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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

"Só vejo o devir" (Heráclito)

 



Se é verdade que a subjugação não é uma invenção humana, já que ela se exerce nos modos parasitários, é igualmente verdade que a sujeição da natureza pelo homem transformou radicalmente a natureza da sujeição. Pela ação do homem, a sujeição afeta não apenas os processos ecológicos, mas também o princípio eco-organizador da vida. Mas a natureza subjugada não é, no entanto, passiva; ela responde à sujeição imposta pelo homem interferindo drasticamente em suas condições de vida. A natureza reage à sujeição humana através das variações ecológicas, tais como seca, gelo, inundações que provocam desastres e fome, epidemias... Assim, quanto mais o homem domina a natureza mais ela o domina também, mais ela o lembra de seu devido lugar na ordem universal.




O homem é um animal tão insignificante na ordem universal, que pode ser morto por um microrganismo bastante simples, que se situa na fronteira entre a matéria viva e não viva - um vírus. Sinto-me, deveras, espantado de ver como este animal ufano não se aperceba disso (e não seja tomado de assombro!) na sua vida diária, sempre muito atarefada, sempre entulhada de afazeres que só lhe servem para evitar que sucumba ao tédio ou ao desespero. Se insisto em lembrar ao meu semelhante à insignificância radical de sua condição existencial, não é para humilhá-lo ou aviltá-lo, mas para esclarecê-lo sobre a insensatez de sua conduta, sobre a loucura, a estupidez, a desmesura, a incúria de seu modo de ser e viver; é para esclarecê-lo, em suma, sobre o fato de que os valores e os afetos que governam seu agir levam-no, com frequência, a chafurdar no autoengano e em aborrecimentos que, contemplados à luz de seu destino tumular, são sem importância alguma. A morte, essa credora implacável, a tudo revoga, a tudo confere um caráter de futilidade , nadidade e insignificância. Meu exercício espiritual de todas as manhãs consiste não em orar a Deus (hábito comum e motivado pela empedernida vaidade humana), mas em me lembrar que não sou um ser necessário, que minha existência é contingente e insignificante para a economia da ordem cósmica. Agindo assim, me poupo de grandes aborrecimentos e evito dar excessivo valor às coisas e à minha autoimagem.





Sinto muito, cristãos!

 

Uma das descobertas sólidas e, por isso, mais persistentes ainda hoje, feitas pelos estudiosos do Novo Testamento e dos cristianismos primitivos, nos últimos 200 anos, é que os seguidores de Jesus, durante a vida deste, não o viam como Deus, mas como completamente humano. As pessoas do século I d.C, tempo em que viveu Jesus, viam-no como um rabino, um profeta; outras o consideraram o messias, porém muito humano. Ele nascera numa Galileia rural e não era muito diferente dos demais judeus. Jesus foi criado em Nazaré e não se destacou muito em sua juventude. Quando adulto, sobretudo, ele passou a acreditar - como, aliás, muitos outros judeus de seu tempo - que vivia perto do fim dos tempos. Como um profeta judeu apocalíptico, Jesus acreditava que Deus interviria no curso da história para derrubar as forças do mal e instituir o reino do bem aqui na terra. Jesus sentiu-se como o mensageiro do apocalipse vindouro e passou todo o seu ministério público pregando esta mensagem. Pelo menos, até que causou profundo descontentamento nas autoridades governantes durante sua viagem a Jerusalém, sendo preso e julgado pelo governador da Judeia, Pôncio Pilatos. De um rápido julgamento, seguiu-se sua condenação. Considerado um agitador político, Jesus foi condenado à morte ignominiosa por crucificação. Para os romanos, a história de Jesus acabava por aí.

O fato é que os primeiros cristãos chamavam Jesus de Deus num tempo em que imperadores romanos também eram considerados deuses. Os judeus, embora fossem monoteístas, distinguindo-se, notavelmente por isso, dos demais povos politeístas do mundo antigo, também acreditavam que humanos podiam se tornar divinos e deuses podiam assumir a forma humana. Mas foi apenas 300 anos depois da morte de Jesus, por volta de IV d.C, que grandes pensadores do mundo romano passaram a acreditar na transcendência do reino divino em relação ao reino humano. Antes dessa época, predominava a crença de que os reinos humano e divino se situavam no continuum vertical. Tais reinos se interpenetravam: humanos podiam assumir formas divinas, embora ocupassem as camadas inferiores da pirâmide das divindades. Por isso, para os primeiros cristãos, a maioria dos quais judeus convertidos, Jesus não era Deus no sentido em que os cristãos modernos o concebem como Deus. A maneira como o imaginário cristão moderno representa a divindade de Jesus é um produto do século IV d.C., período em que o Império Romano iniciara o processo de conversão do paganismo para o cristianismo.

A conclusão que não se pode recusar, após estudarmos a história do desenvolvimento da fé cristã desde seus primórdios até hoje, é que o Jesus histórico é muito diferente do Jesus construído pela dogmática da Igreja, que a natureza supostamente divina de Jesus é uma ficção histórica, ou seja, uma criação histórica. Essa mesma história produziu a significação do Deus metafísico cristão, como o entende Castoriadis.

 




 

 

 

O niilismo não é uma doutrina filosófica; pelo menos, não é assim que o concebo. Entendo-o como uma espécie de manifesto de desmitificação, ou, como tenho procurado pensá-lo em minha pesquisa, entendo-o como um campo hermenêutico, à luz do qual tudo aquilo que o ser humano toma como dotado de “ser”, de “objetividade”, de “substancialidade”, ou que toma como algo originado de uma instância metafísica, aparece como artifício, ficção, constructo, produto da instituição do imaginário-simbólico que é ele mesmo instituído pelo domínio social-histórico. O “nihil” do niilismo não pode, portanto, ser concebido como a contraparte ontológica do “ser”, porque, dessa forma, prolongamos o hábito de pensar em termos de dualismos metafísicos, ou melhor, continuamos a conferir o caráter de substância ao que é ficção (criação, fabricação) imaginária. Ora, a própria substantivação “o nada” opera, no âmbito semântico, a substancialização do “nada”, ou seja, “o nada” é tomado, concebido, paradoxalmente, como algo ( um ente) que existe como o antípoda do “ser” ( é o não-ser - a contraparte do ser). A nadificação operada pelo niilismo não se define no quadro das categorias metafísicas; “nadificação” deve ser entendido como “dessubstancialização”, esvaziamento do caráter de ser, de substância, de quididade, a fim de que aquilo que sofreu a nadificação apareça como ficção imaginária, artefato, figura, signo, símbolo; em suma, significação imaginária. Assim, “Deus”, “ser”, “nada”, “Estado”, “democracia”, “Essência” são significações imaginárias (não da mesma ordem, já que se inscrevem em campos de sentido diferentes; em todo caso, são significações criadas pelo imaginário-simbólico). Mas significações imaginárias não são irrealidades, "fantasias"; elas existem para a sociedade que as institui; existem como objetos-de-discurso, funcionam como "coisas", "referentes" em determinados domínios discursivos. O imaginário depende do real para existir, e o real não é possível sem o imaginário.

Tome-se o exemplo do modo como, em nossa cultura, “vida” e “morte” são representados. O niilismo, como processo histórico e antropológico de desmitificação, expõe, à luz do dia, o caráter ficcional do dualismo da vida-morte, instituído pelo imaginário-simbólico metafísico, fundante do modo de ser e das sensibilidades do homem ocidental. Herdamos desse imaginário-simbólico metafísico a crença comum de que vida e morte são polos antagônicos e excludentes entre si, ou seja, herdamos a crença de que há uma relação de oposição e exclusão entre a vida e a morte, de sorte que, nessa relação imaginária de oposição e exclusão, a morte não só é representada como a antagonista da vida (a despeito de ela cooperar para o equilíbrio biológico do ecossistema), mas também é negada pela sua transfiguração em imagens como a de ‘passagem’, ‘caminho’ para uma outra vida além-túmulo. Essas metáforas/imagens/simbolismos da morte são ficções, figuras, significações geradas, produzidas na instituição do social-histórico, que é o imaginário radical, o qual, por sua vez, é a matriz fundamental e originária de todas as significações sociais imaginárias, uma vez que o imaginário radical é criação, sob a forma de representação, de uma coisa ou de relações que não são dadas na experiência sensível e imediata de mundo. É assim que Deus é uma significação imaginária, produto do imaginário radical que constitui a base do imaginário efetivo e do simbólico. Também “democracia”, “economia”, “capitalismo”, etc. são ficções do imaginário social instituído. Essas “coisas” não existem sem a instituição imaginária da sociedade. O niilismo, portanto, ao declarar guerra aos valores superiores, a todo o imaginário produzido pela metafísica ocidental, que levou o homem a se conceber, a se representar, a se significar como um ser vivo superior e à parte da ordem natural, da totalidade ecossistêmica da vida, “quebra” o “feitiço” do imaginário-simbólico, na medida em que expõe seu mecanismo de funcionamento, na medida em que descerra o modo de produção das significações imaginárias instituídas, as quais não aparecem como tais nos processos sociais da vida comum, mas se transmitem sob a forma de saberes inquestionáveis, sistematizados numa tradição, em doutrinas religiosas, filosóficas, políticas, e cuja origem é metafisicamente justificada ou apagada no próprio processo de constituição sócio-histórica da consciência individual.

Por não ser uma doutrina, o niilismo se constitui historicamente em processos dialógicos com outras áreas do conhecimento humano, apropriando-se de suas críticas, de seus conhecimentos, de seus postulados a fim de compor o seu arsenal, seus arranjos, seu instrumental crítico-corrosivo. É claro que, como todo empreendimento humano, o niilismo envolve um risco, um perigo, já que não é imune à apropriação por tipos humanos ou formações vitais movidos pelo ressentimento, pelo ódio à vida, pelo instinto de negação divorciado da afirmação; todavia, é no horizonte do niilismo que se devem travar as batalhas, que se deve afirmar a resistência, que se deve fazer triunfar a vontade de viver sobre a vontade de morte, de nada; o niilismo é a condição de possibilidade para novas instituições de sentidos, de valores, de significações, em suma, de um imaginário-simbólico que promova a vida, que a favoreça em face de seu irrecusável caráter trágico, que passa a ser então afirmado, desejado, quero dizer, como jogo contínuo de complementaridade entre criação e aniquilação, nascimento e morte, sofrimento e alegria, amor e ódio, luz e escuridão. Pois que afirmar o trágico é afirmar o conflito, o jogo dos opostos, dos antagonismos, mas também a complementaridade dos opostos, dos antagonismos. Afirmar o caráter trágico da vida é reconhecer que no mundo natural “não apenas uma reorganização permanente responde à desorganização permanente, mas, sobretudo, que o processo de reorganização se encontra no próprio processo de desorganização”. (Morin). Não há criação sem aniquilação, como soube bem ver Nietzsche; e vida e morte estão numa relação inextricável de cooperação e complementaridade - uma evidência que nos habituamos a ignorar - e ignoramos porque, como sujeitos sociais, somos fabricados pelas instituições de nossa sociedade, somos moldados pelo imaginário social instituído.



                            


“Só vejo o devir” (Heráclito)

 

O trabalhador bem ajustado socialmente quer unicamente encontrar em seu ralo e esquálido tempo livre alguns momentos de distração. Ao chegar a casa, senta-se no sofá, e a televisão se lhe oferece um cardápio de nossas tragédias humanas, que ele pronta e servilmente degusta. A mais recente delas é a da chuva que arruinou a cidade de Petrópolis (novamente). ( contam-se 130 mortos no silêncio indiferente do Universo e de uma natureza que não dá sinais de remorso ou luto). O trabalhador-telespectador bem ajustado aos padrões de comportamento, de pensamento e de sensibilidades estabelecidos em sua cultura, forjada e entretecida no simbólico-imaginário cristão, reage ao nefasto acontecimento como todo mundo reage: “ meu Deus, tenha misericórdia!”. Como Deus não responda aos insistentes apelos destes sapiens devotos e ávidos de encontrar uma ordem moral do mundo, há que buscar os culpados entre os humanos a fim de justificar o silêncio e a indiferença divinos. É certo que as chuvas volumosas, nesta época do ano, costumam causar estragos; é certo que nossas autoridades governamentais nada fazem para prevenir ou minimizar os impactos danosos de fenômenos naturais como estes sobre a vida já flagelada e precária de populações inteiras de sapiens, que são forçadas a residir em casas apinhadas em encostas. Já conhecemos bem o roteiro: “depois que a porta é arrombada é que se preocupa em colocar a tranca”. Num mundo que fosse obra de um Deus criador, como o Deus judaico-cristão, teríamos, ao menos, o direito de dividir com ele a culpa pelo sofrimento infligido a inocentes; mas num mundo como o nosso, obra do jogo do acaso e da necessidade, onde grita uma natureza sábia e louca, ao mesmo tempo cega, míope e onisciente, onde Dike (justiça) nasce da Hybris (desmedida), temos o dever de assumir o nosso trágico destino como espécie de primatas entre milhões de outras espécies existentes e nossa responsabilidade em ações e omissões cujos efeitos acrescentam mais dor e sofrimento a um mundo que é por toda parte jogo inocente do devir. Quantos, entretanto, entre os homo demens, são capazes de suportar esta experiência estética do mundo, que é devir eterno? Refiro-me àquele olhar artístico que Nietzsche pincelou em tão belas e potentes palavras de refinada sabedoria trágica, fazendo-nos ouvir nas transpirações delas o grito do sábio Heráclito:

 

 

“ NESTE MUNDO, SÓ O JOGO DO ARTISTA E DA CRIANÇA TEM UM VIR À EXISTÊNCIA E UM PERECER, UM CONSTRUIR E UM DESTRUIR SEM QUALQUER IMPUTÇÃO MORAL EM INOCÊNCIA ETERNAMENTE IGUAL. E, ASSIM COMO BRINCAM O ARTISTA E A CRIANÇA, ASSIM BRINCA TAMBÉM O FOGO ETERNAMENTE ATIVO, CONSTRÓI E DESTRÓI COM INOCÊNCIA - E ESSE JOGO JOGA-O O EÃO CONSIGO MESMO. TRANSFORMANDO-SE EM ÁGUA E EM TERRA, JUNTA, COMO UMA CRIANÇA, MONTINHOS DE AREIA À BEIRA-MAR, CONSTRÓI E DERRUBA: DE VEZ EM QUANDO, RECOMEÇA O JOGO. UM INSTANTE DE SACIEDADE: DEPOIS, A NECESSIDADE APODERA-SE OUTRA VEZ DELE, TAL COMO A NECESSIDADE FORÇA O ARTISTA A CRIAR”.

 

Nietzsche





Como convencer os leitores mal dispostos para com a filosofia de Schopenhauer de que a imagem que tradicionalmente lhe é construída, em conformidade com a qual ele é representado como um filósofo efusiva e profundamente pessimista, cujo olhar está inteiramente devotado a nos expor o pior da existência, não só não faz jus ao refinamento de seu gênio, à sua aptidão lírica e cirúrgica para nos esclarecer sobre nossos habituais autoenganos, sobre nossas ilusões acerca de quem somos e de nosso lugar no mundo, bem como também ensombrece as mais profundas lições sobre a precariedade e vaidade da condição existencial humana? Se, de fato, Schopenhauer assumiu ser o viver um processo de desfazimento, de decadência que culmina com a eutanásia da vontade (da vontade de viver), não o fez por um mero gosto estético pelos aspectos sombrios, mórbidos e fúnebres da vida; o fez, sobretudo, com o intento ético, nutrido por um solo metafísico exuberante que se destaca de uma paisagem mística oriental, de nos libertar das ilusões, das quimeras que nos fazem escravos, em nossa caverna cotidiana, de um ciclo de desejos sempre renováveis e insaciáveis, que jamais nos dá a satisfação e a felicidade plenas e permanentes que tanto anelamos durante nossa juventude, mormente. O curso natural das coisas, a decrepitude de nosso corpo com o avanço da idade nos abrem o caminho para o conhecimento da vaidade de todos os bens terrenos em cuja busca consumimos, com ardor inquebrantável, a nossa vida. O amor próprio é suplantado pelo amor aos filhos, graças ao qual os pais passam a viver mais em função da imagem idealizada do eu alheio do que em função do ideal de seu próprio eu. O niilismo, em Schopenhauer, longe de se reduzir à negação da vontade, que, de modo algum, significa uma hecatombe da Vontade como coisa-em-si, já que esta é indestrutível e eterna, se apresenta, entre as suas vias de expressão, como meio pelo qual se expressa a purificação da vontade de viver mediante o sofrimento. Sim, o sofrimento conduz à purificação, à viragem da vontade e à redenção. O caminho da redenção é mais geral; o da viragem da vontade, diz Schopenhauer, é mais restrito e difícil, porque supõe a empatia, a solidariedade do indivíduo, naturalmente egoísta, com o sofrimento de todo o mundo, só atingidas por uma forma de conhecimento intuitivo. A redenção só é possível a todos porque a vida que leva à purificação pelo sofrimento é um caminho aberto a todos. É certo, porém, que, muitas vezes, observa Schopenhauer,


“Resistimos para nele entrar, mas antes nos esforçamos com todas as forças para preparar para nós mesmos uma existência segura e agradável, com o que nos acorrentamos ainda mais firmemente à vontade de vida”.

 

 

Para Schopenhauer, a vida é também um processo de purificação, e a solução purificante é a dor. A sabedoria “pessimista” de Schopenhauer é equiparável à profundidade e sobriedade das sabedorias de vida dos grandes sábios da Antiguidade, que combinavam melancolia com lucidez. Ela é um bálsamo espiritual para a loucura do utilitarismo hedonista de nossas sociedades hipermodernas que, em nome do acúmulo desenfreado de riqueza e da busca do prazer efêmero no consumo, transformam o mundo inteiro numa imensa reserva de bens a serviço da manutenção e reprodução de uma vida humana que se consome na incessante destruição da reserva de bens que se destina a sustentá-la:

 

 

“O destino e o curso das coisas cuidam de nós melhor do que nós mesmos, na medida em frustram continuamente nossos projetos de uma vida nababesca, cuja insensatez já se reconhece em sua brevidade, inconstância, vazio e futilidade, e no fato de terminar numa amarga morte; ademais, aparecem no nosso caminho espinhos sobre espinhos que apontam em tudo o sofrimento salvífico, panaceia de nossa miséria”.

 






Eis o que defendo:

 

 

O imaginário radical, matriz de todas as significações sociais e fundante da cultura ocidental, é produto da metafísica que, já em Parmênides, tem como base a identidade entre pensamento, ser e verdade. Platão e Aristóteles permaneceram fiéis ao pai parmenidiano. Tanto Platão quanto Aristóteles tiveram de enfrentar o desafio sofístico. A metafísica que moldará profundamente o modo de ser do homem nascerá desse enfrentamento. A oposição de valores estabelecida por Parmênides entre o ser e o não-ser e subvertida por Górgias será pela pena de Platão substituída por uma nova oposição: o ser e o falso ser. A lógica de Aristóteles, que determinou os fundamentos do pensamento do homem ocidental, depende de certos pressupostos metafísicos. Assim, crê Aristóteles que a linguagem, cuja forma é a lógica, revela a ordem essencial das coisas. Aristóteles estabelece a correspondência entre a dimensão lógica e a ontológica: assim, articula-se o ser (como essência e verdade primeira) à linguagem. Aristóteles afirma a identidade ao mesmo tempo que rejeita a contradição. A matriz imaginário-simbólica que funda e trama a cultura ocidental está centrada na produção da significação, na ficção do ser, cujas origens remontam a Parmênides e cuja transmissão à posteridade se fez no pensamento socrático-platônico-aristotélico pela via da metafísica cristã. Nossa habitual crença no ser como identidade e verdade é produto da confluência de dois imaginário-simbólicos: o socrático-platônico-aristotélico, herdado de Parmênides, e o cristão, moldado no platonismo (então transformado em platonismo para o povo). A afirmação do ser como verdade, como identidade significa o esquecimento do devir; simboliza a vitória de Parmênides sobre Heráclito e sobre os sofistas. Essa vitória de Parmênides sobre Heráclito e sobre os sofistas é também a vitória de todo um imaginário social moldado na metafísica platônico-aristotélica-cristã. Já conhecemos bem, por meio de Nietzsche, como a metafísica e a moral platônico-cristã moldaram nosso modo de ser como tipos humanos culturais. Talvez, contudo, não seja tão claro de que modo Aristóteles faz ecoar a vitória de Parmênides sobre Heráclito e os sofistas. Se Parmênides tomou o ser como lugar do pensamento verdadeiro, buscando estabelecer a identidade entre pensar, dizer e ser, Aristóteles estava interessado em garantir a possibilidade do conhecimento verdadeiro, para o que ele propôs a identidade entre dizer e significar. Somente dizemos se significamos algo, ou seja, dizer deve estar vinculado a um sentido. Dizer é significar, e, se significar é não contradizer-se, então quem diz deve obedecer ao princípio de não contradição. Aristóteles pensa ter estabelecido a verdade da linguagem, a saber, o sentido. Quem fala sem sentido, a rigor, nada fala, pois nada significa. Pela lógica cunhada por Aristóteles, habituamo-nos a crer que há um vínculo inextricável entre ser e sentido, de sorte que, para ele e para o imaginário fundante de nossa cultura, há um sentido verdadeiro nas coisas, e esse sentido é desvelado na linguagem. Se há um sentido verdadeiro que a linguagem revela, então há um sentido falso. Ora, o que Nietzsche soube ver é que a lógica é fruto de um AGON, ou seja, de um campo agonístico de produção de ficções. A lógica nasceu de um campo de combate, com suas regras específicas. Nasceu de um campo de combate sustentado em ficções. O mundo da lógica elide o mundo do fluxo, da impermanência de todas as coisas, das sensações, das paixões, do corpo. Esse mundo da lógica é sustentado por uma ficção primeira - a linguagem. A linguagem é o modelo a priori de inserção e exclusão e, por isso, serve de paradigma para todos os outros modos de exclusão vigentes. Uma vez que nem Platão nem Aristóteles conseguiram refutar os sofistas, se encarregaram de inventar a categoria do “falso” ou o argumento do sentido: “ ele não deve ser ouvido, porque é falso”; “ o que ele diz é contraditório, e o que é contraditório não tem sentido”.

Se a raiz do niilismo da fraqueza, conformado pelas forças reativas, pelas vontades de potência negativas, repousa na crença no SER, que culmina com a produção de uma forma homem caracterizada pela vontade de nada, o niilismo em sua forma ascendente, conformado pelas vontades de potência afirmadoras, representa o caminho pelo qual todo o edifício imaginário-simbólico moldado pela metafísica tradicional, que se forma pela confluência de do pensamento de Parmênides, Platão, Aristóteles e o cristianismo, entra em colapso libertando a existência do animal humano desse mundo edificado em ilusões, que o fazem chafurdar no autoengano sobre sua condição existencial no mundo, que o impede de reconhecer-se na origem da criação do mundo de signos, significados, imagens, figuras que ele assume como produto de forças que lhe são estranhas. Nadificar esse mundo que se constitui pela projeção de significados humanos não é reduzi-lo a uma miragem, a um simulacro, a um “nada”; mas dessubstancializá-lo, restituir-lhe o estatuto de constructo, de artifício. O mundo do ser, o mundo em cuja origem, por força do imaginário-simbólico socialmente instituído, o homem vê um Criador, um Deus metafísico, é um mundo edificado, construído pela atividade humana que se realiza pela inter-relação entre cultura, linguagem, percepção-cognição. Em Nietzsche, não há criação sem aniquilação; aniquilar, destruir e criar são formas de expressão da afirmação dionisíaca da vida. O niilismo não é apenas máquina de destruição, de demolição dos alicerces de valor e sentido metafísicos que deram e (ainda dão) sustentação à existência humana; é também um campo de interpretação que libera as forças ativas, as vontades de potência afirmativas e criadoras que se encarregam de fixar perspectivas e interpretações que encorajam, potencializam o animal humano para o querer jubiloso do devir, para a afirmação do caráter trágico ineliminável da vida, sem concessão e recuo.




Dizer é significar

 

Dizer que os significados se produzem na interação social por meio da língua, dizer que, ao usarmos a língua, negociamos significados, significa dizer que o significado não está localizado nas palavras ou nos textos em si, significa dizer que a relação significativa não se esgota na articulação do significante (imagem acústica) com o objeto referido pelo signo, nem na articulação entre os signos na cadeia sintagmática. A semiose, ou seja, o processo pelo qual o objeto de um signo é sempre outro signo, é infinita. Assim, quando se advoga que os significados sejam pensados como efeitos das práticas discursivas, como construções sociocognitivas, como produzidos e negociados na interação verbal, desloca-se o problema básico da semiótica, que consiste em determinar como um signo significa, como um signo representa a realidade, como o signo tem sentido, ou como é possível a experiência do sentido através da linguagem, do âmbito de um realismo referencial, para o âmbito sociocognitivo-interacional do discurso. Assim, o significado não é a relação do signo com seu referente no mundo exterior. Se digo “Mônica está dormindo”, num contexto em que alguém insiste em querer falar com “Mônica”, produzo aí muito mais do que o significado proposicional ‘há alguém que está dormindo e que se chama Mônica”. Comunico também “não convém perturbá-la”, “não seja inconveniente”, “volte outra hora”, etc. Note-se que o signo complexo (o enunciado) “Mônica está dormindo” é signo de outros signos complexos, tais como “não convém pertubá-la”, “não seja inconveniente”, “volte outra hora”. Em outras palavras, “Mônica está dormindo” significa muito mais do que o estado-de-coisas representado na proposição realizada. O modo como meu interlocutor reagirá ao ato de fala “Mônica está dormindo” indicará se ele compreendeu, se aceitou ou não os significados produzidos e negociados nesse contexto de interação. Evidentemente, todo e qualquer enunciado ocorre sempre num contexto (ou supõe a mobilização de contextos sociocognitivos) e com um co-texto, ou seja, vem acompanhado de outros enunciados ou sinais não verbais que nos orientam na adequada reconstrução do sentido pretendido por nosso interlocutor. É claro também que a construção ou a produção de sentido nas práticas linguísticas é um processo muito mais complexo do que sugere este meu exemplo, que é bastante esquemático. Quando entramos numa interação verbal, entramos a fazer parte de um jogo de produção de imagens recíprocas que é , ele mesmo, constitutivo dos significados negociados. Se, por exemplo, depois de pedir para falar com Mônica, alguém me diz em tom ríspido “Ela está dormindo, passe outra hora!”, não só compreendo que é inútil insistir em falar com Mônica, que devo ir embora, como também julgo que o interlocutor é uma “pessoa grosseira”. E é possível que meu interlocutor também construa uma imagem de mim como “pessoa chata e impertinente”. Em suma, a significação é um processo que extrapola o âmbito manifestamente linguístico, os significados se produzem para além da superfície textual; os textos fornecem pistas, indicações para a reconstrução dos sentidos, mas não os encerram, não os “aprisionam”, não os esgotam. Dizer é significar para além do dito; os silêncios do dizer, os silêncios que atravessam as palavras ditas, significam. A língua não é apenas um sistema de signos; ela é muito mais do que isso: é lugar de interação social, é atividade sociocognitiva de produção internacional de sentidos ou significados.

 


sexta-feira, 25 de junho de 2021

"Não há nada de errado com aqueles que não gostam de política, simplesmente serão governados por aqueles que gostam." (Platão)

 


               

                      Preleções sobre política

Uma contribuição para o enfrentamento

do analfabetismo político brasileiro

 

 

                                                PARTE 2


 

3. A política e a filosofia: um retorno às origens

 

Tendo analisado o bolsonarismo como um movimento autoritário de viés fascista, com ênfase em sua recusa aberta do pensamento e do conhecimento, na primeira parte deste estudo, dedico-me agora, nesta segunda etapa, a trazer à baila a experiência política da Atenas do século V-IV a.C. A Grécia Antiga, berço da civilização ocidental, é o solo progenitor da política. A filosofia nasce com os antigos gregos, e coube a Platão (427-347 a.C.) ser o primeiro filósofo a nos legar um sistema de pensamento político. Em outros termos, a filosofia política nasce com Platão. O que me interessa, então, é revisitar esta herança tão rica e preciosa do pensamento político da Antenas de Platão e Aristóteles (384-322 a.C.), com vistas a colher desse solo os subsídios necessários ao desenvolvimento de um debate público, no Brasil de hoje, mais amplo, mais elaborado, fundamentado teoricamente. Este será o objetivo que perseguirei também na terceira parte deste artigo, quando me debruçarei sobre a política tal como pensada e vivida na era moderna. Buscarei acenar para as contribuições de Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes, mas avançarei reflexões sobre conceitos tais como o de Estado, Democracia, Sociedade Civil, Poder, Política, Cidadania, entre outros, que precisam ser, segundo creio, bem definidos e esclarecidos para quem quer que esteja disposto a recusar-se a reduzir a atividade política a um negócio de plutocratas e de políticos profissionais que agem em proveito próprio para perpetuarem-se no poder. Não que esta não seja uma experiência política muito familiar na história de nossa sociedade; é, aliás, uma percepção generalizada entre pessoas em outros lugares do mundo, conforme mostrarei. Vivemos numa época em que é cada vez mais patente aos estudiosos da política o recuo das democracias e a deterioração do sistema político em vários países do Ocidente. Esta é uma questão que não deixarei de considerar, muito embora não venha a desenvolvê-la em profundidade. Comecemos, pois, nosso retorno à filosofia política grega. Espero que o leitor colha daí lições valiosas para que a sua existência como zoon politikon possa tornar-se mais fecunda enraizando-se no solo do verdadeiro pensamento.

 

3.1. O idiota é, antes de tudo, um marginal

 

Os antigos consideravam idiotés aquele que só se ocupava da vida privada, que recusava a política, que vivia uma vida apartada da atividade política, que dizia não à política. Os jornalistas Álvaro Borba e Ana Lesnovski, criadores do canal do Youtube Meteoro Brasil, são também autores do livro Tudo que você precisou desaprender para virar um idiota, publicado pela editora Planeta do Brasil, em 2019. Neste livro, os autores nos ensinam que o idiota é, antes de tudo, um marginal, e prosseguem nos seguintes termos:

 

(...) Originalmente, o termo ídhios era usado de maneira depreciativa para definir aqueles que se apartavam da vida pública na antiga Atenas: o cara abria mão da vida em sociedade, com suas regras e anseios civilizatórios, e automaticamente era chamado de idiota. Esse é o idiota ancestral. (ibid., p. 11).

 

Mas quem é o idiota hoje? Segundo os autores, o idiota do século XXI está obcecado pela política. Portanto, parece que os idiotas migraram do reduto da vida privada, de onde vociferavam contra a política e contra aqueles que se ocupavam da vida política, para povoar as esferas por onde transitam as questões políticas. No entanto, não basta habitar essas esferas para deixarem de ser idiotas. Como nos fazem ver os autores,

 

 (...) É nessa contradição entre o sujeito apartado das questões da vida pública, mas em imensa proporção disposto a atuar diretamente sobre elas, que mora uma explosiva combinação comunicacional. Pois o idiota agora não está sozinho. Em grupo, em rede, conectado, ele não quer saber de política, mas participa dela continuamente. (ibid.).

 

Como é possível que participem continuamente da atividade política e continuem a se desinteressar dela? É que o idiota continua sendo hoje, tal como era na Antiguidade, um sujeito autocentrado, egoísta, preocupado exclusivamente consigo. O que difere o idiota da antiga Antenas do idiota das redes sociais como Facebook do século XXI é que o idiota antigo ficava fora da política. Hoje, o idiota tomou de assalto a política. Ele entende a política a partir de seu ego. Como observam os autores, “tudo é feito por ele, para ele, em nome dele”. (p. 12). Por isso, o idiota combaterá qualquer filosofia ou pensamento que considera a problematicidade das questões políticas a partir de valores coletivos. Como bem espirituosamente escrevem os autores, “se há um coletivo, o idiota se sente ameaçado em seu direito sagrado de ser idiota”. (ibid., p. 12). Repensar, portanto, a política começando pelos antigos gregos se faz ainda mais necessário hoje porque os idiotas infestaram a vida pública com sua artilharia e munições de ódio e desprezo pelo bem comum. E se puderam infestar as esferas da vida pública, sobretudo pelas redes sociais, é que se sentem hoje representados nas esferas de poder. E quando os idiotas representados seguem um líder idiota que governa em nome do poder contra os princípios constitucionais que regem um Estado Democrático de Direito, é a democracia que corre sério risco de extinguir-se. Como nos lembram os autores, “(...) no século XXI, não é com  tanques de guerra nas ruas e tiros de canhão que se mata uma democracia, mas elegendo alguém disposto a subverter as regras do jogo” (ibid., p. 16). É o que nos ensinam Levitsky e Zilblatt, em Como as Democracias Morrem (2018), “democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder”. (p. 15). O idiota hoje não é bobalhão e importunador; ele é ameaçador e perigoso, ou porque está investido de mais poder político, ou porque seus modos de ser, pensar e viver encontram ressonância naqueles que hoje ocupam o poder de tomar decisões políticas que impactam significativamente nossas vidas. É oportuno lembrar que é no âmbito das significações que se dá a disputa pelo poder na atualidade. A guerra que travamos em torno do acesso ao poder e da limitação do poder daqueles que já o detêm é uma guerra semântica, em nossas sociedades democráticas modernas.

 

 

3.2. A política: uma experiência grega

 

Na Antenas em que viveram Platão e Aristóteles, a política era pensada como uma atividade pedagógica. A política visa à transformação de homens e mulheres em cidadãos. A política é paidéia. Essa é uma concepção de política que nos é estranha a nós, modernos. Na modernidade, a política passou a ser pensada/percebida como aquilo que diz respeito aos cidadãos, à gestão pública, ao governo e aos regimes de governo, à administração dos negócios públicos, e o governante é visto como gestor de uma grande empresa, que é a cidade, o município ou o país. Mas, como tentarei mostrar, é possível pensar a atividade política fora dos quadros do aparelho burocrata-adminsitrativo. É possível e necessário pensá-la como uma missão civilizatória, já que a política confere sentido humano ao mundo, confere significado para a vida dos seres humanos, seja como partes de uma coletividade, seja individualmente. É possível e necessário pensar a política como uma atividade libertária. Mas, por ora, nossa atenção será dispensada à concepção grega de política a partir das lições que nos foram legadas pela pena de Platão e Aristóteles.

O termo política foi cunhado com base na experiência da atividade social desenvolvida pelos homens na Pólis. Embora traduzido por cidado-Estado, o termo pólis designa melhor uma espécie de comunidade (koinonía). Como toda Kononía, a pólis possui seus próprios fins: é a comunidade cívica mais perfeita e adequada para a coexistência humana, lugar necessário do homem como ser racional. Para Aristóteles, o homem é um animal político  por natureza: ele está destinado naturalmente à vida na pólis. O homem é dotado de um instinto natural para a gregariedade. Aristóteles insiste em que a pólis é o lugar onde o homem poderá realizar a sua essência, porque a pólis é uma comunidade ordenada segundo a justiça e o bem comum. A finalidade precisa da pólis é a promoção do bem viver juntos, ou seja, do exercício de um modo de vida pautado pelos princípios da justiça e da virtude, pelo respeito à igualdade (isonomia) e à liberdade (eleutheros) dos cidadãos. Ser cidadão na antiga Atenas é diferente do que entendemos por cidadania hoje. Cidadão, na antiga Atenas, era o homem adulto, livre e nativo que gozava do direito de exercer a atividade política. Não eram cidadãos os metecos (estrangeiros residentes), os estrangeiros não residentes, as mulheres, as crianças e os escravos. Livres eram aqueles que não condicionavam sua vida à vida de alguém (como os escravos), ou que não condicionavam sua vida às necessidades materiais de subsistência. Igualdade é a condição daqueles que não estão sujeitos a relações assentadas em distinções hierárquicas (como marido e mulher), ou a relações baseadas no comando e na obediência (mestre/escravo; pai/filho).

A pólis será, portanto, a comunidade de cidadãos finalisticamente ordenada para o bem viver juntos (o bem comum). A autoridade desta comunidade é a política, o que significa dizer que a ordem política está baseada tanto na liberdade quanto na igualdade dos cidadãos. Para os antigos gregos, política e liberdade são a mesma coisa, conforme nos ensina Arendt, no seguinte excerto:

 

A “política”, no sentido grego da palavra, está, portanto, centrada na liberdade, com o que esta é entendida negativamente como o estado de quem não é dominado nem dominador e positivamente como o espaço que só pode ser criado por homens e no qual cada homem circula entre seus pares. Sem esses que são meus iguais, não existe liberdade, razão pela qual o homem que domina outros – e que precisamente por essa razão é diferente deles em princípio – é, de fato, mais feliz e invejável do que aqueles que ele domina, embora nem um pouco mais livre. Também ele se move em um espaço onde não há liberdade. (Arendt,  2016, p. 172).

 

 

Para os antigos gregos, portanto, quem domina e quem é dominado são ambos destituídos de liberdade. Isso pode parecer estranho para nós modernos, tão habituados que estamos a associar igualdade ao conceito de justiça, e não ao de liberdade. Hoje, definimos isonomia como “igualdade de todos perante a lei”. Mas, originalmente, isonomia não significava que todos os homens são iguais perante a lei ou que a lei é a mesma para todos, mas sim que todos têm o mesmo direito à atividade política. Na pólis, essa atividade era fundamentalmente dialógica, ou seja, assumia a forma de falar com os outros. Assim, isonomia é, essencialmente, o direito de falar e, como tal, é o mesmo que isegoria. Com Políbio, mais tarde, isonomia e isegoria passaram a dizer simplesmente isologia. Para os antigos gregos, quem falava sob o modo do mandar e quem ouvia sob o modo do obedecer não falava nem ouvia realmente; ambos não eram livres, porque estavam submetidos não ao diálogo, mas ao processo do fazer e do elaborar. As palavras funcionam aí como substitutas do fazer algo, de um fazer que pressupunha o uso da força e o ser coagido. Destarte, o déspota não é jamais livre, pois só conhece o mandar, o ordenar. Para falar, ele precisa de outros, seus iguais. Novamente é Arendt quem nos ensina o seguinte:

 

A liberdade não requer uma democracia igualitária no sentido moderno, mas uma oligarquia ou aristocracia muito estritamente limitada, uma arena na qual pelo menos uns poucos, ou os melhores, possam interagir entre si como iguais e entre iguais. Essa igualdade não tem, evidentemente, nada a ver com justiça. (ibid., p. 173).

 

 

Arendt chama de “preconceito moderno” a crença de que a política é uma necessidade imperiosa da natureza humana como a fome ou o amor. A filósofa lembra que “a política começa onde termina a esfera das necessidades materiais e da força física”. (ibid., p. 74). E ajunta que a política como tal existiu raramente e em tão poucos lugares, “que só umas poucas épocas extraordinárias a conheceram e a tornaram realidade”. (ibid.). Tornemos a considerar, contudo, a noção de pólis.

A pólis é uma associação política que reunia certo número de comunidades. A pólis era um estado federal, uma reunião de comunidades vizinhas, que compartilhavam entre si recursos e ambições. Em tempos de guerra, estavam submetidas ao poder dos mesmos chefes; nos tempos de paz, só admitiam um só soberano. Situada na tradição clássica, a política é uma ciência que pertence ao domínio da phrónesis (sabedoria prática). A política é de natureza normativa, pois que estabelece os critérios de justiça e do bom  governo, e examina as condições sob as quais o homem pode atingir a felicidade (o sumo bem) na sociedade, em sua existência coletiva. A pólis é uma comunidade organizada segundo a justiça e o princípio da autarkéia (autossuficiência, autogoverno). Ela é a consequência natural e necessária da atividade da razão prática, isto é, da capacidade humana de agir, em consonância com o verdadeiramente bom para nós e os outros, tendo em vista o bem viver juntos.

Convém, a esta altura, esclarecer por que Aristóteles considera o animal político que é o homem como um ser destinado a viver na pólis. Para entender isso, precisamos remontar à concepção de alma em Aristóteles. Concebendo a alma como enteléquia, isto é, ato primeiro e definitivo de um corpo, Aristóteles distingue nela três funções: a) a função vegetativa, como o nascimento, nutrição e crescimento; b) a função sensitiva, como movimento e sensação; c) a função racional ou intelectiva, como conhecimento, deliberação e escolha. Com base nessas três funções da alma, Aristóteles distingue entre uma alma vegetativa, uma alma sensitiva e uma alma racional ou intelectiva. Essa tripartição da alma feita por ele é resultado de sua investigação sobre os seres vivos em geral, no âmbito da biologia e da psicologia. A alma é o princípio da vida, e todos os seres vivos possuem, ao menos, uma alma. As plantas possuem apenas a alma vegetativa; os animais, por sua vez, possuem a alma vegetativa e a sensitiva; por fim, os seres humanos são constituídos de uma alma vegetativa, uma sensitiva e uma racional. A alma racional constitui a essência do homem. Também chamada de intelecto, ela é irredutível ao corpóreo; não se mistura com ele, consoante ensina Reale:

 

A afirmação de que o intelecto vem de fora significa que ele é irredutível ao corpo por sua intrínseca natureza, e é transcendente ao sensível. Significa que em nós há uma dimensão metaempírica, suprafísica e espiritual: é o divino em nós. (Reale, 2007, p. 89).

 

 

Os seres humanos, porque são compostos de uma alma vegetativa, de uma alma sensitiva e de uma alma racional, não devem viver apenas para satisfazer suas necessidades de natureza animal; devem, sobretudo, viver para o exercício do que há de mais elevado, do que é divino, em sua natureza – a razão, ou seja, a parte de nós que nos capacita para atingir o conhecimento verdadeiro. Ocorre, contudo, que não é suficiente apenas a razão para determinar nossas ações, ou seja, não basta saber o que é o melhor a ser feito. É necessário aprender a querer o que é racionalmente posto como verdadeiramente bom. Em outras palavras, é necessário que os fins que queremos alcançar por meio de nossas ações sejam fins moralmente bons. Aristóteles, por isso, afirma a utilidade da sabedoria prática (phrónesis) na determinação da ação. A phrónesis permite-nos o conhecimento dos princípios que orientam a conduta humana com vistas à felicidade (eudaimonia).

A pólis é, por natureza, anterior à casa e a cada uma de suas partes constitutivas; é governada pela justiça, cuja prática na pólis torna o homem o mais perfeito dos animais. Justiça significa ordem e racionalidade. Ela é um bem para a comunidade. Para Aristóteles, o homem injusto, o homem que vive apartado da justiça e da lei, é a pior de todas as bestas.

Vejamos, doravante, como Platão pensou a atividade política. Platão foi o primeiro dentre os filósofos a elaborar um sistema de pensamento político; e o fez com o propósito de definir a melhor forma de governo para a Pólis[1]. Aristóteles também estava interessado em determinar qual é a melhor politeia, ou seja, Constituição ou forma de Estado. Mas desse tema me ocuparei depois. Concentremo-nos na contribuição platônica para a determinação dos fins da política. Platão queria, portanto, determinar a melhor forma de governo da pólis. Para tanto, era necessário preparar gerações de filósofos em sua Academia para que se tornassem suficientemente aptos para o exercício das funções públicas. Mas também era necessário reunir um conjunto de reflexões teóricas que representariam o remédio a ser aplicado para a constituição de um novo corpo estatal. Ademais, Platão acreditava que esse corpo estatal deveria ser sustentado pela justiça e pela educação, os dois grandes pilares da filosofia política. Destarte, Platão vai propor a aproximação paulatina do filósofo, por meio da teoria (theoría), à realidade política, e sua prática (práxis), de modo que a maioria pudesse se conscientizar da necessidade de a pólis ser governada pelo rei-filósofo. Como político teórico, Platão teve o mérito de ter sido o primeiro filósofo que reuniu, numa síntese vasta e espantosa, a complexidade do funcionamento de todo um sistema político. Como filósofo, como estadista que pretendeu ser, raciona, viaja e elabora, a partir dos dados fornecidos pela experiência, a concepção sublime e original de um Estado Ideal. Expõe-lhe os amplos e sólidos alicerces; põe, a seu serviço, um grupo seleto de homens inteligentes e disciplinados, desapegados de interesses materiais, livres dos cuidados e do egoísmo da família.

Para Platão, a política é uma epísteme (ciência). E o político possui uma epísteme, ou seja, uma ciência que lhe é própria: a ciência das almas. Assim, segundo Chauí,

 

 

Graças às artes e ciências auxiliares, o político educa os cidadãos, urdindo os fios da Cidade (torce a natureza de cada um para que alcance a virtude que lhe é própria). Educados e urdidos os cidadãos, o político tecerá o tecido da Cidade, enlaçando os fios, isto é, criando laços de amor, matrimônio, companheirismo, solidariedade entre os caracteres opostos. Unirá moderados e enérgicos, velozes e intelectuais, impedindo laços entre os de mesmo caráter (pois tais laços não só enfraquecem o caráter pela repetição contínua dos mesmos traços como ainda os leva a formar partidos, facções e seitas e a lutar entre si). Aos cidadãos assim enlaçados, o político lhes atribui a função de fazer e aplicar as leis, distribuindo, segundo seus caracteres, as magistraturas, os cargos e funções públicas. O político é um artesão que fia e tece as almas para que realizem sua areté e a da Cidade. (Chauí, 2002, p. 314).

 

 

A analogia com a atividade do artesão, faz da política, para Platão, uma arte. Arte, em grego, se diz tékne (técnica). Mas, para Platão, o político não se define pela arte de tecer, e sim pela ciência dos laços. Se o político é um artesão, não seria ele um técnico? Deveras, o político pratica uma técnica, apenas na medida em que possui a ciência das almas humanas. Possuindo essa ciência, sua função é tecer os laços humanos. A ciência do político é a ciência dos caracteres humanos, dos seus acordos e desacordos, do que é bom ou excelente para cada um deles e do que os prejudica e os vicia. O político porta uma ciência diretiva, que tem de ser perfeita, não só porque recobre a totalidade dos homens que serão governados por ela, mas também porque é ela mesma a origem das normas, regras e leis. Assim, a ciência do político não se deixa determinar por nada mais além de si mesma. O político não apenas transmite ordens e as faz cumprir; ele as produz: o político é criador das leis fundadoras da pólis. O político, que possui, de fato, a ciência diretiva, ocupa-se da pólis inteira e a governa em sua totalidade. É importante atender no papel que desempenham as leis na constituição da ordem política para os gregos, no seguinte passo que nos dá a saber Chauí:

 

Normas, regras, ordens e leis criadoras não criam qualquer coisa: criam a vida coletiva, criam os viventes que irão viver juntos, produzem a alma da pólis ou a própria pólis como um ser vivo, pois dotada de alma (as leis, normas e regras). (ibid., p. 311).

 

Quão distante é a nossa concepção moderna de lei!. Nesse matéria, somos herdeiros antes dos romanos e do seu Direito que dos gregos. A lei para nós é comando; ela fixa limites, exige obediência e pune, na figura de seu guardião, o Juiz, aquele que a infringe. Claro é que a lei também é indispensável e necessária ao ordenamento político e jurídico de nossas sociedades atuais, mas não a percebemos como um dispositivo educativo. Faz-se mister acrescentar aqui alguns esclarecimentos. Por isso, interromperei, momentaneamente, o fio discursivo para estabelecer um contraste bem esquemático entre a política grega e a política romana.

O termo política designava (e, em alguns casos, ainda designa), em locais como na Pérsia e no Egito, a atividade própria do governante que comada autocraticamente o coletivo em direção a certos objetivos, quais sejam, as guerras, as edificações públicas, a pacificação interna, etc. Na Grécia Antiga, além dessas atribuições do soberano, lhe cabia, através da atividade política, reunir todos os membros da pólis de modo a formar uma totalidade ordenada e sólida. O que a política grega acrescenta aos outros Estados é justamente  o que nós, hoje, na pós-modernidade, e especialmente, no Brasil, estamos perdendo: a referência à comunidade, ao coletivo da pólis, ao discurso, à cidadania, à soberania, à lei. A política dos romanos difere fundamentalmente da política dos gregos por servir a fins manifestamente particulares (isso não nos parece bastante familiar?!). A política, na Roma Antiga, deveria servir aos interesses dos gens[2] originais que precisavam assegurar o seu monopólio sobre as riquezas saqueadas ou sobre a exploração da terra. A palavra pátria, tão fartamente repetida pelo discurso bolsonarista, revela ainda essa origem familiar. Ela se forma a partir de pater, que quer dizer “pai” no sentido de “pai de família”, aquele que exercia poder absoluto sobre os filhos, mulher, escravos. Os nobres romanos seriam os patrícios, ou seja, os proprietários. Além destes, havia os escravos e aqueles que só possuíam a sua prole, chamados proletários (do latim proletarius). O proletário era o cidadão romano pobre cuja única utilidade era gerar filhos. O bom governante era visto como um tutor. Assim pensava Cícero, para quem o bom governante deve resguardar os interesses de seus pupilos mais do que aos seus próprios. O Estado romano seria como uma espécie de administrador que tutela interesses dos patrícios, impondo aos demais os interesses destes, seja pelos tributos – “impostos” -, seja utilizando-se dos não proprietários como instrumentos de saque, como guerreiros. Na Roma Antiga, portanto, a atividade política, além de se caracterizar pela dominação do Estado, concernia à relação entre tutor e pupilos. Essa relação era mediada pelo direito romano. O direito romano garantia a não interferência do Estado na propriedade privada, nos interesses dos patrícios e a não intromissão do público, do coletivo na esfera do privado, do particular. Ora, não é difícil inferir daí que o Estado moderno, mais amplo e mais burocratizado, servindo aos interesses particulares e setoriais e os estendendo ao conjunto da sociedade, sem qualquer compromisso como agente de realização do bem comum – como Tomás de Aquino batizaria o bem supremo de Aristóteles -, tem seu modelo em Roma. A Roma Antiga não era uma pólis. A atividade política romana nada tinha que ver com as relações cidade-Estado, mas era, sobretudo, um jogo entre tutores e pupilos – militares, burocratas e burguesia – e suas práticas de manipulação, corrupção e repressão. A atividade política, em Roma, centrava-se na disputa pelo poder de tutela do Estado, o qual era uma instituição a serviço de interesses privados.

 

 

3.2.1. A pedagogia política

 

A política, no pensamento de Platão, é indispensável à condução dos negócios públicos e representa o conjunto dos cuidados para com os indivíduos e os cidadãos. Cabia à atividade política o papel de determinar o destino da pólis e de determinar a realização do indivíduo. Para Platão, não é o indivíduo que existe para o Estado, mas o Estado que existe em função do indivíduo. Platão mantém que a legislação é responsável pelas grandes transformações na vida cotidiana e na vida individual. A função da política é educar, preparar os cidadãos com vistas a conduzir a pólis ao melhor. A política, tal como concebida por Platão, deve estar em conformidade com a Natureza (phýsis), adequada aos fins e em conformidade com o Bem Comum. O grande propósito da política é a educação dos cidadãos para a vida justa na pólis.

Traduzido como República, Estado ou Constituição, a politeia diz respeito aos regimes de governo. Platão julga bom e justo um governo apenas: a aristocracia. Cuida desfavoráveis à pólis: a timocracia, a oligarquia, a democracia e a tirania. Aristóteles acompanhava Platão na rejeição à democracia. Na verdade, Aristóteles denunciou os riscos de cada um dos regimes então conhecidos. Propôs para os gregos a politia como o regime de governo mais conveniente, a qual permitiria a alternância de homens capazes de governar e ser governados segundo a lei, mesmo que não sobressaíssem na virtude política. A politia é um termo médio entre a oligarquia e a democracia. Na politia, governaria uma multidão suficientemente abastada, não pobre como na democracia, para poder servir ao exército e se destacar nas habilidades guerreiras. Para Aristóteles, a democracia era uma forma de governo que favoreceria demais os pobres, descurando do bem de todos. Nós, modernos, veríamos nessa concepção negativa de democracia não a democracia como a concebemos mas a demagogia.

O Estagirita definia a Politeia ou Constituição como uma ordem de magistraturas, que estabelecem o seu modo de distribuição e determinam qual é o poder supremo. Magistrado, provém do latim magistratus, e significa tanto a função de governar como a pessoa que governa. Na Antiguidade, o magistrado era um funcionário do Estado investido de autoridade. São magistrados também os membros que participam da administração política ou que integram o governo de um Estado, tal como o Prefeito, o Governador e o Presidente da República. É mais comum, no entanto, atualmente, o uso de magistrado para se referir a juízes, desembargadores e ministros. Cada Constituição, segundo Aristóteles, determina como deve ser distribuída a autoridade política na pólis, como deve ser distribuído o poder. Se este pertence a um só, temos a monarquia; se pertence a um grupo apenas, temos a aristocracia; se pertence a todos os cidadãos, temos a república. Todos estes três regimes políticos são convenientes, a menos que façam predominar o interesse geral sobre os interesses particulares. Mas todos podem correr o perigo de desvios, sempre que precisamente os interesses particulares se sobreponham ao interesse geral. Destarte, a monarquia pode degenerar em tirania; a aristocracia, em oligarquia ou despotismo dos ricos; e a república, em democracia ou tirania das massas.

 

 

3.2.2. A política, a leis e a função do Estado

 

A política depende das leis para realizar-se e ser praticada. Mas, para os antigos gregos, as leis não se destinam apenas a proibir e coibir; elas também servem ao propósito de estimular, incentivar, educar. Às leis cumpre a função de incitar o político a dispensar os cuidados devidos à coletividade como um todo, bem como aos cidadãos, considerados partes de uma totalidade ordenada. No tocante à função do Estado, cabe a este não somente prover os cidadãos com o mínimo necessário à sua subsistência, como também – e sobretudo – conduzi-los para o bem viver. A verdadeira missão da política reside na educação, e educar as almas é a função do Estado. As almas são educadas para servir aos fins maiores do Estado (o que, para muitos de nós, modernos, defensores do regime democrático fundado na liberdade e pluralidade dos indivíduos, pode nos soar como uma forma de servidão totalitária). Cada tipo de função fixada para um cidadão exige um tipo de educação. O bem-estar da pólis e do indivíduo é determinado pelas condições em que se estruturam as políticas do Estado. A verdadeira função do Estado é desenvolver as habilidades, as aptidões dos cidadãos, a fim de que se tornem os mais excelentes e virtuosos. No pensamento platônico tanto quanto no de Aristóteles, política, educação e ética são indissociáveis. Na obra de Platão, a educação e a cultura constituem os alicerces da construção dos espaços públicos, de sorte que a política e as leis se põem a serviço da realidade educacional e dos ideias de felicidade humana.

 

 

3.2.3. Política e Justiça

 

Também política e justiça são indissociáveis no pensamento político de Platão. A justiça só pode realizar-se no Estado. Quando Platão afirma que ao Estado compete o papel de prover o indivíduo das coisas necessárias à sua subsistência, fica patente que o Estado existe em função do indivíduo. Indivíduo e Estado não se opõem, mas completam-se e se devem auxílio mútuo. O Estado, contudo, deve incumbir-se de tutelar os direitos dos súditos e fornecer aos cidadãos os meios comuns indispensáveis à sua felicidade neste mundo.

Considerar a justiça como uma realização que compete ao Estado é rechaçar a crença de que a ordem política é instituída com atos de irracionalidade violenta. Para Platão, pelo menos, as coisas não se dão dessa maneira (ou não deveriam se dar). Para ele, o arbítrio, a ignorância, a guerra, a força, a violência não são modos de realização do poder nem os meios de ter acesso a ele, nem de conservá-lo. Platão advoga em favor da política justa, cuja conquista e manutenção se devem ao conhecimento. Essa é a base de suas meditações sobre o Estado ideal. O Estado é, para Platão, o meio suficiente para poder realizar a felicidade geral (essa concepção de Estado não corresponde ao modo como realmente o Estado se instituiu e funciona, conforme mostrarei na terceira parte deste trabalho). Para Platão, o Estado deve proporcionar o exercício da virtude maior, deve possibilitar o alcance do Bem Comum. Por conseguinte, o Estado é exclusivamente Estado ético. O mau governo não cumpre sua função; ele não representa aquilo que deve à coletividade.

A justiça, que se faz no Estado, só se realiza quando as partes exercem suas funções conforme lhes foram previamente determinadas. A pólis, para ser justa, tem de funcionar à semelhança de um organismo cujas partes realizam suas respectivas funções. A tarefa de cada um é definida pela política e pelo corpo de dirigentes políticos. Platão pensa a ordem da pólis por analogia com a estrutura da alma. A alma precisa ser governada pela parte racional. As partes da alma estão organicamente a serviço da razão. Nenhuma das partes se sobrepõe às outras. Também a estrutura da pólis deve ser governada pela razão, e não pela paixão. A pólis se organiza em partes que não suplantam umas as outras. Portanto, a ideia de igualdade entre todos os cidadãos repousa na atribuição de funções a cada qual e na realização por cada um dessas funções com vistas ao bom funcionamento do todo. As distinções estabelecidas entre as partes se fazem com base nas aptidões de cada uma e não em critérios aristocráticos. A justiça e a ordem de uma sociedade consistem na distribuição harmoniosa e equânime das atividades ou das funções, no funcionamento harmonioso dessas atividades sob o governo do rei-filósofo, a quem tem a capacidade de determinar o melhor destino para a pólis, porque só ele conhece a ideia do Bem e é guiado por ela. Somente o filósofo é o representante apto para transformar a política no espaço das preocupações mais importantes para o crescimento da alma humana. Somente ele é capaz de aproximar os mortais (os humanos) do imortal (o divino), ligando-os.

 

 

Palavras finais

Antecipando uma característica contrastante, que se esclarecerá melhor na última parte deste artigo, entre a concepção política da Antiguidade e a da Modernidade, convém atender nas seguintes palavras de Arendt:

 

(...) desde a Antiguidade, ninguém acredita que o sentido da política seja a liberdade (...), no mundo moderno, quer teórica, quer praticamente, a política tem sido vista como meio de proteção dos recursos vitais da sociedade e da produtividade de seu desenvolvimento livre e aberto. (ibid., p. 163).

 

Para Arendt, política e liberdade significam a mesma coisa, pois “a liberdade de partir e começar algo novo e inaudito” e a “liberdade de interagir oralmente com muitos outros e experimentar a diversidade que é a totalidade do mundo” são “a substância e o significado de tudo que é político”. (ibid., p. 185). Para Arendt, “a política se baseia no fato da pluralidade humana” (ibid., p. 144) e acrescenta “política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes”. (ibid., p. 145). Só há, portanto, possibilidade de liberdade, para Arendt, no interior do espaço político; fora da política, não há liberdade possível para o homem. Ser verdadeiramente livre é não ser determinado ou movido pelas condições da existência concreta.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ARENDT, Hannah. A promessa da política. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Difel, 2016.

METEORO BRASIL. Tudo o que você precisou desaprender para virar um idiota. São Paulo: Planeta Brasil, 2019.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

REALE, Giovanni. Aristóteles. Trad. Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

 

 



[1] Os textos fundamentais em que Platão desenvolve uma discussão sobre a política são República, Político e Leis.

[2] Gens era um termo usado, na Roma Antiga, para referir-se à identidade familiar de um conjunto de famílias ligadas à aristocracia romana.