domingo, 12 de janeiro de 2025

"Graças à sensação da presença da morte na estrutura do vital, introduz-se implicitamente um elemento do Nada na existência." (Cioran)

 

                              

 

                     O pessimismo e o trágico no pensamento de Cioran


       Consoante observa Pecoraro, “a negação abismal, absoluta, é um marco da filosofia de Emil Cioran”[1]. Toda a sua filosofia é um movimento acumulativo de negações. Para Cioran, negar é o melhor meio para emancipar o espírito.

 

Mas a negação só é fecunda enquanto nos esforçamos por a conquistar e nos apropriamos dela; uma vez adquirida, aprisiona-nos: uma cadeia como qualquer outra. Escravatura por escravatura, mais vale orientarmo-nos no sentido da do ser, embora tal não seja possível sem alguma dilaceração: trata-se nem mais nem menos de nos subtrairmos ao contágio do nada, ao conforto de uma vertigem... [2]

 

        Negar, todavia, não é, na filosofia de Cioran, um sintoma de degenerescência, de adoecimento dos instintos, como poderia entender Nietzsche. A negação não é simplesmente uma característica estilística de uma escrita filosófica que envenena, infecciona e mata. Ela se apresenta como um modo de vida ou uma sabedoria de vida. Não é apenas negação da catástrofe que é a existência, é afirmação do suplício do ser, da existência como esquartejamento, da queda no tempo; é recusa do devir como “agonia sem desenlace”[3]; a filosofia cioraniana diz “não” também “aos truques da razão, às pretensões da filosofia, às violências da verdade, às ilusões sobre o homem e a sua História, às utopias, às promessas de uma redenção, à esperança, aos enganos do conhecimento, às sereias do engajamento (...)”[4]. Cioran nega as profecias sagradas ou profanas que anunciam um novo advento. A negação cioraniana é negação fisiológica, porque “agita-se violentamente nas veias”[5]. A experiência orgânica, a experiência de vida, constitui o solo donde brota e viceja todo o pensamento de Cioran; nesse tocante também, ele está muito próximo de Nietzsche, a despeito das divergências inegáveis que ele terá com o filósofo dionisíaco a partir da fase francesa da escrita de sua obra. Reiter-se que a experiência de vida é, para Cioran, a fonte última de todo o seu pensamento, mais importante que os livros ou quaisquer outras fontes externas. De modo particular, foi a insônia uma experiência fundamental e decisiva na elaboração de seu pensamento, sobretudo porque ela permitiu a confirmação dos ensinamentos gnósticos com os quais ele já tinha inclinação a concordar.

     Não obstante ser a negação e o mais profundo, radical e esquartejador pessimismo características marcantes de seu pensamento, Cioran é um filósofo paradoxal. Seu pensamento é multifacetado, gestado e entretecido no concurso de várias experiências de leitura. Embora fosse filósofo de formação, Cioran frequentou muitas obras e autores de filosofia, literatura e religião. No âmbito da filosofia, se incluem as mais diversas ciências humanas, tais como psicologia, história e sociologia, a cujos estudos Cioran se dedicou. Na área da literatura, Cioran visitou escritores e poetas em geral, com especial destaque para Dostoiévski. No âmbito da religião, se interessava por diversos textos teológicos, mitológicos, quer fossem oriundos da tradição judaico-cristã, quer proviessem de tradições orientais. O espectro de leituras de Cioran é amplo e variado, incluindo literatura, poesia, historiografia, relatos místicos, correspondências, memórias, mitologia, teologia e muito mais. No campo da filosofia, ele não se ocupou apenas dos filósofos pessimistas. Sua tese de conclusão de seu curso de filosofia foi sobre Bergson, chegando a cogitar da realização de uma segunda tese sobre esse filósofo (que não chegou a escrever).

   Dada a complexidade da obra de Cioran, “não apenas os rótulos e definições se mostram insuficientes – e como que rígidos demais para comportar as nuanças e oscilações do espírito”[6]. Portanto, deve-se prevenir contra a tentação de superestimar a dimensão inegavelmente pessimista do pensamento cioraniano a tal ponto que fique eclipsada a complexidade de sua obra. Cioran não se via como pessimista, não conceituou o pessimismo, não o transformou em palavra de ordem, não o tomou como imperativo pelo qual se nortearia seu pensamento. Para Cioran, ser pessimista não é ser defensor do pessimismo. Cioran não foi teórico do pessimismo, e se recusou a fazer panfletagem do humor amargo, da tristeza incurável. Num de seus fragmentos, ele notou que “o sofrimento abre-nos os olhos, ajuda-nos a ver as coisas que de outra maneira não teríamos descoberto” [7]. Sem pretender descer a pormenores, neste momento, sobre o significado da experiência do sofrimento na obra de Cioran (tema que retomaremos no capítulo destinado ao estudo do niilismo em Cioran), será suficiente dizer que, para o filósofo romeno, o sofrimento nos edifica acima da mediocridade. Como ele mesmo nota, “só o sofrimento muda o homem. Todas as outras experiências e fenômenos não conseguem modificar essencialmente o temperamento de ninguém nem aprofundar certas disposições suas a ponto de transformá-las completamente”[8].

     Teólogo ateu, místico sem Deus, cético que recusa a epoché, cínico infectado pelo desengano, teólogo gnóstico – são algumas das maneiras de qualificar Cioran.[9] Tal como os cínicos da Antiguidade, aprouve a Cioran a negação até o gozo, o excesso do êxtase, o paradoxo e a contradição até o cume do delírio. A Lucidez[10] afiada de Cioran opera o aniquilamento da superstição, da crença na história, e na política. Nesse sentido, ele foi um pensador iconoclasta, um pensador crepuscular, tal como Nietzsche. Dadas as múltiplas imagens com que Cioran se representa em seu discurso, o seu pessimismo não pode ser definido univocamente. Seu pessimismo também se constitui pela confluência de vários domínios de significado, que o fazem assumir diversas formas: há um pessimismo cínico, um pessimismo gnóstico, um pessimismo metafísico e um pessimismo antropológico. Todas essas formas de expressão do pessimismo cioraniano pressupõe a tese de que a existência é resultado de um despedaçamento do ser. Nesse sentido, o pessimismo multívoco de Cioran afina-se mais com o de Mainlãnder, para quem toda a existência está fundamentada numa Vontade de morte, do que com o pessimismo de Schopenhuaer, que descerra um caminho salvífico, redentor. Cioran não era pessimista à moda clássica, como o eram os filósofos do século XIX. Seu pessimismo não assume a forma dogmática, sistemática e cientificista. Trata-se de um pessimismo vivido, afirmado na nervura de sua fisiologia, enunciado pelas tonalidades de suas intuições. Seu diagnóstico negativo não se acompanha de esperança, de possibilidade, de redenção. Ele recusa a ascese schopenhaueriana, a síntese hegeliana, a escuta ou recordação do Ser em Heidegger, o Deus kierkegaardiano, a Revolta de Camus, as Ideias platônicas, o sim jubiloso de Nietzsche, o Nirvana budista, etc.  A angústia, a dor, o tédio, o desespero, o sofrimento, a consciência como doença não encontram solução em remédios e consolações. A Lucidez é um tormento, do qual não há libertação.

    O pessimismo cioraniano, a despeito de suas modalidades semânticas, também se caracteriza pelo exílio metafísico, isto é, pela incapacidade de instalar-se no devir, na duração, de satisfazer-se com seu ritmo. Para Cioran , o Tempo não pode ser aprovado, amado, afirmado, porque é a duração de uma queda em direção à catástrofe do ser. O Tempo  representa o domínio da morte e da derrelição, que leva todo vivo à condição de cadáver anunciado. O Tempo descerra a condição entrópica do ser como um precipitar-se para a dissolução. No tempo, a duração é destinação à decomposição. O Tempo é o princípio do pessimismo de Cioran, a razão que fundamenta todas as suas negações. O Tempo reflete a consciência da morte, da finitude, reflete também o fluxo da existência, seu escoamento em meio ao qual a consciência se asfixia em desespero. A negação pessimista de Cioran está impregnada de contradição e melancolia, porquanto, ao negar, Cioran é incapaz de renunciar ao desejo e ao mundo. O Tempo tem aspectos corrosivos, sobretudo o tempo histórico, a História como dimensão humana por excelência. A História é caracterizada pela negatividade radical, pelo nada de fundo, pelo vazio, pela insubstancialidade que constituem terrenos férteis para a produção e a disseminação de ilusões e mentiras vitais.

    Não se deve buscar, portanto, as raízes do pessimismo cioraniano em Schopenhauer, apesar da influência, conforme veremos na próxima subseção, que este exerceu sobre o pensamento de Cioran. Cioran recusa o caminho salvífico aberto ao homem por Schopenhauer. Não há salvação alguma para a condição humana fatalmente decaída, corrompida e má, segundo Cioran[11]. Nesse sentido, ele comunga com a tradição hebraica, particularmente com a visão bíblica do Gênese, mas também com Dostoiévski. Ele admira o escritor russo por ser um profundo perito da natureza humana. Se Cioran afirma o mal como a essência humana, ele deve isso ao escritor russo. Todavia, Cioran tinha uma espécie de “fé” de que Dostoiévski carecia. Segundo Menezes, devemos buscar as raízes do pessimismo antropológico de Cioran na religião. Ele se forma como consequência de sua visão essencialmente religiosa do homem. Convém, nesta subseção, dar a conhecer, em linhas gerais, como se caracterizam os quatro tipos de pessimismo cioraniano, anteriormente mencionados, começando pela caracterização do pessimismo antropológico, não sem dizer que tornaremos a considerá-lo numa análise mais cuidadosa no capítulo apropriado[12].

      O pessimismo antropológico de Cioran está baseado na concepção do homem como animal enfermo. Segundo Menezes, “[...] existiria no ser humano uma enfermidade essencial profunda, incondicional, absoluta, enfermidade esta que estaria na raiz do mal-estar contemporâneo e de sua busca desesperada pela Saúde”[13]. O pessimismo antropológico de Cioran é indissociável de sua visão religiosa do homem e do mundo, o que torna Cioran um pensador religioso. Sua visão negativa da condição humana esteia-se numa concepção gnóstica, que se tornou conhecida por ele através de seus ancestrais bogomilos, os quais formavam uma seita gnóstica dos Balcãs durante a Idade Média. Os bogomilos teriam influenciado a cultura romana. Portanto, o pessimismo antropológico consiste numa antropologia essencialmente gnóstica, à luz da qual o homem é concebido como um ser contaminado pelo Mal[14], “criatura de um deus febril que projeta no universo seu padecimento supremo; ser dividido entre o bem e o mal, a saúde e a doença”[15] . No homem, a consciência lhe parece como um punhal na carne. A cisão entre o bem e o mal, a saúde e a doença, que constitui a natureza do homem, liga-se intimamente a sua condição enferma, para a qual ele tem de despertar. A antropologia cioraniana é uma antropologia teológica, porquanto afirma o caráter ontologicamente problemático do homem. Conquanto seja desoladora, a concepção cioraniana do ser humano não é, de modo algum, infundada. Atendo-se à observação dos acontecimentos históricos, ao exame das intenções humanas, quase sempre conflitantes com as ações, Cioran vê o homem como um animal decaído, como uma espécie de heresia da natureza. Deixando de viver em companhia com Deus, o homem rompeu a relação simbiótica com a natureza, à qual sua vida estava ajustada. Assim, segundo Menezes, “supondo que evoluímos do macaco, o que nos fez abandonar nossa condição primeira não deve ser algo que estava incluído, programado nos planos da natureza: um acidente, um desvio repentino e inevitável no curso natural da vida”[16]. Cioran vê a consciência (consciência reflexiva, mais propriamente, para nós) o elemento de ruptura do homem com a natureza. Com a emergência no homem da consciência reflexiva, ele passou a ser vítima de medos indeterminados. Tornou-se não só suscetível de males reais, comuns aos demais seres vivos, mas também mais sensível a males possíveis ou abstratos. A consciência, para Cioran, é a marca de uma anomalia, é o registro do antinatural no âmago do homem, que torna a vida questionável e culpada.

     Na antropologia teológica de Cioran, a queda é uma traição à natureza.

 

A queda equivale, em termos ontológicos, à traição à natureza. “Desertor da zoologia”, o homem rompe com suas raízes, e essa ruptura equivale a um cisma contra a “ortodoxia da natureza”, cujas leis, para sua própria preservação, precisam ser respeitadas. É como se a vida mesma – essa potência que cria e destrói para manter-se em contínua renovação – para se perpetuar, precisasse de disciplina, normas. A natureza é tradição e o homem representa uma ruptura em relação a esta tradição. [17]

 

 

     O que Nietzsche exaltava no homem Cioran parece condenar: sua capacidade de inovar, de transgredir, de ousar para além dos limites naturalmente fixados. Cioran vê, nessa ousadia do homem, um erro de um agitador indesejável, que perturba a ordem natural em favor da mudança, da variação, da diferença, do ilimitado. Cioran pensa que a inovação é biologicamente ruinosa. A vida tende a ser conservadora e se desenvolve por meio da repetição, pela falta de estilo. O homem, ao contrário, é avesso à quietude, à monotonia; agitador por natureza, não tolera o tédio e busca toda sorte de expedientes para fugir dele. O animal humano tem necessidade de pôr-se em movimento incessante; precisa viver inovando indefinidamente, numa metamorfose constante. Por isso, segundo Menezes, “o cisma [do homem com a natureza] representa, por fim, a maior agressão já cometida contra a natureza, que fica indefesa contra os excessos desse animal traidor”[18]. Nesse tocante, a visão pessimista que Cioran tem do homem é bastante afim com a visão pessimista de Schopenhauer. Tanto para um quanto para o outro, o homem é o grande tirano da natureza, o destruidor, por excelência, da ordem natural, do equilíbrio ecossistêmico.

      Acerca do pessimismo, nos diz Cioran que ele é uma “crueldade dos vencidos que não podem perdoar à vida haver frustrado sua expectativa”[19]. Se o pessimismo antropológico afirma a enfermidade do homem, não o faz simplesmente em função de um pressuposto teológico negativo, mas o faz, sobretudo, com vistas a denunciar a modernidade[20] como um modo de o homem  encontrar-se no tempo e no espaço, que lançou suspeitas sobre a dimensão teológico-transcendente que caracteriza a condição humana. Para Cioran, a Enfermidade do homem é incurável, pelo menos o é por meio das descobertas científicas e invenções da técnica, “que podem no máximo curar nossos males secundários, por trás dos quais se esconde um outro que nos recusamos a admitir”[21].

      Em sua dimensão metafísica, o pessimismo cioraniano calca-se sobre a intuição do pior (le pire), compreendido como tendência do ser, como princípio vital e elã em direção ao nada[22]. Ele é movido por um profundo desprezo pelo mundo: “se o desprezo pelo mundo concedesse por si só a santidade, não vejo como é que eu poderia evitar a canonização”[23]. Como pessimismo metafísico, o pessimismo de Cioran afirma o Nada como princípio do ser. O pior do pessimismo identifica-se com o fatum, uma fatalidade a que estão submetidos os seres desde que nascem. A categoria do pior é quase onipresente no pensamento de Cioran. Cioran não distingue, contudo, entre pessimismo e pensamento trágico. O pessimismo metafísico de Cioran pretende dar conta do pior estado de coisas. O pior é a intuição fundamental do pessimismo, segundo o filósofo romeno. O pior do pessimismo é da ordem do necessário, daquilo que precisa ser realizado. Para Cioran, o pior espraia-se por toda a existência e se identifica com o ser mesmo. O pior cioraniano é atravessado por um sentido místico. Ele é pensado como o desvelamento de uma catástrofe, uma revelação no sentido profético do livro do Apocalipse.

     Como pessimismo gnóstico, o pessimismo de Cioran encontra-se na base de sua visão terrificante da história, “esse dinamismo de vítimas”[24]. Uma vez que não podemos escolher não nascer e que a unidade primordial foi rompida por causa do pecado, fomos expulsos do paraíso e jogados no mundo onde vivemos como condenados à perdição. Abandonados ao devir, à corrupção e à morte, aspiramos à serenidade de uma idade de ouro que remonta a um passado imemorial antes da queda. É porque fomos infectados pela nostalgia das origens, que buscamos reencontrar o paraíso perdido aqui neste mundo. Mas a nostalgia carece da saudade e se torna, por isso, “[...] nostalgia invertida, falseada e viciada, dirigida para o futuro, obnubilada pelo “progresso”, réplica temporal, metamorfose disparatada do paraíso original”[25].  

      O pessimismo cínico de Cioran, por fim,  herdou do cinismo antigo os expedientes metodológicos da tendência ao paroxismo, da polêmica, do desdém, do prazer no excesso, do gozo na recusa. O pessimismo cínico ou pessimismo do desengano, tal como também o chama Cioran, não concede ao homem muita importância. Cioran não recusa o pior, isto é, o pior que consiste em ter consciência do que significa ter nascido, em ter escolhido o sofrimento mais por vaidade e orgulho. Cioran sente o peso da condenação à Lucidez. A Lucidez desvela a inanidade de todas as coisas e a gratuidade, a frivolidade de todos os esforços humanos. Como pessimista cínico, Cioran não chega, contudo, a desprezar totalmente as ilusões, já que, para ele, ninguém consegue assumir imediatamente a frivolidade, o viver conscientemente imerso na banalidade do mundo. O filósofo romeno agradece ao cinismo e a um mendigo que conheceu nas ruas de Paris, de quem disse ser “o maior filósofo de Paris” [26], o aprendizado do nojo ao consolo confortador, agradece também a força com que ele pôde “transformar em lucidez  até mesmo a preguiça, essa ‘dúvida da carne’, esse ‘ceticismo fisiológico’(...)”[27]. Tanto o cinismo quanto a Lucidez dão à luz o desengano e o desespero. A insônia, “esse Nada sem trégua”, “um lucidez vertiginosa”[28], de que padeceu em sua juventude, foi uma experiência decisiva na construção de toda a sua filosofia profundamente pessimista e incendiária. A insônia não só destrói a saúde, mas também faz germinar o ceticismo, o cinismo; robustece a descrença no poder emancipador da consciência, que, para Cioran, é sempre necessariamente má. A insônia força o insone a uma ruminação sem fim nem consolo, interditando o florescimento de qualquer esperança de inibir a tentativa de fuga mediante o esquecimento (o sono). O insone é aquele que sabe que não existem ideias consoladoras na obscuridade, na escuridão.

      Diferentemente dos cínicos antigos, Cioran não oferece uma forma de pedagogia. Sua Lucidez demoníaca expressa o aniquilamento da superstição, da crença na política e na história. Não se pode esperar dele qualquer intento de correção e formação da humanidade. Ele se satisfaz com a impotência da palavra, do conceito, da teoria na tentativa de revelar e compreender o que só existe através de suas marcas negativas, o que não se deixa capturar nas tramas do sentido e que somente se deixa entrever em paradoxos, nas obsessões e nostalgias do eterno. Em suma, para Cioran, devemos à carne e à sua necessidade de paixão o produzirmos e o sofrermos.

     O profundo e mais radical pessimismo que constitui a nervura do pensamento cioraniano não é inconsistente com o caráter trágico da existência. No tocante à questão do trágico na obra de Cioran, há que distinguir entre o caráter trágico da existência, que Cioran não cessa de denunciar, de desvelar, e a sabedoria trágica, que não se confunde com a sabedoria dionisíaca de Nietzsche. Há uma sabedoria trágica em Cioran, embora ela careça do sim jubiloso nietzschiano. Como a sabedoria trágica, em Cioran, só pode ser compreendida a partir da noção de revelação do Essencial, devemos postergar para o capítulo sete as considerações sobre esse tema. Reiteremos que a sabedoria trágica de Cioran não é uma retomada da sabedoria trágica de Dioniso.

    O trágico, no pensamento de Cioran, é a revelação do nada (ausência de ser, essência, substancialidade nas coisas); é revelação do impasse, do conflito sem resolução; é revelação da profunda negatividade que constitui a nervura e as fibras da existência. O trágico também está ligado à emergência da consciência. Como nota Pecoraro, “ a irrupção da consciência condenou o homem ao suplício eterno ao desencadear o conflito trágico”[29]. O trágico recobre a impossibilidade de redenção. O trágico cioraniano ensina-nos que só existimos verdadeiramente enquanto sofremos. Só conhecemos por meio da lúcida consciência de nossas dores. O trágico, em Cioran, é expressão de uma verdade fatal: a essência de tudo é má, sem sentido, abominável. O universo não comporta verdade, essência, fundamento; não admite afirmação. Trágica é a condição do homem como ser desgarrado, extraviado da natureza, atormentado, angustiado, para quem não há nada que possa salvá-lo, libertá-lo e ajudá-lo a viver. Cioran rejeitou a doutrina do abandono taoísta, a alegria trágica de Nietzsche, as seduções fugazes da fama, a ascese de Schopenhauer, o nirvana budista, os medicamentos contra a depressão. Ele nunca se usou da máscara do profeta ou do filósofo; nunca se convenceu da necessidade de apontar caminhos como o fazem os farsantes da salvação. Cioran rejeitou todos os lenitivos que a filosofia, a religião, a literatura, os médicos lhe prescreviam, a fim de ajudá-lo a suportar o Intolerável ( o fato de ter nascido, a queda no tempo, a morte necessária). Quem quer que pretenda realizar um trabalho de liberação precisa buscar motivos nos recônditos de si mesmo. É inútil buscar a liberação nos sistemas filosóficos, nos livros, nas igrejas, nas doutrinas orientais.

       O trágico em Cioran vivencia-se como experiência do desespero, “doença que tem de ser curada; doença até a morte”[30] . Mas há desesperos profundos, imensos que não se deixam solucionar por nada. O desesperado desespera-se de não poder viver nem morrer. Cioran concorda com Kierkegaard: no desespero, estamos mortalmente doentes. Dilacerado pelo desespero, o desesperado sofre sem um motivo “real”; ele padece a consciência de sua infelicidade. Consoante observa Pecoraro, “[...] o desespero só pode ser “sentido” quando dilacera as carnes, quando se está obcecado pela ideia de suicídio, quando a insônia interrompe o esquecimento que todas as noites fornece as armas para suportar mais um dia”[31]. O desesperado sofre da lucidez de não poder não ser desesperado; ele não pode viver, mas também não pode se matar, de modo que não lhe resta senão viver plenamente consciente de sua condição de desespero. O desesperado sabe que “a vida só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória” [32]. Para Cioran, todos os homens são desgraçados, mas são poucos os que o sabem.

     O trágico, em Cioran, também se expressa como fatalismo. Pode-se definir o fatalismo como “a doutrina segundo a qual todos os acontecimentos do universo, especialmente os da vida humana, encontram-se submetidos ao destino, quer dizer, acontecem por uma necessidade absoluta”[33]. Segundo Menezes, o fatalismo põe em evidência um elemento central do pensamento trágico em geral: o destino.

 

 Diferentemente da concepção cristã de história, em que o homem, mediante o livre-arbítrio, tem a possibilidade de influir nos rumos dos acontecimentos, no universo trágico a história está muito mais associada à ideia de necessidade, determinismo, fatalidade. No início de uma tragédia, geralmente há um acontecimento responsável por disparar o processo que conduz inelutavelmente ao destino fatal[34].

 

 

      Esse acontecimento que desencadeia o processo que leva o herói ao encontro de sua fatalidade é, na tradição hebraica, segundo Cioran, o pecado[35]. O pecado seria a maldição original que condenaria todos os homens. Adão encapsula todo o curso da história humana e a trajetória de cada vida pessoal, “de modo que a soma de quedas individuais representa uma atualização da Queda primeira, modelo da nossa”[36]. Nem mesmo o ministério de Jesus teria modificado nosso destino, pois que continuamos sendo os mesmos humanos decaídos desde Adão, arrastando sobre a terra, como uma chaga de nossos corpos, nossa hereditariedade pecaminosa. Cioran não acredita que a Ressurreição, evento capital do cristianismo, constituiu uma escapatória lícita para a nossa condição trágica. A Ressurreição só escamoteou nossa condição necessariamente mortal e finita. A atitude voluntariamente trágica rechaça a Ressurreição e a Salvação que, no imaginário-simbólico cristão, estão personificadas na figura de Jesus Cristo. Assim, Cristo é o antípoda do herói trágico, para Cioran.

 

Se Jesus houvesse acabado sua carreira na cruz e não tivesse se comprometido a ressuscitar, que belo herói de tragédia teria sido! Seu lado divino fez com que a literatura perdesse um tema admirável. Partilha assim a sorte, esteticamente medíocre, de todos os justos. Como tudo o que se perpetua no coração dos homens, como tudo o que se expõe ao culto e não morre irremediavelmente, não se presta nada a essa visão de um fim total que marca o destino trágico. Para isso teria sido necessário que ninguém o seguisse e que a transfiguração não viesse a elevá-lo a uma ilícita auréola. Nada mais estranho à tragédia do que a ideia de redenção, salvação e imortalidade. O herói sucumbe sob seus próprios atos, sem que lhe seja dado escamotear sua morte por uma graça sobrenatural; não se prolonga – enquanto existência, de nenhum modo, permanece distinto na memória dos homens como um espetáculo de sofrimento; ao não ter discípulos, seu destino infrutífero não fecunda nada, salvo a imaginação dos outros. Macbeth desmorona sem esperança de resgate: não há extrema unção na tragédia. [37]



[1] PECORARO, 2004, p. 13.

 

[2] CIORAN, Emil. A tentação de existir. Tradução de Miguel Serras Pereira; Ana Luísa. Lisboa: Relógio d’Água, 1988, p. 171.

 

[3] CIORAN, Émil. Do inconveniente de ter nascido. Tradução de Manuel de Freitas. Lisboa: Letra Livre, 2010, p. 45.

 

[4] PECORARO, ibidem, p. 13.

 

[5] Ibidem.

[6] MENEZES, 2007, p. 45.

 

[7] Do inconveniente de ter nascido, p. 157.

 

[8] CIORAN, Émil. O livro das Ilusões. Tradução de Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 25.

 

[9] Segundo Menezes (2016, p. 71), “pessimismo, ceticismo, cinismo e misticismo: estas são as tendências mais usualmente identificadas em Cioran por seus intérpretes”. (cf. MENEZES, Rodrigo I.R.S. Existência e Escritura em Cioran. PUC-SP, 2016. (Tese de Doutorado)).

 

[10] O conceito de “Lucidez”, em Cioran, é central em toda a nossa compreensão do niilismo como campo semiótico de desmitificação; por isso dedicaremos a ele uma seção exclusiva para esclarecê-lo no capítulo 7.

[11] A questão da “salvação”, em Cioran, demadará análises detidas no capítulo 7, em que nos debruçaremos sobre a questão do niilismo no pensamento desse filósofo. Trata-se de uma questão controversa e de difícil resolução, pois Cioran hesita entre a possibilidade de alguma forma de salvação para o indivíduo e a impossibilidade de regeneração da condição humana decaída.

 

[12] Dentre as quatro modalidades de pessimismo em Cioran, destacam-se em importância, neste estudo, o pessimismo antropológico e o pessimismo gnóstico, dado o fato de ambos contribuírem para a dissolução do lugar imaginário de superioridade ontológica em que o homem se situa na cultura ocidental.

 

[13] MENEZES, 2007, p. 13.

 

[14] Deve-se enfatizar que o Mal é uma das obsessões de Cioran. O Mal é, para Cioran, a verdade primeira. Ele é inquestionável, preside às leis da vida; é a substância da vida.

 

[15] Op.cit., p. 15.

 

[16] MENEZES, ibidem, p. 64.

 

[17] Ibidem, p. 66.

 

[18] Ibidem.

 

[19] CIORAN, Émil. Breviário da Decomposição. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011b, p. 199.

 

[20] O que Cioran critica na modernidade é a pretensão de se atingir, através da tecnociência e da razão instrumental, a perfectibilidade indefinida, a solução para todos os problemas existenciais do homem. A era moderna teria, assim, a pretensão de oferecer um elixir universal capaz de nos curar de nós mesmos. Para Cioran, no entanto, “não está ao alcance do homem evitar perder-se”. (Menezes, 2007, p. 13).

 

[21] MENEZES, ibidem, p. 16.

 

[22] Deve-se advertir que o “nada”, para Cioran,  não é simplesmente o não ser, não é o oposto do ser, como pensam os filósofos e teólogos do Ocidente. O nada é indizível, inefável; pode-se apenas senti-lo, sofrê-lo. Consoante ensina Pecoraro (ibidem, p. 161), “Cioran está literalmente obcecado pelo nada, mas jamais consegue avançar um passo que não seja uma definição abortada e absolutamente inadequada do que está em jogo”. O que não impede Cioran de tentar dar voz ao nada, de delimitá-lo semanticamente.

 

[23] Do inconveniente, p. 25.

 

[24] CIORAN, Émil. Silogismos da amargura.  Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011c, p. 94.

 

[25]  CIORAN, Émil. História e Utopia. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 2011d, p. 100.

 

[26] Numa carta-prefácio que data de 22 de outubro de 1973, endereçada ao amigo e estudioso de sua obra Fernando Savater, Cioran escreve: “Durante anos recebi a visita de um mendigo que vinha fazer-me perguntas sobre Deus, a matéria, o mal etc., às quais, obviamente, eu não podia responder. Ele carregava essas perguntas consigo, dava voltas ao redor delas, confundia-se com elas. Nunca conheci ninguém mais dedicado ao insolúvel e ao inextricável. Um dia, em um momento de desalento, me confessou que merecia sua condição, que era apenas um mendigo e nada mais e que tanto seu modo de vida como suas obsessões lhe pareciam igualmente desprezíveis. Para levantar o seu ânimo, disse de imediato: “Sabe, para mim, você é o maior filósofo de Paris, neste momento”. Fitou-me atônito e deve ter pensado que eu estava de gozação. Mas havia nas minhas palavras um tom de sinceridade que não lhe escapou e que deve tê-lo impressionado. Depois, suas visitas se espaçaram até cessarem por completo. Está vivo ainda? Morreu? Não sei. A vantagem de não possuir domicílio é poder desaparecer sem deixar vestígio. Tal é o privilégio do mendigo. Esse homem, em verdade, é, ou era, um filósofo. E talvez eu também o seja um pouco, na medida em que, a favor dos meus fracassos, sempre me atarefei em avançar a um grau ainda mais alto de insegurança”. (Carta prefácio de E. M. Cioran. In: SAVATER, Fernando. Todo mi Cioran. Barcelona: Editorial Ariel, 2018, p. 14-15. (tradução nossa)).

 

O texto original a que corresponde a tradução é: “Durante años he recebido la vista de um mendigo que venía a plantearem preguntas sobre Dios, sobre la materia, sobre el mal, etc., a las cuales, claro está, yo no podia responder. Llevaba esas prehuntas en él, les daba vueltas em todos los sentidos, se confundía con ellas. No he conhecido a nadie más cogido, más aquejado por lo insoluble y por lo inextricable. Un día, em um momento de desaliento, me confesó que merecía su condición, que sólo era um medigo y nada más, u que tanto su modo de existencia como sus obsesiones le pareciam igualmente despreciables. Para levantarle el ánimo, le dije de inmediato: “Sabes, eres para mí el mayor filósofo de París, en este momento”. Me miró atónito y creyó que me burlaba de él. Pero había en mis palavras um tono de sinceridad que no se le escapo y que debío impresionarle. Después, sus visitas se espaciaron hasta cesar por completo. ¿ Vive todavia? ¿ Há muerto? No lo sé. La vantaja de no tener domicilio es poder desaparecer sin dejar huellas. Tal es el privilegio del mendigo. Esse hombre em verdade es, o era, un filósofo. Y quizá yo también lo soy un poco, en la medida en que, a favor de mis achaques, me he atareado em avanzar siempre hacia um más alto grado de inseguridad”.

 

[27] JÚNIOR, Ruy C.R. De kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: REDYSON, Deyve (org.). Emil Cioran e a Filosofia Negativa: homenagem ao centenário de seu nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 30.

 

[28] CIORAN, Émil. Nos cumes do desespero. Tradução de Fernando Klabin. São Paulo: Hedra, 2011a, p. 15.

[29] PECORARO, ibidem, p. 61.

 

[30] Ibidem, p. 62.

 

[31] Ibidem, p. 63.

 

[32] Breviário de decomposição, p. 43.

 

[33] JAPIASSÚ, HILTON; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 103.

 

[34] MENEZES, 2007, p. 71.

 

[35] Os temas de “Adão”, da “Queda” e do “Pecado Original” serão retomados e desenvolvidos no capítulo sete, já que constituem eles dimensões fundamentais da antropologia teológica e do pessimismo antropológico radical de Cioran. Eles formam as malhas semânticas do imaginário-simbólico no domínio do qual se erige e se desenvolve o pensamento cioraniano. Como teólogo herege, Cioran não abandonou o imaginário-simbólico cristão, mas o subverteu a partir de seus significados, de seus signos, de suas imagens e símbolos.

 

[36] Op. cit. p. 75.

 

[37] Breviário de decomposição, p. 114-115.

 

sábado, 11 de janeiro de 2025

"A história é um processo fatal que o homem imaginou que poderia dominar” (Cioran)

 







Se, dantes, perante um morto, eu me perguntava::
"De que é que lhe serviu ter nascido?", coloco agora
a mesma pergunta perante qualquer vivo.
                                                          Cioran


   O pessimismo cioraniano, além de lançar sobre o ser humano um olhar profundamente negativo que desvela sua essência má e enferma, orienta-se pela demonstração da concepção da história como obra do diabo. A visão pessimista da história está intimamente relacionada à visão pessimista do homem: tanto o processo histórico quanto a condição humana exibem a nervura do trágico. Acresça-se que a concepção cioraniana de história foi influenciada sobremaneira por Oswald Spengler, teórico do declínio do Ocidente. Cioran confessa tê-lo lido com entusiasmo febril na adolescência, embora posteriormente seu interesse por ele tivesse findado. Acerca de sua concepção de história como um processo maculado pelo Mal até as raízes, Cioran nos diz o seguinte:


[...] Descobri a história como disciplina teórica bastante tarde. Na minha juventude eu estava muito orgulhoso para ler os historiadores. [...] E, em meus quarenta anos, descobri a história que não conhecia. [...] Pegue a história, estude-a um pouco em profundidade, e as conclusões que você tira são necessariamente terríveis. [...] Eu sempre tive uma visão, digamos assim, desagradável das coisas. Mas a partir do momento em que descobri a história, perdi todas as ilusões. É realmente a obra do diabo . (tradução nossa).


        Abundam passagens, na obra de Cioran, em que se nota seu repúdio ao homem e à história. Para Cioran, um historiador otimista é uma contradição em termos. Para ele, “a história é um processo fatal que o homem imaginou que poderia dominar” (tradução nossa). Ilude-se quem acredita encontrar na história qualquer sentido ou meta. Ela não é mais do que “um dinamismo de vítimas” . Sua crítica da história, no entanto, não pode ser compreendida limitadamente ao humor amargo de quem afirma ser a vida “uma ocupação de inseto” , de quem afirma “que a vida não significa nada, todo mundo sabe ou pressente: que se salve ao menos por um truque verbal”; se o pessimismo que a anima se destila pelas páginas deste gnóstico ateu como um “concentrado [...] que envenena de morte todos os ideais, esperanças e impulsos metafísicos da filosofia” , é porque, enquanto gnóstico ateu, Cioran “vê na total ausência de esperança o primeiro passo para alcançar a lucidez necessária para uma gnose” . Consoante afirma Volpi (1999), Cioran é um negador contumaz do valor objetivo da existência, um incendiário, um destruidor de ídolos, de fantasmas, imagens e deuses que povoam a imaginário social. Como pessimista gnóstico, ele é cônscio de sua queda no tempo e na finitude e vê o universo como uma cela onde vive aprisionado.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

"O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades" (Dardot & Laval)

 


   




O neoliberalismo

sua racionalidade e dominação

 

                                 PARTE I

 

O que é o neoliberalismo? O que o torna distinto do liberalismo? O emprego do radical neo para a formação do composto “neoliberalismo” pode levar o leitor incipiente a acreditar que o vocábulo designa uma nova forma de liberalismo, um liberalismo repaginado ou radical. Em certo sentido, o neoliberalismo radicaliza a centralidade do mercado na organização de toda a vida social e econômica; no entanto, conforme mostrarei, o neoliberalismo não advoga a completa abstenção do Estado na vida social e econômica. Consoante observam Dardot & Laval, “o neoliberalismo não é, nem pode ser, no plano da prática “algo” antiestado, como proclamado por doutrinas que são mais ligadas ao libertarismo do que propriamente aos neoliberais”. Rechace-se, portanto, a suposição de que os neoliberais advoguem alguma versão liberal do laissez-faire.

Como seja complexo o fenômeno do neoliberalismo, neste artigo, será forçoso que eu me limite a dar conta da discussão sobre as duas referidas questões apresentadas no limiar do primeiro parágrafo. Ao buscar responder à questão o que é o neoliberalismo, valho-me das contribuições de Dardot & Laval (2016) e de Laval (2020). Este último trabalho é dedicado ao estudo das análises que Foucault (e Bourdieu) fazem do neoliberalismo. A pertinência desse livro de Laval, para os propósitos da presente exposição, é trazer à luz alguns elementos importantes da crítica foucaultiana do neoliberalismo. Ressalve-se, contudo, que não pretendo me aprofundar na investigação do neoliberalismo empreendida por Foucault. Uma vez que existem diferentes abordagens do fenômeno neoliberal, urge dar a conhecer em qual delas situo a presente discussão. Por conseguinte, duas noções fundamentais compõem a concepção de neoliberalismo, de cujo esclarecimento me ocuparei aqui: a primeira noção é a de racionalidade, que nos é apresentada por Dardot & Laval (2016) e elucidada por Casara (2021); a segunda noção provém da pena de Foucault. Trata-se da noção de governamentalidade. À luz desse conceito, deve-se pensar o neoliberalismo como uma forma de governo dos homens por intermédio de uma regulação concorrencial da sociedade.

Fixadas, pois, as linhas diretrizes deste estudo, trago, inicialmente, à baila algumas considerações sobre o liberalismo, momento em que estou interessado em evidenciar o que é o liberalismo, quais são suas proposições e quais fatores determinaram o seu fracasso. Conquanto o fracasso do liberalismo clássico não signifique, em absoluto, seu fim, foi a não realização de suas promessas que levou à implementação de uma política econômica no início da década de 1980, cujo fito era estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, como também a conduta deles. Que promessas foram aquelas? Para que eu possa elucidá-las, far-se-á mister me debruçar sobre a história do nascimento e do desenvolvimento do liberalismo. A primeira parte deste texto é destinada ao desenvolvimento desse tema.

 

 

1.   O liberalismo: sua origem e seu desenvolvimento

 

O liberalismo surge no século XVIII como filho das Revoluções Francesa e Americana. Na segunda metade desse século, surgiram, em alguns Estados da América do Norte, as primeiras Constituições escritas da época moderna, dentre as quais se destacam a Declaração de Virgínia, datada de 12 de junho de 1776, e a da Pensilvânia, de 16 de agosto de 1776. No fim desse século, o constitucionalismo atinge sua culminância com a Constituição dos Estados Unidos da América (1787) e a Constituição Francesa (1791). Essas constituições são a expressão jurídica do liberalismo, que nasce no século XVIII como reação ao Absolutismo real. Tanto a Declaração de Independência dos Estados Unidos quanto a Declaração do Bom Povo de Virgínia, ao disporem sobre os direitos humanos, patenteiam os pressupostos jusnaturalistas e individualistas que as inspiram. Os direitos à liberdade, à propriedade e à busca da felicidade reconhecidos nessas Declarações se estendem a todos os indivíduos pelo mero fato de seu nascimento. Tais direitos são considerados universais e invioláveis, e o direito positivo não pode deixar de reconhecê-los e garanti-los. É da Escola Clássica do Direito Natural Iluminista que se originaram, em grande medida, os princípios fundamentais com os quais se edificou o arcabouço da moderna civilização ocidental. Enumerem-se aqui algumas de suas muitas contribuições: 1) a liberdade de ir e vir e de vocação profissional; 2) o começo do exercício da liberdade espiritual e religiosa; 3) o fim da tortura e a humanização da punição no direito penal; 4) o fim dos julgamentos por bruxarias; 5) a preocupação com a segurança jurídica e com o princípio de igualdade perante a lei; 6) a elaboração de princípios gerais do direito internacional.

A dimensão política do liberalismo deu origem à democracia moderna. Esta, por sua vez, surge quase ao mesmo tempo na América do Norte e na França. A democracia moderna constituiu a formulação politica de que se serviu a burguesia para extinguir os privilégios dos principais estamentos do ancien régime, quais sejam, o clero e a nobreza. Aproveitando-se da moderna democracia, a burguesia logrou também tornar o governo responsável pelo curso de sua vida, enquanto classe. Não se pode, portanto, perder de vista o fato de que a democracia moderna não foi instituída para a defesa do pobre contra a minoria de proprietários, mas sim para a defesa desses proprietários ricos contra o antigo regime de privilégios estamentais e de governo despótico. Com a democracia moderna, limitou-se amplamente os poderes governamentais, sem que houvesse qualquer interesse em defender a maioria pobre da exploração pela minoria rica.

Tendo em vista seu aspecto político, o liberalismo nos legou a democracia, em cujo cerne está o princípio jurídico segundo o qual todos são iguais perante a lei. Somente a lei pode limitar o poder. Em seu aspecto econômico, o liberalismo assenta na convicção de que a harmonia social só poderia se realizar por meio de um mecanismo de regulação única – o mercado. Antes de fazer incursão no terreno temático do sistema mercantilista e nos meandros do liberalismo econômico, convém definir o que entendo por mercado, já que esse termo aparecerá muitas vezes, ao longo desta exposição.

A grande imprensa propala diariamente que “o mercado está nervoso”, “o mercado reagiu negativamente ao novo projeto de política fiscal do governo”. Quase todas as pautas políticas e econômicas em que se apoia o discurso midiático fazem alguma referência ao mercado. Mas, afinal, do que estamos falando quando falamos de “mercado”? Dowbor (2013) nos ensina que, na ciência econômica, o conceito de mercado recobre os mecanismos de concorrência que possibilitam aos milhares de agentes econômicos competir em condições de igualdade nos espaços de trocas comerciais. Esse conceito originário de mercado tem um cunho democrático, para o desagrado de grupos de poderosas corporações que passaram a adotar o termo mercado para se referir ao domínio desses grupos poderosos a partir de mecanismos de controle chamados managed market (mercado gerido). Mais recentemente, com o poder avassalador dos grupos de especulação financeira, o termo mercado passou a designar o núcleo de grandes investidores institucionais. Sempre que a grande imprensa informa sobre o nervosismo do mercado, ela está se referindo ao mercado nessa acepção. Contudo, conforme nota Dowbor, o nervosismo, nesse caso, é de apenas meia dúzia de grupos financeiros. Para fins deste estudo, usaremos o termo mercado na acepção econômica originária que diz respeito aos mecanismos reguladores da concorrência e competição entre os agendes econômicos nos espaços sociais de trocas comerciais.

Convém, também, chamar a atenção para o fato de que o uso da expressão liberalismo clássico, definida à luz da filosofia, diz respeito à tradição de pensamento que situa no centro de suas preocupações a liberdade individual. Ao liberalismo clássico cabe responder às questões prementes acerca das liberdades individuais, dos direitos civis, da separação entre os poderes, da tolerância política e religiosa, entre outras. Desceremos a mais considerações sobre o liberalismo clássico, à luz das contribuições da filosofia política, evocando a autoridade de John Locke, mais adiante. Por ora, cumpre retornar ao ponto em que nos propúnhamos investigar a formação do sistema mercantilista.

Retome-se aqui a centralidade do mercado na proposta de organização de uma sociedade liberal. Tendo-se organizado o Estado político, nos séculos XVII e XVIII, Inglaterra, França e Holanda passaram a se preocupar em se tornar ricas e poderosas. Para alcançar tal objetivo, era necessário elaborar teorias e leis que levariam à formação de um sistema mercantil. Espelhando-se na Espanha, talvez o país mais rico do mundo no século XVI, graças à extração de ouro e prata de suas colônias, os demais governos passaram a acreditar que também enriqueceriam seus países se possuíssem ouro e prata. Assim, não hesitaram em formular leis com o fito de se apropriar desses metais e conservá-los em seus limites territoriais. Os mercantilistas buscavam impulsionar as vendas internacionais, as quais deveriam, segundo pensavam, ser maiores do que as compras. Eles se propunham estimular a indústria por todos os meios possíveis, visto que seus produtos valiam mais do que os produtos agrícolas, o que justificaria a aquisição de mais metais nos mercados estrangeiros. Os produtores que se empenhavam no comércio de exportação recebiam prêmios. Altos impostos incidiam sobre a importação de produtos manufaturados. Os governos chegaram a proibir a importação de certos bens. Eles não hesitavam em lançar mão de todos os meios possíveis para atrair trabalhadores estrangeiros competentes o bastante para introduzir no país novos ofícios e métodos de trabalho. A esses trabalhadores concederam-se muitos privilégios, tais como isenção de impostos, moradia gratuita, monopólio por certo tempo no setor a que se dedicassem e até mesmo empréstimos de capital para a aquisição de equipamentos necessários.

Os mercantilistas lograram consolidar o poder e a riqueza nacionais, sem, contudo, descuidarem da produção de cereais, para assegurar a alimentação do povo que, dessa sorte, estariam fortes para enfrentar a guerra. Acalentados pela crença de que um país só poderia desenvolver seu comércio às expensas do outro, os mercantilistas se empenharam em reduzir o comércio e a indústria dos Estados rivais, fato que tornou a guerra uma consequência necessária da política mercantilista.

Em Riqueza das Nações, Adam Smith, não sem veemência, assinalava os limites impostos pelo mercantilismo à liberdade de comércio. Segundo o autor, os comerciantes já não aceitavam mais o mercantilismo e passaram a desejar uma parte dos grandes lucros auferidos pelas companhias que detinham o monopólio comercial. Tendo sido privados desses lucros, eles reivindicaram o livre comércio, defendido especialmente pelos fisiocratas, na França. Nesse tocante, pondera Azevedo (2018, p. 35):

 

 

(...) era de se esperar que a oposição ao mercantilismo surgisse na França, pois nesse país o controle estatal da indústria atingira seu mais alto nível, cerceado por regulamentos minuciosos que continham uma rede de pode e não pode inaceitável.

 

 

O governo francês chegou a regulamentar o comprimento e a largura de cada peça de tecido, e também o número de fios que ela deveria conter. Outrossim, determinou o preço da mercadoria. Adam Smith, estribando-se em fatos como esses, opunha-se terminantemente ao mercantilismo. Antes dele, os fisiocratas rejeitavam aquela regulamentação excessiva, advogando a eliminação de qualquer mecanismo de controle sobre a atividade econômica. Mas a influência de Smith foi muito maior.

 

1.2.    O liberalismo e o laissez-faire

 

Destinarei a próxima subseção ao tratamento do liberalismo à luz da filosofia política. Por ora, concentro-me no exame do liberalismo econômico e, desde já, enfatizo que ele não se reduz ao laissez-faire. Começo por referir as palavras de Dardot & Laval (2016, p. 66), que lançam luzes sobre o aspecto central do liberalismo econômico.

 

(...) o liberalismo econômico é o princípio diretor de uma sociedade em que a indústria é baseada na instituição de um mercado autorregulador. É verdade que, uma vez que esse sistema esteja mais ou menos realizado, necessita-se menos intervenção de certo tipo. Contudo, isso não quer dizer, longe disso, que o sistema de mercado e a intervenção sejam termos que se excluam mutuamente (grifos meus).

 

Urge dizer que a crença no mercado autorregulador é uma ilusão. A experiência histórica prova que não há crescimento ou desenvolvimento econômico sem algum tipo de intervenção estatal na economia. Uma sociedade de laissez-faire é uma quimera. O ponto, contudo, que deve ser destacado no excerto supracitado é que uma sociedade de mercado não é incompatível com mecanismos de intervenção do Estado. Os partidários da economia liberal exigem, sem hesitar, a intervenção do Estado, sempre que inexiste um sistema de mercado. Essa intervenção estatal é necessária para criá-lo e mantê-lo.

Encetei esta subseção afirmando que o liberalismo econômico não se reduz ao laissez-faire, expressão francesa que significa “deixem-nos em paz”, “deixem-nos fazer”.  Em economia, quer-se com esta frase exprimir que o mercado deve ser livre de toda e qualquer intervenção do Estado na economia. Não obstante, nenhuma economia do mundo funciona ou gera crescimento, ou desenvolvimento social, se submetida ao regime de mercados “livres”. Antes de me ocupar dos diferentes tipos de intervenção do Estado, a que recorrem os liberais, especialmente nos momentos de crise econômica, como a grande crise imobiliária de 2008, que fez os neoliberais se socorrerem do governo, desenvolverei um pouco mais o entendimento do laissez-faire.

Quem cunhou a expressão laissez-faire foi um defensor da fisiocracia, o comerciante francês Vicent de Gournay (1712-1759), fundador da escola dos fisiocratas, que não compreendia por que um cidadão tinha de obter o direito de qualquer coisa que pretendesse vender como condição para realizar a venda. Ademais, Vicent não aceitava que o vendedor tivesse de pagar para tornar-se um participante de uma corporação de ofício. Insatisfeito, portanto, com esta situação e querendo que a França se livrasse dessa forma de regulamentação, esbravejou “laissez-faire”, que, em tradução livre, significa “deixem-nos em paz”. Não é absolutamente equivocado associar o liberalismo econômico com o laissez-faire, uma vez que, historicamente, o liberalismo é uma herança da Revolução Comercial, ou seja, ele só foi possível devido à transição da economia estática e contrária ao lucro, que marcou a Idade Média, para o dinâmico regime capitalista dos séculos XV e seguintes. No que tange à importância histórica da Revolução Comercial para o surgimento do liberalismo, oportuna é a lição de Azevedo (2018, p. 37), reproduzida abaixo:

 

A Revolução Comercial atingiu sua maior amplitude com as grandes descobertas dos séculos XV e XVI. Dentre suas causas, revela o monopólio comercial do Mediterrâneo exercido pelas cidades italianas de Gênova, Pisa e Veneza, o que obrigava a Península Ibérica a pagar altos preços pelas sedas, perfumes, especiarias e tapeçarias importadas da Ásia.

 

Como esse monopólio cerceava a ambição dos espanhóis e dos portugueses de apropriar-se dos lucros do comércio com o Oriente, eles iniciaram as viagens ultramarinas com vistas a buscar uma nova rota para esse comércio. Como se vê, o liberalismo surge da necessidade que os homens de negócios tinham de obter lucros sem que tivessem de enfrentar condições reguladoras limitantes. No entanto, a Revolução comercial não instituiu a tão almejada e sonhada sociedade de livre mercado. O liberalismo não pode sobreviver sem algum tipo de intervenção estatal na economia. Há que se considerar, doravante, a distinção entre tipos de intervenção do Estado.

 

1.2.1.    Tipos de intervenção do Estado                   

 

Dardot & Laval (2016) ensina-nos que há diferentes tipos de intervenção do Estado na economia. As motivações para as diferentes formas de intervenção do Estado podem dizer respeito a princípios heterônomos à mercantilização ou podem ligar-se a princípios de solidariedade, compartilhamento e respeito a tradições ou a preceitos religiosos. Quando uma intervenção é realizada segundo esses motivos, ela constitui um contramovimento à tendência do mercado. Há, por outro lado, intervenções que visam à inserção de setores inteiros de produção e da vida social no mercado. Essas formas de intervenção se realizam por meio de políticas públicas ou despesas sociais que servem, ao mesmo tempo, à proteção das empresas capitalistas e à promoção de seu desenvolvimento.

Polanyi, em seu clássico A grande transformação (1944), viu na contradição entre o movimento mercantil e o contramovimento a causa da destruição do liberalismo econômico. Nesse livro, Polanyi defende a tese de que o Estado liberal, no século XIX, produziu duas ações cujas consequências foram contrárias entre si. Por um lado, atuou no sentido de criar mecanismos de mercado; por outro lado, criou mecanismos que o limitavam. Por um lado, apoiou o movimento de formação de uma sociedade de mercado; por outro lado, reforçou o contramovimento de resistência da sociedade aos mecanismos de mercado.  Aqui não se pode olvidar o seguinte: o próprio modelo de sociedade gerado pela Revolução Industrial não se poderia sustentar sem a intervenção do Estado no mercado. Apresso-me em elucidar este ponto da presente discussão.

A Revolução Industrial só foi possível com a condição de constituir-se um sistema de mercado em que os homens deveriam se conceber como vendedores de serviços cujo fim era a aquisição de recursos vitais indispensáveis à troca monetária. Eles seriam forçados a se tornar vendedores sob o aguilhão da fome. Para que assim se situassem nessa forma de sociedade, seria necessário que a natureza e o trabalho se tornassem mercadorias, que as relações entre os homens e deles com a natureza assumissem a forma de relações mercantis. Consoante observam Dardot & Laval (2016, p. 63), “para que a sociedade inteira se organize de acordo com a ficção do mercado, para que se constitua como uma grande máquina de produção e troca, a intervenção do Estado é indispensável (...)”. (grifos meus). A intervenção do Estado é indispensável não só no domínio legislativo, onde se fixa o direito de propriedade e se estabelecem contratos, como também no plano administrativo, onde se instauram, nas relações sociais, regras variadas, imprescindíveis ao funcionamento do mercado concorrencial. No domínio administrativo, é função do Estado também exigir o respeito a essas regras. Para Polanyi, portanto, o chamado mercado autorregulador origina-se de uma ação deliberada da qual um dos principais teóricos foi Betham.

O que se destaca nessa paisagem de reflexões é que o laissez-faire, consoante Polanyi, não era dotado de uma espontaneidade natural; tampouco os mercados livres, tão almejados pelos liberais, poderiam surgir se fossem abandonados a si mesmos. Entre 1830 e 1850, assistiu-se a uma explosão de leis ab-rogando regulamentos restritivos, sem bem que também houvesse um aumento exponencial das funções administrativas do Estado, então estruturado em torno de uma burocracia central habilitada para cumprir as tarefas estabelecidas pelos partidários do liberalismo.

Se um utilitarista típico vê o liberalismo econômico como um projeto social que deve realizar-se para o máximo de felicidade do maior número de pessoas, o laissez-faire estava longe de constituir um método adequado para realizar a prosperidade econômica. Não obstante, era a coisa que deveria ser realizada.

Considere-se agora o que Polanyi entendia como o segundo paradoxo do Estado liberal. O primeiro paradoxo já o apontei: trata-se da dupla ação levada a efeito pelo Estado liberal. Segundo Polanyi, esse Estado liberal, administrativo, ao mesmo tempo criador e regulador da economia e da sociedade de mercado, tornou-se, sem que seus agentes se dessem conta disto, um Estado administrativo que reprime a dinâmica espontânea do mercado e protege a sociedade dos abusos deste. Em suma, Polanyi nos mostra que, enquanto a economia do laissez-faire era produzida pela ação deliberada do Estado, as restrições subsequentes surgiram espontaneamente, de sorte que o laissez-faire era planejado, mas a planificação não o era. Lembram Dardot & Laval que, após 1860, e para o descontentamento de Herbert Spencer, um “contramovimento” generalizou-se em todos os países capitalistas, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Inspirado por ideologias as mais diversas, esse contramovimento buscava satisfazer a necessidade de “proteção da sociedade”. Fazia-se necessário reagir contra as tendências destrutivas do mercado autorregulador por meio do protencionismo comercial nacional e do protencionismo social, que se tornaram vigentes no século XIX.

Dardot & Laval (2016) instam em que não se ignore um duplo movimento na história da formação do mercado capitalista: um deles levou à criação desse mercado; o outro, em sentido contrário, acarretou a resistência a ele. Esse último movimento de autodefesa espontânea contra as forças destrutivas do mercado prova que uma sociedade de mercado total é impossível, que os sofrimentos que acarreta são tão pungentes que os poderes públicos são obrigados a erigir “diques” e “muralhas” para conter aquelas forças.

Um interlúdio se impõe neste momento. É preciso mostrar que o mercado se caracteriza por um desequilíbrio que lhe é inerente. Todo desequilíbrio decorrente do funcionamento do mercado ameaça a sociedade a ele submetida. Inflação, desemprego, crise de crédito internacional, crush financeiro são alguns dos fenômenos econômicos que, afetando diretamente a sociedade, demandam iniciativas protetoras das autoridades políticas.  Se as autoridades políticas que vieram à cena histórica após o fim dos conflitos da  Primeira Guerra Mundial, tivessem colhido a lição disponível já no período anterior à Guerra, elas talvez renunciassem ao projeto de reconstrução de uma ordem liberal mundial assaz frágil, que cumulava tensões entre o movimento de reconstrução do mercado em nível mundial e o movimento de autodefesa social. É importante ressaltar que essas tensões, ligadas à contradição interna à sociedade de mercado migraram da esfera econômica para a esfera social, e desta passaram para a esfera política, chegando a infestar os âmbitos nacional e internacional e a provocar, por fim, a reação fascista e a Segunda Guerra Mundial. Conforme notam Dardot & Laval (2016), os anos de 1930 e 1940 se caracterizaram pelo desaparecimento da civilização de mercado. Antes, nos anos de 1920, houve uma tentativa desesperada de restaurar o mercado autorregulador.

Polanyi observa que o liberalismo econômico dos anos de 1920 buscou o restabelecimento de um sistema autorregulado que eliminasse todas as políticas intervencionistas, então consideradas ameaçadoras da liberdade dos mercados de terra, trabalho e moeda. Entretanto, o surgimento do fascismo na década de 1930 evidenciou o fracasso da iniciativa dos liberais de 1920. Sobre esse tema, esclarecem-nos Dardot & Laval (2016, p. 66) o seguinte:

 

O imperativo da estabilidade monetária e da liberdade do comércio mundial levou a melhor sobre a preservação das liberdades públicas e da vida democrática. O fascismo foi o sintoma de uma “sociedade de mercado que se recusava a funcionar” e o sinal do fim do capitalismo liberal tal como fora inventado no século XIX.

 

Dardot & Laval, no entanto, divergem de Polanyi  quando este decreta o fim do liberalismo econômico. Segundo os autores franceses, o erro de Polanyi consistiu em subestimar um dos principais aspectos do liberalismo, embora ele mesmo o tenha sublinhado: o liberalismo não é incompatível com mecanismos de intervenção. Mas há que distinguir, segundo os autores, entre diversas formas de intervencionismo do Estado, a intervenção de criação de mercado e a intervenção de proteção da sociedade. Existe ainda um terceiro tipo de intervenção estatal, a saber, as intervenções de funcionamento do mercado. Estas últimas, conquanto não se diferenciem facilmente das outras formas de intervencionismo, são constantemente empregadas no governo liberal. Destinadas a assegurar a autorregulação do mercado, tais formas de intervenção visam à obediência do princípio de concorrência pelo qual se rege o mercado. Polanyi cita como exemplo dessas intervenções as leis antitrustes e a regulamentação das associações sindicais. Nos dois casos, o objetivo é limitar a liberdade de coalizão a fim de garantir o melhor funcionamento possível das regras de concorrência. O autor também refere o papel desempenhado pelo teórico liberal Walter Lippmann, que não hesitou em sacrificar o laissez-faire para salvar o mercado concorrencial.

 

1.3.     O liberalismo à luz da filosofia política

 

Do ponto de vista da filosofia política, chamamos de liberalismo clássico uma tradição de pensamento em cujo cerne reside a preocupação com as liberdades individuais. Já me referi ao conjunto de preocupações recobertos pela agenda política do liberalismo; mas convém recordá-las aqui: 1) ênfase na defesa dos direitos dos cidadãos à sua vida e à sua propriedade; 2) defesa da tolerância política e religiosa; 3) luta pela instituição de um sistema político que não centralize todo o poder em sua mão. O liberalismo clássico tem sua inscrição histórica e o começo de seu desenvolvimento nas reflexões de filósofos como Thomas Hobbes, no século XVII, até Aléxis de Tocqueville, no século XIX.

É importante, a esta altura, não descurar do fato de que, em cada momento político, um ou outro pensador liberal privilegiou um aspecto do liberalismo em detrimento de outros. Não obstante, os três traços prototípicos do liberalismo – defesa do direito dos cidadãos à sua vida e à sua propriedade, defesa da tolerância política e religiosa; instituição de um sistema político descentralizado – compõem um padrão que define a essência do pensamento liberal clássico. O liberalismo clássico não é capaz, contudo, de oferecer respostas aos nossos problemas atuais. O capitalismo financeiro, fase dominante do capitalismo mundial, é fundamentado na racionalidade neoliberal, de modo que todos nós, capitalistas ou trabalhadores, estamos submetidos a uma nova lógica do capital. Disso, no entanto, ocupar-me-ei mais tarde. Nesta etapa de minhas análises, gostaria de traz à luz a importância do trabalho de John Locke (1632-1704), a quem inaugura e consolida o pensamento liberal na Filosofia Política. Os grandes temas do liberalismo, tais como o respeito à vida e à propriedade, a tolerância política e religiosa e, sobretudo, a separação dos poderes do Estado, princípio básico de nossas democracias modernas, foram por ele apresentados e discutidos. Toda vez que, hoje, recolocamos a questão acerca das liberdades civis e políticas, fazemos ecoar, mesmo que sem consciência disto, as ideias defendidas por Locke e seus seguidores.

John Locke foi um contratualista, tal como o foi Hobbes, ou seja, ele também preconizava a existência de um Contrato social que teria dado origem ao Estado. Todavia, ao contrário de Hobbes, Locke acreditava que o estado de natureza não era uma condição desprovida de lei ou de segurança. No estado de natureza, vigeriam leis naturais, estabelecidas por Deus ao ser humano. Deus lhes ditaria como o homem deveria agir e o que lhe era proibido fazer. Nas palavras de Brito (2012, p. 123),

 

O direito natural indicava que promessas tinham de ser cumpridas, e cada um já tinha direito à sua vida e aos frutos do seu trabalho. A passagem, via Pacto, do estado de natureza para a Sociedade Civil se faz para melhorar e garantir melhor as benesses do Estado de Natureza, sendo, portanto, mais um aperfeiçoamento do que uma ruptura.

 

Como expoente do Liberalismo, Locke se notabilizou como defensor da responsabilidade do Soberano em face de seus súditos. O filósofo inglês rechaçava tanto o direito divino dos reis, concedido por Deus, quanto a visão hobbesiana de um Soberano cujo poder absoluto era efeito de um Contrato. Para Locke, o Soberano é mais um gerente do Estado do que a instância que concentra em si todo o poder político e jurídico. Deveras, a figura do Soberano é imprescindível, mas seu poder deve ser controlado. Para controlá-lo, Locke advogava a separação dos poderes do Estado em dois: ao Soberano cabia executar as leis e realizar os julgamentos das infrações por ele mesmo cometidas. Nesse caso, o Poder Executivo e o Poder Judiciário estavam unidos na pessoa do Soberano. Ao Poder Legislativo caberia fazer as leis. Este Poder representaria o povo, e este se comporia de homens proprietários que escolheriam livremente seus representantes. Vê-se que Locke não chegou a propor o  sufrágio universal, graças ao qual todas as pessoas passam a ter direito ao voto. Locke, todavia, acreditava que sua proposta oferecia uma melhoria do sistema politico vigente.

Avancemos em nossa compreensão do tipo de liberalismo formulado por Locke. Convém dar a conhecer o que ele entendia por propriedade. Estou, especificamente, interessado em mostrar como Locke defende o direito natural da propriedade – entenda-se da propriedade privada. Por propriedade, Locke não só entende a posse de bens por um homem, mas também a posse que cada homem tem de sua pessoa. A pessoa de cada ser humano é uma propriedade sua, e cada posse que ele tem em sua própria pessoa constitui um bem inalienável. São propriedades do homem também o trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos. Para Locke, como a terra é um bem concedido aos homens por Deus, de forma indiscriminada, ela é, portanto, um bem comum a todos os homens (os latifundiários, no entanto, não concordam com Locke!). É claro que Locke estava atento ao fato de que o trabalho sobre determinada porção de terra dá àquele que realiza o trabalho o direito de fixar sua propriedade, separando essa porção do que é comum. Segundo Locke, o que dá início ao que chamamos de propriedade privada é a ação de tomar qualquer parte daquilo que é comum, de retirá-la do estado em que a natureza o deixou.

Para o filósofo inglês, o trabalho é que dá direito à propriedade a quem faz uso conveniente daquilo que todos os homens possuem em comum, que é a natureza. A natureza fixou os limites para a propriedade privada, de sorte que ninguém pode dispor de tudo, e todos podem ter tudo de que precisam, visto que a mesma lei natural que nos concede a propriedade também a limita. O ser humano, portanto, na opinião de Locke, em estado de natureza, deve defender sua propriedade do ataque de outros homens cobiçosos. Ademais, ele dispõe do poder executivo da lei de natureza, isto é, do poder de julgar e punir quem quer que atente contra a sua propriedade e a de outros. Locke insiste que o estado de natureza, conquanto fosse um estado de perfeita liberdade, não é um estado de licenciosidade, visto que ninguém tem o direito de destruir qualquer outra pessoa ou a si mesma. Como seja a lei da natureza a referência em relação à qual devemos determinar nossa conduta, todos são obrigados a preservar sua própria vida e a vida de toda a humanidade. Aquele que transgride a lei natural se torna inimigo da humanidade e de todos que se ocupam de protegê-la. Por isso, todos esses que vivem sob a obediência à lei têm o direito de castigar o infrator, caso em que se tornam executores da lei.

Em que pese a existência de direitos e leis naturais no estado de natureza, a instituição da sociedade política se faz, necessariamente, como resposta ao problema que consiste no poder de que todos os homens são dotados para começar a julgar em causa própria, situação esta que introduz na sociedade um estado de confusão e desordem. Consoante ensina Brito (2012, p. 126), “é contra esse mal que a sociedade política deverá servir de remédio”. A instituição de uma sociedade política pressupõe que cada um dos membros de uma comunidade renuncie ao poder executivo da lei de natureza, transferindo-o às mãos da própria sociedade que formará um corpo político que agirá em conformidade com a vontade da maioria. Para Locke, somente dessa maneira se pode instituir um juiz imparcial que julgará, em consonância com os dispositivos legais ou as conveniências da lei, todas as disputas e os impasses que poderiam fazer surgir um estado de guerra. Para Locke, o homem abandona o estado de natureza para assegurar sua propriedade e protegê-la contra qualquer ataque de terceiros. O objetivo principal da adesão do homem ao Estado político é, portanto, a preservação de sua propriedade. Essa tese marca fundamentalmente o pensamento político de John Locke.

O pensamento liberal de Locke é também profundamente marcado pela defesa da tolerância religiosa. No tempo de Locke, as discussões políticas faziam ressoar posições extremamente religiosas, de modo que qualquer apelo à tolerância produzia muito alarde. Em sua Carta sobre a tolerância, Locke advogou que todas as crenças religiosas que não violassem ou não ameaçassem diretamente a existência do Estado deveriam ser toleradas. Para o filósofo, as religiões estão a serviço tão somente da salvação da alma individual e as crenças religiosas são matéria de foro íntimo, do que se segue que nenhuma religião deveria imiscuir-se na  política. Todavia, a tolerância propugnada por Locke tem seus limites – nenhuma tolerância deveria ser estendida aos ateus.

Passando em revista o que vimos nesta subseção, é imperioso observar que a ideias de Locke, tendo sido assumidas e modificadas, viriam a formar a base do pensamento político liberal. Para quem, por insipiência ou desleixo intelectual, acredita que a filosofia é incapaz de mover o mundo, estudar a história do liberalismo clássico é acompanhar os processos pelos quais aquelas ideias foram dando origem a instituições políticas, sociais, foram sendo transformadas, portanto, em leis, Constituições, foram; enfim,  foram constituindo uma visão moral. Os Iluministas franceses, como Voltaire e Montesquieu, as adotaram e propuseram que elas fossem colocadas em prática. Os dois filósofos foram inspirados pela situação política da Inglaterra dos fins do século XVII, a qual parecia destinada a transformar os preceitos defendidos por Locke em lei e costumes. Embora houvesse, a partir do final do século XVII, mais do que uma tentativa de efetivar em práticas políticas e sociais as ideias defendidas por Locke, nas transformações que marcariam a Inglaterra desse período em diante, as contribuições desse filósofo aproveitaram tanto aos homens de seu tempo que era impossível não considerar Locke o profeta daqueles novos tempos.

 

 

                                                    PARTE II


 

Nesta segunda parte deste artigo, proponho-me não só esclarecer o que é o neoliberalismo e de que modo sua racionalidade estende seu poder de dominação a todas as esferas da vida social, alcançando o mais íntimo dos sujeitos, como também estou interessado em aventar a hipótese de que o surgimento, o desenvolvimento e o recrudescimento dos ataques do neoliberalismo ao Estado de Bem Estar Social têm minado as bases do imaginário-simbólico de nossas democracias liberais. Desde o fim dos anos de 1970, as sociedades ocidentais não estão mais organizadas segundo a racionalidade liberal. Se ainda podemos falar em liberalismo, é apenas porque queremos manter vivos os ideais que, no plano político e social, ele nos legou como instrumentos necessários na luta por uma democracia onde a liberdade em face dos poderes opressores, tirânicos e a tolerância em face das forças homogeneizadoras, uniformizadoras, sempre prevaleçam. Todavia, no plano político e econômico, tanto o Estado quanto a sociedade civil estão submetidos à lógica ou à racionalidade neoliberal. É chegado o momento em que convém examinar se é possível dizer que o neoliberalismo suplantou o liberalismo tal como o conhecemos. Para tanto, duas questões iniciais se impõem à reflexão: 1) O que levou ao fracasso o liberalismo?; 2) O neoliberalismo é um novo liberalismo?

Antes de atacar essas duas questões primeiras, convém dar a conhecer o que se deve entender por racionalidade nas expressões reiteradamente empregadas neste texto racionalidade liberal e racionalidade neoliberal.

Começo por citar Casara. Segundo o autor (2020, p. 33), “a racionalidade é tanto o estado ou a qualidade de agir a partir de razões quanto o conjunto de elementos que explicam, condicionam e justificam essas ações e fins visados”. As razões pelas quais agimos são crenças e ideias tomadas como corretas e adequadas às ações adotadas e aos fins a que visamos. Para o autor, há uma relação necessária entre o poder e a racionalidade, de modo que não deveríamos nos surpreender com o fato de que o horror advém, não raro, do excesso de razão.

A racionalidade diz respeito a um modo de ver e compreender o mundo, e todo poder se exerce a partir de um determinado modo de compreender o mundo. Portanto, todo poder se exerce a partir de uma dada racionalidade. Assim, ensina Casara (2020, p. 30) que “a maneira como o poder atinge o corpo de uma pessoa ou produz uma mudança na realidade depende sempre de um modo específico, que se pretende racional e aceitável, de se relacionar com o mundo”. (grifo meu).

Evitando o uso do termo capitalismo, Dardot & Laval preferem empregar o termo racionalidade como conceito central na definição do neoliberalismo. A racionalidade, para ele, não é a qualidade ou estado do agir, mas um elemento estruturante e organizador não apenas da ação dos governantes, mas também da conduta dos governados. Nas palavras dos autores, “a racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação” (p. 17). Não é o momento ainda de nos debruçarmos sobre o modus operandi da racionalidade neoliberal. Volto olhares sobre as razões por que o liberalismo foi superado pelo neoliberalismo.

 

 

2.   Por que o liberalismo fracassou?

 

Segundo Casara (2021), a crise do liberalismo foi gerada no interior do próprio liberalismo. O movimento liberal foi marcado por tensões entre os partidários da liberdade individual, entendida como um fim em si mesma, e os reformistas sociais, que defendiam o ideal do “bem comum”, isto é, concebiam a liberdade como meio pela qual se poderia construir esse bem comum. Essa longa crise espelha um modelo político-econômico sedimentado em torno de dogmas contraditórios, a qual durou de 1880 até a Grande Depressão dos anos de 1930, quando se dá a emergência do neoliberalismo. Segundo o autor, toda crise compartilha uma característica básica: o desmanche ou a transformação do funcionamento das instituições então erigidas e justificadas a partir da racionalidade hegemônica à beira do colapso. Numa crise, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário passam a funcionar de maneira distinta, e o Direito, bem como as diretrizes econômicas, se tornam disfuncionais. Para o autor, o neoliberalismo surge como necessidade de revisar as leis e os dogmas liberais; ou melhor, surge como expressão da necessidade de readaptar as instituições aos novos fins do Estado (então transformado em Estado neoliberal) e de impor a ideia de que o Estado tem de assumir um papel ativo na direção da economia. Casara observa que o liberalismo, com sua racionalidade, normatividade e imaginário, foi superado em função de sua incapacidade de responder adequadamente à questão prática que toca à intervenção política no âmbito econômico.

Como esteja interessado em investigar de que modo a constituição de um imaginário próprio é fundamental para a legitimação da arte de governar neoliberal, Casara entende a gradual superação do liberalismo como um processo de esgotamento do caráter legitimador das ideias e imagens sustentadas pela sua racionalidade. Em outros termos, as ideias e as imagens estruturantes da racionalidade liberal já não davam conta de explicar a razão por que, em várias circunstâncias, o Estado precisou socorrer o mercado. A crise do paradigma liberal revela também que as regras do jogo econômico mudaram (caem por terra as concepções originais de lei da oferta e da procura e a crença de que as decisões econômicas deveriam ser deixadas ao mercado concorrencial). Os direitos invioláveis dos indivíduos foram percebidos como obstáculos tanto para a governamentalidade liberal quanto para o mercado. Acresça-se a isso que as transformações do capitalismo em meio aos movimentos de industrialização e urbanização crescentes passaram a exigir do Estado uma atuação mais direta na economia, de modo a atender à necessidade de ampliar as margens de lucro da elite do dinheiro. Ao Estado também se exigia uma resposta aos conflitos de classe que ameaçavam a propriedade privada. Reunidas, estas condições estruturais levaram muitos entusiastas do modelo liberal a defender a necessidade de permitir intervenções estatais em domínios que, antes, era destinados aos indivíduos.

O modelo de vida do capitalismo dos fins do século XX não correspondia às antigas representações liberais da economia e da política. A nova fase do capitalismo financeiro era incompatível com a crença liberal em harmonias econômicas e  na mão invisível do mercado. Os dissidentes do liberalismo clássico estavam convencidos de que as novas condições socioeconômicas advindas do fenômeno da empresa, um modelo de gestão e organização da vida social que, pouco a pouco, passou a ser reproduzido por todos os setores da sociedade, inclusive pelo Estado, reclamavam uma resposta diferente daquela oferecida pelo liberalismo. En passant, vale notar que a forma jurídica empresa acarretou a naturalização da ideia de concentração ilimitada de recursos e de poderes numa instituição privada. Referindo as palavras de Casara (2020, p.88), deve-se atentar para a inaplicabilidade do método liberal às novas regras do jogo econômico:

 

(...) as regras do jogo do liberalismo clássico não davam conta do surgimento de cartéis (grupos que concentram as pequenas unidades empresariais adequadas ao antigo modelo atomístico de agentes econômicos independentes e em concorrência “justa”), do desenvolvimento de técnicas que criam necessidades artificiais e enfraquecem a crença na autonomia dos consumidores, das manipulações no mercado conduzidas por oligopólios e dos monopólios sobre preços (...).

 

Ora, todos esses fenômenos reunidos por Casara desvelam o embuste que há na crença numa concorrência justa orientada para o melhor resultado para todos. A racionalidade liberal não impossibilitou o controle político pelo poder econômico. Não só não o impossibilitou, como também possibilitou a opressão econômica dos indivíduos, entre os quais os pequenos proprietários. Nessa opressão, pesou a mão invisível dos empresários, dos agentes financeiros e dos políticos aliados a estes grupos.

Outro aspecto da crise do modelo liberal é o empobrecimento da população. As propostas do liberalismos clássico não surtiam efeitos sobre os problemas concretos das pessoas; ademais, eram inconsistentes com as demandas por reformas sociais e ajustes salariais, tão necessárias para evitar o agravamento dos conflitos de classe. Consoante nota Casara (2020, p. 89), “pode-se tentar resumir a crise do liberalismo clássico pela constatação da ausência de uma teoria e de uma orientação para as práticas governamentais que foram se fazendo necessárias diante das próprias contradições da racionalidade liberal”.

Com o agravamento das condições de empobrecimento da população europeia ao longo do século XIX, o imaginário popular foi, pouco a pouco, desacreditando das imagens positivas do laissez-faire com sua crença na liberdade como um fim em si mesma. Não só o liberalismo clássico com seu ciclo de negócios gerou a nova onda de pobreza que ceifou as esperanças de prosperidade do século XIX, como também a ideia liberal de que a relação salarial redundava de um contrato harmonioso entre partes iguais com vontades independentes se revelou um grande engano. Evidente o embuste, não tardou para que a Europa fosse tomada por movimentos sociais, revigorados pelas reformas de Bismarck (nos fins dos anos de 1870), que exigiam a criação de dispositivos, leis e regulamentações destinadas à proteção dos trabalhadores. É claro que a proteção coletiva e a segurança social, nesse contexto, foram uma concessão dos detentores do poder político e econômico, que se viam pressionados por um forte movimento operário, que se insurgia contra a mentira da “harmonia social” que seria gerada pela concorrência  e pela liberdade de contratar. Evidentemente, tais concessões, que estão na origem dos direitos sociais por cuja garantia é responsável o Estado são inadmissíveis para aqueles que pregam a ideia de liberdade, entendida reducionistamente como liberdade de contratar. Aqueles dentre os liberais que defendiam as reformas sociais, não raro, eram taxados de socialistas. Estes dissidentes tinham de enfrentar a resistência de grupos de liberais que se mantinham firmes em sua adesão aos dogmas do liberalismo clássico, mormente, ao dogma da ausência de intervenção estatal na economia. Dentre esses fiéis à doutrina liberal, destaca-se a figura de Herbert Spencer, a quem se deve atribuir a famigerada expressão “a sobrevivência dos mais aptos”. Spencer acreditava que qualquer interferência do Estado na esfera econômica representa um estorvo inadmissível à lei da evolução, cujo fim é fomentar a cooperação voluntária de indivíduos associados segundo um contrato social.

A explicação para o fracasso do liberalismo e para o surgimento do neoliberalismo oferecida por Casara não esgota o cenário das razões por que uma nova imagem de mundo começa a se delinear nos fins dos anos de 1970. Foucault, por exemplo, vê o surgimento do neoliberalismo como um sintoma de uma crise de governamentalidade mais ampla e diversificada. Este é o tema que me ocupará na próxima subseção.  

 

2.1. O Neoliberalismo e uma crise de governamentalidade

 

Para Foucault, o neoliberalismo responde a uma crise de governamentalidade mais ampla e diversificada e não apenas a uma crise de acumulação do capital. Mas, convém esclarecer o conceito foucaultiana de governamentalidade, antes de delinear a interpretação foucaultiana  das razões do surgimento do neoliberalismo.  Por governamentalidade, Foucault entende o conjunto de instituições, procedimentos, análises, reflexões, cálculos e técnicas que possibilita o exercício de uma forma de poder bem específica, qual seja, a gestão da população. Conforme notam Dardot & Laval (2020, p. 48), “(...) a governamentalidade vai assumir um sentido muito mais amplo [do que o de biopolítica], intercambiável com a “arte de governar” ou a “racionalidade governamental” para designar as maneiras muito concretas, frequentemente finas e invisíveis de condução dos indivíduos”. O leitor atento precisa reter, portanto, a seguinte articulação de ideias. Falar em governamentalidade, em Foucault, é falar em gestão de toda uma população através de técnicas, dispositivos, instituições, análises, imperceptíveis, embora capazes de moldar subjetividades e exercer controle sobre a conduta individual. Além disso, falar em governamentalidade é falar em arte de governar. A governamentalidade se define como a articulação entre as técnicas de dominação exercida sobre os outros e as técnicas de si. Governar, para Foucault, é estruturar o eventual campo de ação dos outros; ou, para falar com Dardot & Laval, governar é conduzir a conduta dos indivíduos, tanto a conduta de si mesmos quanto a conduta que se exerce sobre o comportamento dos outros. Em outras palavras, na arte de governar, molda-se tanto a conduta de si quanto o modo como devemos conduzir os outros. Mas governar não é governar contra a liberdade ou a despeito dela. Governa-se em nome da liberdade, através da liberdade, pois que governar é “agir ativamente no espaço de liberdade dado aos indivíduos para que estes venham a conformar-se a si mesmos a certas normas”. (Dardot & Laval, ibid., p. 19).

O neoliberalismo, conforme dito no começo do parágrafo anterior, constitui uma resposta a uma crise de governamentalidade ampla e diversificada. Essa crise, segundo Foucault, se prende a uma série de profundas crises históricas, tais como a crise do governo pastoral, a crise da soberania, a crise da disciplina e, especialmente, a crise do liberalismo clássico nos anos de 1920 e 1930. Para o filósofo francês, a crise da governamentalidade que leva à emergência do neoliberalismo se manifesta, sobretudo, em 1968 e nos anos de luta social e cultural subsequentes.

O neoliberalismo, nascido com a crise dos anos de 1930, questionava a ideia da espontaneidade do livre-mercado. Por um lado, era necessário superar o laissez-faire; por outro lado, era preciso combater as formas de intervenção estatal que desregulavam o funcionamento do mercado e que abriam espaço para um totalitarismo em potencial. Cabe aqui fazer uma advertência. A investida neoliberal contra os mecanismos de intervenção do Estado não deve conduzir a conclusão de que o neoliberalismo é um retorno ao naturalismo liberal. Tampouco se deve disso concluir que o neoliberalismo é uma forma de ultraliberalismo, como costuma pensar a esquerda.

Quando se considera a relação do governo com a sociedade em seu conjunto, o neoliberalismo não se limita a dar conta da crise do capitalismo. Cabe sublinhar, de passagem, que, para Foucault, não existe um único capitalismo, mas muitos capitalismos, porque o capitalismo muda de forma e funcionamento em virtude de mecanismos de poder historicamente diversos. Ademais, a crise a que o neoliberalismo se pretende uma resposta é muito mais ampla, estendendo-se sobre setores diversos da sociedade, tais como o psiquiátrico, o médico, o carcerário, o escolar, etc. Essas  diferentes formas de manifestação dessa ampla crise se expressam como um questionamento do regime geral de disciplinas desenvolvidas nos séculos XVIII e XIX e das formas estatais de biopolítica, difundidas nos séculos XIX e XX.

Ao suplantar a racionalidade liberal, o neoliberalismo traz em seu bojo uma nova arte de governara arte de governar neoliberal. Em que consiste essa arte de governar? Identificada com a essência do neoliberalismo, ela “designa um certo tipo de poder que age a distância sobre os indivíduos através do seu meio de vida com o fim de favorecer a autovalorização do capital humano”. (Laval, 2020, p. 75). Essa é, aliás, uma das definições possíveis do neoliberalismo. E qual é o meio de vida do homem neoliberal? O mercado, e o mercado o guia.

A nova arte de governar neoliberal pretende remodelar as relações entre os indivíduos não à moda dos movimentos da contracultura, mas segundo o princípio da concorrência. É assim que a arte de governar neoliberal vai se constituir como uma resposta assaz eficaz à série de crises anteriormente mencionadas, angariando o apoio, nos anos de 1980, de ex-contestadores da arte de governar liberal. Como nova forma de poder, a arte de governar neoliberal, baseada em um jogo de incitações à concorrência, dispensa disciplinas e normalizações de grande alcance, para agir direta e autoritariamente sobre os indivíduos. O neoliberalismo responde, politicamente, à crise das instituições disciplinares e a certas formas de governar biopoliticamente por meio do social e do escolar.

Em resumo, é como dupla resposta política que o neoliberalismo se apresenta, segundo a análise foucaultiana. De um lado, ele responde à crise das instituições disciplinares “clássicas”; de outro lado, responde ao esgotamento das formas de governo da biopolítica. Alinhado com o espectro político da direita, o neoliberalismo busca dar conta das críticas das disciplinas e do biopoder levadas a efeito pela esquerda.

Antes de pôr termo a esta subseção para, finalmente, me concentrar na discussão da natureza do neoliberalismo e de algumas das dimensões de sua dominação, é indispensável acrescentar que, se o neoliberalismo nascido nos anos de 1930 era uma reação à crise do liberalismo clássico, o neoliberalismo dos anos de 1970 “é, em grande parte, uma reação ao keynesianismo institucionalizado”. (Laval, ibid., p. 134). O que isso significa? Significa que o neoliberalismo surge como um conjunto de teses econômicas e discursos políticos, cujo objetivo é consagrar a ideia de que os mecanismos de redistribuição de renda e riqueza e a promoção da igualdade não lograram produzir efeitos positivos sobre a economia num contexto histórico caracterizado pela intensa concorrência internacional. Para os neoliberais, os métodos corretivos do tipo keynesiano, utilizados a partir de 1945, acarretaram uma série de consequências nefastas no âmbito econômico. A resposta neoliberal se enuncia como um meio de remediar os malefícios socioeconômicos produzidos por aqueles métodos através de uma nova política social lastreada não mais pelo pleno emprego e pelo crescimento econômico voluntarista, mas pelos dispositivos de gestão individual do desemprego em massa e de controle de uma população econômica e socialmente desamparada. Cite-se Laval (ibid., p. 136) que nos patenteia aquilo que constituiria, se posso dizer, o fim último a que visa o neoliberalismo: tornar o mercado o modelo para todas as relações sociais. Transformar o mercado como modelo para todas as relações sociais é justamente o que faz o neoliberalismo.

 

A resposta especificamente neoliberal à crise de governar dos anos de 1970 consiste em colocar, no centro de uma “política social” completamente redefinida, a regra do mercado. A sociedade [inteira] deve ser dirigida e regulada pelo “jogo” da concorrência – concorrência externa entre economias nacionais, concorrência interna entre empresas e entre indivíduos. (grifos meus).

 

Com o neoliberalismo, a concorrência e o modelo empresarial formam um certo regime invisível de governo das condutas, em função do qual o modo de imposição da norma diferirá do modo como ela era imposta na soberania ou nos aparelhos disciplinares. E esse novo modo de imposição da norma vai além da esfera propriamente econômica. O neoliberalismo cria “mundos”, cria uma nova dinâmica social, reconfigura subjetividades e modos de viver individuais. Criando dispositivos novos de governo da conduta, o neoliberalismo cria seu próprio sujeito (o sujeito neoliberal), adaptado para sobreviver num mundo onde a concorrência é a regra. Doravante, numa ordem econômica, social e política estruturada pela lógica neoliberal, sobre os princípios de solidariedade, de redistribuição e de igualdade que inspiraram (e inspiram) a social-democracia, prevalece o imperativo da concorrência. Como assinala Laval (ibid., p. 136), “exclusão e igualdade de oportunidades serão suas palavras de ordem”.

 

 

3.   O neoliberalismo: sua racionalidade e sua dominação

 

Sem delongas, apresento, abaixo, uma das definições possíveis do neoliberalismo. A  definição que se acha abaixo é oferecida por Dardot & Laval (2016). Escolho-a como fio condutor dos desdobramentos conceituais do complexo fenômeno do neoliberalismo por duas qualidades que saltam aos olhos: sua clareza, consistência teórica e concisão.

 

O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de  um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e norma geral da vida. O neoliberalismo pode ser definido como um conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência. (Dardot & Laval, 2016, p. 17, grifos meus).

 

Vejamos o que apreendemos dessa definição do neoliberalismo proposta por Dardot & Laval. Primeiramente, eles afirmam que o neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, o que pode ser parafraseado como: o neoliberalismo é a racionalidade do capitalismo contemporâneo. O primeiro aspecto a ser destacado na definição de neoliberalismo é justamente o fato de ele ser uma forma de racionalidade, ou um tipo específico de racionalidade. Em segundo lugar, os autores esclarecem melhor o que é o neoliberalismo, ao dizer que “é um conjunto de discursos, de práticas e de dispositivos”, cujo fim é determinar “um novo modo de governo dos homens” em consonância com o “princípio universal da concorrência”. Pode-se concluir que a racionalidade neoliberal se se materializa na forma desse conjunto de discursos, práticas e dispositivos que estabelecem – aqui mais um elemento fundamental do neoliberalismo – “um modo de governo dos homens”. Outro elemento não menos importante da definição do neoliberalismo é “o princípio universal de concorrência.” A racionalidade neoliberal tem como característica central a generalização da concorrência imposta como norma de conduta dos governantes e dos governados.

Dardot & Laval mantêm que o sentido exato do termo neoliberalismo deve ser buscado nas intuições de Foucault. O neoliberalismo é, então, um certo tipo de governo dos indivíduos,  que exige um certo tipo de exercício de poder mediante um Estado forte, autoritário; às vezes violento, que promova uma nova articulação das esferas pública e privada. Em que consiste a essência ou o núcleo do neoliberalismo? Consiste em ser o neoliberalismo um certo modo de governar a sociedade inteira em consonância com a razão ou a lógica do capital transformada em medida universal. Em outras palavras, o neoliberalismo é certo modo de governar a sociedade inteira segundo a norma da concorrência e a lógica da empresa, que passam, então, a estruturar as atividades e a fabricar subjetividades.

Os autores insistem que não se deve confundir o neoliberalismo com um novo liberalismo. Nem mesmo os autores das formulações da nova arte de governar recoberta pelo termo neoliberalismo souberam reconhecer em que este se diferencia do novo liberalismo, do qual a teoria econômica de Keynes é uma expressão mais elaborada. O novo liberalismo propunha-se reexaminar o conjunto dos meios jurídicos, morais, políticos, econômicos e sociais a fim de construir uma sociedade de liberdade individual em benefício de todos. Destarte, o novo liberalismo pode ser resumido à luz de duas propostas: 1) as agendas do Estado devem superar os limites que o dogmatismo do laissez-faire impôs a elas, caso pretendam assegurar os benefícios de uma sociedade liberal; 2) essas novas agendas devem, na prática, questionar a fé que se depositou nos mecanismos autorreguladores do mercado, bem como a confiança na justiça dos contratos estabelecidos entre indivíduos supostamente iguais.

Para que seja possível realizar os ideais do liberalismo, é necessário que se saiba utilizar os meios, aparentemente, contrários à doutrina liberal para defender a realização plena de uma sociedade liberal. Assim, os liberais vão admitir leis de proteção do trabalho, impostos progressivos sobre a renda, auxílios sociais obrigatórios, etc., mas com o objetivo de garantir as condições concretas da realização dos fins individuais.  Ora, se é verdade que, em certos aspectos, o neoliberalismo aparece, mais tarde, como uma celebração do novo liberalismo; em outros aspectos, constitui uma alternativa aos tipos de intervencionismo econômico e reformismo social apregoados pelo novo liberalismo.

Lembremos que o neoliberalismo não propõe uma política de retirada do Estado. Os neoliberais admitem a necessidade de uma certa intervenção do Estado no mercado; todavia, se opõem a toda ação estatal que entrave o jogo da concorrência entre interesses privados. O Estado deve estar a serviço da racionalidade neoliberal: não deve limitar o mercado por métodos de correção ou compensação, mas deve desenvolver e purificar o mercado concorrencial por meio de um enquadramento jurídico minuciosamente ajustado.  No neoliberalismo, já não mais se pressupõe um acordo entre interesses individuais, mas se produzem as condições ótimas para que o jogo de rivalidade, de competição satisfaça o interesse coletivo.

Antes de passarmos a considerar, brevemente, a contribuição foucaultiana para a determinação do conceito de neoliberalismo, prosseguindo ainda na esteira de Dardot & Laval, podemos ver, facilmente, que o neoliberalismo combina a reabilitação de uma intervenção estatal com uma concepção de mercado em cujo cerne repousa o imperativo da concorrência. O neoliberalismo operou o deslocamento do eixo do liberalismo, erigindo o princípio de concorrência como princípio central da vida social e individual. O neoliberalismo alinha-se com o reconhecimento de que a ordem do mercado não é naturalmente espontânea, mas um produto artificial, uma construção histórica e política.

Como meu compromisso é trazer à baila alguns aspectos das análises de Foucault sobre o neoliberalismo, seria romper com esse compromisso se eu adentrasse na abordagem neomarxista-foucaultiana elaborada por Wendy Brown. Não obstante, duas lições de Brown merecem nota aqui. O primeiro excerto de Brown (2019) destaca o impacto global da emergência do neoliberalismo:

 

O neoliberalismo – as ideias, as instituições, as políticas, a racionalidade política -, juntamente com sua cria, a financeirização, provavelmente moldaram a história mundial recente tão profundamente quanto qualquer outro fenômeno que possa ser situado no mesmo período, mesmo que acadêmicos continuem a debater o que ambos são precisamente. (Brown, 2019, p. 28).

 

Segundo Brown, o neoliberalismo representa o ataque oportunista dos capitalistas e seus lacaios políticos aos Estados de Bem-Estar social keynesianos, às social-democracias e ao socialismo de Estado. Nesse sentido, escreve o autor,

 

O neoliberalismo é mais comumente associado a um conjunto de políticas que privatizam a propriedade e os serviços públicos, reduzem radicalmente o Estado social, amordaçam o trabalho, desregulam o capital e produzem um clima de impostos e tarifas amigáveis para investidores estrangeiros. (ibid., p. 28-29).

 

 

Para o autor, o neoliberalismo foi concebido e manifestado na prática como um “projeto global no qual a soberania econômica do Estado-nação seria suplantada pelas regras e acordos estabelecidos por instituições supranacionais como a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional”. (p. 29-30). O neoliberalismo tem como meta desmantelar as barreiras que dificultam o fluxo de capital e a sua acumulação. Os neoliberais buscam também neutralizar as demandas por redistribuição de riqueza e renda do Sul, recentemente descolonizado. É possível, segundo o autor, aventar a hipótese de que a revolução neoliberal foi projetada para frustrar as expectativas da classe trabalhadora, quer no mundo desenvolvido, quer nas regiões pré-coloniais em desenvolvimento, na medida em que universaliza o baixo nivelamento de salários e das condições de trabalho. Nas palavras do autor, pode-se dizer que o projeto neoliberal visa a (...) liberar o capital para caçar mão de obra barata, recursos e paraísos fiscais em todo o mundo”, gerando, assim, padrões de vida mais baixos para as faixas da classe trabalhadora e da classe média no Norte global e a exploração persistente, além de estabelecer limitações à soberania dos Estados-nação, as quais vêm acompanhadas de um desenvolvimento desigual no Sul global.

 

 

3.1. O neoliberalismo como governo pelo mercado: aspectos elementares da análise foucaultiana

 

De tudo que se expôs até aqui, deve-se inferir que o neoliberalismo não é apenas um reflexo do poder do capital financeiro, tampouco se reduz a mecanismos econômicos, mas recobre, fundamentalmente, um modo de governo dos homens que se espraia por todas as instituições. A abordagem foucaultiana do neoliberalismo pretende patentear como governos, sujeitos e subjetividades são transformados pela remodelação neoliberal. Ademais, ao nos debruçarmos sobre as análises foucaultianas do capitalismo, vemo-lo assumir que o capitalismo é sempre organizado por formas de racionalidade política.

Com Foucault, o exame do modo como se instancia a razão governamental neoliberal mostra-nos que o mercado torna-se o critério pelo qual os neoliberais avaliam a atividade governamental e legislativa. Ao se debruçar sobre a racionalidade neoliberal, Foucault desenvolve uma análise crítica do poder. Sendo uma forma de governo dos homens, a racionalidade neoliberal descortina os efeitos que a ação pública produz sobre a conduta e as escolhas individuais.

O neoliberalismo não é apenas um modo de governo dos homens; é também, segundo Foucault, um certo tipo de poder que age a distância sobre os indivíduos a partir da criação de seu meio de vida. Já disse que o meio de vida do sujeito neoliberal é o mercado. No mercado, a norma não se impõe nem de fora nem de uma instância superior; ela se impõe como efeito do jogo das forças econômicas, isto é, ela é efeito da concorrência.

Uma vez que a única norma efetiva e legítima é imanente ao próprio funcionamento do mercado, observa Laval (2020, p. 76) que “o neoliberalismo se atribui continuamente ares de evidência, quer dizer, de conformidade com um movimento natural da sociedade e com uma realidade à qual os governantes e os governados devem se adaptar (...)”. Evidentemente, essa “realidade” é, no entanto, fabricada, criada historicamente; é feita de regras, de instituições, de situações historicamente criadas com vistas a orientar a conduta dos homens.

Foucault esforçou-se por evidenciar o caráter de objetividade do governo neoliberal. Ora, a ação governamental a distância, estabelecendo “regras do jogo”, objetiva estruturar o espaço no qual os indivíduos agem segundo a lógica da concorrência. Uma vez posicionados nesse espaço, os indivíduos precisarão se adaptar ao meio concorrencial, funcionando como empresas de si que administram seu capital de recursos sempre com vistas a maximizá-los. O espaço neoliberal é estruturado por técnicas comportamentais, cada vez mais refinadas, que agem sobre toda a vida social até o mais íntimo do indivíduo.

Foucault não se ocupou do exame do neoliberalismo estadunidense. Não dispôs de tempo suficiente para articular, com a devida consistência, o neoliberalismo alemão e o neoliberalismo estadunidense. Não obstante, ele via os dois neoliberalismos como exemplos contemporâneos de uma razão liberal de governo. No neoliberalismo estadunidense, identificou um radicalismo que estava ausente do ordoliberalismo. As duas formas de neoliberalismo eram correlatas de uma única e específica arte de governar. Segundo Laval, a originalidade da abordagem foucaultiana consiste em ligar as duas formas do neoliberalismo a fim de definir um modo singular de governamentalidade, cuja compreensão só pode ser alcançada quando esses dois braços do neoliberalismo estão correlacionados.

A chave de compreensão do neoliberalismo que adotarei a partir das análises foucaultianas sobre o fenômeno é o conceito de governamentalidade, intercambiável, conforme vimos, com a ideia de arte de governar. Daí se segue que será necessário esmiuçar os aspectos da arte de governar neoliberal. Assim, o neoliberalismo instancia um modo de governar pela concorrência.

Em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber escreve sobre a adaptação dos indivíduos à ordem econômica capitalista. Reproduzo, abaixo, o trecho de Weber do qual Foucault colhe a questão que lhe interessará na análise do neoliberalismo.

 

A atual ordem econômica capitalista é um imenso cosmos em que o indivíduo está imerso por nascimento e que, para ele, ao menos enquanto indivíduo, é dado como uma jaula (Gehaüse, ou gaiola de ferro) de fato, imutável, na qual ele deve viver. Uma vez que o indivíduo está intricado na rede de mercado, a ordem econômica lhe impõe as normas de seu agir econômico. (grifo meu).

 

 

Retrata-se assim a fatalidade de cada vida individual, lançada pelo nascimento neste imenso cosmos que constitui a ordem econômica capitalista: cada indivíduo nela aprisionado precisará se adaptar ao seu meio de vida. Foucault está particularmente interessado na questão de como a ordem econômica impõe ao indivíduo as normas de seu agir econômico. Diferentemente do que pensa Weber, o mercado não é uma prisão, para Foucault. Afora isso, Foucault entende que a arte de governar neoliberal supõe a existência de um sujeito governável e um modo de ação sobre esse sujeito. O cerne da racionalidade neoliberal é, portanto, o governo dos indivíduos por meio de uma regulação concorrencial da sociedade como um todo. A condição histórica da racionalidade neoliberal é a governabilidade do homo economicus, ele mesmo já governável, de sorte que a racionalidade neoliberal transformará esse tipo humano em sujeito neoliberal. Para Foucault, o homo economicus é eminentemente governável, mas o é por uma intervenção no seu meio, o qual age não diretamente sobre os sujeitos, mas indiretamente sobre as regras do jogo. Destarte, segundo Laval (2020, p. 79), “o neoliberalismo redefine (...) de uma só vez o sujeito econômico como ser adaptável às variáveis do mercado e a função do governo como arte de criar e dar sustentação às condições de funcionamento do mercado”. Portanto, ao subsumir a função do governo à sua racionalidade, o neoliberalismo transforma a função governamental, não mais orientada para atender às demandas do social, mas reformulada para atender aos imperativos do mercado.

Sob a dominação da racionalidade neoliberal, o homo economicus é redefinido como capital humano e como empresa. O neoliberalismo busca, portanto, criar uma sociedade inteiramente regida pela maximização do capital humano. Essa redefinição do homo economicus é correlata com a ação sobre o meio, defendida pelos ordoliberais alemães sob o rótulo de “política de sociedade” ou de “política de moldura”, ou ainda de “política de vida”. Essa política de sociedade consiste em agir sobre o ambiente social com o objetivo de orientar a conduta dos indivíduos. Consoante lembra Laval (2020, p. 78-79), ao considerar a condição existencial do indivíduo,

 

O indivíduo já está sempre mergulhado em um “mundo da vida” que se deve, ao mesmo tempo, proteger e transformar, quando necessário, para o funcionamento da economia de mercado. Assim, esse indivíduo deve sempre ser colocado diante de escolhas alternativas, como um desempregado que necessita escolher entre o emprego ou o ócio, um empreendedor entre investimento, uma família entre as opções de escolas ou de serviços de saúde, etc. Mais precisamente, o meio concorrencial conduzirá o indivíduo a agir como uma “firma” que opera escolhas com o objetivo de produzir o máximo de satisfação.

 

Convém demorar-nos na reflexão sobre esse excerto de Laval. O conceito de “mundo da vida” devemos a Hurssel. O mundo da vida recobre  o mundo imediato em que vivemos intuitivamente, com suas ocorrências familiares, com as coisas que aprendemos na experiência comum no cotidiano.  O mundo da vida é o mundo habitado por todos nós  na lida com as coisas, nas ocupações da vida cotidiana. Esse mundo tão familiar, vivido intuitivamente, é transformado para servir aos interesses relacionados ao funcionamento da economia de mercado. Em outras palavras, tudo que fazemos e nossas próprias vivências se tornam produtos comerciais, fontes para a obtenção de lucro, mercadorias inseridas no processo de monetização. Aliás, nós mesmos, enquanto sujeitos sociais, enquanto subjetividades contábeis, nos tornamos mercadorias. Como na descrição weberiana há pouco mencionada, o indivíduo lançado no “mundo da vida” estará necessariamente subjugado ao meio concorrencial que o governará de modo que ele será forçado a agir e a viver como uma empresa. Veremos, mais adiante, como a racionalidade neoliberal produz sujeitos como empresas de si. O que se deve esclarecer, doravante, é o que Foucault entende por meio, ou melhor, por governo pelo meio.

Esse meio concorrencial está sobreinvestido por novas técnicas de normalização, que se articulam indissoluvelmente com técnicas de controle, de avaliação, de incitação e estímulo. Ora, toda conduta humana não é apenas racional; ela é também econômica, porquanto é uma resposta adaptativa maximizadora a uma situação não só de produção e de consumo, mas também de escolha entre fins alternativos.

 

3.1.2. O neoliberalismo como governo pelo meio

 

A governamentalidade neoliberal é um governo pelo meio, isto é, pelo mercado. O conceito de meio, em Foucault, além de dar coerência à noção de racionalidade neoliberal, descerra a possibilidade de compreendermos como ela expõe o desafio de estender ilimitadamente os mecanismos reguladores da conduta. O neoliberalismo acentua a definição de governamentalidade como um governo pelo meio, como o meio afeta o jogo de interesses. O meio de que se trata, reitere-se, é o mercado. Para Foucault, o que há de essencial no poder neoliberal é que ele opera no sentido de estruturar o espaço de conduta dos indivíduos, fazendo-os agir de maneira determinada, segundo as injunções do meio, ou seja, do mercado. Disso se seguem as seguintes conclusões, arroladas abaixo:

 

1) O Neoliberalismo é uma racionalidade governamental que torna o cálculo econômico o princípio de seu exercício e de sua regulação;


2) O Neoliberalismo é um tipo de governo pelo mercado;


3) O Neoliberalismo faz do mercado o “meio” através do qual o homem econômico pode ser governado.

 

Por meio, Foucault entende não apenas uma moldura, uma arquitetura. O meio é o conjunto de relações entre o indivíduo e tudo aquilo que o cerca, seja as grades da cela, janelas, o ritmo das jornadas da vida no presídio, as relações entre os prisioneiros e os outros indivíduos, seja todo espaço onde o vivente age estabelecendo normas, de modo que toda ação humana acontece sempre em um meio que estabelece normas. O meio, naturalmente, não é apenas o presídio, é a família, o espaço urbano, as instituições disciplinares em geral e, no caso do sujeito neoliberal, é o mercado e seu quadro concorrencial ao qual os sujeitos econômicos precisam se adaptar. Foucault está sempre interessado em analisar a relação entre o meio e o indivíduo.

Quem quer que conheça minimamente a obra de Foucault dar-se-á conta de que ele jamais deixou de mostrar que a sociedade, a geografia, a vida mesma não são espaços livres de poder e coerção. Elas são, na verdade, há muito tempo, investidas pelo poder das normas, por uma normalização cuja função central é modelar as condutas e as subjetividades. Deve-se, portanto, ter em conta que o meio em que os seres humanos vivem é sempre um espaço normativo. A ação humana, ao transformar o meio, transforma também o próprio homem. Assim, referindo Laval, devemos reconhecer que “o homem necessariamente se produz, produzindo seu próprio meio”. (Laval, ibid., p. 98). Convém agora deter-nos um pouco sobre a questão das normas. O que são normas, para Foucault? Como elas estruturam o meio? Em princípio, devo enfatizar que o poder, em Foucault, mobiliza, frequentemente, normas que são inerentes aos processos e as práticas. Deve-se recordar que Foucault não analisa o poder reduzindo-o ao seu aspecto coercitivo, tampouco o limita à esfera do Estado, da política. Lembro que o poder, antes de mais nada, é produtor de discursos, de normas, de subjetividades, de saberes; ele induz ao prazer; é poder reticular, invisível, que se espraia por toda a malha social (daí devermos falar em “poderes”), ou seja, atravessa todo o corpo social. O poder, para Foucault, nunca se exerce senão produzindo certo tipo de sujeito; o poder age sobre o sujeito e através do sujeito, sempre submetido a normas de conduta, de fala, de pensamento. O poder atravessa os indivíduos e os normaliza.

Toda norma, para funcionar, tem de ter um investimento linguístico. Pensamos em “normas”, habitualmente, como regras impositivas, como proposições que preceituam o modo como devemos agir e nos comportar a fim de atender às expectativas sociais, a fim de ajustarmo-nos às determinações sociais do que é bom, correto, válido. Estou ciente de que essa descrição do que entendemos, comumente, por “norma” não esgota a semântica do termo. Escusa lembrar que “norma” também recobre o comportamento que se observa com maior frequência; a norma seria aquilo que é considerado a prática corrente, largamente observada numa população.

No terreno teórico em que se inscrevem as reflexões de Foucault, as normas constituem o terreno da luta, o que não significa que possamos nos esquivar delas. Afinal, as normas, para o filósofo francês, embora possam ser modificadas, são imanentes às práticas. Não há práticas que não sejam normatizadas, nem há normas que não se efetivem na ação. É porque toda prática e toda existência são investidas de normas, que o poder político e social modifica o campo normativo com vistas a agir sobre as condutas individuais.

As normas, portanto, integram o meio, no seio do qual as práticas e as existência individuais se desenvolvem. Como elas sejam partes não só das práticas, mas também das existências, toda existência é, necessariamente, normatizada.

Ponto termo a esta etapa de minha reflexão sobre o conceito de meio em Foucault, pode-se, em resumo, dizer que “o meio é, ao mesmo tempo o espaço onde vive uma população e  a maneira de agir sobre ele” (Laval, ibid., p. 93).O meio é, para Foucault, tanto o suporte como o elemento de circulação de uma ação.

As técnicas da governamentalidade neoliberal não visam apenas ao governo da conduta; são também mobilizadas para fabricar, cunhar um tipo de sujeito, o sujeito neoliberal, o sujeito empreendedor de si. Não intento desenvolver à exaustão este tema; limitar-me-ei a contorná-lo, com o único propósito de mostrar como o neoliberalismo produz o sujeito de que precisa, o sujeito bem adaptado ao governo pelo mercado, um sujeito que, crendo-se autônomo, livre, colaborador, não é mais do que um indivíduo submetido à racionalidade neoliberal.

 

3.2.    Empresa de si: o Ethos da autovalorização

 

 

Vimos que o neoliberalismo faz do mercado e da empresa o princípio de estruturação da vida social e de fabricação dos sujeitos. Falar em sujeito como empresa de si significa dizer que cada indivíduo pode ter domínio sobre sua vida: pode conduzi-la, guia-la e controlá-la em conformidade com seus desejos e necessidades, sempre empenhado na elaboração de estratégias adequadas. A empresa de si implica a produção de um ethos de autovalorização, e isso pressupõe todo um trabalho de racionalização do desejo, de uma racionalização que atua no mais íntimo do sujeito. A empresa de si é a maneira de ser do próprio homem fabricado pelo neoliberalismo. Ela é também o próprio modo de ele governar-se em consonância com os valores e princípios empresariais, tais como energia, iniciativa, proatividade, ambição, cálculo, responsabilidade pessoal, etc. O que é ser empresa de si mesmo? Ou, o que é ser empreendedor de si? Tais questões se inscrevem num horizonte enunciativo de uma nova ética – a ética empresarial. A empresa de si é um método de formação profissional, que constitui um conjunto de propostas prescritivas e performativas dirigidas aos assalariados. Como empresa de si, o indivíduo não deve se ver mais como trabalhador, mas como uma empresa que vende um serviço no mercado. Todo trabalhador, portanto, deve procurar um cliente, encontrar sua posição no mercado, fixar seu preço, gerir seus custos, realizar pesquisa-desenvolvimento e, é claro, formar-se. Destarte, para o indivíduo inserido nas relações de mercado, seu trabalho é sua empresa, e seu desenvolvimento define-se como uma empresa de si mesmo.

Agora, é preciso nos perguntar quem é o sujeito empreendedor de si. Diremos imediatamente: é o indivíduo competitivo e competente. É o indivíduo cuja vida está quase inteiramente devotada a maximizar seu capital humano em todos os campos de atuação. É o indivíduo que não deseja apenas projetar-se no futuro, calcular seus ganhos e custos, tal como fazia o velho homem econômico. Ele procura, sobretudo, trabalhar a si mesmo, sobre si mesmo, com o fito de se transformar continuamente, de se aprimorar, de se tornar cada vez mais eficaz, mais eficiente, mais dócil a esse novo ethos empresarial.

A ética empresarial é a ética de nosso tempo; é a ética de nosso mundo atual governado pela racionalidade neoliberal. O que essa ética celebra? Quais são seus princípios basilares? Vejamos. Ela celebra “o homem que faz a si mesmo”, recomenda a “realização plena de si mesmo”; mas ela se singulariza ao exaltar o combate, a força, o vigor e, é claro, o sucesso. Na ética empresarial, o trabalho é transformado no meio privilegiado da realização pessoal (enquanto se apagam dele as contradições sociais, econômicas). Se formos bem-sucedidos profissionalmente, nossa vida será um sucesso. Na ética empresarial, uma vida bem-sucedida é uma vida em que alcançamos a maximização da pequena empresa que somos.

Não pretendendo me alongar sobre esse tema, preciso, no entanto, acrescentar algumas palavras sobre como devemos entender precisamente a ideia de empresa de si e sobre qual é a especificidade do sujeito neoliberal. Para determinar, com mais clareza, o conceito de empresa de si, trago à tela as palavras de Dardot & Laval (2016, p. 335):

 

A empresa de si mesmo é uma “entidade psicológica e social, e mesmo espiritual”, ativa em todos os domínios e presente em todas as relações. É sobretudo a resposta a uma nova regra do jogo que muda radicalmente o contrato de trabalho, a ponto de aboli-lo como relação salarial. A responsabilidade do indivíduo pela valorização do seu trabalho no mercado tornou-se um princípio absoluto. Essa relação de cada um com o valor de seu trabalho é “objeto de gestão, de investimento e desenvolvimento num mercado de trabalho aberto e cada vez mais mundial.

 

Seria estender-me para além dos limites da conveniência fixados pelo plano de meu dizer o pretender esmiuçar a significatividade da empresa de si como entidade psicológica, social e espiritual. Serei, por isso, forçado a me deter em destacar o que considero importante trazer à consciência do leitor. Primeiramente, é interessante notar que “a empresa de si” não constitui um modo de ser, de se perceber típico apenas de indivíduos que atuam no setor empresarial; a empresa de si mesmo molda todas as relações sociais, é um componente da subjetividade de todos os indivíduos “aprisionados” na ordem econômica capitalista. Mesmo os funcionários públicos, como professores, por exemplo, precisam agir e se perceber como indivíduos responsáveis pela valorização de seu trabalho, como indivíduos competitivos, que prezam a eficiência, a produtividade; mesmo eles são avaliados pelos órgãos públicos, pelos gestores da administração pública segundo os cálculos, as métricas do tipo empresarial. Muitos deles não se dão conta disso, lamentavelmente.  Em segundo lugar, destaco também a constatação de que a responsabilidade do indivíduo pela valorização de seu trabalho no mercado se transformou num princípio absoluto.  Não devemos reivindicar que o valor de nosso trabalho seja reconhecido; é-nos vedado cobrar a valorização do nosso trabalho, porque, segundo a lógica da responsabilização pessoal pela valorização do próprio trabalho, se nosso esforço não está sendo valorizado, é porque nós não estamos trabalhando o suficiente e adequadamente para merecê-lo. O sujeito neoliberal responsável pela autovalorização é também culpado pela falta de reconhecimento de seu valor. Ademais, ser responsável por valorizar seu próprio trabalho impõe ao indivíduo o dever de relacionar-se com seu trabalho como um gestor, um investidor que busca sempre maximizar seu desenvolvimento.

O trabalho se torna, pois, um produto, cujo valor mercantil pode ser mensurado de forma cada vez mais precisa, donde se segue que o contrato salarial pôde ser substituído por uma relação contratual entre “empresas de si mesmo”. O sujeito neoliberal não é mais um funcionário da empresa, um trabalhador, mas um colaborador. O modelo da empresa que redefine as relações sociais transforma toda atividade em atividade empresarial. Por isso, o uso da palavra “empresa” está longe de ser metafórico, já que toda atividade de um indivíduo é representada como um processo de valorização do seu eu. A categoria “empresa” significa, então, que a atividade de cada indivíduo, em todas as suas dimensões e esferas, quer como trabalho remunerado, quer como trabalho beneficente para uma associação, quer como gestão do lar familiar, quer como aquisição de competências, quer como desenvolvimento de uma rede de contatos, quer como preparação para mudança de trabalho, etc., é, essencialmente, atividade empresarial.

O que não se pode perder de vista, a esta altura, é que todo trabalho envolvido na realização da empresa de si mesmo vai muito além do mundo profissional. A empresa de si é uma ética pessoal em tempos de incerteza. Dada a equivalência entre a valorização mercadológica do trabalho e a valorização de si próprio, seria a ética empresarial, ou melhor, a empresa de si uma versão moderna da epimeleia grega, ou o “cuidado de si”? Eu diria que a empresa de si não se equivale às práticas estoicas de cuidado de si. A empresa de si é uma corruptela moderna dos exercícios espirituais de que toda a tradição filosófica, tanto antiga quanto moderna, é um testemunho de inestimável valor e admiração até hoje. Não posso me deter em examinar as diferenças entre a epimeleia antiga e as técnicas empresariais destinadas a fabricar o sujeito neoliberal. No entanto, posso afirmar, com Foucault, que, se os exercícios espirituais da antiguidade grega visavam a cunhar um eu próximo do ideal proposto no discurso, na governamentalidade neoliberal, o governo de si é a própria condição para o exercício de um governo político ou religioso. Segundo Foucault, isso vale, em particular, para a relação entre o governo de si e o governo dos outros na pólis, tal como pensada na ética grega clássica. Aquele que é incapaz de governar a si mesmo é incapaz de governar os outros. As palavras, abaixo referidas, de Laval lançam luzes sobre a radical diferença entre as duas formas de “ocupação de si”:

 

(...) a ascese da empresa de si mesmo termina com a identificação do sujeito com a empresa, deve produzir o que chamamos antes de sujeito do envolvimento total, ao contrário dos exercícios da “cultura de si mesmo” dos quais trata Foucault, cujo objetivo é estabelecer uma distância ética em relação a si mesmo, uma distância em relação a todo papel social. (Laval, 2020, p. 339, grifos meus).

 

Não é custoso inferir que as práticas do “cuidado de si” da antiguidade grega visavam à conquista da verdadeira liberdade, ou seja, da sabedoria – pois só o sábio é verdadeiramente livre. Nada semelhante ocorre com a ascese da empresa de si mesmo, cujas técnicas e discursos visam a cunhar um sujeito apropriado e adaptado à nova ordem econômica governada pela racionalidade neoliberal.

A empresa de si é gestão de porftifólio; implica o desenvolvimento de estratégias de aprendizagem, de casamento, amizade, educação dos filhos, administração do capital do sujeito como empresa de si. O capital é, portanto, tanto familiar quanto individual. O crescimento do capital depende de experiências, formação, contatos, competências, além, é claro, de esforço, energia, saúde, carteira de clientes, rendimentos e bens.

Em suma, a noção de empresa de si pressupõe que a vida pessoal esteja integrada à vida profissional; pressupõe também uma gestão familiar do portifólio de atividades, uma transformação da relação com o tempo, o qual não é mais determinado pelo contrato salarial, mas por projetos realizados juntamente com diversos colaboradores. Sob a dominação neoliberal, cada ser humano é resultado de um conjunto de técnicas práticas à disposição de si para alcançar essa nova forma de “sabedoria” que consiste no desenvolvimento autogerado da empresa de si mesmo.

Por fim, qual é a especificidade do sujeito neoliberal, que é o sujeito empresa de si? Esse sujeito se distingue de outras formas sujeito pelo empenho (obsessivo) de aprimoramento sobre si mesmo, que o leva a perseguir a otimização incessante de seus resultados e de seus desempenhos. O sujeito neoliberal é fabricado por um meio definido por paradigmas que englobam tanto o mercado de trabalho como o mercado da educação, com seu princípio de “formação para toda a vida”.

 

PALAVRAS FINAIS

 

O neoliberalismo é uma racionalidade governamental; é o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa. Essa lógica do mercado se expressa no imperativo capitalista da acumulação ilimitada (e, certamente, desastrosa, tanto no âmbito social quanto no âmbito ecológico). Deve-se frisar, conforme mostrei, que o neoliberalismo não retoma a questão dos limites do Estado. Na verdade, ele converte a lógica do mercado em lógica normativa desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade. Outrossim, o neoliberalismo não é o herdeiro natural do liberalismo clássico, assim como não é seu extravio, nem sua traição. O neoliberalismo está determinado a fazer do mercado tanto o princípio do governo dos indivíduos como o princípio do governo que cada indivíduo deve fazer de si mesmo.

O Estado neoliberal converteu-se num instrumento da classe capitalista, sempre desejosa de aumentar seu bolo na distribuição de renda.

Quando se enfoca a questão do neoliberalismo à luz de uma reflexão política, pode-se alcançar uma exata compreensão dos modos de dominação neoliberal. Visto de uma perspectiva política, o neoliberalismo não pode ser equacionado a uma proposta de retirada do Estado em face do mercado. Insistir na oposição entre mercado e Estado na análise do neoliberalismo é obscurecer a compreensão do que ele é. Ademais, à luz de uma reflexão política, o neoliberalismo descortina o fato de que não foi o mercado que, de fora, colonizou o Estado, passando a ditar a política que ele deveria seguir; ao contrário, foi o Estado (sobretudo, os Estados mais poderosos do Globo) que incorporou e adotou na economia, na sociedade e na sua máquina administrativa, a lógica da concorrência e o modelo da empresa. O mercado moderno sempre foi amparado pelo Estado, contrariando o que muitos idiotas ainda hoje preferem acreditar  A expansão das finanças do mercado, o financiamento do assalto que é a dívida pública são frutos de políticas deliberadas.

Cada vez mais, os Estados ocidentais adotam políticas eminentemente intervencionistas, cujo objetivo é transformar profundamente as relações sociais, modificar o papel das instituições de proteção social e de educação, moldar as condutas, criando uma concorrência generalizada entre os sujeitos, entre as instituições de ensino, entre diversos setores de mercado; afinal, os Estados estão eles mesmos inseridos num campo de concorrência regional e mundial que os força a agir dessa forma.

Finalmente, a via da reflexão política do neoliberalismo lança luzes sobre o fato de que é a mesma lógica normativa que rege tanto as relações de poder quanto as maneiras de governar em níveis e domínios variados da vida econômica, social e política. O conceito de governamentalidade de Foucault elucida a transversalidade dos modos de poder exercido no interior de uma sociedade num mesmo período histórico.

Como bem lembra Brown (2018, p. 66), “(...) o objetivo do neoliberalismo é derrotar a sociedade e o social”.  Ao que ele mesmo acrescenta, “o ataque neoliberal ao social é fundamentalmente para gerar uma cultura antidemocrática desde baixo, ao mesmo tempo em que legitima formas antidemocráticas de poder estatal desde cima”. (ibid., p. 39). De passagem, esclareço que o “social”  é, para Brown, o espaço onde somos reconhecidos como cidadãos, portadores de direitos políticos e reunidos politicamente mediante a provisão de bens públicos. É o local onde as desigualdades social, econômica, educacional, de gênero – entre outras - historicamente produzidas, se manifestam com voz e tratamento político diferenciados. No social, somos mais que consumidores, produtores, indivíduos e famílias; mais do que investidores ou meros membros da nação. O social é o lugar onde se busca realizar a justiça e atender aos interesses do bem comum. É este o local que o neoliberalismo se emprenha em destruir conceitual, normativa e praticamente.

 Brown mantém que, como o ataque ao social suprime a compreensão democrática de uma sociedade formada por um povo caracterizado pela diversidade e habilitado para o governo de si mesmo, de modo igualitário e solidário, a política se converte num campo de guerra, onde posicionamentos extremos e intransigentes ousam usurpá-la, e onde a liberdade se torna um direito de apropriação, de ruptura e mesmo de destruição do social – “o inimigo declarado dos neoliberais”.




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BIBLIOGRAFIA

 

AZEVEDO, Paulo Faraco de. Neoliberalismo: desmonte do Estado Social. Porto Alegre: Libretos, 2018.

 

BRITO, Ari Ricardo Tank. Liberalismo clássico. In: RAMOS, F.C.; MELO, Rúrion; FRATESCHI, Yara. Manual de Filosofia Política: para os cursos de Teoria do Estado e Ciência Política, Filosofia e Ciências Sociais. São Paulo: Saraiva, 2012.

 

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosofia Politeia, 2019.

 

CASARA, Rubens. Contra a miséria neoliberal: racionalidade, normatividade e imaginário. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.

 

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. Maria Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

DOWBOR, Ladislau. Democracia econômica: alternativas de gestão social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

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