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sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

"Todos nós desejamos amar, mas nem todos dispomos de suficiente vontade e talento para tanto" (BAR)

            


                Sobre a nossa incapacidade de amar

Quando o assunto é amor, dois coros de vozes se dispõem antagonicamente. De um lado, ouvem-se os otimistas que não cessam de acreditar que o amor é capaz de tudo: ele é constante, eterno e criativo. Estes se acostumaram à crença num caráter salvífico do amor. De outro lado, protestam os pessimistas, que denunciam o óbvio: as expectativas geradas pelo amor são repetidamente frustradas. Estes chegam, pois, a uma conclusão que conta com o testemunho da realidade: a natureza humana não permite que as esperanças do amor se realizem. O amor humano, à luz dessa visão, está atolado em ilusão, encarcerado no narcisismo, na incompreensão, na possessividade e na manipulação egoísta. Freud e Proust (entre outros) são, reconhecidamente, partidários dessa visão.
É notável, contudo, que tanto Freud quanto Proust estejam ainda vinculados a uma concepção cristã do homem, que eles tentaram rejeitar. No seu esforço por substituir as velhas categorias com base nas quais se explica a depravação humana, tais como ORGULHO, LUXÚRIA e IRA, esses autores não fizeram senão dar a elas um tratamento linguístico secularizado, donde a ocorrência de termos como NARCISISMO, PROJEÇÃO e INSTRUMENTALIZAÇÃO DO OUTRO para descrever o que aquelas categorias descreviam.
As dúvidas que eles acalentavam sobre a possibilidade de o homem ser capaz de um amor calcado sobre o despojamento do ego, de um amor altruísta, que seja a expressão de alegria sem a posse do outro, são muito semelhantes às que nutria, por exemplo, Santo Agostinho.
Lembremos o que a tradição cristã nos ensinou sobre o amor. No cristianismo, o amor é a fonte e a medida de todas as virtudes. O amor, como Deus, é eterno. No entanto, quando os pensadores cristãos teorizaram sobre a capacidade humana de amor (vejam-se, por exemplo, Santo Agostinho e Lutero), eles concordaram, em sua maioria, que o amor é uma graça de Deus, de modo que só podemos amar por intermédio de Deus. Agostinho e Lutero ainda estariam de acordo quanto a outro ponto: somos incapazes de amor genuíno. São Tomás, ao contrário, embora aquiescesse à ideia de que o amor genuíno fundamentalmente provém de Deus, acreditava que não somos meros recipientes para a ação de Deus. São Tomás argumentava que temos vontade animada, a qual, com o concurso da graça, poderia se desenvolver até o estágio em que atingiríamos a perfeição espiritual. Ele não negava que o amor – a suprema das três virtudes teologais, às quais se reúnem a fé e a esperança – fosse infundido em nós por Deus; mas não concordava com Agostinho no tocante à crença de que não sejamos naturalmente capazes de amar (tendo sempre em conta a concepção de amor cristão).
Se articularmos a visão cristã sobre a incapacidade humana de amor genuíno, tal como sustentada por Santo Agostinho – visão também ela pessimista – à visão secularizada do pessimismo de um Freud ou de um Proust, não será difícil concluir que a capacidade de amor não é possuída por todos; o amor está entre os mais raros de todos os talentos. Ele é tão excepcional quanto a capacidade que tem um grande artista de deixar-se penetrar pelo mundo para recriá-lo através de sua arte.
O que a experiência cristã e os teóricos da visão de mundo secularizada nos ensinam a respeito do amor é que ele exige um longo e meticuloso trabalho e aprendizado. Todos nós desejamos amar, mas nem todos dispomos de suficiente vontade e talento para tanto.




(BAR)

domingo, 7 de dezembro de 2014

"O romantismo: O romantismo é um produto do cristianismo. Religiosidade exagerada, veneração fantástica às mulheres e valentia cavalheiresca, portanto Deus, a dama e a espada são os símbolos daquilo que é romântico." (Arthur Schopenhauer)

       
                 

                     

                                  Um itinerário filosófico-(des)amoroso
                          O amor-paixão e suas desventuras


Na história do pensamento filosófico, não foram raros os filósofos que levaram a efeito uma crítica corrosiva do amor, que os levou a considerá-lo uma espécie de mal contra o qual deveríamos nos imunizar. Pode-se citar, entre os filósofos para os quais é necessário prevenir-se contra as maquinações do desejo amoroso, Lucrécio, Schopenhauer e Nietzsche. Se nosso interesse é meditar sobre o amor filosoficamente, cumprir-nos-á, de início, reconhecer a necessidade de distinguir entre três tipos de amor, contemplados no curso da tradição: amor-eros ou amor-paixão, amor-philia e amor-caritas.
Quando me debruço sobre o tema do amor, concebendo-o como experiência de envolvimento entre um homem e uma mulher, e busco encaminhá-lo, tomando como modelo para o desenvolvimento de minhas reflexões, o amor materno, que defino como amor de cuidado, estou ciente de que construo uma perspectiva de amor idealizada, explicável, no entanto, pela interpretação psicanalítica, segundo a qual escolhemos nosso parceiro amoroso com base no modelo de amor constitutivo de nossas experiências com nossa mãe. A forma como se deu essas experiências de amor vai moldar nossas escolhas amorosas na fase adulta. O equívoco que se segue dessa tentativa de estender um modelo de amor, fundado na experiência do cuidado, à busca por entender a experiência de amor entre um homem e uma mulher consiste em ignorar que essa experiência de amor é sempre a de um amor interessado e sexual. Disso resulta que, segundo vários filósofos, essa experiência de amor, fundada na atração sexual, é uma experiência de possessividade, contaminada pelo ciúme e pela ilusão de fusão.
Quando Schopenhauer observou que o amor é um mal, ele se referia ao amor- paixão, ou ao amor romântico. A paixão amorosa é um perigo que Lucrécio, filósofo romano do século I a.C, tratou de denunciar. Lucrécio recomendou que os homens deveriam evitar se apaixonar, sob pena de se tornarem escravos de seu desejo jamais satisfeito definitivamente. O desejo sexual é fonte de sofrimentos, pois carreia ciúme e inveja, além de levar também os amantes a idealizar um ao outro. Poder-se-ia dizer que os que se deixam embeber-se da paixão amorosa estão a amar a imagem construída do outro, e não o outro tal como realmente é.
Este texto se destina à exposição e ao esclarecimento do pensamento desenvolvido por Lucrécio, Schopenhauer e Sartre acerca do amor, na tentativa de nos fazer ver as maquinações com as quais nossa sensibilidade moderna está entrelaçada, por força do trabalho de uma tradição romântica, cujos alicerces repousam numa longa tradição socrático-platônica e cristã, no interior da qual o valor do amor foi sobremaneira estimado. É certo que o Romantismo se encarregou de deturpar a visão de amor platônica, a qual não privou o amor de sua dimensão sexual; devemos a essa tradição romântica a crença, muito corrente no senso comum, de que o amor platônico é amor da impossibilidade de realização, da impossibilidade de consumação sexual. O amor platônico é impulsionado por Eros e nunca deixa, por isso, de ser erótico. No entanto, o amor para Platão deve conduzir os amantes, numa escalada de conhecimento, a amar o Belo em si. Os amantes são produtores de belezas; de modo que os enamorados devem ser movidos a amar o saber, a filosofia, até experienciar o amor à Forma, à Essência do Belo.
Cumpre frisar que o amor que será por mim contemplado nesta exposição é o amor-paixão.



1. Da necessidade de não se apaixonar: uma lição de Lucrécio

Lucrécio, poeta e filósofo romano do século I a.C, tornou-se famoso por seu poema filosófico De rerum natura (Da natureza das coisas), no qual enaltece Epicuro e revela sua visão de mundo. Lucrécio, poeticamente, descreve os fenômenos da natureza, os mais belos e os mais horríveis, esclarecendo suas causas naturais, à moda do atomismo mecanicista de Epicuro. Para Lucrécio, a filosofia precisa libertar os homens do terror, das superstições e do medo dos deuses. Face a esses medos, o filósofo deve empreender a busca pelo sentido do belo e a tranquilidade da alma.
A Roma de Lucrécio era um lugar de pragmatistas. O pragmatismo estruturava quer a esfera política, quer a da engenharia, quer ainda a do amor. Para Lucrécio, o amor não é mais do que um impulso natural que se corrompe quando se torna objeto de expectativa para a remissão do sofrimento (concepção esta que a Roma cristianizada viria a rejeitar, quando o cristianismo conferiria ao amor um valor supremo e o veria como uma força capaz de remir o sofrimento, o pecado e a morte), do mal e da morte.
Lucrécio atribuiu ao amor e a amizade um lugar central na vida, mas rejeitou o endeusamento da paixão, a qual era vista como uma espécie de escravidão e portadora das mais terríveis infelicidades. Tendo examinado cuidadosamente o modus operandi do desejo sexual e a irresistível necessidade em que ele está baseado, a saber, a necessidade de procriação e de prazer, Lucrécio esperava que nós nos tornássemos capazes de controlá-lo, em vez de nos deixar controlar por ele. Assim, acreditava que nos libertaríamos do medo, da loucura e da ilusão consequentes da tirania do desejo.
Lucrécio entendia que aquilo que as pessoas eroticamente embriagadas chamavam de amor não é senão um sintoma do instinto inconsciente de autoperpetuação. Seu modus operandi é poder e manipulação, guerra e ilusão.
O amor não era, para ele, uma virtude, mas um perigo; e a arte de amar consiste em viver esse instinto impulsivo e imprudente sem nos submetermos a ele. Fica excluído dessa visão de amor qualquer domínio de espiritualidade.
O sexo vicia – disso tinha certeza Lucrécio. O desejo nunca é satisfeito de modo definitivo e, diferentemente de outras formas de desejo, como o de comida e de água, quanto mais buscamos satisfazer o desejo sexual, mas dele ficamos inflamados. Lucrécio não negará a necessidade de gratificação do apetite sexual, mas recomendará moderação. Seu intento é nos libertar da tirania desse desejo e da paixão amorosa.
Não se segue do exposto acima que Lucrécio deixe de regozijar-se com o impulso amoroso, o qual vê como um poder generativo da deusa Vênus. A vitalidade desse poder emociona-se consigo. É ela o deleite ao qual devemos a conservação da vida como um querer mais de si mesma. Isto é, um querer de procriar.
Não devemos nos apressar em concluir que Lucrécio entendesse ser a vida boa em si mesma, nem má. Não sendo má a vida em si mesma, Lucrécio não era um pessimista, como o foi Schopenhauer. Lucrécio era um desalentado: ele evidenciava os horrores da vida cruamente, sem daí concluir que fosse mal em si.
Schopenhauer também verá a paixão sexual como uma energia erótico-cósmica de que está impregnada a natureza. Essa força vital procriadora ele chamará de “Vontade de vida”. No entanto, ao contrário de Lucrécio, por reconhecer nessa força sua insaciabilidade e o sofrimento a que ela nos conduz, ele verá a vida como um mal em si mesma.

2. Os três remédios de Lucrécio

No mundo antigo, grego e romano, a necessidade de prevenir-se contra a loucura do amor, mormente contra a tendência a ser idealizado ou a ser demonizado, quando nos lega uma grande decepção, era lugar-comum. Lucrécio oferece três remédios a esses males do amor, quais sejam: contemplação, casamento e promiscuidade. Destarte, a tirania do sexo pode ser acalmada pela contemplação, contida pelo casamento e, se tudo o mais fracassar, dissolvida pela promiscuidade.
Pela contemplação, desfrutamos prazeres simples e sociáveis. Podemos ver pessoas sexualmente atraentes, sem nos deixar dominar pela lascívia, o medo, o ciúme, a possessividade ou outras paixões tirânicas.
Correndo o risco de dizer muito esquematicamente, uma vez nos surpreendamos desejando fortemente alguém, devemos, propõe Lucrécio, estabelecer uma relação de amizade com essa pessoa e desfrutar deleites moderados, inclusive sexuais. Aqui, Lucrécio revela-se claramente epicurista. Mas reconhece que é extremamente difícil disciplinar nossos impulsos sexuais e nossos anseios por emoção embriagadora em geral.
Aos que, dentre nós, são incapazes disso, ele sugere o casamento e a geração de filhos, como meio de por termo à tendência de produzir ilusões sobre o nosso parceiro amado. Ambos os amantes passariam a se ver com realismo, sem o qual as relações humanas estão destinadas ao malogro. O desejo, em virtude do casamento, será refreado pela satisfação circunstancial, bem como pelas rotinas da vida conjugal. O sexo será canalizado para seu fim próprio: gerar a prole.
Lucrécio não pretende ser cínico ao sugerir o casamento como remédio para arrefecer o desejo sexual, livrando os amantes de suas armadilhas; ao contrário, ele elogia o casamento, porquanto ele resolve o eterno problema de como tornar possível a socialização e a satisfação de nossos anseios desregrados, tornando possível, assim, atingir uma relação duradoura e feliz.
Não há espaço para dar a saber o que nos diz Lucrécio sobre quem deve ser a pessoa adequada para a união conjugal. Considere-se, finalmente, o seu último remédio contra a tirania da paixão amorosa: a promiscuidade.
Aos que são torturados pela obsessão vã devem, pondo freio à imaginação, se lembrar de que há outras amantes atraentes no mundo e devem buscar alívio para sua carga libidinal onde quer que haja oportunidade de sexo recreativo. Escreve, assim, Lucrécio:

Mantenha longe da imaginação e afugente
Tudo que estimula o amor;
Volte sua mente para outros lugares
Livre-se do fluido em qualquer corpo que puder
Em vez de guardá-lo para uma pessoa
O que está fadado a levar a infortúnio e terminar em dor.


3. O amor na visão de Schopenhauer

A filosofia schopenhaueriana é marcada por um profundo pessimismo. Schopenhauer mantém que toda a realidade é governada por uma vontade cega e absurda de viver que leva todo o universo e cada ser vivo a desejar incessantemente algo que, uma vez obtido, torna-se motivo de insatisfação. Vê-se já aqui a medida da dívida que o pensamento de Freud tem para com o pensamento de Schopenhauer.
Segundo o filósofo de Dantzig, a vida do ser humano  combina tragicamente dor e tédio, anseio e luta: desta situação é possível libertar-se somente pondo fim à vontade e a si próprio, alcançando a tranquilidade nulificante de uma espécie de nirvana.
O amor é visto, portanto, à luz dessa concepção pessimista da vida, como um sentimento falso e enganador, primeiramente porque está calcado sobre o instinto sexual, que não é outra coisa senão um fatídico estratagema de que se serve a natureza e, por isso, a vontade, a fim de perpetuar a si própria, por meio da produção de novos indivíduos. Novamente aqui vemos o amor reduzido a um instinto, sem bem que perverso, de procriação. Em segundo lugar, o amor é ilusão, porque a maquinação da natureza se dá à revelia dos envolvidos na experiência amorosa, os quais acreditam que estão vivendo livremente seu amor, embora eles sejam meros instrumentos da vontade postos a serviço da sua finalidade própria: a reprodução. Para Schopenhauer, o casamento também atende a esta lógica rígida e, portanto, é desprovido de qualquer valor sagrado.
O amor é servo da vontade, da irracionalidade que governa cada evento e situação, fato demonstrável pela loucura que, não raro, caracteriza a experiência amorosa. O amor é poderoso e engana. E o ser humano que sucumbe ao jugo do amor é capaz de cometer qualquer perversidade e de resignar-se a toda sorte de sofrimento. O amor o ilude prometendo-lhe uma felicidade não factível. O prazer sexual é sempre uma experiência momentânea e insatisfatória, porque a finalidade do amor não é o contentamento do homem e da mulher, mas possibilitar a geração de filhos e, assim, a perpetuação da natureza.
Schopenhauer, contudo, contemplou outro tipo de amor, que podemos chamar de amor-caridade. Trata-se de um sentimento de compaixão que o ser humano experimenta quando descobre que sua própria dor é igual à dos seus semelhantes. Esse tipo de amor leva-o a se inclinar a um sentimento de partilha e solidariedade. Mesmo sendo ateu, Schopenhauer concebe um tipo de amor semelhante ao amor cristão, isto é, o amor-caridade, que não satisfaz quem o experiencia, mas expressa tão-só piedade para com a miserabilidade da condição do outro. Poder-se-ia dizer que esse tipo de amor conduz os homens a se reconhecerem como filhos do sofrimento inerente à existência.

4. O amor, segundo Sartre

Na fase existencialista de sua obra, Sartre não cessou de insistir no caráter conflitante das relações interpessoais. Seu pessimismo é extensivo às relações amorosas também.
Na opinião de Sartre, o amor é irrealizável, dado que qualquer relação de um ser humano com outro implica uma série de contradições insolúveis. É de se notar, de início, que a experiência amorosa impõe limites à liberdade alheia, não obstante acreditarem os amantes que respeitam a liberdade um do outro.
Além disso, segundo Sartre, o impulso amoroso funda-se numa vontade de unir-se totalmente à pessoa amada, na esperança, de todo injustificável, de que se estabeleça, assim, uma reciprocidade plena de sentimentos e anseios. Pura ilusão! – dirá Sartre. Toda tentativa nesse sentido está fadada ao fracasso, porque, embora o amante declare ser tudo para o amado, sem que isso signifique reprimir-lhe a livre expressão de sua personalidade, a reciprocidade de sentimentos resulta irremediavelmente impossível, de modo que só resta a cada qual um isolamento insuperável.
Não há lugar para esperanças e salvações, na visão sartreana de amor, porque as relações humanas jamais escapam à lógica da posse e da sujeição. O amor é desprovido de autenticidade, já que as relações humanas também o são. Logo, elas, tanto quanto o amor, estão destinadas ao fracasso. Longe de os outros serem fontes para relacionamentos gratificantes, eles são, para Sartre, nosso próprio inferno.

sábado, 8 de novembro de 2014

Poemas - Os bastidores de uma prosa amorosa


                                                   

                                                                      


Desesperadamente


Amemos! Não sem cuidado
Pois o amor dentre as coisas débeis
É deveras a mais frágil

Amemos como as crianças
Sem saber por que ou para que
Amemos sem razão e com gratuidade
Amemos à proporção de nossa saudade
Daqueles que jamais tornaremos a ver

Amemos como se amanhã fôssemos morrer
Amemos como se morre todos os dias
Amemos porque uma vida sem amor
É coisa terrível de suportar
Amemos desesperadamente
O desejo de amar

(BAR)



               Os bastidores de uma prosa amorosa
                                

Deixa-me dizer-te uma coisa.  Não acredites em tudo que escrevo; tão-só afia-te no que não consigo escrever, no que permanece no silêncio que se ouve por detrás das minhas palavras, ou no interstício entre elas; pois somente assim compreenderás que sou desmesura quando amo e que, quando não amo, quase sempre, componho um canto suplicante de amor fremente. Se te esforçares por auscultar o logos do meu silêncio, saberás que sou amante das horas solitárias, das sutilezas, do inapreensível e que, sendo eu indizível que se diz insistentemente, costumo dar corpo a ilusões ordinárias.
Se pretendes aprender alguma coisa com minhas palavras, ou mesmo se esperas delas algum conforto ou alento, advirto-te de três coisas: que nada posso ensinar, que minhas palavras podem até desesperar, e que nada delas é possível esperar senão uma embriaguez de desalento.
Também é imprudente pretender contemplar nelas alguma beleza que não seja a que se deixa entrever, a que gosta de esconder-se. Se há uma beleza suscetível de ser contemplada, nunca estará ela a descoberto. Sugiro que a procures no lugar próprio do não-dito, ou nas regiões do inefável, ou ainda no domínio daquilo que, se dizendo, se põe ao abrigo do silêncio inquisidor.
Por fim, se esperas de mim um amor que te aguarda na ante-sala da prosa ou no anfiteatro dos versos, desiste, pois que o amor que te devoto é amor de bastidores, onde improvisamos nossa história de enlace, onde não ensaiamos nosso romance, que é cotidianamente reinventado. O amor que te consagro é um canto que se deixa sentir nos recônditos do silêncio das palavras que, a cada vez enunciadas, inaugura o espetáculo do indizível.
Assim, deve ser o amor nesse grande teatro que é a existência, onde o trágico e o cômico se harmonizam para compor uma sonata candente: é esta um desejo de silêncio amoroso imperturbável que dá corpo, gozo e fôlego ao indizível.




Canto de desmesura


Eu canto a desmesura e nela repouso
A minha voz que se veste do indizível
Meu canto é um canto lírico de desgosto
Por ver no amor a realização do impossível

Quando amo sou excesso num instante
Sou eu o indizível que se diz insistentemente
Quando não amo entoo um canto suplicante
Que se faz sentir de amor fremente

E saberás, quando ouvi-lo, que sou amante
Das horas solitárias, das noites tempestuosas
Que dou corpo aos acenos intangíveis

De uma alma desassossegada e desejante
Dos encontros de dor, das ternuras amorosas
Que se cantam em versos imperecíveis


(BAR)

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

"O movimento do amor é este movimento de mãos dadas" (BAR)

                                             
                                                  


                                       Nietzsche e o amor



“As coisas que chamamos de amor – Cobiça e amor: que sentimentos diversos evocam essas duas palavras em nós! – e poderia, no entanto, ser o mesmo impulso que recebe dois nomes; uma vez difamado do ponto de vista dos que já possuem, nos quais ele alcançou alguma calma e que temem por sua “posse”; a outra vez do ponto de vista dos insatisfeitos, sedentos, e por isso glorificado como “bom”. Nosso amor ao próximo – não é ele uma ânsia por nova propriedade? E igualmente o nosso amor ao saber, à verdade, e toda ânsia por novidades? Pouco a pouco nos enfadamos do que é velho, do que possuímos seguramente, e voltamos a estender os braços; ainda a mais bela paisagem não estará certa de nosso amor, após passarmos três meses nela, e algum litoral longínquo despertará nossa cobiça: em geral, as posses são diminuídas pela posse. Nosso prazer conosco procura se manter transformando algo novo em nós mesmos – precisamente a isto chamamos possuir. Enfadar-se de uma posse é enfadar-se de si mesmo (Pode-se também sofrer da demasia – também o desejo de jogar fora, de distribuir, pode ter o honrado nome de “amor”.
(...) Mas é o amor sexual que se revela mais claramente como ânsia de propriedade: o amante quer a posse incondicional e única da pessoa desejada, quer poder incondicional tanto sobre sua alma como sobre seu corpo, quer ser amado unicamente, habitando e dominando a outra alma como algo supremo e absolutamente desejável. Se considerarmos que isso não é outra coisa senão excluir todo o mundo de um precioso bem, de uma felicidade e fruição; se considerarmos que o amante visa o empobrecimento e privação de todos os demais competidores e quer tornar-se o dragão de seu tesouro, sendo o mais implacável e egoísta dos “conquistadores” e exploradores; se considerarmos, por fim, que para o amante todo o resto do mundo parece indiferente, pálido, sem valor, e que ele se acha disposto fazer qualquer sacrifício, a transformar qualquer ordem, a relegar qualquer interesse: então nos admiraremos de que esta selvagem cobiça e injustiça do amor sexual tenha sido glorificada e divinizada a tal ponto, em todas as épocas, que desse amor foi extraída a noção de amor como o oposto do egoísmo, quando é talvez a mais direta expressão do egoísmo (...) Bem que existe no mundo, aqui e ali, uma espécie de continuação do amor, na qual a cobiçosa ânsia que duas pessoas têm uma pela outra deu lugar a um novo desejo e cobiça, a uma elevada sede conjunta de um ideal acima delas: mas quem conhece tal amor? Quem o experimentou? Seu verdadeiro nome é amizade.

(A Gaia Ciência, pp. 63-65)


Comentário:

Para esse fragmento de Nietzsche, pode-se propor o seguinte itinerário de leitura. Estabelecendo um diálogo com toda uma tradição sócio-histórica ocidental que construiu e disseminou representações coletivas do amor como sentimento desinteressado, libertário, divinizado, Nietzsche busca desconstruir o legado dessa tradição revelando o que ela oculta: a natureza cobiçosa do amor. Para Nietzsche, o amor é desejo ou ânsia de cobiça. Se aquela tradição opunha cobiça a amor, se ela considerou o amor como sentimento antagônico da cobiça, Nietzsche mostrará que o amor é, essencialmente, cobiça ou desejo de posse.
Cobiça e amor são nomes para o mesmo impulso. Todas as variações de amor, seja qual for seu objeto, são variações da cobiça. O amor é exercício de poder, é apoderamento.
Na condição de cobiça, o amor é, necessariamente, marcado pela fluidez, pela inconstância, pela instabilidade, pela insaciabilidade, pelo egoísmo. Nenhuma cobiça se satisfaz, por isso nenhum amor é satisfeito. O cobiçoso, ou seja, o amante se enfada do objeto de seu amor em pouco tempo e se apressa por possuir novos objetos, que passam a ser monopolizados por seu amor. O amor condena os amantes a essa busca motivada pelo desejo insaciável de conquistas, de propriedade.
A expressão máxima desse desejo de propriedade é, segundo Nietzsche, o desejo sexual. Por quê? Porque o amante quer possuir incondicional e permanentemente a pessoa amada. Ele quer habitá-la e dominá-la exclusivamente, e o faz na condição de ela ser absolutamente desejável e enquanto desejável.
Dessa habitação monopolizadora da alma e do corpo do outro, está todo o mundo excluído. Todo o mundo está privado da fruição e da felicidade dessa relação de propriedade. Aqui, segundo Nietzsche, reside a dimensão egoísta do amor (e também a raiz do ciúme, quando o amante desconfia de que outros investidores reivindicam o direito à propriedade também).
Para Nietzsche – cumpre notar – o amor, enquanto signo de subversão, também é uma forma de expressão de egoísmo. Quem por amor pretende subverter a ordem social, as normas vigentes o faz em nome de seus próprios interesses como proprietário de um capital amoroso.
Ao cabo, põe em dúvida o filósofo a possibilidade de experienciar uma forma mais elevada de amor, que, não deixando de ser cobiçosa, eleva os envolvidos e os conduz na construção de uma estrutura de relação que não é mais a de possuidor-objeto; mas de sujeitos que se reconhecem como possuidores e cobiçosos não mais um do outro, mas de um novo ideal: o da amizade.

(BAR)



Passeio

Lendo Nietzsche...
Ler é passear...
Passeio do espírito
Corporificado
Passeio palavreado
Movimento entretido

O movimento do amor
É este movimento de mãos dadas
Na banalidade da vida
No cotidiano comum dos enamorados
Devemos desejar alguém que passeie
Conosco
Que também conosco pense
Que contemple abismos
Onde costumeiramente se vê ponte
Estrada, desvio

Que não se ama mais como outrora
É coisa que se repisa
Já bem reconhecida, meditada
Que devemos nos proibir de dizer
Pois é certo que até mesmo o amor entedia
Os que de amor morriam
Pelo veneno da redenção
São páginas viradas
Ou esquecidas

Não obstante
Ainda se busca no amor uma felicidade impossível
Sem que se perceba que toda felicidade possível é a de um passeio
Necessariamente episódica e transitória

Toda felicidade que se quer perene é ilusória
Assim também é fracassado o amor que não se contenta
Num passeio a dois em solitária comunhão
Cegueira dos amantes: pretender que a perenidade caiba no passeio
Pretender que o amor os salve do seu destino intransponível:
O da transitoriedade
Que lê nas entrelinhas de suas almas
A vanidade de seus esforços
E o ridículo de sua teimosia
Em pretender que a felicidade lhes seja um direito.


(BAR)

quarta-feira, 30 de julho de 2014

"Muita poesia nos convence do amor; um pouco de filosofia nos faz suspeitar dele"




Desilusionado

As pessoas vêm e vão... e se vão
não me perguntem para onde
elas vão assim como os amores
que vêm e vão para lugar algum

Amor? Palavra feia para se dizer
Na liquidez de nossos tempos...
Nesses tempos escorregadios...
Moeda cara para dar a qualquer um
desses transeuntes que vêm e vão
e se vão com pressa, sem deter-se por um instante
Tanto mais que de nada se aproximam
senão do túmulo

Essa pressa, essa urgência sempiterna
do ir-se me parece demasiado absurda
Que todo amor é uma invenção estou convencido
Mas o amor esquálido desses tempos de urgência
É a obra-prima de nossa condição miserável
É o signo que mimetiza a vacuidade do desejo de sentido
Para uma existência contingente e precária

A quem amei intensamente outrora
Já se casou e outra que eu dizia amar
engravidou...
"O amor excede as medidas da alma"
Isso me soa tão pueril,tão démodé
Embora tenha agradado alguns espíritos iludidos
Pobres mulheres que só sabem do amor
pelas palavras aveludadas, fagueiras
Do poeta que mente, que finge sentir dor
A dor que deveras não sente

Muita poesia nos convence do amor
Um pouco de filosofia nos faz suspeitar dele.

(BAR)

segunda-feira, 14 de abril de 2014

De amores só conheço traços breves



Esboços

Tenho sido insistentemente insensato
no equilíbrio que busco em minhas linhas
Tenho sido desorientado nos esboços
nunca finalizados de meus amores

De amores só conheço traços breves
E a tortuosidade de rabiscos de que só se veem
as sombras de tão pálidos

Tenho sido diligente com a sorte
Que ao fazer-me a mim ciente
De que tudo que nasce tem um prazo de morte
Vivo inda que desta certeza consciente
Como o insensato a confundir as sombras
Com os corpos e os corpos
Vivos transeuntes com as sombras
Que trafegam em minha alma


(BAR).

segunda-feira, 20 de maio de 2013

"O verdadeiro amor é aquele que supõe um trabalho contínuo para mantê-lo" (BAR)




O mal-estar no amor
Ou o excesso do amor

É do Amor que me ocuparei nesta nova oportunidade em que me sirvo das palavras para expressar e sustentar a tese segundo a qual vivemos um mal-estar erótico na modernidade atual. Em que consiste esse mal-estar e qual é a sua origem são as duas questões que procurarei, aqui, desenvolver e responder. Para a realização desse intento, convidarei o leitor a passear comigo pelos jardins de ideais cultivados pelo pensamento platônico sobre o amor. Vamos revisitar a concepção de Platão sobre o amor. Sabemos que as ideias de Platão ecoam pela voz de Sócrates, de modo que, ao falarmos do entendimento socrático, estamos falando da compreensão platônica.
Não me cingirei a abordar a visão platônica de amor, evidentemente. A ela reunirei outras perspectivas conflitantes e divergentes, uma das quais – e a primeira que mencionarei – é a do filósofo moderno Simon May, exposta e desenvolvida em seu livro Amor – uma história (2012).
Comecemos, portanto, pela contribuição de May. De início, é preciso frisar que, para ele, o amor é um enlevo. O amor é, portanto, um êxtase que sentimos; amar é sentir-se encantado, absorvido pela presença do outro que é objeto de nosso amor. Mas o amor, enquanto enlevo, causa em nós outro sentimento. Acompanhemos as palavras de May a seguir:

“O amor (...) é enlevo que sentimos por pessoas e coisas que inspiram em nós a esperança de uma fundação indestrutível para a nossa vida. É um enlevo que nos faz empreender – e sustenta – a longa busca de uma relação segura entre nosso ser e os delas.”
(p. 19)


Destaquei em negrito alguns trechos que cuidei fundamentais para que compreendamos a perspectiva do autor. É verdade, como podemos notar, relendo o trecho, que May não restringe a natureza do objeto de amor à pessoa; podemos amar coisas (por exemplo, o dinheiro, o poder, nossa casa, nosso carro, etc.). No entanto, eu vou ignorar essas outras formas de objeto de amor e me limitarei a pensar o amor destinado a pessoas.
Vimos que May considera o amor um enlevo, o que nos sugere tratar-se de um sentimento que nos provoca certo arrebatamento. O amor, enquanto êxtase (enlevo), liberta o eu do corpo; amando é como se pudéssemos nos libertar de nós mesmos. Experimentamos uma plenitude de ser. Poderíamos dizer que o amor, enquanto enlevo, é potência de existir. É íntima alegria de existir mais. Se, por um lado, poderíamos ficar tentados a ver na concepção de May alguma espécie de elevação espiritual consequente da experiência amorosa; por outro lado, devemos reconhecer que o enlevo inspirado pelo amor funda-nos, de modo indestrutível, a existência neste mundo. O amor estabelece uma fundação para a nossa vida. Graças ao amor, sentimo-nos em casa no mundo. O amor enraíza nossa vida neste mundo, que passa a ser considerado como um lar (lugar de aconchego, de acolhida).
Não menos importante é a ideia suscitada pelo verbo empreender, também destacado em negrito. Esse verbo sugere que o amor é um trabalho. Ou melhor, é o que nos impulsiona a buscar uma relação sólida, segura. Essa relação se estabelece entre dois seres. E, aqui, convém reavivar a ideia de que “amar é fazer do ser de um participante do ser do outro” (BAR).
Creio que é importante entender que, segundo May, o amor não nos distancia do mundo, não nos eleva sobre ele; não nos encarcera em alguma realidade espiritual transcendente. Ao contrário, o amor, enquanto enlevo, produz em nós um sentimento de pertencimento à realidade mundana, onde experienciamos profundos bem-estar e bem-viver. O trecho a seguir parece confirmar essa interpretação:


“Se todos nós temos necessidade de amor, é porque todos precisamos nos sentir em casa no mundo: enraizar nossa vida no aqui e agora; dar à nossa existência solidez e validade; aprofundar a sensação de ser; capacitar-nos para experimentar a realidade de nossa vida como indestrutível (ainda que aceitemos também que ela é temporária e terminará na morte)”.
(ib.id.)


A esse sentimento de estar em casa no mundo; à percepção de que nossa existência ganhou solidez no aqui e agora, de que nossa vida fincou raízes na realidade, May chama enraizamento ontológico. Ontológico nos remete à ideia de Ser. Enraizamento de nosso ser na realidade; fundação inabalável de nossa existência no aqui e agora – é o sentimento que nos provoca o amor. O amor ancora nossa existência e ser no mundo. O amado encarna a promessa, para nós, de sustentação de nossa vida no mundo, de modo que o sintamos como um lar. O amor torna o mundo um lugar acolhedor para nós.
Antes de trazer à baila a concepção platônica de amor, faz-se mister distinguir entre uma visão sobre o amor fundada no imaginário e um visão sobre o amor fundada na observação e na experiência empírica. Essa distinção nos ajuda a entender que muito do que se diz do amor pode estribar-se em representações imaginárias. A palavra imaginário designa o conjunto de representações, crenças, desejos e sentimentos na base dos quais um indivíduo ou grupo entende a realidade e a si mesmo. Parece-me que a visão de May sobre o amor está muito mais próxima de uma visão baseada no imaginário ocidental do que na observação das relações amorosas na contemporaneidade. Uma visão sobre o amor calcada na experiência empírica não poderia escusar a observação de que as relações amorosas têm se mostrado frágeis e descartáveis. Essa visão fundada empiricamente deve levar em conta, por exemplo, as formas de amor líquido, a que se refere Bauman. Também não pode ignorar que o amor, enquanto relação, implica tensões, conflitos e poder. Toda relação amorosa é uma relação de negociação do poder.
May externa sua convicção de que o amor é uma experiência que dá significado à nossa existência. Nesse tocante, ele faz repercutir o imaginário coletivo. São nossos desejos, nossas crenças, nossas representações que são mobilizados na compreensão do amor como “enlevo que produz um enraizamento ontológico”. Para mim, erra quem supõe que May esteja enganado ou iludido a respeito do amor ou do valor do amor; na verdade, ele faz ecoar o sentimento que a grande maioria de nós experimenta quando amamos e somos amados. Quem negaria que o amante e o amado, insuflados de amor, não encontram no mundo um lugar acolhedor e aprazível? Quem negaria que esse sentimento de enraizamento ontológico inunde seus espíritos e corações? Tem razão May ao sugerir que o valor que atribuímos ao amor é o de nos fazer existir mais, ser mais, sentir mais nossa vida em harmonia com o mundo. Amar é sentir-se em casa no mundo. Amar, diríamos com May, é quando um mora no outro. O amante e o amado estão conciliados com a vida e com o mundo quando imersos no amor recíproco.
É chegado o momento de revisitar o pensamento de Platão sobre o amor. Desde já, o amor platônico, tal como representado em O banquete, nada tem que ver com a ideia de amor irrealizável, impossível. Amor platônico não está dissociado da relação sexual, tampouco se confunde com o culto ao amado. Compreendamos melhor esse ponto.
Quando Alcibíades faz sua preleção no final de O banquete, demonstra não ter entendido Sócrates. Confessa não ter alcançado o grau mais alto na experiência do amor na pederastia, ou seja, não conseguiu atingir o Belo ou a essência (disso tratarei adiante). Além disso, Alcibíades demonstra-se frustrado pelo fato de Sócrates não tê-lo desejado sexualmente, ainda que lhe tenha dado sinais de disponibilidade sexual. Esse episódio, em que Alcibíades demonstra sua frustração dada a irrealização do desejo amoroso levou a alguns comentadores a ver o amor platônico como um amor idealizado, irrealizável ou distante. Essa interpretação prevaleceu no senso-comum. Popularmente, quando se diz que uma pessoa nutre um amor platônico por outra quer-se dizer que alimenta um sentimento que jamais será correspondido e que se conservará no plano da ideia, sem qualquer relação com a experiência sexual com o amado. É o caso, por exemplo, de uma jovem mulher que sinta amor pelo seu ídolo. Diz-se, vulgarmente, que ela nutre por ele um “amor platônico”, visto que se trata de uma amor que jamais será correspondido e vivenciado sexualmente.
Todavia, o amor platônico é impulsionado por Eros e não está dissociado da experiência sexual, muito embora o sexo seja um meio, não o fim desse amor. Vamos, então, compreender melhor a concepção platônica de amor.
Para uma adequada compreensão da visão de Platão sobre o amor, necessário se faz entender como Platão concebe o Belo e o Bem, visto que o amor, em Platão, está intimamente relacionado ao Belo e ao Bem.
Para Platão, o belo é o que faz com que as coisas sejam belas. O belo é uma essência e é independente da aparência do belo. Quando se diz “Fulana é bela”, está-se associando a ideia de belo a um sujeito (Fulana). Nesse caso, o belo é aquilo que está na aparência; é uma experiência estética, é um prazer desinteressado suscitado pela contemplação de um ser. Platão não entende o belo como relativo a um ser, como situado na aparência ou dado numa experiência estética. Em Platão, o belo é uma ideia análoga às ideias de ser, verdade e bem (ou bondade). O belo, para Platão, é uma realidade absoluta; é quase uma espécie de bem ou perfeição. As coisas de que dizemos serem belas participam, em Platão, do Belo, enquanto essência.
Intimamente associada ao belo está a ideia de bem ou bondade. O bem equivale ao belo de modo abstrato. Em Platão, o Bem é uma Ideia absoluta ou Ideia das Ideias; é uma ideia elevada e magnífica; está além do ser. As coisas boas somente são boas enquanto participantes do único Bem absoluto.
Contrariamente à visão de Platão, para Aristóteles, embora o Bem seja uma realidade metafísica, há que se distinguir entre o Bem em si mesmo e o Bem relativo a outra coisa. O primeiro corresponde ao Bem puro e simples; o segundo, ao Bem para algo ou alguém. Segundo Aristóteles, embora devamos preferir o primeiro ao segundo, o Bem puro não se identifica necessariamente com o Bem absoluto (Platão). Trata-se, decerto, de um Bem mais independente do que o Bem relativo. Todavia, Aristóteles rechaça a doutrina platônica. Ao contrário de seu mestre, o estagirita nega que o Bem seja exclusivamente uma realidade absoluta ou uma substância. Para Aristóteles, cada coisa pode ter seu próprio bem. Vimos que Platão pensava diferente: cada coisa só é boa por participar do Bem, enquanto essência.
Finalmente, vale mencionar a concepção de Agostinho, para quem o Bem em si mesmo pode equivaler-se ao Bem metafísico. Nesse caso, o Bem e o Ser são a mesma e única coisa. O Bem, em Agostinho, é Deus. Mas pode também, num sentido menos estrito, suceder que as coisas criadas, incluindo o homem, participem do Bem, especialmente quando aquele alcança um estado de fruição de Deus.
O amor platônico, embora não despreze a experiência sexual, supõe um trabalho de ascensão à beleza espiritual ou intelectual e à essência mesma do belo. O amor platônico busca o Belo. Mas não se limita à beleza física. É um amor que aspira à Beleza perene e, portanto, aspira à imortalidade.
O amor, em Platão, busca unir-se com a beleza, a bondade e a verdade em si. Unir-se ao Belo significa unir-se a uma realidade absoluta, imortal e imutável. O amor platônico precisa transcender ao amor físico. Atentemos para o trecho em May nos ensina sobre as pretensões do amor, em Platão:

“Dominados por essa visão de divina beleza, contamos com o amor para nos levar de um mundo imperfeito, transitório, para um reino de perfeição e eternidade. Esperamos que ele culmine numa experiência de absoluta beleza e bondade – e que nosso bem-amado inspire em nós tal experiência. Sua função, relata Sócrates, é “interpretar e transmitir mensagens dos homens para os deuses e dos deuses para os homens”. De fato, o amor permite a nós seres humanos encontrar uma completude divina; ter “o privilégio de ser amado por Deus, e tornar-se, se algum dia um homem o poder ser, ele próprio imortal”.
(p. 74)


Parece-me lícito dizer que o amor, em Platão, aspira à transcendência, à eternidade, à perfeição. Pelo amor, instaura-se uma intercomunicação entre o universo humano e o universo divino. É uma forma de amor que busca a beleza e a bondade absolutas. É uma forma de amor que eleva o homem a Deus, alimentando naquele o desejo de completude com este. O amor platônico é o caminho pelo qual o homem aspira ao puro e ao eterno. Novamente, vale ler o seguinte excerto de May, no qual nos ensina sobre a influência que a concepção platônica de amor exerceu na história do amor ocidental:

“ESSE QUADRO DA ASCENSÃO do amor do físico ao divino moldou a história do amor ocidental de maneiras tão imensas e variadas que não posso fazer mais que escolher algumas de suas influências, embora muitas outras irão se manifestar à medida que consideramos outras concepções de amor que, a despeito de toda sua aparente diferença, dependem decisivamente do pensamento de Platão (seja adotando-o ou opondo-se a ele).”
(p. 73)


A primeira influência a que se refere o autor diz respeito à transformação do amor em um valor supremo. Na verdade, Platão assentou o terreno para que o amor, com o advento do cristianismo, tornasse-se o valor supremo do mundo. Isso porque, com Platão, o amor é desejo pela beleza e pela bondade mais elevada; é também o caminho para a verdadeira virtude e para o eterno e o imutável. Na concepção platônica, amamos o que é belo e o que é bom. Não é possível, a seu ver, amar o que é feio e mau. Com o advento do cristianismo, que incorporou em sua teologia os mandamentos básicos das Escrituras hebraicas, quais sejam, amar a Deus sobre todas as coisas e amar o próximo como a si mesmo, o amor torna-se valor supremo do mundo ocidental e significado mais elevado da vida. A crença de que o sentido da vida é amar ou de que só o amor dá verdadeiro sentido à existência do homem é uma crença calcada sobre a concepção cristã do amor – uma herança deixada ao mundo ocidental.
A segunda influência consiste em inseminar na cultura ocidental a crença segundo a qual a relação sexual constitui apenas o limiar do caminho para o amor elevado. Ela é o meio, mas não o fim do amor. Observa, com propriedade, May que “surpreendentemente, nenhuma medida de liberação sexual afugentou esta visão (p. 74)”. Para May, a grande maioria dentre nós, ainda hoje, não pensa o amor como experiência sexual; ao contrário, tendemos a associar o amor a coisas mais elevadas, tais como ideais ou valores que compartilhamos com o parceiro. Acredita uma grande maioria que o amor deve concentrar-se na alma ou no ser do outro mais do que no seu corpo.
Não se pode tirar a razão de May; no entanto, creio necessário acrescentar que a nossa sociedade é muito mais sexualizada, ao mesmo tempo em que se caracteriza por uma profunda deserotização (Ghiraldelli, 2011). Segundo Ghiraldelli (p. 14), a razão para que se dê esse excesso de sexualização de nossa sociedade está em que as pessoas, sentindo-se embotadas mentalmente, entediadas e cansadas no processo de trabalho, buscam preencher seu vazio com “imagens sexuais”, a fim de estimular a sensibilidade, então arrefecida. Convém insistir que a experiência de amor na contemporaneidade é muito distante da visão platônica de amor. O amor de Platão é amor-Eros. É amor que aspira ao bem, ao belo; é alegre e vivo, sem deixar de ser sexuado; no entanto, é amor que transcende o domínio físico-sexual. No mundo contemporâneo, amor e sexo situam-se em esferas ideológicas diferentes e dissociáveis. A título de exemplificação, lembre-se a canção de Rita Lee Amor e sexo (“amor é divino; sexo é animal” – numa clara evocação da visão platônica). A canção congrega várias representações do amor que configuram o imaginário amoroso do homem ocidental. Na canção, por exemplo, se diz que “amor é um”, o que nos leva à visão, também presente em O banquete, no discurso de Aristófanes, do amor como desejo de fusão. Mas deixemos a canção de Rita Lee para nos concentrar nas seguintes palavras de Ghiraldelli, em Como a filosofia pode explicar o amor (2011), com as quais nos dá testemunho do modo como se dá a deserotização da sociedade moderna:

“Não raro, falamos do amor de maneira muito abstrata, e o temos no dia a dia desse modo, de forma a fazê-lo se perder em seu caminho, sem nenhum objeto, isto é, sem nenhum lugar de chegada. Em outras palavras, geramos o amor sem o amado! Esse equívoco também é resultado da deserotização”.
(p. 17)


Percebe-se, sem muita dificuldade, que, em nossa época, homens e mulheres falam de amor de modo muito abstrato e indefinível; não raro, se demonstram desacreditados do amor, porque incapazes de percebê-lo (interpretá-lo). O amor é amor interpretado, é uma interpretação que chamamos amor (Precht, 2012). No momento em que nós não sabemos bem o que é Eros, tendemos a pensar que ele orbita esferas muito distantes, ou representa um ideal irrealizável para a condição humana.
Volto rapidamente ao mito de Aristófanes, no qual nos conta de seres humanos divididos por Zeus em busca da metade perdida. Esse mito nos ensina algo importante: o amor não é capaz de restituir aos seres humanos divididos ao meio a sua integridade original. A possibilidade mesma de que nunca venhamos a encontrar a nossa metade é algo que a maturidade nos ensina (voltarei a esse ponto). É bem verdade que o amor pode até acalentar em nós o sentimento de restituição da metade perdida, mas ele não chega a no-la permitir completamente. Apenas os deuses podem fazê-lo. Somente um deus poderia unir o que outro deus um dia separou.
Convém ficar claro que, para Sócrates/Diotima, o amor se origina na falta; para Aristófanes, na perda. O homem não mais enfeitiçado pelo amor platônico reconhece que o amor é fonte de demandas, mas as necessidades pressupostas no amor nunca são plenamente satisfeitas. Sabemos disso por experiência própria.
A terceira influência da ideia de amor platônico no mundo ocidental deve ser compreendida considerando-se as seguintes ideias. Em primeiro lugar, o amor platônico se vincula à imortalidade. O amor mais elevado, aquele que transcende a mera relação sexual, deve permite-nos não só contemplar as coisas elevadas, como também nos tornar imortais. Destarte, o amor é um caminho que conduz à essência imutável da beleza e da bondade. Ele nos conduz a um mundo onde as propriedades que nos humanizam, tais como a transitoriedade, a perda, o sofrimento, o acaso, a dor, o mal já não nos definem como tais. Nesse mundo, estamos delas livres. Essa concepção do amor como um caminho de ascensão a um mundo de libertação de condições que nos tornam humanos exerceu grande influência sobre a imaginação do homem ocidental. Ele passou a alimentar a esperança de que o amor tem em si mesmo uma função salvífica e um valor supremo.
Não podemos ignorar as consequências que disso é possível extrair. Em primeiro lugar, pensar o amor de modo tão majestoso, pensá-lo como um caminho que nos conduzirá a contemplar a essência atemporal da beleza lança por terra de modo drástico o valor do amor entre as pessoas. Em segundo lugar, o amar as pessoas pela sua transitoriedade torna-se vicioso. As coisas transitórias, entre as quais incluímos as pessoas, tornam-se menos dignas de amor, simplesmente por serem impermanentes. Só a imortalidade, em cotejo com a transitoriedade, é um valor para o amor platônico. Em terceiro lugar, não é difícil depreender daí a possibilidade de podermos trocar a pessoa amada por outra, desde que esta encarne ao menos o mesmo grau de beleza. Nessa visão, o ser amado torna-se um meio para alcançar um bem maior, quais sejam, nossa imortalidade, a contemplação da beleza imutável e eterna. Não está em mira o aprofundamento da relação com o amado. Segundo May,

“(...) no interesse do florescimento do próprio amante, acaba arrastando o amor mais verdadeiro do pessoal para o impessoal, do individual para o geral e do humano para o, literalmente, desumano”.
(p. 74)


Poderia apenas a beleza ser necessária para nos despertar o amor? Será mesmo que só porque uma pessoa é bela devemos amá-la? Por outro lado, não é verdadeiro que muitas pessoas amam coisas que não são eticamente boas? Para nós, a ideia segundo a qual o amor à beleza implica necessariamente um compromisso com o agir de modo moralmente correto não se sustenta. Nós, modernos, não vemos uma relação necessária entre amor à beleza e compromisso com uma retidão moral, ou seja, com o bem.
Voltemos aos dois mitos do Banquete e consideremos a influência preponderante deles na sensibilidade do mundo ocidental.
Já comentei que Aristófanes propõe um “retorno” a um estado original de integridade e imutabilidade. Trata-se da busca pela metade perdida. O amor é, então, representado como desejo de fusão, desejo de completude. Em Sócrates (Diotima), o amor pressupõe um movimento de ascensão a uma essência divina. Ambas as visões contribuíram decisivamente para moldar a sensibilidade dos homens e mulheres do mundo ocidental: tanto Aristófanes quanto Sócrates deram ao amor o papel de assegurar o imutável e o eterno. Algumas consequências se nos impõem ao espírito.
Nesse momento, o terreno para Eros foi preparado. Eros é o maior dos impulsos de vida; no entanto, o caminho que trilhará, doravante, é o caminho onde o impulso de morte se enraizará. Eros deseja uma satisfação que, a rigor, envolve a superação da vida humana, enquanto indivíduos que existem em limites temporais e que são marcados pela transitoriedade, pela possibilidade de solidão, de perda, de incompletude, de sofrimento e de dor. São os próprios ideias elevados do amor platônico que o dota de uma força destrutiva, ruinosa e mortal. É, possivelmente, no Romantismo alemão do século XVIII ao século XIX que essa força destrutiva do amor se faz claramente marcante. Nesse período, as relações interpessoais passaram a sobrecarregar-se de expectativas irrealizáveis. Em tais condições, não é de surpreender que o suicídio viceje. A esse propósito, nos ensina May:

“A elas [às relações humanas] é atribuída a tarefa de permitir aos amantes entrar em contato com o divino e até tornarem-se divinos; esforçar-se, através de seu amor, para alcançar a imortalidade, e, por fim, aniquilar sua existência como indivíduos encarnados”.
(p. 77)



Claramente aí o excesso do amor implode o ser do homem. Esse excesso é sobrecarga de ideais cuja realização é impossível nos limites da natureza humana. O amor não sabe bem o que quer. Interessante ver que as ideias de contemplação da essência do belo, completude, bem eterno e imutável não passam de representações de uma experiência mística. Nenhuma definição pode compreendê-las.
Eis que, finalmente, uma ideia precisa enraizar-se no espírito do leitor arguto e não mais deslumbrado e inocente: o amor é condicional. E essa proposição vale tanto para as representações míticas do amor em O Banquete quanto para as experiências de amor na vida real. Também o amor, enquanto forma de relação, é relação com o poder. É possível que amor nos conduza a atenuar as tensões nessa relação com o poder, mas ele é incapaz de suprimi-las. Não raro, ele pode, ao contrário, servir de combustível para robustecê-las.
É chegada a idade da maturidade. E com ela aprendemos que o amor é um trabalho arriscado. Há riscos em todo amor. A dura verdade que se nos revela ao coração é que podemos nunca encontrar a nossa outra metade. E, ainda que, por ventura, a encontremos, nem sempre seremos capazes de harmonizar nossa vida com a dela. Os riscos envolvidos no amor é também a vulnerabilidade à perda, à dor, ao sofrimento, ao acaso. Mas não neguemos que a dura verdade é também sinal de maior lucidez.

“Em nossa juventude ainda não descobrimos tampouco que o amor é um empreendimento arriscado em que podemos nunca encontrar nossa outra metade verdadeira (...)”.
(p. 79)



Longe de desprezar o legado das reflexões platônicas sobre o amor, homens e mulheres modernos, certamente, caminharão com mais firmeza no desnivelado terreno amoroso, se souberem aproveitar as lições de autores como José Luiz Furtado e Richard David Precht. Este último, por exemplo, nos chama atenção para o espaço destinado à excitação na experiência amorosa. Para ele, nosso desejo de amor não se confunde, acima de tudo, com um desejo por companheirismo e compreensão, ou por vínculo e acolhimento. Desejamos na mesma medida excitação. Nossas expectativas em relação ao outro fazem apelo a que ele nos entenda e nos torne mais interessante a vida (Precht,  2012, p. 178). Ainda segundo Precht, a experiência da vida real nos ensina que não escolhemos as pessoas mais amorosas para amar. Já Furtado (2008, p. 28) nos faz ver, entre outras coisas, que o gozo não é a realização do amor. Com ele, aprendemos que o amor é uma dificuldade, uma tarefa; e eu acrescentaria – uma prática, um trabalho que envolve tensões, negociações, uma dinâmica que pode, facilmente, produzir as condições para o predomínio do ódio. Também observa Furtado que o amor é a crença de que de dois se possa fazer um. Mas é apenas uma crença; o real basta para pulverizá-la. Segundo Furtado,

“(...) o sexo desfaz essa crença através da certeza, sempre refeita em cada ato sexual, por melhor que ele seja, de que onde há dois, há sempre e reiteradamente, dois”.
(p. 32)