adiante, discorrerei um pouco sobre a contribuição de Feuerbach.
Para bilhões de pessoas no mundo, Deus é a chave do mistério da vida. No entanto, basta prestarmos atenção nos atributos que a definição de Deus encerra para que concluamos, sem muito esforço, que a ideia de Deus recobre a noção de um Ser superior a que se atribuem qualidades humanas, embora superlativizadas. As qualidades de amoroso, bondoso, poderoso, diligente, justo, ciente são caracteristicamente humanas, mas idealizadas numa escala de potência infinita na forma de Deus (daí ser Deus infinitamente amoroso, bondoso, poderoso... e onisciente). A atribuição de qualidades humanas às divindades dá-se o nome de antropomorfismo. Por isso, Deus é que foi criado à imagem e semelhança dos homens, e não o contrário. Vale insistir neste fato!
Também acho que a ponderação que Da Luz faz neste trecho é condizente com a minha atitude em face do Mistério. Como ateu, não pretendo dizer a última palavra sobre o que está na origem e no fim da vida. Eu não sei, mas tenho fortes razões para afirmar não se tratar de um Deus, tal como representado na tradição monoteísta (judaísmo, cristianismo e islamismo).
Prossigamos em nosso percurso.
Trago à cena Ludwing Feuerbach (1804-1872), filósofo alemão do século XIX, cujas ideias exerceram decisiva influência no pensamento de Karl Marx. Tendo em conta o que escrevi a respeito do antropomorfismo do Deus judaico-cristão, cuido ser pertinente referir uma passagem de A Essência do Cristianismo (2009) em que Feuerbach é bastante claro, ao corrigir a inversão ideológica operada pela tradição monoteísta, ao conceber Deus como criador e o homem como criatura:

“(...) a especulação religiosa também considera os dogmas separados do contexto no qual eles somente têm sentido; ela não os reduz criticamente à sua verdadeira origem interna; antes transforma ela o derivado em primitivo e inversamente o primitivo em derivado. Deus é para ela o princípio; o homem vem depois. Assim distorce ela a ordem natural das coisas! O princípio é exatamente o homem, depois vem a essência objetiva do homem: Deus”.

(p. 134)

Neste trecho, percebemos a tentativa de desconstrução da inversão ideológica, que toma Deus como princípio e o homem como derivado; Deus como o criador; e o homem como sua criatura. Mais adiante, Feuerbach considerará a alienação religiosa, quando escreve “(...) o homem cria Deus, sem saber e querer, conforme a sua imagem” (id.ib.). Os homens se alienam no sentido de que, não compreendendo Deus como projeção de sua própria essência para fora de si, entendem-no como um Ser que os transcende, que é exterior e independente.
A essência de Deus é a autoconsciência do homem. Deus é a essência do homem objetivada. Na verdade, a leitura do seu mais importante trabalho A Essência do Cristianismo (2009) nos permitiria saber que Feuerbach identifica Deus ao homem. Há várias passagens -  no capítulo 11, por exemplo, em que o autor trata do mistério da providência e da criação - que expressam essa identificação de Deus com o homem. Assim, lemos, à página 124, “a personalidade de Deus é a personalidade do homem libertada de todas as determinações e limitações da natureza”. Na página seguinte, encontramos também

“Concedei também que o vosso Deus pessoal nada mais é que a vossa própria essência pessoal, que ao crerdes e demonstrardes o supra e extranaturalismo do vosso Deus nada mais credes e demonstrais do que o extra e supranaturalismo de vossa própria essência”.

Dada a vaguidão que o conceito de “essência” pode suscitar ao espírito do leitor, convém precisá-lo, na perspectiva de Feuerbach. Para o autor de A Essência do Cristianismo, a essência humana é a consciência, tomada no sentido que ele qualificará de “rigoroso”, a saber, a capacidade que os seres humanos têm de tomar para objeto de pensamento o próprio gênero.  Segundo o filósofo, os seres humanos são capazes de se colocar no lugar do outro, e isso é possível porque eles tomam o gênero para objeto de sua consciência. Ao contrário, embora os animais tenham sentimento de si, são incapazes de tomar o gênero para objeto de si mesmo. Concluirá Feuerbach que, nesse sentido, eles carecem de consciência.

“(...) tem o animal apenas uma vida simples, mas o homem uma dupla: no animal é a vida interior idêntica à exterior – o homem possui uma vida interior e uma exterior. A vida interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a sua essência. O homem pensa, isto é, ele conversa, fala consigo mesmo. O animal não pode exercer nenhuma função de gênero sem um outro indivíduo fora dele; mas o homem pode exercer a função de gênero do pensar, do falar (porque pensar e falar são legítimas funções de gênero) sem necessidade de um outro (...)”.


(pp. 35-36)

Gostaria de referir este último trecho do trabalho de Feuerbach, em que se expõe a definição de Deus como mero objeto de pensamento:

“Deus como Deus, i.e., como um ser não finito, não humano, não determinado materialmente, não sensorial, é apenas um objeto do pensamento. É o ser transcendente, sem forma, intocável, sem imagem – o ser abstrato, negativo; só é conhecido pela abstração e a negação (via negationis). Por quê? Porque não é nada a não ser a essência objetiva do pensamento, a capacidade ou atividade em geral, que se a chame como se quiser, pela qual o homem se torna consciente da razão, do espírito, da inteligência. O homem não pode crer, supor, imaginar, pensar em nenhum outro espírito (i.e., porque o conceito de espírito é meramente o conceito de pensamento, de conhecimento, de inteligência, qualquer outra forma de espírito é um fantasma da fantasia) a não ser a inteligência que o ilumina, que atua nele. Ele nada mais pode fazer que abstrair a inteligência das limitações de sua individualidade”.

(pp. 64-65)

Não é difícil imaginar quão polêmica foi a vinda a lume desta obra de Feuerbach no século XIX. Esta e outras expressões da definição de Deus, numa abordagem da religião como antropologia, não parece encontrar paralelo em nenhuma outra publicação. Acabo de encontrar um enunciado, que consta da Apresentação do tradutor, que exprime sucinta e claramente a tese da argumentação de Feuerbach. Sei bem que já me referi a ela anteriormente, mas gostaria de estampá-la aqui, por nos deixar a salvo das dúvidas:

“O homem projeta em seus deuses todos os seus anseios, amores e sentimentos mais elevados e profundos. O home retira de si a sua essência mais elevada e mais nobre para adorá-la fora de si como Deus”.
(p. 7)
(grifo meu)
 


Dois outros livros se destacam por nos permitir estudar o contexto socio-histórico em que surgiu e se desenvolveu a fé cristã. O leitor poderá compreender como o cristianismo pôde alcançar o status de religião predominante no mundo ainda hoje lendo o trabalho do historiador Paul Veyne – Quando nosso mundo se tornou cristão [312-394] (2011) – livro em que o autor destaca o papel decisivo do imperador Constantino na consolidação da então pequena e nova seita dentro do imenso Império Romano. Constantino converteu-se sinceramente ao cristianismo e criou as condições favoráveis ao progressivo desenvolvimento da profissão de fé cristã, não sem permitir que os cultos pagãos continuassem a ser praticados. Constantino, nesse tocante, foi assaz tolerante. Isso, no entanto, não o impediu de considerar o cristianismo como a única religião portadora da verdade, relegando as crenças pagãs ao plano da fantasia. Assim, esclarece-nos o autor:

“Constantino, dizíamos, deixou em paz os pagãos e seus cultos, mesmo depois de 324, quando a reunificação de Oriente e Ocidente sob sua coroa o tornou todo-poderoso. Naquele ano, ele dirige proclamações a seus novos súditos orientais, depois a todos os habitantes de seu império. Escritas num estilo mais pessoal do que oficial, saem da pena de um cristão convicto, que proclama que o cristianismo é a única boa religião, que argumenta nesse sentido (as vitórias do príncipe são uma prova do verdadeiro Deus), mas que não toma nenhuma medida contra o paganismo: Constantino não será um novo perseguidor, o Império viverá em paz. Melhor ainda, ele proíbe formalmente a quem quer que seja de acusar o próximo por motivo religioso: a tranquilidade pública deve reinar; dirigia-se, sem dúvida, a cristãos excessivamente zelosos, prontos a agredir os templos pagãos e suas cerimônias”

(p. 23)

E nosso itinerário pode ainda incluir uma visita ao  trabalho O Livro negro do cristianismo – dois mil anos de crimes em nome de Deus (2007). Não nos impressionemos com o título. O livro não é sensacionalista; ao contrário, inclui, de forma suscita, um sem número de episódios em que o cristianismo engendrou caça às bruxas e aos hereges, Inquisição, escravidão, colonialismo, apóio a ditaduras européias e sul-americanas, pedofilia, entre outros fatos escandalizantes.  Devido a limites de espaço e de tempo, não citarei passagens deste livro. A sua leitura nos faz refletir sobre a conveniência de seguir um corpo de dogmas que serviu a tantos crimes ao longo da história.  Também nos leva a questionar o silêncio de Deus em face das tragédias perpetradas em seu nome. Não é possível fechar as páginas deste livro sem que nos visite a mente a inquietante certeza de que a História, mormente quando exibiu suas faces mais sangrentas, se fez a despeito da suposta onipresença de Deus. 


Outro livro que merece nossa apreciação, enquanto leitores ávidos de uma compreensão satisfatória da história cristã, é o livro Evangelhos Pedidos (2008).  Neste trabalho, o autor tratará das descobertas de evangelhos que não entraram para o cânone dos textos sagrados. Também o tema das falsificações dos textos sagrados, que será retomado em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010) e que estivera presente em O que Jesus disse? O que Jesus não disse? (2006),  encontrará abrigo nas reflexões do autor. 


Uma passagem interessante se topa na seção As variedades do Cristianismo antigo, na qual nos conta o autor a respeito da ampla diversidade de crenças cristãs:

“A ampla diversidade do Cristianismo primitivo pode ser vista acima de tudo nas crenças teológicas abraçadas por pessoas que se viam como seguidores de Jesus. Nos séculos II e III havia, é claro, cristãos que acreditavam em um único Deus. Mas havia outros que insistiam haver dois. Alguns diziam que havia trinta. Outros declararam que havia 365.”

(p. 18)

E prossegue:

“Nos séculos II e III, havia cristãos que acreditavam que Deus criara o mundo. Entretanto, outros acreditavam que esse mundo tinha sido criado por uma divindade subordinada, ignorante. (Por que outro motivo seria o mundo tão cheio de miséria e dificuldade?) E ainda outros cristãos pensavam que era pior do que isso, que este mundo era um erro cósmico criado por uma divindade má como um lugar de prisão, para capturar os humanos e submetê-los à dor e ao sofrimento”.

(id.ibid.)


Os antigos cristãos me parecem mais sensatos. Não obstante a crença em que o mundo tem de ter um criador, não acreditavam que esse criador era dotado de sabedoria e benevolência infinitas. Eles, ao menos, reconheciam que a crença na existência de tal ser é incompatível com a quantidade esmagadora de evidências do sofrimento em escala mundial. No entanto, as interpretações desses segmentos foram sobrepujadas pela compreensão dos proto-ortodoxos, que detinham o poder ideológico e político. Ora, como poderiam estender seu domínio sobre os cristãos leigos, se o Deus que criou o mundo fosse maligno ou ignorante? Quem ia querer adorar divindade com tais qualidades? Foi necessário forjar um Deus grandioso (disso nos fala Veyne, em seu Quando o mundo se tornou cristão, livro a que me referi anteriormente), providente, justo e bom. O sofrimento poderia ser explicado pelo domínio de Satanás sobre o mundo, como propunham os autores do Apocalipse. A esse respeito, o leitor pode ler O Problema com Deus, obra também de Bart. D. Ehrman (2008). Neste livro, o autor,  que exercera o cargo de pastor numa igreja evangélica, justifica o abandono da fé, quando reconheceu que “o problema do sofrimento se tornou o problema da fé” (p. 13).  Trata-se de um livro que nos envolve do início ao fim. O objetivo do autor foi investigar as respostas dadas pelos autores bíblicos ao problema do sofrimento. Vale acompanhar a exposição e argumentação desenvolvidas nas duzentas e quarenta e três páginas deste trabalho impactante.


Os dois livros já mencionados, em que Ehrman se dedica a nos ensinar sobre a fabricação da bíblia e suas contradições (Quem Jesus foi Quem Jesus não foi?; O que Jesus disse? O que Jesus não disse?) também têm o mérito de capturar o leitor logo nas primeiras linhas. Em Quem Jesus foi?, lemos, no capítulo Quem escreveu a Bíblia?, uma revelação que a mim soou como uma estrondosa evidência de que a tradição que bilhões de pessoas no mundo seguem está baseada em uma farsa:

“Embora evidentemente não seja o tipo de coisa que os pastores costumam contar às suas congregações, há mais de um século existe um forte consenso de que muitos dos livros do Novo Testamento não foram escritos pelas pessoas cujos nomes estão ligados a eles. (...)”
(p. 118)

Neste livro, aprendemos, entre tantas outras coisas, sobre a falsificação dos quatro Evangelhos que constam do cânone. Em outras palavras, descobrimos que os Evangelhos segundo Marcos, Mateus, Lucas e João não foram escritos por eles. Surpreendente é o que nos revela Ehrman a seguir:

“Essa visão de que o Novo Testamento contém livros escritos sob nomes falsos é ensinada em praticamente todas as grandes instituições de ensino superior por todo Ocidente, com exceção de faculdades fortemente conservadoras. É a visão ensinada em todos os grandes livros sobre o Novo Testamento utilizados nessas instituições. É a visão ensinada em seminários e faculdades de teologia. É o que os pastores aprendem quando se preparam para o ministério. E por que isso não é mais conhecido? Por que as pessoas nos bancos das igrejas – para não falar das pessoas nas ruas – não sabem nada sobre isso? Seu palpite é tão bom quanto o meu.”

(p. 154)


Citarei, abaixo, alguns trechos do livro O que Jesus disse?, em que Ehrman discorre sobre o trabalho dos copistas no longo processo de fabricação das escrituras sagradas.  Mais precisamente, o trecho refere-se à prática de cópias de manuscritos do Novo Testamento. Estamos no segundo capítulo da obra, intitulado de Os copistas dos escritos cristãos primitivos. À página 67, na seção Dificuldades para saber qual é o texto original, observa Ehrman:

“Mudanças de todos os tipos foram feitas nos manuscritos pelos copistas que os copiaram. Examinaremos com mais pormenores os tipos de mudanças num capítulo posterior. De momento, basta-nos saber que realmente foram introduzidas mudanças e que elas eram generalizadas especialmente nos primeiros duzentos anos em que os textos foram copiados, época em que a maioria dos copistas era de amadores. Uma das principais questões com que a crítica textual precisa se haver é como reconstruir o texto original – o texto tal qual o autor o escreveu -, diante da circunstância de que os nossos manuscritos são tão coalhados de erros. O problema é agravado pelo fato de que, uma vez introduzido, o erro pode se encaixar firmemente na tradição textual, muito mais firme que o original”


No tocante à carta aos Gálatas, que não fora escrita por Paulo, mas ditada por ele a um copista – o prova a presença de um pós-escrito acrescentado por ele mesmo Paulo, com o objetivo de assegurar aos destinatários que ele, Paulo, foi o autor da carta, observa Ehrman que tal prática era comum na Antiguidade. Tendo sido ditada a carta, surge o problema de saber se Paulo a ditou longamente, palavra por palavra, ou se fez uma exposição básica de sua doutrina, deixando ao copista a tarefa de completar as lacunas. Tendo em conta essa dificuldade com que têm de lidar os estudiosos, escreve o autor:

“Suponhamos, contudo, que o copista tenha captado as palavras de modo 100% correto. Se múltiplas cópias da carta foram feitas, podemos estar seguros de que todas as cópias são também 100% corretas? É, no mínimo, possível que mesmo que tivessem sido todas copiadas na presença de Paulo, uma palavra ou duas aqui ou ali pudessem ser alteradas em uma ou outra das cópias. Se fosse esse o caso, o que ocorreria se apenas uma das cópias tivesse servido como cópia da qual todas as cópias subsequentes fossem feitas – depois, no século I, no século II, no século III, e assim por diante? Nesse caso, a cópia mais antiga que constituíra a base de todas as cópias subsequentes da carta não era exatamente o que Paulo escrevera, ou quisera escrever”.

(p. 69)


À proporção que o leitor avança na leitura do livro, não custará a ele chegar à conclusão de que a grande maioria dos escritos que compõem o Novo Testamento são produto de falsificações. O que figura na bíblia e que chegou até nós, passados mais de 2.ooo anos, são cópias de cópias. Dos 27 livros que compõem o Novo Testamento, 19 são produto de falsificações, como se depreende do seguinte trecho de Ehrman, em Quem foi Jesus?:

“Agora retorno à minha pergunta original: quem escreveu a Bíblia? Dos 27 livros do Novo Testamento, apenas oito quase certamente foram escritos pelos autores aos quais são tradicionalmente atribuídos: as sete inquestionáveis epístolas de Paulo e o Apocalipse de João, que poderia ser classificado como homônimo, já que não alega ter sido escrito por um João específico; isso era reconhecido até mesmo por alguns autores dos primórdios da Igreja”.
(p. 153)
(ênfase minha)


O leitor que prosseguisse na leitura saberia que há controvérsia no tocante à autoria dos textos 2 Tessalonicences e 1 Pedro. Aqui as posições se dividem entre os que acreditam que tais textos foram escritos pelos autores a que eles são referidos, respectivamente, Paulo e Pedro, e os que lançam sérias dúvidas quanto a serem estas pessoas seus autores. Por outro lado, os estudiosos estão de acordo quanto ao fato de os livros 1 Timóteo e 2 Pedro não terem sido produzidos pelos autores cujos nomes se estampam nas páginas. Ou seja, não foi Timóteo que escreveu 1 Timóteo, tampouco Pedro que escreveu 1 Pedro.
Tendo tomado conhecimento da problemática em torno da verdadeira autoria dos textos sagrados, também – assim creio – não será custoso ao leitor concluir que a Bíblia foi produzida pelas mãos de muitos homens. A Bíblia é um livro humano. Gostaria, de passagem, referir um trecho bastante elucidativo da posição de Ehrman, um dos maiores especialistas nos estudos do Novo Testamento. Nesse excerto, o autor retoma a razão por que abandonou a sua fé, bem como expõe a conclusão inevitável a que chegou após longos anos de estudo da Bíblia:

“Portanto, não abandonei a fé cristã por causa dos problemas inerentes à fé propriamente dita nem porque me dei conta de que a Bíblia era um livro humano ou que o cristianismo era uma religião humana. Tudo isso é verdade – mas não foi o que desmontou minha aceitação do mito cristão. Eu abandonei a fé pelo que considerei (e ainda considero) ser uma razão distinta: o problema do sofrimento no mundo”.

                                                                (p. 298)
(grifo meu)

Note-se que Ehrman refere-se ao cristianismo como um mito ou um conjunto de mitos. Outros tantos autores assim compreendem as religiões, de maneira geral, e o cristianismo, particularmente. O próprio Marcelo Da Luz se reconhece hoje como agente comprometido com a desconstrução “[do] mundo de fabulas e falácias onde se assenta o pensamento religioso” (p. 122). Não se pode ter certeza absoluta da existência histórica de Jesus, conquanto para autores como Ehrman Jesus, enquanto profeta judaico apocalíptico que viveu na Palestina do século I, provavelmente existiu. As dificuldades ligadas à certeza da existência de Jesus consistem em que as únicas fontes disponíveis que nos permitem conhecer a vida de Jesus são os quatro Evangelhos, textos impregnados de inconsistências. Assim, adverte-nos Ehrman, na mesma obra:


 
“(...) o problema é que os Evangelhos estão repletos de discrepâncias e foram escritos décadas após o ministério e a morte de Jesus, por autores que não tinham testemunhado pessoalmente nenhum dos acontecimentos da vida dele”.

(p. 159)


Volvemos à consideração do cristianismo como um conjunto de fábulas. O trecho a seguir, tomado a Marcelo Da Luz, esclarece-nos sobre a influência das mitologias pagãs na construção da narrativa do sacrifício de Jesus. Não está em questão a crucificação de Jesus (embora seja possível levantar suspeitas sobre a prática de crucificação entre os romanos naquela época). No link abaixo, há uma reportagem divulgada na revista Época, em que um teólogo qualifica a crucificação de Jesus como uma “história baseada nas tradições católicas e em ilustrações antigas”.

O que está em questão é a construção da significação teológica do sacrifício e morte de Jesus. Acompanhemos as palavras do autor:

“O antropólogo francês René Girard tornou-se célebre pela teoria explanatória da violência religiosa, segundo a qual as comunidades primitivas, a fim de não se autodestruírem pela rivalidade e inveja de seus indivíduos, ritualizavam a morte de um forasteiro, em quem era depositada toda a culpa ao modo de bode expiatório. A tradição judaica, no entanto, paulatinamente refinou essa prática, substituindo seres humanos por animais, vítimas inocentes levadas ao altar da imolação. Dessa forma, segundo o cristianismo, Jesus ocupa o papel do cordeiro justo e sem mancha, vítima perfeita, cujo sangue é derramado a fim de aplacar a ira de “Deus” todo-poderoso. Esse bizarro discurso – predominante na história do pensamento cristão – aproxima sobremaneira o cristianismo às antigas religiões pagãs praticantes do sacrifício humano”.

(p. 134)


Um discurso bizarro – escreve o autor. Por que bizarro? Porque, se examinado cuidadosamente, ele nos parecerá repugnante ao coração e ao intelecto. Ao coração, porque Deus se satisfaz com a morte de um inocente. Este inocente tinha de morrer para que Deus se acalmasse e não viesse a destruir o mundo (mais uma vez). Ele mesmo envia ao mundo seu próprio filho para morrer, não sem antes experimentar dor e sofrimento atrozes. E a dor, o sofrimento e a morte deste infeliz e inocente judeu serviu à salvação de toda humanidade da ira de Deus, que estava insatisfeito com os maus comportamentos de suas criaturas. Mas a mesma doutrina ensina que Deus é infinitamente misericordioso e, portanto, está sempre disposto a perdoar, o que nos obriga a perguntar: por que então não perdoou aqueles que estavam perpetrando atos maus, poupando o próprio filho do martírio?
Pensemos na história tendo como base o comportamento humano. Um pai pode sacrificar-se para salvar a vida do próprio filho. Certamente, muitos pais e mães estão dispostos a morrer pelo próprio filho. Nesse sentido, realmente, estamos diante de um sacrifício em favor da salvação de um outro a quem muito amamos. Nada semelhante há na narrativa do sacrifício e morte de Jesus. Deus não se sacrifica para salvar a humanidade, o que seria absurdo em se tratando de uma divindade, que, por definição, desconhece sofrimento e morte. Mas insisto em que Deus não se sacrifica; faz melhor: envia o seu filho amado para se sacrificar em favor da sobrevivência de toda a humanidade, porque ele, Deus, estava muito zangado com a forma como os homens vinham se comportando. (estou ignorando o dogma segundo o qual  Jesus é o próprio Deus que se fez carne para a expiação dos pecados dos homens, porque isso complica mais ainda essa esdrúxula história; mesmo que Deus, transmutado em Cristo, tenha morrido, ele, segundo a crença, não morre, porque ressurge no terceiro dia após sua morte – mas isso é matéria de fé, porque o fato é que Jesus, uma vez pregando contrariamente às convicções de certa classe do poder judaico, preparou o caminho de seu próprio autosuicídio (ver. Da Luz, p. 135)).


Como não se afigurar em nossa alma a ideia de um Deus sádico? Jesus, o filho de Deus, nos salva da ira de seu Pai; portanto, nos salva do próprio Deus, que estava insatisfeito com os nossos pecados. Tendo poder suficiente para resolver o problema que o incomodava, Deus envia seu filho para morrer e, assim, evitar que se eliminem todos os seres que habitam o planeta. Uma solução, no mínimo, pouco engenhosa vindo de uma divindade de tal magnitude. Deus é, assim, sádico e cúmplice do assassinato do próprio filho. Que pai, sabendo que o filho correria risco de vida,  o mandaria resolver um problema que ele mesmo, pai, teria condições de resolver sozinho? Mas a história bíblica ainda é pior. Deus estava presciente dos acontecimentos funestos que envolveriam a vida do filho; o sacrifício e morte de Jesus estavam previstos no plano maquiavélico de Deus! Só faz sentido falar em salvação pela morte se há um sacrifício verdadeiro de alguém pela sobrevivência de outrem. O pai que se lança para evitar que o filho seja alvejado por um projétil, deixando o peito exposto ao impacto, assume o risco de morrer para salvar o filho. O plano de Deus, sendo não só repugnante é também falho. Ainda hoje, os homens se veem às voltas com as dificuldades decorrentes de sua natureza. Ainda hoje, matam uns aos outros; guerreiam, cultivam a discórdia, discriminam; fomentam a competição, engordam na alma a ganância, etc. Em suma, nossos problemas continuam conosco.
A respeito da prática de sacrifício, comum nas religiões pagãs de povos primitivos, pode-se ler sua lógica em O livro das religiões:

“Se um indivíduo cometeu um crime contra os deuses e despertou a sua ira, deve ser punido. Para apaziguar os deuses e evitar uma vingança, ele pode fazer um sacrifício de expiação. A oferenda – por exemplo, um animal sacrificial – substitui o culpado e é punida no lugar dele”.

(p. 31)

Que belo exemplo de justiça! Veja-se como os deuses pagãos eram produto de antropomorfismo, ou seja, eles eram dotados de qualidades humanas, demasiado humanas. Embora fossem dispostos a fazer o bem aos homens que os adoravam, proporcionando-lhes, por exemplo, boa colheita, podiam também irar-se contra eles, submetendo-os a uma temporada de fome.  Também o Deus judaico-cristão era capaz de odiar e punir. O Deus do Antigo Testamento era ciumento; não lhe apetecia o culto a outras divindades. Vale notar também que a prática de render oferenda é uma estratégia de barganha de que se valem os religiosos para obter benefícios de suas divindades.
Tenho de pôr um ponto final neste texto. Por isso, deixarei de considerar um pouco do conteúdo de livros igualmente importantes como o de Christopher Hitchens – deus não é Grande (2007).
Que benefícios intelectuais nosso percurso nos acarretou? Vimos que podemos aprender muito sobre o modo como a fé católica penetra na consciência dos crentes, com Marcelo Da Luz; podemos aprender com Feuerbach que a religião é um fenômeno antropológico; podemos também aprender, com Ehrman, sobre as contradições que se acham na Bíblia, sobre a história da fabricação deste que é o livro mais vendido e lido do mundo; podemos ainda estudar o contexto sócio-histórico em que o cristianismo lançara suas raízes, de tal sorte que seremos levados a concluir, corretamente, que o Deus que nossas sociedades ocidentais herdaram foi forjado num tempo remoto por pessoas que viveram sob o domínio dos romanos no Oriente Médio. Trata-se de um Deus que foi plasmado na História, que foi forjado por uma ideologia que rezava ser a crença no poder infinito desse Ser transcendente a única forma de escapar, ou, ao menos, resistir ao jugo dos dominadores. Portanto, uma ideologia da submissão, da obediência cega a uma autoridade transcendente. Uma ideologia que trataria, com o tempo, de arrebanhar bilhões de seguidores.