O pessimismo e o trágico no pensamento de Cioran
Consoante observa Pecoraro, “a negação
abismal, absoluta, é um marco da filosofia de Emil Cioran”[1].
Toda a sua filosofia é um movimento acumulativo de negações. Para Cioran, negar
é o melhor meio para emancipar o espírito.
Mas a
negação só é fecunda enquanto nos esforçamos por a conquistar e nos apropriamos
dela; uma vez adquirida, aprisiona-nos: uma cadeia como qualquer outra.
Escravatura por escravatura, mais vale orientarmo-nos no sentido da do ser,
embora tal não seja possível sem alguma dilaceração: trata-se nem mais nem
menos de nos subtrairmos ao contágio do nada, ao conforto de uma vertigem...
[2]
Negar, todavia, não é, na filosofia de Cioran, um sintoma de degenerescência, de adoecimento dos instintos, como poderia entender Nietzsche. A negação não é simplesmente uma característica estilística de uma escrita filosófica que envenena, infecciona e mata. Ela se apresenta como um modo de vida ou uma sabedoria de vida. Não é apenas negação da catástrofe que é a existência, é afirmação do suplício do ser, da existência como esquartejamento, da queda no tempo; é recusa do devir como “agonia sem desenlace”[3]; a filosofia cioraniana diz “não” também “aos truques da razão, às pretensões da filosofia, às violências da verdade, às ilusões sobre o homem e a sua História, às utopias, às promessas de uma redenção, à esperança, aos enganos do conhecimento, às sereias do engajamento (...)”[4]. Cioran nega as profecias sagradas ou profanas que anunciam um novo advento. A negação cioraniana é negação fisiológica, porque “agita-se violentamente nas veias”[5]. A experiência orgânica, a experiência de vida, constitui o solo donde brota e viceja todo o pensamento de Cioran; nesse tocante também, ele está muito próximo de Nietzsche, a despeito das divergências inegáveis que ele terá com o filósofo dionisíaco a partir da fase francesa da escrita de sua obra. Reiter-se que a experiência de vida é, para Cioran, a fonte última de todo o seu pensamento, mais importante que os livros ou quaisquer outras fontes externas. De modo particular, foi a insônia uma experiência fundamental e decisiva na elaboração de seu pensamento, sobretudo porque ela permitiu a confirmação dos ensinamentos gnósticos com os quais ele já tinha inclinação a concordar.
Não obstante ser a negação e o mais profundo, radical e esquartejador
pessimismo características marcantes de seu pensamento, Cioran é um filósofo
paradoxal. Seu pensamento é multifacetado, gestado e entretecido no concurso de
várias experiências de leitura. Embora fosse filósofo de formação, Cioran
frequentou muitas obras e autores de filosofia, literatura e religião. No
âmbito da filosofia, se incluem as mais diversas ciências humanas, tais como
psicologia, história e sociologia, a cujos estudos Cioran se dedicou. Na área
da literatura, Cioran visitou escritores e poetas em geral, com especial
destaque para Dostoiévski. No âmbito da religião, se interessava por diversos
textos teológicos, mitológicos, quer fossem oriundos da tradição
judaico-cristã, quer proviessem de tradições orientais. O espectro de leituras
de Cioran é amplo e variado, incluindo literatura, poesia, historiografia,
relatos místicos, correspondências, memórias, mitologia, teologia e muito mais.
No campo da filosofia, ele não se ocupou apenas dos filósofos pessimistas. Sua
tese de conclusão de seu curso de filosofia foi sobre Bergson, chegando a
cogitar da realização de uma segunda tese sobre esse filósofo (que não chegou a
escrever).
Dada a complexidade da obra de Cioran, “não apenas os rótulos e
definições se mostram insuficientes – e como que rígidos demais para comportar
as nuanças e oscilações do espírito”[6].
Portanto, deve-se prevenir contra a tentação de superestimar a dimensão
inegavelmente pessimista do pensamento cioraniano a tal ponto que fique
eclipsada a complexidade de sua obra. Cioran não se via como pessimista, não
conceituou o pessimismo, não o transformou em palavra de ordem, não o tomou
como imperativo pelo qual se nortearia seu pensamento. Para Cioran, ser
pessimista não é ser defensor do pessimismo. Cioran não foi teórico do
pessimismo, e se recusou a fazer panfletagem do humor amargo, da tristeza
incurável. Num de seus fragmentos, ele notou que “o sofrimento abre-nos os
olhos, ajuda-nos a ver as coisas que de outra maneira não teríamos descoberto”
[7].
Sem pretender descer a pormenores, neste momento, sobre o significado da
experiência do sofrimento na obra de Cioran (tema que retomaremos no capítulo
destinado ao estudo do niilismo em Cioran), será suficiente dizer que, para o
filósofo romeno, o sofrimento nos edifica acima da mediocridade. Como ele mesmo
nota, “só o sofrimento muda o homem. Todas as outras experiências e fenômenos
não conseguem modificar essencialmente o temperamento de ninguém nem aprofundar
certas disposições suas a ponto de transformá-las completamente”[8].
Teólogo ateu, místico sem Deus, cético que recusa a epoché,
cínico infectado pelo desengano, teólogo gnóstico – são algumas das maneiras de
qualificar Cioran.[9]
Tal como os cínicos da Antiguidade, aprouve a Cioran a negação até o gozo, o
excesso do êxtase, o paradoxo e a contradição até o cume do delírio. A Lucidez[10]
afiada de Cioran opera o aniquilamento da superstição, da crença na história, e
na política. Nesse sentido, ele foi um pensador iconoclasta, um pensador
crepuscular, tal como Nietzsche. Dadas as múltiplas imagens com que Cioran se
representa em seu discurso, o seu pessimismo não pode ser definido
univocamente. Seu pessimismo também se constitui pela confluência de vários
domínios de significado, que o fazem assumir diversas formas: há um pessimismo
cínico, um pessimismo gnóstico, um pessimismo metafísico e um pessimismo
antropológico. Todas essas formas de expressão do pessimismo cioraniano
pressupõe a tese de que a existência é resultado de um despedaçamento do ser.
Nesse sentido, o pessimismo multívoco de Cioran afina-se mais com o de
Mainlãnder, para quem toda a existência está fundamentada numa Vontade de
morte, do que com o pessimismo de Schopenhuaer, que descerra um caminho
salvífico, redentor. Cioran não era pessimista à moda clássica, como o eram os
filósofos do século XIX. Seu pessimismo não assume a forma dogmática,
sistemática e cientificista. Trata-se de um pessimismo vivido, afirmado na
nervura de sua fisiologia, enunciado pelas tonalidades de suas intuições. Seu
diagnóstico negativo não se acompanha de esperança, de possibilidade, de
redenção. Ele recusa a ascese schopenhaueriana, a síntese hegeliana, a escuta
ou recordação do Ser em Heidegger, o Deus kierkegaardiano, a Revolta de Camus,
as Ideias platônicas, o sim jubiloso de Nietzsche, o Nirvana budista, etc. A angústia, a dor, o tédio, o desespero, o
sofrimento, a consciência como doença não encontram solução em remédios e
consolações. A Lucidez é um tormento, do qual não há libertação.
O pessimismo cioraniano, a despeito de suas modalidades semânticas,
também se caracteriza pelo exílio metafísico, isto é, pela incapacidade de
instalar-se no devir, na duração, de satisfazer-se com seu ritmo. Para Cioran ,
o Tempo não pode ser aprovado, amado, afirmado, porque é a duração de uma queda
em direção à catástrofe do ser. O Tempo
representa o domínio da morte e da derrelição, que leva todo vivo à
condição de cadáver anunciado. O Tempo descerra a condição entrópica do ser
como um precipitar-se para a dissolução. No tempo, a duração é destinação à
decomposição. O Tempo é o princípio do pessimismo de Cioran, a razão que
fundamenta todas as suas negações. O Tempo reflete a consciência da morte, da
finitude, reflete também o fluxo da existência, seu escoamento em meio ao qual
a consciência se asfixia em desespero. A negação pessimista de Cioran está
impregnada de contradição e melancolia, porquanto, ao negar, Cioran é incapaz
de renunciar ao desejo e ao mundo. O Tempo tem aspectos corrosivos, sobretudo o
tempo histórico, a História como dimensão humana por excelência. A História é
caracterizada pela negatividade radical, pelo nada de fundo, pelo vazio, pela
insubstancialidade que constituem terrenos férteis para a produção e a
disseminação de ilusões e mentiras vitais.
Não se deve buscar, portanto, as raízes do pessimismo cioraniano em
Schopenhauer, apesar da influência, conforme veremos na próxima subseção, que
este exerceu sobre o pensamento de Cioran. Cioran recusa o caminho salvífico
aberto ao homem por Schopenhauer. Não há salvação alguma para a condição humana
fatalmente decaída, corrompida e má, segundo Cioran[11].
Nesse sentido, ele comunga com a tradição hebraica, particularmente com a visão
bíblica do Gênese, mas também com Dostoiévski. Ele admira o escritor russo por
ser um profundo perito da natureza humana. Se Cioran afirma o mal como a
essência humana, ele deve isso ao escritor russo. Todavia, Cioran tinha uma
espécie de “fé” de que Dostoiévski carecia. Segundo Menezes, devemos buscar as
raízes do pessimismo antropológico de Cioran na religião. Ele se forma como
consequência de sua visão essencialmente religiosa do homem. Convém, nesta
subseção, dar a conhecer, em linhas gerais, como se caracterizam os quatro
tipos de pessimismo cioraniano, anteriormente mencionados, começando pela
caracterização do pessimismo antropológico, não sem dizer que tornaremos a considerá-lo
numa análise mais cuidadosa no capítulo apropriado[12].
O pessimismo antropológico de Cioran está baseado na concepção do homem
como animal enfermo. Segundo Menezes, “[...] existiria no ser humano uma
enfermidade essencial profunda, incondicional, absoluta, enfermidade esta que
estaria na raiz do mal-estar contemporâneo e de sua busca desesperada pela Saúde”[13].
O pessimismo antropológico de Cioran é indissociável de sua visão religiosa do
homem e do mundo, o que torna Cioran um pensador religioso. Sua visão negativa
da condição humana esteia-se numa concepção gnóstica, que se tornou conhecida
por ele através de seus ancestrais bogomilos, os quais formavam uma seita
gnóstica dos Balcãs durante a Idade Média. Os bogomilos teriam influenciado a
cultura romana. Portanto, o pessimismo antropológico consiste numa antropologia
essencialmente gnóstica, à luz da qual o homem é concebido como um ser
contaminado pelo Mal[14],
“criatura de um deus febril que projeta no universo seu padecimento supremo;
ser dividido entre o bem e o mal, a saúde e a doença”[15]
. No homem, a consciência lhe parece como um punhal na carne. A cisão entre o
bem e o mal, a saúde e a doença, que constitui a natureza do homem, liga-se
intimamente a sua condição enferma, para a qual ele tem de despertar. A
antropologia cioraniana é uma antropologia teológica, porquanto afirma o
caráter ontologicamente problemático do homem. Conquanto seja desoladora, a
concepção cioraniana do ser humano não é, de modo algum, infundada. Atendo-se à
observação dos acontecimentos históricos, ao exame das intenções humanas, quase
sempre conflitantes com as ações, Cioran vê o homem como um animal decaído,
como uma espécie de heresia da natureza. Deixando de viver em companhia com
Deus, o homem rompeu a relação simbiótica com a natureza, à qual sua vida
estava ajustada. Assim, segundo Menezes, “supondo que evoluímos do macaco, o
que nos fez abandonar nossa condição primeira não deve ser algo que estava
incluído, programado nos planos da natureza: um acidente, um desvio repentino e
inevitável no curso natural da vida”[16].
Cioran vê a consciência (consciência reflexiva, mais propriamente, para nós) o
elemento de ruptura do homem com a natureza. Com a emergência no homem da
consciência reflexiva, ele passou a ser vítima de medos indeterminados.
Tornou-se não só suscetível de males reais, comuns aos demais seres vivos, mas
também mais sensível a males possíveis ou abstratos. A consciência, para
Cioran, é a marca de uma anomalia, é o registro do antinatural no âmago do
homem, que torna a vida questionável e culpada.
Na antropologia teológica de Cioran, a queda é uma traição à natureza.
A queda
equivale, em termos ontológicos, à traição à natureza. “Desertor da zoologia”,
o homem rompe com suas raízes, e essa ruptura equivale a um cisma contra a
“ortodoxia da natureza”, cujas leis, para sua própria preservação, precisam ser
respeitadas. É como se a vida mesma – essa potência que cria e destrói para
manter-se em contínua renovação – para se perpetuar, precisasse de disciplina,
normas. A natureza é tradição e o homem representa uma ruptura em relação a
esta tradição. [17]
O que Nietzsche exaltava no homem Cioran parece condenar: sua
capacidade de inovar, de transgredir, de ousar para além dos limites
naturalmente fixados. Cioran vê, nessa ousadia do homem, um erro de um agitador
indesejável, que perturba a ordem natural em favor da mudança, da variação, da
diferença, do ilimitado. Cioran pensa que a inovação é biologicamente ruinosa.
A vida tende a ser conservadora e se desenvolve por meio da repetição, pela
falta de estilo. O homem, ao contrário, é avesso à quietude, à monotonia;
agitador por natureza, não tolera o tédio e busca toda sorte de expedientes
para fugir dele. O animal humano tem necessidade de pôr-se em movimento
incessante; precisa viver inovando indefinidamente, numa metamorfose constante.
Por isso, segundo Menezes, “o cisma [do homem com a natureza] representa, por
fim, a maior agressão já cometida contra a natureza, que fica indefesa contra
os excessos desse animal traidor”[18].
Nesse tocante, a visão pessimista que Cioran tem do homem é bastante afim com a
visão pessimista de Schopenhauer. Tanto para um quanto para o outro, o homem é
o grande tirano da natureza, o destruidor, por excelência, da ordem natural, do
equilíbrio ecossistêmico.
Acerca do pessimismo, nos diz Cioran que ele é uma “crueldade dos
vencidos que não podem perdoar à vida haver frustrado sua expectativa”[19].
Se o pessimismo antropológico afirma a enfermidade do homem, não o faz
simplesmente em função de um pressuposto teológico negativo, mas o faz,
sobretudo, com vistas a denunciar a modernidade[20]
como um modo de o homem encontrar-se no
tempo e no espaço, que lançou suspeitas sobre a dimensão
teológico-transcendente que caracteriza a condição humana. Para Cioran, a Enfermidade
do homem é incurável, pelo menos o é por meio das descobertas científicas e
invenções da técnica, “que podem no máximo curar nossos males secundários, por
trás dos quais se esconde um outro que nos recusamos a admitir”[21].
Em sua dimensão metafísica, o pessimismo cioraniano calca-se sobre a
intuição do pior (le pire), compreendido como tendência do ser, como
princípio vital e elã em direção ao nada[22].
Ele é movido por um profundo desprezo pelo mundo: “se o desprezo pelo mundo
concedesse por si só a santidade, não vejo como é que eu poderia evitar a
canonização”[23].
Como pessimismo metafísico, o pessimismo de Cioran afirma o Nada como princípio
do ser. O pior do pessimismo identifica-se com o fatum, uma fatalidade a
que estão submetidos os seres desde que nascem. A categoria do pior é quase
onipresente no pensamento de Cioran. Cioran não distingue, contudo, entre
pessimismo e pensamento trágico. O pessimismo metafísico de Cioran pretende dar
conta do pior estado de coisas. O pior é a intuição fundamental do pessimismo,
segundo o filósofo romeno. O pior do pessimismo é da ordem do necessário,
daquilo que precisa ser realizado. Para Cioran, o pior espraia-se por toda a
existência e se identifica com o ser mesmo. O pior cioraniano é atravessado por
um sentido místico. Ele é pensado como o desvelamento de uma catástrofe, uma
revelação no sentido profético do livro do Apocalipse.
Como pessimismo gnóstico, o pessimismo de Cioran encontra-se na base de
sua visão terrificante da história, “esse dinamismo de vítimas”[24].
Uma vez que não podemos escolher não nascer e que a unidade primordial foi
rompida por causa do pecado, fomos expulsos do paraíso e jogados no mundo onde
vivemos como condenados à perdição. Abandonados ao devir, à corrupção e à
morte, aspiramos à serenidade de uma idade de ouro que remonta a um passado
imemorial antes da queda. É porque fomos infectados pela nostalgia das origens,
que buscamos reencontrar o paraíso perdido aqui neste mundo. Mas a nostalgia
carece da saudade e se torna, por isso, “[...] nostalgia invertida, falseada e
viciada, dirigida para o futuro, obnubilada pelo “progresso”, réplica temporal,
metamorfose disparatada do paraíso original”[25].
O pessimismo cínico de Cioran, por fim, herdou do cinismo antigo os expedientes
metodológicos da tendência ao paroxismo, da polêmica, do desdém, do prazer no
excesso, do gozo na recusa. O pessimismo cínico ou pessimismo do desengano, tal
como também o chama Cioran, não concede ao homem muita importância. Cioran não
recusa o pior, isto é, o pior que consiste em ter consciência do que significa
ter nascido, em ter escolhido o sofrimento mais por vaidade e orgulho. Cioran
sente o peso da condenação à Lucidez. A Lucidez desvela a inanidade de todas as
coisas e a gratuidade, a frivolidade de todos os esforços humanos. Como
pessimista cínico, Cioran não chega, contudo, a desprezar totalmente as
ilusões, já que, para ele, ninguém consegue assumir imediatamente a
frivolidade, o viver conscientemente imerso na banalidade do mundo. O filósofo
romeno agradece ao cinismo e a um mendigo que conheceu nas ruas de Paris, de
quem disse ser “o maior filósofo de Paris” [26],
o aprendizado do nojo ao consolo confortador, agradece também a força com que
ele pôde “transformar em lucidez até
mesmo a preguiça, essa ‘dúvida da carne’, esse ‘ceticismo fisiológico’(...)”[27].
Tanto o cinismo quanto a Lucidez dão à luz o desengano e o desespero. A
insônia, “esse Nada sem trégua”, “um lucidez vertiginosa”[28],
de que padeceu em sua juventude, foi uma experiência decisiva na construção de
toda a sua filosofia profundamente pessimista e incendiária. A insônia não só
destrói a saúde, mas também faz germinar o ceticismo, o cinismo; robustece a
descrença no poder emancipador da consciência, que, para Cioran, é sempre
necessariamente má. A insônia força o insone a uma ruminação sem fim nem
consolo, interditando o florescimento de qualquer esperança de inibir a
tentativa de fuga mediante o esquecimento (o sono). O insone é aquele que sabe
que não existem ideias consoladoras na obscuridade, na escuridão.
Diferentemente dos cínicos antigos, Cioran
não oferece uma forma de pedagogia. Sua Lucidez demoníaca expressa o
aniquilamento da superstição, da crença na política e na história. Não se pode
esperar dele qualquer intento de correção e formação da humanidade. Ele se
satisfaz com a impotência da palavra, do conceito, da teoria na tentativa de
revelar e compreender o que só existe através de suas marcas negativas, o que
não se deixa capturar nas tramas do sentido e que somente se deixa entrever em
paradoxos, nas obsessões e nostalgias do eterno. Em suma, para Cioran, devemos
à carne e à sua necessidade de paixão o produzirmos e o sofrermos.
O profundo e mais radical pessimismo que
constitui a nervura do pensamento cioraniano não é inconsistente com o caráter
trágico da existência. No tocante à questão do trágico na obra de Cioran, há
que distinguir entre o caráter trágico da existência, que Cioran não cessa de
denunciar, de desvelar, e a sabedoria trágica, que não se confunde com a
sabedoria dionisíaca de Nietzsche. Há uma sabedoria trágica em Cioran, embora
ela careça do sim jubiloso nietzschiano. Como a sabedoria trágica, em Cioran,
só pode ser compreendida a partir da noção de revelação do Essencial, devemos
postergar para o capítulo sete as considerações sobre esse tema. Reiteremos que
a sabedoria trágica de Cioran não é uma retomada da sabedoria trágica de
Dioniso.
O trágico, no pensamento de Cioran, é a
revelação do nada (ausência de ser, essência, substancialidade nas coisas); é
revelação do impasse, do conflito sem resolução; é revelação da profunda
negatividade que constitui a nervura e as fibras da existência. O trágico
também está ligado à emergência da consciência. Como nota Pecoraro, “ a
irrupção da consciência condenou o homem ao suplício eterno ao desencadear o
conflito trágico”[29].
O trágico recobre a impossibilidade de redenção. O trágico cioraniano
ensina-nos que só existimos verdadeiramente enquanto sofremos. Só conhecemos
por meio da lúcida consciência de nossas dores. O trágico, em Cioran, é
expressão de uma verdade fatal: a essência de tudo é má, sem sentido,
abominável. O universo não comporta verdade, essência, fundamento; não admite
afirmação. Trágica é a condição do homem como ser desgarrado, extraviado da
natureza, atormentado, angustiado, para quem não há nada que possa salvá-lo,
libertá-lo e ajudá-lo a viver. Cioran rejeitou a doutrina do abandono taoísta,
a alegria trágica de Nietzsche, as seduções fugazes da fama, a ascese de
Schopenhauer, o nirvana budista, os medicamentos contra a depressão. Ele nunca
se usou da máscara do profeta ou do filósofo; nunca se convenceu da necessidade
de apontar caminhos como o fazem os farsantes da salvação. Cioran rejeitou
todos os lenitivos que a filosofia, a religião, a literatura, os médicos lhe
prescreviam, a fim de ajudá-lo a suportar o Intolerável ( o fato de ter
nascido, a queda no tempo, a morte necessária). Quem quer que pretenda realizar
um trabalho de liberação precisa buscar motivos nos recônditos de si mesmo. É
inútil buscar a liberação nos sistemas filosóficos, nos livros, nas igrejas,
nas doutrinas orientais.
O trágico em Cioran vivencia-se como
experiência do desespero, “doença que tem de ser curada; doença até a morte”[30]
. Mas há desesperos profundos, imensos que não se deixam solucionar por nada. O
desesperado desespera-se de não poder viver nem morrer. Cioran concorda com
Kierkegaard: no desespero, estamos mortalmente doentes. Dilacerado pelo
desespero, o desesperado sofre sem um motivo “real”; ele padece a consciência
de sua infelicidade. Consoante observa Pecoraro, “[...] o desespero só
pode ser “sentido” quando dilacera as carnes, quando se está obcecado pela
ideia de suicídio, quando a insônia interrompe o esquecimento que todas as
noites fornece as armas para suportar mais um dia”[31].
O desesperado sofre da lucidez de não poder não ser desesperado; ele não pode
viver, mas também não pode se matar, de modo que não lhe resta senão viver
plenamente consciente de sua condição de desespero. O desesperado sabe que “a
vida só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória”
[32]. Para
Cioran, todos os homens são desgraçados, mas são poucos os que o sabem.
O trágico, em Cioran, também se expressa como
fatalismo. Pode-se definir o fatalismo como “a doutrina segundo a qual todos os
acontecimentos do universo, especialmente os da vida humana, encontram-se
submetidos ao destino, quer dizer, acontecem por uma necessidade absoluta”[33].
Segundo Menezes, o fatalismo põe em evidência um elemento central do pensamento
trágico em geral: o destino.
Esse acontecimento que desencadeia o processo
que leva o herói ao encontro de sua fatalidade é, na tradição hebraica, segundo
Cioran, o pecado[35]. O
pecado seria a maldição original que condenaria todos os homens. Adão encapsula
todo o curso da história humana e a trajetória de cada vida pessoal, “de modo
que a soma de quedas individuais representa uma atualização da Queda primeira,
modelo da nossa”[36]. Nem
mesmo o ministério de Jesus teria modificado nosso destino, pois que
continuamos sendo os mesmos humanos decaídos desde Adão, arrastando sobre a
terra, como uma chaga de nossos corpos, nossa hereditariedade pecaminosa.
Cioran não acredita que a Ressurreição, evento capital do cristianismo,
constituiu uma escapatória lícita para a nossa condição trágica. A Ressurreição
só escamoteou nossa condição necessariamente mortal e finita. A atitude
voluntariamente trágica rechaça a Ressurreição e a Salvação que, no
imaginário-simbólico cristão, estão personificadas na figura de Jesus Cristo.
Assim, Cristo é o antípoda do herói trágico, para Cioran.
Se Jesus
houvesse acabado sua carreira na cruz e não tivesse se comprometido a
ressuscitar, que belo herói de tragédia teria sido! Seu lado divino fez com que
a literatura perdesse um tema admirável. Partilha assim a sorte, esteticamente
medíocre, de todos os justos. Como tudo o que se perpetua no coração dos
homens, como tudo o que se expõe ao culto e não morre irremediavelmente, não se
presta nada a essa visão de um fim total que marca o destino trágico. Para isso
teria sido necessário que ninguém o seguisse e que a transfiguração não viesse
a elevá-lo a uma ilícita auréola. Nada mais estranho à tragédia do que a ideia
de redenção, salvação e imortalidade. O herói sucumbe sob seus próprios atos,
sem que lhe seja dado escamotear sua morte por uma graça sobrenatural; não se
prolonga – enquanto existência, de nenhum modo, permanece distinto na memória
dos homens como um espetáculo de sofrimento; ao não ter discípulos, seu destino
infrutífero não fecunda nada, salvo a imaginação dos outros. Macbeth desmorona
sem esperança de resgate: não há extrema unção na tragédia. [37]
[1] PECORARO, 2004, p. 13.
[2] CIORAN, Emil. A tentação de existir. Tradução de Miguel Serras Pereira; Ana Luísa.
Lisboa: Relógio d’Água, 1988, p. 171.
[3]
CIORAN, Émil. Do
inconveniente de ter nascido. Tradução de Manuel de Freitas. Lisboa: Letra
Livre, 2010, p. 45.
[4] PECORARO, ibidem, p. 13.
[5] Ibidem.
[6] MENEZES, 2007, p. 45.
[7] Do inconveniente de ter nascido, p. 157.
[8] CIORAN, Émil. O livro das Ilusões. Tradução de Thomaz Brum. Rio de Janeiro:
Rocco, 2014, p. 25.
[9] Segundo Menezes (2016, p. 71),
“pessimismo, ceticismo, cinismo e misticismo: estas são as tendências mais
usualmente identificadas em Cioran por seus intérpretes”. (cf. MENEZES, Rodrigo
I.R.S. Existência e Escritura em Cioran.
PUC-SP, 2016. (Tese de Doutorado)).
[10] O conceito de “Lucidez”, em Cioran,
é central em toda a nossa compreensão do niilismo como campo semiótico de
desmitificação; por isso dedicaremos a ele uma seção exclusiva para
esclarecê-lo no capítulo 7.
[11] A questão da “salvação”, em
Cioran, demadará análises detidas no capítulo 7, em que nos debruçaremos sobre
a questão do niilismo no pensamento desse filósofo. Trata-se de uma questão
controversa e de difícil resolução, pois Cioran hesita entre a possibilidade de
alguma forma de salvação para o indivíduo e a impossibilidade de regeneração da
condição humana decaída.
[12] Dentre as quatro modalidades de
pessimismo em Cioran, destacam-se em importância, neste estudo, o pessimismo
antropológico e o pessimismo gnóstico, dado o fato de ambos contribuírem para a
dissolução do lugar imaginário de superioridade ontológica em que o homem se
situa na cultura ocidental.
[13] MENEZES, 2007, p. 13.
[14] Deve-se enfatizar que o Mal é uma
das obsessões de Cioran. O Mal é, para Cioran, a verdade primeira. Ele é
inquestionável, preside às leis da vida; é a substância da vida.
[15] Op.cit., p. 15.
[16] MENEZES, ibidem, p. 64.
[17] Ibidem, p. 66.
[18] Ibidem.
[19] CIORAN, Émil. Breviário da Decomposição. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de
Janeiro: Rocco, 2011b, p. 199.
[20] O que Cioran critica na
modernidade é a pretensão de se atingir, através da tecnociência e da razão
instrumental, a perfectibilidade indefinida, a solução para todos os problemas
existenciais do homem. A era moderna teria, assim, a pretensão de oferecer um
elixir universal capaz de nos curar de nós mesmos. Para Cioran, no entanto,
“não está ao alcance do homem evitar perder-se”. (Menezes, 2007, p. 13).
[21] MENEZES, ibidem, p. 16.
[22] Deve-se advertir que o “nada”,
para Cioran, não é simplesmente o não
ser, não é o oposto do ser, como pensam os filósofos e teólogos do Ocidente. O
nada é indizível, inefável; pode-se apenas senti-lo, sofrê-lo. Consoante ensina
Pecoraro (ibidem, p. 161), “Cioran está literalmente obcecado pelo nada, mas
jamais consegue avançar um passo que não seja uma definição abortada e
absolutamente inadequada do que está em jogo”. O que não impede Cioran de
tentar dar voz ao nada, de delimitá-lo semanticamente.
[23] Do inconveniente, p. 25.
[24] CIORAN, Émil. Silogismos da amargura.
Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011c, p. 94.
[25] CIORAN, Émil. História e Utopia. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro,
Rocco, 2011d, p. 100.
[26] Numa carta-prefácio que data de 22
de outubro de 1973, endereçada ao amigo e estudioso de sua obra Fernando
Savater, Cioran escreve: “Durante anos recebi a visita de um mendigo que vinha
fazer-me perguntas sobre Deus, a matéria, o mal etc., às quais, obviamente, eu
não podia responder. Ele carregava essas perguntas consigo, dava voltas ao
redor delas, confundia-se com elas. Nunca conheci ninguém mais dedicado ao
insolúvel e ao inextricável. Um dia, em um momento de desalento, me confessou
que merecia sua condição, que era apenas um mendigo e nada mais e que tanto seu
modo de vida como suas obsessões lhe pareciam igualmente desprezíveis. Para
levantar o seu ânimo, disse de imediato: “Sabe, para mim, você é o maior
filósofo de Paris, neste momento”. Fitou-me atônito e deve ter pensado que eu
estava de gozação. Mas havia nas minhas palavras um tom de sinceridade que não
lhe escapou e que deve tê-lo impressionado. Depois, suas visitas se espaçaram
até cessarem por completo. Está vivo ainda? Morreu? Não sei. A vantagem de não
possuir domicílio é poder desaparecer sem deixar vestígio. Tal é o privilégio
do mendigo. Esse homem, em verdade, é, ou era, um filósofo. E talvez eu também
o seja um pouco, na medida em que, a favor dos meus fracassos, sempre me
atarefei em avançar a um grau ainda mais alto de insegurança”. (Carta prefácio
de E. M. Cioran. In: SAVATER, Fernando. Todo
mi Cioran. Barcelona: Editorial
Ariel, 2018, p. 14-15. (tradução nossa)).
O texto original a que corresponde
a tradução é: “Durante años he recebido la vista de um mendigo que venía a
plantearem preguntas sobre Dios, sobre la materia, sobre el mal, etc., a las
cuales, claro está, yo no podia responder. Llevaba esas prehuntas en él, les
daba vueltas em todos los sentidos, se confundía con ellas. No he conhecido a
nadie más cogido, más aquejado por lo
insoluble y por lo inextricable. Un día, em um momento de desaliento, me
confesó que merecía su condición, que sólo era um medigo y nada más, u que
tanto su modo de existencia como sus obsesiones le pareciam igualmente
despreciables. Para levantarle el ánimo, le dije de inmediato: “Sabes, eres
para mí el mayor filósofo de París, en este momento”. Me miró atónito y creyó
que me burlaba de él. Pero había en mis palavras um tono de sinceridad que no
se le escapo y que debío impresionarle. Después, sus visitas se espaciaron
hasta cesar por completo. ¿ Vive todavia? ¿ Há muerto? No lo sé. La vantaja de
no tener domicilio es poder desaparecer sin dejar huellas. Tal es el privilegio
del mendigo. Esse hombre em verdade es, o era, un filósofo. Y quizá yo también
lo soy un poco, en la medida en que, a favor de mis achaques, me he atareado em
avanzar siempre hacia um más alto grado de inseguridad”.
[27] JÚNIOR, Ruy C.R. De kynismus a
Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: REDYSON,
Deyve (org.). Emil Cioran e a Filosofia
Negativa: homenagem ao centenário de seu nascimento. Porto Alegre: Sulina,
2011. p. 30.
[28] CIORAN, Émil. Nos cumes do desespero. Tradução de Fernando Klabin. São Paulo:
Hedra, 2011a, p. 15.
[29] PECORARO, ibidem, p. 61.
[30] Ibidem, p. 62.
[31] Ibidem, p. 63.
[32] Breviário de decomposição, p. 43.
[33] JAPIASSÚ, HILTON; MARCONDES,
Danilo. Dicionário Básico de Filosofia.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 103.
[34] MENEZES, 2007, p. 71.
[35] Os temas de “Adão”, da “Queda” e
do “Pecado Original” serão retomados e desenvolvidos no capítulo sete, já que
constituem eles dimensões fundamentais da antropologia teológica e do
pessimismo antropológico radical de Cioran. Eles formam as malhas semânticas do
imaginário-simbólico no domínio do qual se erige e se desenvolve o pensamento
cioraniano. Como teólogo herege, Cioran não abandonou o imaginário-simbólico
cristão, mas o subverteu a partir de seus significados, de seus signos, de suas
imagens e símbolos.
[36] Op. cit. p. 75.
[37] Breviário de decomposição, p. 114-115.